O mito do veneno que salva. Artigo de Ricardo Abramovay
“É difícil encontrar problema contemporâneo mais
importante que o resultante dos 14 maiores projetos de exploração de carvão,
petróleo e gás pelo mundo afora. Por um lado, cada um deles representa uma
bênção a seus países de origem, oferecendo horizonte palpável de solução para a
dependência energética (caso dos EUA), para a pobreza (caso da China) ou para a
educação (caso do Brasil). Mas, quando se somam essas iniciativas, a bênção se
converte em maldição”.
A análise é de Ricardo Abramovay, professor titular da FEA e do IRI/USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp, e autor de Muito Além da Economia Verde, ed. Planeta Sustentável, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, 05-02-2013.
Eis o artigo.
É difícil encontrar problema contemporâneo mais importante que o resultante dos 14 maiores projetos de exploração de carvão, petróleo e gás pelo mundo afora. Por um lado, cada um deles representa uma bênção a seus países de origem, oferecendo horizonte palpável de solução para a dependência energética (caso dos EUA), para a pobreza (caso da China) ou para a educação (caso do Brasil).
Mas, quando se somam essas iniciativas, a bênção se converte em maldição: estudo recente divulgado pelo Greenpeace mostra que a queima adicional de combustíveis fósseis decorrente apenas dessas 14 iniciativas vai lançar na atmosfera, em 2020, o correspondente a tudo o que os EUA emitem hoje em gases de efeito estufa.
Como a exploração de combustíveis fósseis exige pesada estrutura de instalação e de distribuição (minas, poços, oleodutos, gasodutos, postos de gasolina), isso significa que esses 14 projetos colocam a humanidade num "ponto de não retorno" (título do trabalho do Greenpeace) com relação às mudanças climáticas.
A dimensão física do sistema de energia baseado em fósseis já é gigantesca. Ela se amplia a cada investimento adicional em carvão, petróleo e gás. Entre 2000 e 2008, por exemplo, a China investiu nada menos de US$ 300 bilhões em novas minas de carvão. A amortização desses investimentos só vai acontecer entre 2030 e 2040. Essas instalações continuarão funcionando até 2060, segundo um importante relatório das Nações Unidas. Investimentos em fósseis têm um impacto sobre a vida social que se prolonga por décadas.
O re sultado é aterrador: seis graus de elevação da temperatura global média até o final do século. É bom lembrar a convergência crescente entre os governos, as organizações multilaterais, a sociedade civil, o número crescente de empresas e a esmagadora maioria da comunidade científica de que o aquecimento derivado da emissão de gases de efeito estufa não deveria ir além de dois graus. O rumo atual é três vezes superior ao limite mencionado quase exaustivamente em conferências e documentos internacionais.
É verdade que novas tecnologias permitem obter combustíveis fósseis cuja exploração até recentemente era inviável: é o caso do gás de xisto e do pré-sal. Não é menos certo que essa exploração pode trazer benefícios econômicos, sociais e at é geopolíticos fundamentais. É possível até que as ameaças ambientais desses projetos não sejam tão grandes quanto o habitualmente alardeado. Na maior parte dos casos, eles são acompanhados de promessas relativas à captação e à armazenagem de carbono ou à garantia de que os conhecimentos atuais impedirão que se repitam tragédias como a que atingiu o Golfo do México em 2010.
Nada disso, entretanto, elimina o mais importante e que, sobretudo no caso do pré-sal brasileiro, não tem ocupado lugar devido no debate público: aumentar nessa proporção o uso de combustíveis fósseis coloca o conjunto da sociedade numa rota cujos perigos são apenas prenunciados pelo furacão Sandy, pelos incêndios florestais na Rússia, em 2010, ou pelo ciclone que chegou a Santa Catarina poucos anos atrás.
No mundo todo, crescem os investimentos em energias renováveis e em tecnologias explicitamente voltadas a reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Alguns dias após a divulgação do relatório do Greenpeace, a Bloomberg e o Business Council for Sustainable Energy publicaram um estudo que mostra o declínio das fontes tradicionais de energia nos Estados Unidos e uma elevação muito expressiva da participação do gás (que é fóssil, mas não tão sujo quanto o carvão e o petróleo) e de renováveis na matriz energética do país.
O trabalho enfatiza também os ganhos de eficiência no uso da energia por parte da indústria e dos domicílios. Um avanço certamente fundamental que justifica a afirmação: "Uma revolução está transformando a maneira como os americanos produzem, consomem e pensam sobre energia". Esse avanço, entretanto, corre o risco de ser ofuscado pelo estrago advindo da oferta adicional de combustíveis fósseis em diferentes países, mencionados e quantificados no trabalho do Greenpeace.
Em vez simplesmente de surfar na onda do atraso representada por esses investimentos, o Brasil teria muito mais a ganhar caso consolidasse sua matriz energética menos dependente de fósseis que o resto do mundo, mas, ao mesmo tempo, se liderasse uma discussão global cujo ponto de partida só pode ser a pergunta: qual a quantidade de gases de efeito estufa que a economia mundial ainda pode emitir para que haja chance de não ultrapassar o limite de dois graus?
Em 2012, a Agência Internacional de Energia respondeu a essa pergunta com toda a clareza em seu World Energy Outlook: se a civilização tiver prioridade diante da renda dos combustíveis fósseis, não mais que 30% das reservas hoje conhecidas poderão ser exploradas.
O problema é que a viabilidade econômica dessas explorações é incompatível com esse limite. Além disso, como a decisão referente a esses investimentos não é tomada levando em conta seus efeitos globais, cada país, cada empresa dá as costas aos evidentes impactos destrutivos desses projetos e age como se a oferta de combustíveis fósseis e o aquecimento global fossem dois temas independentes um do outro.
Não é sensato que o caminho para a redenção social, para a independência energética ou para qualquer outro objetivo relevante tenha como contrapartida a tão grande ampliação dos riscos a que a miopia dos governos e a ambição das empresas petrolíferas estão expondo a espécie humana.
A análise é de Ricardo Abramovay, professor titular da FEA e do IRI/USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp, e autor de Muito Além da Economia Verde, ed. Planeta Sustentável, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, 05-02-2013.
Eis o artigo.
É difícil encontrar problema contemporâneo mais importante que o resultante dos 14 maiores projetos de exploração de carvão, petróleo e gás pelo mundo afora. Por um lado, cada um deles representa uma bênção a seus países de origem, oferecendo horizonte palpável de solução para a dependência energética (caso dos EUA), para a pobreza (caso da China) ou para a educação (caso do Brasil).
Mas, quando se somam essas iniciativas, a bênção se converte em maldição: estudo recente divulgado pelo Greenpeace mostra que a queima adicional de combustíveis fósseis decorrente apenas dessas 14 iniciativas vai lançar na atmosfera, em 2020, o correspondente a tudo o que os EUA emitem hoje em gases de efeito estufa.
Como a exploração de combustíveis fósseis exige pesada estrutura de instalação e de distribuição (minas, poços, oleodutos, gasodutos, postos de gasolina), isso significa que esses 14 projetos colocam a humanidade num "ponto de não retorno" (título do trabalho do Greenpeace) com relação às mudanças climáticas.
A dimensão física do sistema de energia baseado em fósseis já é gigantesca. Ela se amplia a cada investimento adicional em carvão, petróleo e gás. Entre 2000 e 2008, por exemplo, a China investiu nada menos de US$ 300 bilhões em novas minas de carvão. A amortização desses investimentos só vai acontecer entre 2030 e 2040. Essas instalações continuarão funcionando até 2060, segundo um importante relatório das Nações Unidas. Investimentos em fósseis têm um impacto sobre a vida social que se prolonga por décadas.
O re sultado é aterrador: seis graus de elevação da temperatura global média até o final do século. É bom lembrar a convergência crescente entre os governos, as organizações multilaterais, a sociedade civil, o número crescente de empresas e a esmagadora maioria da comunidade científica de que o aquecimento derivado da emissão de gases de efeito estufa não deveria ir além de dois graus. O rumo atual é três vezes superior ao limite mencionado quase exaustivamente em conferências e documentos internacionais.
É verdade que novas tecnologias permitem obter combustíveis fósseis cuja exploração até recentemente era inviável: é o caso do gás de xisto e do pré-sal. Não é menos certo que essa exploração pode trazer benefícios econômicos, sociais e at é geopolíticos fundamentais. É possível até que as ameaças ambientais desses projetos não sejam tão grandes quanto o habitualmente alardeado. Na maior parte dos casos, eles são acompanhados de promessas relativas à captação e à armazenagem de carbono ou à garantia de que os conhecimentos atuais impedirão que se repitam tragédias como a que atingiu o Golfo do México em 2010.
Nada disso, entretanto, elimina o mais importante e que, sobretudo no caso do pré-sal brasileiro, não tem ocupado lugar devido no debate público: aumentar nessa proporção o uso de combustíveis fósseis coloca o conjunto da sociedade numa rota cujos perigos são apenas prenunciados pelo furacão Sandy, pelos incêndios florestais na Rússia, em 2010, ou pelo ciclone que chegou a Santa Catarina poucos anos atrás.
No mundo todo, crescem os investimentos em energias renováveis e em tecnologias explicitamente voltadas a reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Alguns dias após a divulgação do relatório do Greenpeace, a Bloomberg e o Business Council for Sustainable Energy publicaram um estudo que mostra o declínio das fontes tradicionais de energia nos Estados Unidos e uma elevação muito expressiva da participação do gás (que é fóssil, mas não tão sujo quanto o carvão e o petróleo) e de renováveis na matriz energética do país.
O trabalho enfatiza também os ganhos de eficiência no uso da energia por parte da indústria e dos domicílios. Um avanço certamente fundamental que justifica a afirmação: "Uma revolução está transformando a maneira como os americanos produzem, consomem e pensam sobre energia". Esse avanço, entretanto, corre o risco de ser ofuscado pelo estrago advindo da oferta adicional de combustíveis fósseis em diferentes países, mencionados e quantificados no trabalho do Greenpeace.
Em vez simplesmente de surfar na onda do atraso representada por esses investimentos, o Brasil teria muito mais a ganhar caso consolidasse sua matriz energética menos dependente de fósseis que o resto do mundo, mas, ao mesmo tempo, se liderasse uma discussão global cujo ponto de partida só pode ser a pergunta: qual a quantidade de gases de efeito estufa que a economia mundial ainda pode emitir para que haja chance de não ultrapassar o limite de dois graus?
Em 2012, a Agência Internacional de Energia respondeu a essa pergunta com toda a clareza em seu World Energy Outlook: se a civilização tiver prioridade diante da renda dos combustíveis fósseis, não mais que 30% das reservas hoje conhecidas poderão ser exploradas.
O problema é que a viabilidade econômica dessas explorações é incompatível com esse limite. Além disso, como a decisão referente a esses investimentos não é tomada levando em conta seus efeitos globais, cada país, cada empresa dá as costas aos evidentes impactos destrutivos desses projetos e age como se a oferta de combustíveis fósseis e o aquecimento global fossem dois temas independentes um do outro.
Não é sensato que o caminho para a redenção social, para a independência energética ou para qualquer outro objetivo relevante tenha como contrapartida a tão grande ampliação dos riscos a que a miopia dos governos e a ambição das empresas petrolíferas estão expondo a espécie humana.
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