domingo, 31 de março de 2013

O capitalismo e a economia política da mudança climática

O capitalismo e a economia política da mudança climática

Aqueles que procuram nos governos ocidentais uma resposta eficaz encaram dois desafios. Primeiro, em face do aquecimento global, a premissa do capitalismo, que os indivíduos agindo em seus interesses individuais produzam bons resultados coletivos, é comprovadamente falsa. Este sistema tem aparentemente produzido o pior de todos os resultados: falha ambiental catastrófica que ameaça a maior parte da vida no planeta. O comentário é de Rob Urie, artista e economista político, em artigo publicado por Carta Maior, 15-01-2013.

Eis o artigo.

Em relatórios, 2012 foi o ano mais quente da história registrada nos EUA. A última década foi a mais quente já registrada globalmente. Mesmo para aquelas que sustentam outras hipóteses tamb ém se encaixam o aquecimento global, a consistência do aquecimento, a probabilidade conjunta em termos estatísticos, deve dar uma pausa, porque as consequências estão (1) muito longe e (2) são potencialmente catastróficas em relação a experiência humana anterior. Hipóteses alternativas não só precisam ser plausíveis em um sentido geral, eles exigem explicações específicas de como consistentemente o clima se aqueceu. Na verdade, não há outras explicações plausíveis para ambas a direção e a consistência das mudanças climáticas.

A hipótese do aquecimento 'causado pelo homem' se encaixa razoavelmente bem no cronograma do crescimento do capitalismo industrial. A indústria não capitalista, mais recente na história, porém existente, no entanto, acompanhou o imperialismo capitalista - a propagação do capitalismo global como um sistema de controle, dominação e expropriação. Em certa medida o crescimento do setor não capitalista tem si do uma reação à ameaça do imperialismo capitalista. Ele representa uma ameaça tanto interna como externa para as economias não capitalistas, na medida em que elas ainda existem. Na verdade, o capitalismo foi concebido para trazer uma ordem política alternativa e parece ter feito bastante sucesso.

O capitalismo é apresentado como um modo de organização social que gera muita riqueza. Que o imperialismo capitalista conseguiu desapropriar vasta riqueza é muito evidente. Se as consequências catastróficas do aquecimento global acontecerem, essa riqueza terá provado ser uma ilusão. Em um sentido filosófico, parece uma metáfora que entramos neste mundo com nada e deixá-lo-emos com nada, por que então a dedicação de vidas inteiras para aquisição de material constitui uma explicação plausível para a existência como capitalistas a tem? E por que um sistema baseado em racionalidades locais, esforço econômico pessoal, como Adam Smith, proprietário de uma pequena loja organizada dentre corporações globais, seria esperado a levar às racionalidades globais - resultados coletivos positivos, fora da lógica interna da ideologia capitalista?

Um pouquinho de aritmética ajuda a explicar muita coisa. Receitas - Despesas = Lucro. Lucros aumentam se os custos suportados pelos produtores caírem. O motivo de lucro, em produções capitalistas garante que custos de produção sejam forçados para outros, a menos que o capitalista seja obrigado a suportá-los. E a não ser que alguém queira argumentar que as criaturas do mundo não precisam de lugar para morar, comida para comer e água potável para beber, a destruição destes em produção capitalista é um custo, a cargo do produtor ou de ser suportado por outros. Até mesmo o mais radical economistas capitalistas de 'livre mercado' concordam que este conjunto de relações é um pré-requisito para o capitalismo, de qualquer forma: "trabalho." E a produção que ameaça acabar com o mundo, como o aquecimento global faz, significa que "lucros" da dita produção não existiriam se os capitalistas foram forçados a suportar os seus custos reais.

Aqueles que mesmo casualmente passaram por regiões de extração capitalista e / ou de produção industrial viram que os capitalistas quase nunca foram forçados a suportar os custos da produção capitalista. Das regiões de carvão da Pensilvânia para os locais industriais abandonados do ‘Rust Belt’, para os locais de extração de recursos envenenados no Ocidente a remoção do topo da montanha em West Virgínia, para as "areias de asfalto” de regiões do Canadá para minas de carvão na Mongólia, os custos em termos de não habitabilidade da terra e destruição de generosidade do planeta permanecerem enquanto os lucros acumulam-se.

Depois de esgotar os recursos e causando destruição os capitalistas historicamente simplesmente mudaram- se para territórios não empobrecidos e não destruídos ainda. A "tragédia dos comuns" usada na teoria da propriedade capitalista seria um inconveniente menor ao lado da "tragédia da propriedade privada" perpetrada pelo capitalismo, mesmo se já não fosse uma mentira cínica (ver o último quinto de O Capital de Marx, Vol. I para o contexto).

Mas este não é um conto de moralidade. Nem é o aquecimento global um acidente da história que ninguém assume a responsabilidade. É a épica luta social do nosso tempo. O capitalismo é uma forma de imperialismo econômico de que determinadas pessoas foram beneficiadas e continuam a se beneficiar da destruição do planeta. Os "indivíduos racionais" da teoria capitalista têm agregada a insanidade coletiva. E como a história está no processo de demonstração, a "mão invisível" de Adam Smith é uma ilusão - um mundo de pessoas que atuam em seus próprios estreitos interesses e conômicos resultou em um mundo onde as pessoas agem em seus próprios estreitos interesses econômicos até o suicídio coletivo.

Muito antes de o aquecimento global ser identificado, o problema das "externalidades", ou a tendência dos capitalistas para forçar seus custos de produção para as pessoas que veem nenhum benefício a partir dele, foi identificada e remédios foram procurados. Antes de se tornar uma ferramenta de Papa Koch, pai do infame 'Koch Brothers' e fundador da John Birch Society, o economista austríaco Friedrich Hayek argumentou que o papel legítimo do governo era para corrigir tais 'falhas de mercado' como a destruição ambiental. Mais tarde em sua vida, quando ele era totalmente uma ferramenta do capitalismo de Papa Koch, ele convenientemente (por causa de Papa Koch) argumentou que o capitalismo foi uma bênção para a humanidade e que soluções para as externalidades “baseadas no me rcado” eram preferidas.

Mas soluções baseadas no mercado para externalidades são uma farsa cínica em várias dimensões. Inicialmente, elas pressupõem produção ambientalmente destrutiva é fato eterno e o objetivo de "soluções" é limitar o crescimento a um nível de tendência que permanece coletivamente suicida. No segundo, em face de toda a experiência histórica em contrário, soluções baseadas no mercado assumem os mesmos capitalistas que passaram três séculos lucrando a partir da imposição de seus custos para os outros vão cumprir as regras, que eles mesmos claramente escreveram com pleno conhecimento que não existe, e não há planos para criar, um sistema confiável.

No terceiro, mesmo que tal sistema de aplicação fosse concebido e desenvolvido, a captura "privada" das instituições do Estado iria neutralizar a capacidade de execução. Finalmente, produção por dívida financiada cria tanto alavancagem financeira como i nstitucional. Credores beneficiam-se quando os custos de produção são transferidos para os outros, porque melhora a sua probabilidade de reembolso - e os credores controlam o dinheiro em uma economia baseada em dívida. A alegação de que mais capitalismo é a solução para as catástrofes do capitalismo só tem sentido em um sistema de lógica fechada; não existe um nível de catástrofe que tornaria "mais capitalismo" ilógico dentro das regras internas desta lógica.

Da mesma forma, a alegação que "consumidores" individuais podem resolver o aquecimento global através da escolha de produtos ecologicamente 'corretos' começa com a premissa de que os consumidores causam externalidades através da sua "escolha" de produtos. Primeiro esta afirmação assume que todos os consumidores conhecem os processos que envolvem a produção de bens e serviços, são capazes de quantificar a proporção de custos embutidos no preço dos produtos, versus aqueles que nã o são, e realmente tem escolhas. Segundo, ele assume que os consumidores não têm necessidades materiais. Agropecuária ocidental, de onde a maioria da comida dos ocidentais vem, é um dos principais contribuintes para o efeito estufa. A mudança para práticas agrícolas sustentáveis implausivelmente assume que os consumidores, tanto compreendem o impacto das práticas existentes como podem forçar uma mudança vinda de baixo. Terceiro, mais uma vez assume que o capitalismo é a solução para as catástrofes que o capitalismo cria - pessoas agindo em seu próprio interesse econômico irão agregar-se para servir o interesse do coletivo, mesmo não tendo sido bem sucedidos no passado.

Na verdade, a premissa de consumidores renunciando seus próprios interesses econômicos para servir ao bem coletivo, coloca uma mentira para a fundamental premissa do capitalismo. Em outras palavras, uma vez que é certo que "consumidores" poderiam e deveriam agir no interesse coletivo, a lógica interna do capitalismo rapidamente desaparece. Imperialismo capitalista está destruindo o planeta, principalmente para os seres que veem poucos benefícios (e muitas vezes grande mal) do sistema.

A única maneira de isso não constituir um assassinato em massa em uma escala nunca antes imaginada na história humana, é se o aquecimento global não for realmente uma ameaça; se a produção capitalista não esteja por trás disso, ou nenhuma das duas combinações. Apparatchiks capitalistas estão perseguindo dois caminhos em resposta - substituir o discurso social em torno da questão com uma resposta comercial - que utiliza todos os meios disponíveis para persuadir as pessoas que o problema não é real e / ou que as pessoas responsáveis por ele não são as responsáveis. A segunda faixa é propor soluções que (1) não questionem a natureza do problema - a economia política do capitalismo responsável pelo aquecimento global e (2), for necer a aparência de uma solução sem uma ação eficaz tendo lugar.

Aqueles que procuram nos governos ocidentais uma resposta eficaz encaram dois desafios. Primeiro, em face do aquecimento global, a premissa do capitalismo, que os indivíduos agindo em seus interesses individuais produzam bons resultados coletivos, é comprovadamente falsa. Este sistema tem aparentemente produzido o pior de todos os resultados: falha ambiental catastrófica que ameaça a maior parte da vida no planeta.

Se a teoria dos interesses individuais que se acumulam para o bem coletivo é falsa, então o é também a concepção liberal clássica do Estado. Se o papel do Estado, como imaginado na teoria capitalista, é a proteção dos interesses "privados" e os interesses privados estão levando o mundo para o suicídio coletivo (ou melhor, homicídio capitalista), o estado deve ser recuperado para servir os interesses coletivos.

Como os interesses privados atual mente no controle do Estado estão apertando sua permanência no poder através da construção de um estado policial corporativo, deixo aos leitores a propor contramedidas não confrontais susceptíveis de serem eficazes. Caso contrário, o aquecimento global é o confronto forçado em cima de nós.

Finalmente - Thomas Malthus foi provado um prisioneiro de sua ideologia de entropia, uma previsão de fome em massa com uma crescente população enfrentando um abastecimento de alimento estático. Sr. Malthus estava escrevendo nos estágios iniciais da expansão global do capitalismo.

As tecnologias agrícolas ligadas à produção capitalista expandiu a oferta de alimentos para alimentar a população crescente. Na verdade, o capitalismo reengenhou "o mundo" para ser dependente de produção capitalista.

Soluções tecnológicas para o aquecimento global, sem dúvida, serão colocadas à frente e testadas. Ma s a tecnologia está inexoravelmente ligada à lógica da produção capitalista, enquanto o capitalismo está a emergir como ‘o problema’. Só uma mudança fundamental para fugir dos estabelecimentos do capitalismo irá fornecer soluções viáveis. E o aquecimento global é um problema gradual de um sistema político que responde à crise. Uma política de crise em torno do aquecimento global deve surgir para a ação política eficaz coalescer.

quinta-feira, 28 de março de 2013

O mito do veneno que salva.

O mito do veneno que salva. Artigo de Ricardo Abramovay



“É difícil encontrar problema contemporâneo mais importante que o resultante dos 14 maiores projetos de exploração de carvão, petróleo e gás pelo mundo afora. Por um lado, cada um deles representa uma bênção a seus países de origem, oferecendo horizonte palpável de solução para a dependência energética (caso dos EUA), para a pobreza (caso da China) ou para a educação (caso do Brasil). Mas, quando se somam essas iniciativas, a bênção se converte em maldição”.

A análise é de
Ricardo Abramovay, professor titular da FEA e do IRI/USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp, e autor de Muito Além da Economia Verde, ed. Planeta Sustentável, em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, 05-02-2013.
Eis o artigo.
É difícil encontrar problema contemporâneo mais importante que o resultante dos 14 maiores projetos de exploração de carvão, petróleo e gás pelo mundo afora. Por um lado, cada um deles representa uma bênção a seus países de origem, oferecendo horizonte palpável de solução para a dependência energética (caso dos EUA), para a pobreza (caso da China) ou para a educação (caso do Brasil).

Mas, quando se somam essas iniciativas, a bênção se converte em maldição: estudo recente divulgado pelo Greenpeace mostra que a queima adicional de combustíveis fósseis decorrente apenas dessas 14 iniciativas vai lançar na atmosfera, em 2020, o correspondente a tudo o que os EUA emitem hoje em gases de efeito estufa.

Como a exploração de combustíveis fósseis exige pesada estrutura de instalação e de distribuição (minas, poços, oleodutos, gasodutos, postos de gasolina), isso significa que esses 14 projetos colocam a humanidade num "ponto de não retorno" (título do trabalho do Greenpeace) com relação às mudanças climáticas.

A dimensão física do sistema de energia baseado em fósseis já é gigantesca. Ela se amplia a cada investimento adicional em carvão, petróleo e gás. Entre 2000 e 2008, por exemplo, a China investiu nada menos de US$ 300 bilhões em novas minas de carvão. A amortização desses investimentos só vai acontecer entre 2030 e 2040. Essas instalações continuarão funcionando até 2060, segundo um importante relatório das Nações Unidas. Investimentos em fósseis têm um impacto sobre a vida social que se prolonga por décadas.

O re sultado é aterrador: seis graus de elevação da temperatura global média até o final do século. É bom lembrar a convergência crescente entre os governos, as organizações multilaterais, a sociedade civil, o número crescente de empresas e a esmagadora maioria da comunidade científica de que o aquecimento derivado da emissão de gases de efeito estufa não deveria ir além de dois graus. O rumo atual é três vezes superior ao limite mencionado quase exaustivamente em conferências e documentos internacionais.

É verdade que novas tecnologias permitem obter
combustíveis fósseis cuja exploração até recentemente era inviável: é o caso do gás de xisto e do pré-sal. Não é menos certo que essa exploração pode trazer benefícios econômicos, sociais e at é geopolíticos fundamentais. É possível até que as ameaças ambientais desses projetos não sejam tão grandes quanto o habitualmente alardeado. Na maior parte dos casos, eles são acompanhados de promessas relativas à captação e à armazenagem de carbono ou à garantia de que os conhecimentos atuais impedirão que se repitam tragédias como a que atingiu o Golfo do México em 2010.

Nada disso, entretanto, elimina o mais importante e que, sobretudo no caso do
pré-sal brasileiro, não tem ocupado lugar devido no debate público: aumentar nessa proporção o uso de combustíveis fósseis coloca o conjunto da sociedade numa rota cujos perigos são apenas prenunciados pelo furacão Sandy, pelos incêndios florestais na Rússia, em 2010, ou pelo ciclone que chegou a Santa Catarina poucos anos atrás.

No mundo todo, crescem os investimentos em energias renováveis e em tecnologias explicitamente voltadas a reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Alguns dias após a divulgação do relatório do Greenpeace, a Bloomberg e o Business Council for Sustainable Energy publicaram um estudo que mostra o declínio das fontes tradicionais de energia nos Estados Unidos e uma elevação muito expressiva da participação do gás (que é fóssil, mas não tão sujo quanto o carvão e o petróleo) e de renováveis na matriz energética do país.

O trabalho enfatiza também os ganhos de eficiência no uso da energia por parte da indústria e dos domicílios. Um avanço certamente fundamental que justifica a afirmação: "Uma revolução está transformando a maneira como os americanos produzem, consomem e pensam sobre energia". Esse avanço, entretanto, corre o risco de ser ofuscado pelo estrago advindo da oferta adicional de combustíveis fósseis em diferentes países, mencionados e quantificados no trabalho do Greenpeace.

Em vez simplesmente de surfar na onda do atraso representada por esses investimentos, o Brasil teria muito mais a ganhar caso consolidasse sua matriz energética menos dependente de fósseis que o resto do mundo, mas, ao mesmo tempo, se liderasse uma discussão global cujo ponto de partida só pode ser a pergunta: qual a quantidade de gases de efeito estufa que a economia mundial ainda pode emitir para que haja chance de não ultrapassar o limite de dois graus?

Em 2012, a Agência Internacional de Energia respondeu a essa pergunta com toda a clareza em seu World Energy Outlook: se a civilização tiver prioridade diante da renda dos combustíveis fósseis, não mais que 30% das reservas hoje conhecidas poderão ser exploradas.

O problema é que a viabilidade econômica dessas explorações é incompatível com esse limite. Além disso, como a decisão referente a esses investimentos não é tomada levando em conta seus efeitos globais, cada país, cada empresa dá as costas aos evidentes impactos destrutivos desses projetos e age como se a oferta de combustíveis fósseis e o aquecimento global fossem dois temas independentes um do outro.

Não é sensato que o caminho para a redenção social, para a independência energética ou para qualquer outro objetivo relevante tenha como contrapartida a tão grande ampliação dos riscos a que a miopia dos governos e a ambição das empresas petrolíferas estão expondo a espécie humana.

quinta-feira, 21 de março de 2013

“Não há razão para salvar os bancos”

Quarta, 06 de fevereiro de 2013
“Não há razão para salvar os bancos”

A perseguição do Santo Graal do crescimento é um erro; a economia converteu-se em ficção; o dinheiro já não representa nada real; é preciso reconsiderar o que é uma dívida e que papel devem desempenhar os bancos em um novo mundo. Estas são algumas das ideias que vertebram o pensamento de John Ralston Saul, escritor, ensaísta e filósofo canadense a quem a revista Time qualificou de “profeta”.
Por mais alternativo que possa parecer seu discurso, Ralston está longe de ser, aos seus 64 anos, um perroflauta. Alto, magro e de andar elegante, faz acompanhar seu aspecto elegante com um discurso sem panos quentes. Não renega o capitalismo; de fato, reivindica uma das referências do liberalismo, Adam Smith. Mas propõe medidas, tais como: o resgate dos cidadãos despejados ou sepultados por uma hipoteca, em vez de salvar bancos que só farão com que a espiral da dívida siga crescendo.
Uma poderosa citação encabeça seu último livro, O colapso da globalização e a reinvenção do mundo: “Ainda não entendi inteiramente por que aconteceu. Alan Greenspan, 23 de outubro de 2008”. A frase do ex-diretor do FED norte-americano dá a medida da confusão criada pela crise, inclusive entre aqueles que a incubaram. E é essa confusão que este pensador canadense, que nada na contracorrente, vem enfrentando nos últimos anos.
A entrevista é de Joseba Elola e está publicada no jornal espanhol El País, 05-02-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Estamos imersos em um período sombrio da economia, e não parece que as coisas melhorem substancialmente, nem no mundo, nem na Espanha, nem...
Existe uma nova religião absoluta do crescimento, do comércio, da santidade da dívida e dos contratos comerciais, com a qual tentam nos fazer crer o quanto os políticos são inteligentes e o quanto nós, os demais, somos estúpidos. Da na mesma, por pior que seja a situação atual, eles seguem aplicando as mesmas receitas, fazendo o mesmo. É isso que se está fazendo na Espanha e em todo o mundo. O sistema avança na mesma direção. Os problemas que existem estão se agravando. Ninguém reconhece qual é o autêntico problema. O crescimento não vai nos tirar de onde estamos; a austeridade, também não. Veremos como as democracias resistem a tudo isto. Estão colocando a democracia em perigo.
Ralston é um homem de discurso ágil e fluido, sem papas na língua. Encontramo-nos com ele no restaurante de um hotel no centro de Barcelona. A revista norte-americana de pensamento alternativo Utne Reader o colocou entre os 100 pensadores e visionários mais importantes do mundo. Autor de 16 livros (entre eles, o ensaio filosófico Os bastardos de Voltaire. A ditadura da razão no Ocidente) e de cinco romances que foram traduzidos para 22 idiomas, Ralston Saul é, além disso, o presidente do PEN International, associação de escritores que data a 1921 e que luta pela liberdade de expressão em todo o mundo.
Em 2005, três anos antes que se desencadeasse a crise, publicou o livro O colapso da globalização e a reinvenção do mundo, que já vendeu 400.000 exemplares, segundo dados proporcionados pela sua editora, a RBA. Nele analisava o fracasso dos critérios que orientam o sistema das relações econômicas e financeiras entre países, explicava a crise de um modelo e antecipava um colapso. Em 2009, à vista de que algumas de suas previsões haviam se cumprido, reeditou com acréscimos um livro que chega agora em sua versão espanhola, com um prólogo que aborda questões como o resgate do Bankia.
No livro você defende que o dinheiro não é real e que nos convertemos em seus escravos. Fala em que vivemos em uma economia fictícia. E diz que nos anos 1970 o comércio era seis vezes o valor dos bens e que em 1995 era 50 vezes mais. Quantas vezes é agora?
Ninguém sabe, mas deve estar ao redor de 150. O mais vergonhoso é que os números não estão disponíveis, ou ao menos não pude encontrá-los.
E o que isso significa?
A ironia é que a globalização levou ao oposto do que prometia. Prometeu competição, e causou o retorno dos oligopólios; prometeu renovação do capitalismo, e significou a volta ao mercantilismo; prometeu o fim do nacionalismo feio [defende que também há um nacionalismo positivo], e traiu a era mais nacionalista desde o final da Segunda Guerra Mundial. Prometeu crescimento, não temos crescimento; prometeu emprego, não temos emprego... e assim se pode continuar com a lista. Nada do que prometeu, aconteceu. Disseram que com o keynesianismo se imprimia muito dinheiro; que se devia controlar o dinheiro em circulação e que isso faria a economia funcionar. O fato é que todo este período levou à maior expansão na quantidade de dinheiro na história do mundo, vimos centenas de exemplos de novos tipos de dinheiro: os cartões de crédito, os bônus lixo, os derivados. Tudo isso é imprimir dinheiro, pura inflação da quantidade de dinheiro. O argumento capitalista era que o dinheiro engraxava a máquina. Mas chegou um momento em que disseram: o dinheiro é real, por isso é bom ter pessoas trabalhando no setor financeiro. As fusões e grandes aquisições de empresas? Isso é imprimir dinheiro. Cada vez que uma companhia compra outra e se endivida em, digamos, 700.000 dólares, isso quer dizer que se acaba de imprimir 700.000 dólares, acabam de criar 700.000 dólares que antes não existiam. Nunca tivemos tanto dinheiro circulando no mundo e tão mal distribuído. E por isso, quando ocorre a crise, as pessoas que fazem parte dessa lunática inflação dizem: é preciso salvar os bancos.
E não se deve resgatar os bancos?
Não há razão para salvar os bancos, não necessitamos de tanto dinheiro. O razoável teria sido aproveitar a oportunidade para limpar a desordem. Basta tomar o exemplo espanhol do Bankia. Uma boa política teria sido, por exemplo, que o Governo anunciasse que pagaria todas as hipotecas até uma determinada quantidade, digamos 300.000 euros. Dá-se o dinheiro às pessoas que estão em sua casa e que têm uma hipoteca, e de fato se salva os bancos: é o cidadão que dá o dinheiro aos bancos ao pagar sua hipoteca. Logo, as pessoas já não têm dívidas e podem gastar o que ganham. Assim se cria uma classe proprietária e, além disso, se relança a economia. É tão simples.
E isso é possível?
Evidentemente. Para mim a pergunta é: é possível que demos todo esse dinheiro aos bancos, que foram os que criaram o problema, para que não gastem esse dinheiro e para que continuem concedendo-se a si mesmos enormes bônus? Isso é possível? Isso é legal? Vamos, deixe-me respirar! Há outra coisa: não queremos salvar todos os bancos, não queremos tanto dinheiro, assim que pagamos 150.000 euros dessas hipotecas e pagamos o resto da dívida, 150.000. Os Governos têm o poder para fazê-lo. Desse modo, 150.000 euros não retornam aos bancos, limpa-se o sistema bancário, e reduz-se a quantidade de dinheiro que circula, o que é algo positivo.
Mas não deve ser tão fácil de fazer. Por exemplo, as pessoas locadoras se sentiriam prejudicadas.
Teria que se estudar os números. A política econômica é tentar mover as coisas em uma direção boa. Não significa fazer exatamente a mesma coisa em cada lugar, nem significa que se tenha que fazer tudo ao mesmo tempo. Resolve-se primeiro esse grande problema e depois se faz um programa para aluguéis de forma que as pessoas possam comprar a casa que estão alugando. É possível fazer mais coisas. Por exemplo, dar uma renda mínima às pessoas em vez de colocá-las nas filas para acessar prestações, subsídios e ajudas, em vez de humilhá-las examinando seus requisitos uma e outra vez; ajudas que, além disso, são caras de administrar... Muitos conservadores, liberais e socialdemocratas responsáveis estão de acordo em que seria muito melhor uma renda garantida anual. Representaria liberar a sociedade, devolver às pessoas o respeito por si mesmo. As pessoas humilhadas ou marginalizadas se sentiriam parte da sociedade. É curios o, mas há muita gente que está de acordo com estas ideias.
Ah, sim? E onde estão esses conservadores e liberais que pensam assim?
Em todas as partes! Não estão entre os neoconservadores, mas entre muitos conservadores. Muitos empresários acreditam nisso. Mas como o debate se perde nos pequenos detalhes e a ideia dominante é que é preciso reduzir o peso do Estado, ninguém coloca estas questões sobre a mesa.
Que possibilidades há para que algo como o que relata possa ser levado a cabo?
Há possibilidades, evidentemente; foram possíveis muitas outras coisas nos últimos anos. Por exemplo: a classe executiva do setor privado conseguiu, pressionando os Governos, regulações que converteram a fraude em algo legal. Assim estão esses conselheiros delegados recebendo bônus e participações nas ações, ganhando milhões cada ano: mas, se só são gerentes! Estão no posto por cinco anos, irão jogar golfe quando se aposentam, não são ninguém! Ninguém sabe seus nomes, não fizeram nada em particular! Deveriam cobrar esses bônus quando a empresa vai mal? Esse não é o debate. O debate é: devem receber bônus? Se já lhes pagaram! Usaram sua influência para mudar o sistema tributário em todos os países para não ter que pagar muitos impostos por esses bônus. Isso é fraude. Provavelmente, os dois exemplos mais evidentes de fraude desde a Segunda Guerra Mundial são: a mudança nas disposições de ingressos dos ex ecutivos, fraude evidente legalizada, e a transferência da dívida privada dos últimos anos ao setor público.
A União Europeia está corroída pela dívida...
Há quem coloque os eurobônus como solução para a crise europeia. Estamos de brincadeira? Eu digo: acabemos com a dívida. Como não podem admitir que se equivocaram fazem com que os bônus sejam algo que lhes permite recolher toda a dívida, colocá-la nos bônus e vendê-los. Estão colocando a civilização europeia sob o peso de uma dívida que não existe. Se tivessem um pouco de imaginação e um pouco de coragem, convocariam uma reunião e diriam: sim, os espanhóis agiram mal e os gregos fizeram coisas horríveis com isto, mas nenhum de nós é parte inocente; como podemos zerar o cronômetro? Basicamente, vamos envolver parte desta dívida em um envelope, escreveremos no envelope a seguinte frase: “Isto é muito importante”, o colocaremos num caixão, o fecharemos e jogamos a chave fora. É preciso virar a página, superar tudo isso. Em vez disto, estão tentando fazer o mesmo que vêm fazendo durante anos, mas como se nã o o fizessem.
Uma proposta surpreendente...
A minha proposta é responsável e honesta. Eles estão fazendo uma proposta delirante e incrivelmente complicada que não vai funcionar e que não nos leva a lugar nenhum. E no caminho fazem as pessoas sofrerem. O que pensam que vão dizer aos gregos quando reduzirem o salário mínimo em 22%? Está claro que isto é como uma questão religiosa. Como a economia é a nova religião, aplicaram a moral à economia. A dívida pública tem peso moral, mas a privada não. Como se digere isso? Este é um dos fracassos da globalização. Se o setor privado pode se livrar da dívida, o setor público também pode.
Mas, então, o que vai acontecer, que a dívida na realidade não existe?
A verdade é que não. O dinheiro é uma convenção. Uma árvore é real, o dinheiro é uma convenção. Os néscios, quando chega a crise, estão convencidos de que o dinheiro é real. Henrique IV foi considerado como o Bom Rei porque a França estava mergulhada numa dívida e a fez desaparecer; a partir desse momento viveram 250 anos de prosperidade, por tirarem a dívida; Atenas construiu toda a sua história após ter se livrado da dívida; o império norte-americano está inteiramente construído sobre um perdão, se perdoaram a dívida, em média, cinco vezes entre a guerra civil e 1929; a riqueza dos Estados Unidos ao longo do século XX está inteiramente construída sobre o fato de não terem pago sua dívida em 1929: emprestaram dinheiro da Europa, nos mercados, e com isso construíram trens, estradas, arranha-céus e tiveram um colapso econômico: quem lhes deu dinheiro o perdeu e eles ficaram com suas infraestruturas. Os Esta dos Unidos viveram cinco colapsos que, no final das contas, os deixaram livres de sua dívida e permitiram converter-se em líder a partir de 1935.
John Ralston Saul é um homem apaixonado, um orador nato. Não é um anticapitalista. Declara-se partidário de muitos dos preceitos de Adam Smith, da propriedade privada, do mercado, e também dos serviços públicos. Disse que o capitalismo vai continuar. Mas considera que a globalização causou prejuízos. E assinala alguns culpados em seu livro. Cita a Sagrada Congregação para a Propagação da Fé: economistas, executivos, consultores e propagandistas, isto é, jornalistas de economia: “Difundiram a ideia de que o livre comércio, a globalização e a busca do crescimento eram o único caminho rumo à prosperidade”, manifesta.
O ensaísta canadense carrega nas tintas contra a chamada geração do relatório. Sustenta que o mundo está nas mãos de economistas e empresários de capacidades muito limitadas e que em muitos casos são “analfabetos funcionais”. Gente que só contempla o curto prazo.
“Os historiadores econômicos são os intelectuais; os macroeconômicos são os semi-intelectuais que deram forma às ideias, e depois vem as abelhas operárias, que trabalham no micro, que não pensam e só fazem números. Eliminou-se os historiadores porque, uma vez que se tem a verdade, não se quer que o passado seja examinado. Promoveram os semi-intelectuais aos altares. E elevaram os que só fazem números”.
Disse que estamos nas mãos dos últimos. Explica que o apogeu da globalização se deu em meados dos anos 1990, quando o comércio vivia dias de máxima liberalização, os impostos sobre as grandes fortunas eram baixados, as privatizações e as desregulações campeavam por todos os lados e a civilização ocidental abraçava a religião neoliberal e adorava o mercado global.
Você já vem alertando há algum tempo sobre a globalização...
Era possível ver sinais de que a globalização estava chegando ao seu fim desde 1995. A globalização está implodindo pelos defeitos que continha desde o princípio como programa ideológico-filosófico-social. Ainda estamos vivendo suas consequências: se a Espanha desmorona, se a Grécia deixa de ser uma democracia, se no Canadá se produzem problemas internos que o racham, tudo isso, em grande parte, será um resultado da globalização. Eu sou um grande admirador de Stiglitz e Krugman, mas são dois economistas, e não podem evitar isso, que se fixam nos detalhes: teria que fazer isso, teria que fazer aquilo... Fazem bem, mas escapa-lhes a principal questão: a natureza do que está acontecendo, a natureza da besta chamada globalização.
Você defende que a globalização se converteu em religião, em dogma...
O Vaticano, em seus momentos de grande poder, era religião de modo marginal; tratava-se antes de uma questão de política e de poder; com a globalização acontece algo similar: é algo econômico, de modo marginal; é uma questão de política e de controle, de poder; é um modelo social, assim como a Igreja católica o foi ou o império britânico. E se rompe porque como modelo social não funciona e semeia a catástrofe pelo caminho. Na realidade, a globalização vem de um grupo de pessoas bastante marginal que tomou velhas ideias de meados do século XIX passadas de moda. Uma delas era inglesa: o comércio livre, e a outra era o capitalismo de corsários, que remonta ao final do século XIX na Inglaterra e nos Estados Unidos. Uniram as duas coisas e disseram: esta é uma grande ideia. E não pensaram nas consequências da união dessas duas ideias. Na crise dos anos 1970 estávamos com excedentes de produção, não se devia resolv er o problema incrementando o comércio, porque já havia muitos bens. Ou seja, a solução que encontraram para o problema era a oposta ao que se necessitava. Levamos 30 anos de assustadora mediocridade intelectual, sem sentido da história, nem imaginação, nem criatividade, sem pensar no que estamos fazendo e para onde vamos: uma grande banalidade com tremendos resultados.

quinta-feira, 14 de março de 2013

“O Google sabe o que você estava pensando”, diz Assange

“O Google sabe o que você estava pensando”, diz Assange

A internet se transformou no maior instrumento de vigilância já criado e a liberdade que ela representa está ameaçada. A avaliação é de Julian Assange, criador do WikiLeaks, que há sete meses vive na Embaixada do Equador em Londres - Quito lhe concedeu asilo, mas os britânicos não lhe deram salvo-conduto para que vá ao aeroporto e deixe o país. Assange seria extraditado para a Suécia, onde é acusado de crimes sexuais. O australiano recebeu a reportagem do jornal O Estado de S.P aulo, 03-02-2013, para falar sobre seu livro Cypherpunks, Liberdade e o Futuro da Internet, que está sendo lançado no Brasil pela Boitempo Editorial.

Eis a entrevista.

A web está numa encruzilhada?


Tecnologia produz poder, a ponto de a história da civilização humana ser a história do desenvolvimento de diferentes armas de diferentes tipos. Por exemplo, quando rifles eram as armas dominantes ou navios de guerra ou bombas atômicas. Desde 1945, a relação entre as superpotências era definida por quem tinha acesso a armas atômicas. Hoje, a internet redefiniu as relações de força antes definidas pelas armas. Todas as sociedades que têm qualquer desenvolvimento tecnológico, que são as sociedades influentes, se fundiram com a internet. Portanto, não há uma separação entre sociedade, indivíduos, Estados e i nternet. A internet é hoje o alicerce da sociedade e conecta os Estados além das fronteiras. Conhecimento é poder. Outras coisas também são poder, mas ela deu muito poder a pessoas que antes não tinham. Agindo contra essa força está a vigilância em massa criada por parte do Estado.

De que forma ocorre essa vigilância?

A comunicação entre indivíduos ocorre pela internet. Sistemas de telefone estão na internet, bancos e transações usam a internet. Colocamos nossos pensamentos mais íntimos na internet, detalhes, como o diálogos entre marido e mulher e até nossa posição geográfica. Enfim, tudo é exposto na internet. Isso significa que grupos envolvidos na vigilância em massa realizam uma apropriação enorme de conhecimento. Esse é o maior roubo da história. A tecnologia está sendo desenvolvida para essa vigilância em massa e vendida por empresas de países como a França, que vendeu um sistema de vigilância para o regime de Muamar Kadafi. Na África do Sul, há um sistema desenhado para gravar de forma permanente todas as ligações que entram e saem do país e as estocam por apenas US$ 10 milhões ao ano. Está ficando barato. A população mundial dobra a cada 20 anos. O custo de vigilância está caindo pela metade a cada 18 meses.

Muitos acreditam que a Primavera Árabe só ocorreu graças à internet. O que o sr. acha?

Há uma série de histórias de um longo trabalho de ativistas, sindicatos e até clubes de futebol que tiveram um papel importante na Tunísia e no Egito, os Ultras. O ativismo pan-arábico é algo novo e potencializado pela web. Diferentes ativistas em diferentes países se conectaram pela web, trocando dados, identificando quem era bom e quem era mau. O movimento dos Ultras veio da Itália para clubes da Tunísia e Egito pela internet. O WikiLeaks jogou muita informação que foi atacada pelos regimes na Tunísia e no Egito. Mas houve também informações disseminadas por esses países e, mais importante ainda, disseminadas para fora desses países, a tal ponto que ficou difícil para EUA e Europa defenderem seus aliados.

O sr. aponta para o poder de Facebook e Google. Como esses sites são usados contra civis?

O Google sabe o que você estava pensando. E sabe o que você pensou no passado, porque quando você quer saber algum detalhe, busca no Google. Sites que têm Google Adds, ou seja, todos os sites, registram sua visita. O Google sabe todos os sites que você visitou, tudo o que você buscou. Ele te conhece melhor que você. Você sabe o que você buscou há dois dias? Não. Mas o Goo gle sabe. Alguém pode dizer: o Google só quer vender publicidade. Mas, na realidade, todas as agências de inteligência dos EUA têm acesso ao material do Google. Eles acessaram isso em nosso caso.

Como fizeram isso?

Usaram cartas da agência de segurança nacional e mandados para buscar os dados de e-mail das pessoas envolvidas em nossa organização. Isso saiu do Google, da conta do Twitter, onde pessoas entraram para acompanhar nossa conta. No caso do Facebook, é algo impressionante. As pessoas estão fazendo bilhões de horas de trabalho gratuito para a CIA. Colocando na rede seus amigos, suas relações com eles, seus parentes, relatando o que estão fazendo, dizendo que viram aquela pessoa naquela festa, outra naquela loja. É um incrível instrumento de controle. Países como a Islândia têm uma penetração no Facebook de 88%. Mesmo que você não esteja no Facebook, seu irmão está e está relatando sobre você.

Como o sr. explica o fato de pessoas de diferentes culturas e religiões estarem dispostas a revelar suas vidas na web?

Você pode dizer: bom, estou fazendo isso de forma voluntária e é mais importante estabelecer conexões sociais do que se preocupar com o aparato de um Estado totalitário. Mas isso não é verdade. Pessoas querem compartilhar algo com meus amigos e amigos de meus amigos, mas não com meus amigos e com a CIA. As pessoas estão sendo enganadas.

Mas a censura na China, no Irã e em Cuba não mostra que a web é mais ameaçadora para esses regimes que para os civis?
Pessoas censuram por um motivo. Porque têm medo ou querem ter mais poder. Norma lmente, eles querem manter o poder. O Irã censura porque teme que iranianos sejam influenciados por material de fora do país. E quem publica isso? Bom, alguns são dissidentes genuínos, mas também há empresas de fachada, criadas por israelenses e americanos. Denunciamos essas empresas no WikiLeaks. Mas acho que é saudável que governos tenham medo das pessoas. É ótimo que a China esteja com medo do que sua população pense. A China baniu o WikiLeaks em 2007. Pelo que sabemos, foi o primeiro país a bani-lo. Temos travado uma guerra para superar o firewall chinês.

Qual sua avaliação sobre o argumento de que os documentos divulgados pelo WikiLeaks foram obtidos de forma ilegal?

Generais não definem a lei. Ou ao menos não deveriam. Se falamos da situação americana, foi perfeitamente legal.

A obtenção dos documentos?

Sim, a forma com que foram obtidos. Militares americanos não têm direito de acobertar crimes. Não podem usar a confidencialidade de documentos para manter um crime sigiloso. Às vezes, a polícia tem de manter algo secreto. Uma investigação sobre a máfia deve ser mantida em sigilo. Outras organizações, como editores e jornais, têm a responsabilidade perante o público de publicar informação que o ajude a entender o mundo.

Como vê o comportamento dos governos latino-americanos diante da internet e da imprensa?

É bem variado e há vários problemas. Comparado com o restante do mundo, a região está bem.

O presidente (do Equador) Rafael Correa ataca muito a imprensa. O qu e o sr. acha disso?

Deveria atacar mais. A primeira responsabilidade da imprensa é a precisão e a verdade. O grande problema na América Latina é a concentração na mídia. Há seis famílias que controlam 70% da imprensa no Brasil, mas o problema é muito pior em vários países. Na Suécia, 60% da imprensa é controlada por uma editora. Na Austrália, 60% da imprensa escrita é controlada por (Rupert) Murdoch. Portanto, quando falamos em liberdade de expressão, temos de incluir a liberdade de distribuição, uma das coisas mais importantes que a internet nos deu.

O sr. é herói ou criminoso?

Sou apenas um cara. Todos vivemos só uma vez. Todos temos responsabilidade de viver de acordo com nossos princípios. Tento fazer isso. Não preciso me definir. Na verdade, quando as pe ssoas se definem, na maioria das vezes, estão mentindo.

Por que o sr. não volta à Suécia (onde é acusado de crime sexual)?

Seria extraditado para os EUA. Os EUA têm processo contra mim e o WikiLeaks. O governo diz em seus documentos internos que a investigação é de tamanho e natureza sem precedentes. É algo sério que envolve mais de uma dúzia de agências.

O sr. disse que publicará cerca de um milhão de documentos em 2013. Algo sobre o Brasil?

Sim. Publicaremos muito sobre o Brasil neste ano.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Crescimento econômico da Amazônia é possível sem desmatamento

Crescimento econômico da Amazônia é possível sem desmatamento

Estudo do Imazon explica que um aumento de 24% na produtividade da pecuária na região seria o suficiente para garantir o fornecimento de carne e desenvolver a economia sem ser necessário destruir mais o ecossistema.

A reportagem é de Fabiano Ávila e publicada pelo Instituto CarbonoBrasil, 01-02-2013.

A teoria é simples de ser entendida: em vez de ampliar a área para pastos e culturas, por que não aumentar a produtividade? Apesar de ser uma noção lógica, é difícil provar em números que essa é uma opção viável. Pois foi bem isso que o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) fez, detalhando como é possível promover o crescimento econômico da Amazônia sem a necessidade de derrubar mais uma árvore sequer.

No trabalho Como desenvolver a economia rural sem desmatar a Amazônia?, o Imazon estima que “seria possível suprir o aumento da demanda de carne projetada até 2022 aumentando-se a produtividade em torno de apenas 24% do pasto com potencial agronômico para a intensificação existente em 2007.”

O estudo aponta que, apesar dos avanços, a produtividade agropecuária ainda é baixa, especialmente na pecuária, cuja média é de cerca de 80 quilogramas de carne por hectare por ano, sendo que o potencial é de 300 quilogramas por hectare por ano.

Se for mantida essa pequena produtividade, será necessário desmatar aproximadamente 12,7 milhões de hectares para atender à demanda projetada até 2022. Nesse cenário, a taxa de desmatamento média anual até 2022 (1,27 milhão de hectares) seria de aproximadamente 3,4 vezes maior do que a meta estabelecida pelo governo federal até 2020 (380 mil hectares).

Vários obstáculos atrapalham o aumento da produtividade, como, por exemplo, os baixos níveis educacionais dos produtores rurais. De acordo com o Censo Agropecuário de 2006, 25% deles na Amazônia eram analfabetos e 51% concluíram apenas o ensino fundamental.

Segundo Paulo Barreto, engenheiro florestal e um dos autores do estudo, parte da elite rural já investe para melhorar a produtividade, especialmente na agricultura. Porém, uma parte dos produtores, especialmente entre os pecuaristas, está no que ele chama de 'ciclo vicioso'.

“Ganham pouco porque são ineficientes e portanto não tem dinheiro para investir. Quando eles veem os dados sobre o que é preciso para investir, eles acham inviável, pois seu único parâmetro de produção é a sua própria, que é baixa. Para vencer essa situação é preciso investir em treinamento prático, especialmente visitas de campo em f azendas mais produtivas e que os próprios fazendeiros eficientes, junto com os pesquisadores, contem como avançaram”, explicou.

Além disso, existe uma insuficiência de assistência técnica. Apenas 32% das famílias assentadas em projetos de reforma agrária em todo o país receberam assistência técnica em 2011. A região Amazônica sofre ainda com a precariedade da infraestrutura.

Investimentos e políticas

O Imazon destaca que R$ 1 bilhão por ano deveria ser investido até 2022 com o objetivo de aumentar a produtividade dos pastos. É um valor viável, já que representa o equivalente a 70% do crédito rural anual médio concedido no bioma Amazônia para a pecuária entre 2005 e 2009.

O estudo afirma ainda que é preciso melhorar as políticas ambientais e fundiárias, tornando-as estáveis e eficazes.

“No caso da Amazônia, vários produtores estariam dispostos a investir, mas têm medo por causa da bagunça fundiária. Os posseiros de terras tem dúvidas se eles vão ter um título definitivo e essa incerteza dificulta investimentos de longo prazo. Além disso, a insegurança da posse impede que investidores que detém conhecimento se interessem em comprar e investir em um ambiente de incerteza jurídica”, afirmou Barreto.

Para os autores, o primeiro passo a fazer é garantir o comprometimento de alto nível governamental para coordenar as negociações, alocar recursos e cobrar a implementação das medidas necessárias.

Depois, seria preciso estabelecer programas duradouros de apoio aos pequenos produtores para o cumprimento das leis, já que a situação dos pequenos é frequentemente usada para justificar a reforma das regras. Mesmo que as regras sejam simplificadas, estes produtores ainda necessitarão de apoio técnico e financeiro.

Segundo o estudo, essa constatação já foi incor porada ao novo Código Florestal, que autoriza o governo a criar programas de apoio e incentivo à conservação ambiental prioritariamente destinados aos agricultores familiares.

Porém, o novo código também é apontado como um possível obstáculo para a redução da destruição da floresta. “O código anistia parte do desmatamento ilegal. Isso sinaliza que a mesma coisa pode se repetir no futuro. Portanto, há sim risco de o código estimular desmatamento se os governos não reforçarem a aplicação imediata de penas contra os crimes ambientais”, disse Barreto.

Para o engenheiro, outras inciativas, como o crédito florestal, devem estar sempre atreladas a obrigações de conservação.

“O crédito rural sem controle estimula o desmatamento, como vários estudos tem mostrado. Os bancos não emprestam diretamente para o desmatamento. Porém, o sujeito desmata ilegalmente e obtém crédito subsidiado, que torna o negócio atrati vo. Ou emprestam para outra finalidade e investem no desmatamento. Os bancos e órgãos ambientais falhavam grosseiramente no controle desses empréstimos. A resolução do Banco Central em 2007 estabeleceu que os bancos só podem emprestar para quem pelo menos tiver iniciado a regularização ambiental. Um estudo [publicado nesta semana pelo Climate Policy Institute] mostrou que essa restrição ajudou a reduzir o desmatamento. Portanto, o controle sobre o crédito deve continuar e ser fortalecido”.

“Além disso, é fundamental manter a pressão para que os compradores de produtos agrícolas (como os frigoríficos que compram gado e os grandes traders que adquirem soja) não comprem de imóveis rurais embargados (cuja lista está disponível no site do Ibama). As ações do Ministério Público contra frigoríficos são exemplares”, completou.

Finalmente, o Imazon afirma que seria fundamental aproveitar ao máximo os benefício s das tecnologias de geoprocessamento. O uso de imagens de satélite e mapas georreferenciados poderia reduzir grandemente os trabalhos de registro, análise e monitoramento de imóveis necessários para a gestão fundiária e ambiental. Por exemplo, o uso dessas tecnologias poderia eliminar a vistoria de campo, que, hoje, é obrigatória antes da concessão das licenças ambientais.

O Instituto conclui que o aumento da produção sem desmatamento permitiria elevar o valor da pecuária em R$ 4,16 bilhões até 2022, o equivalente a um aumento de 16% do valor total da produção agropecuária em relação a 2010. A produção adicional sem desmatamento empregaria ainda aproximadamente 39 mil pessoas.

sexta-feira, 1 de março de 2013

O fator humano na crise ambiental

O fator humano na crise ambiental

Desmatar, poluir a atmosfera, aumentar a temperatura, desregular o clima, migrar para aglomerados urbanos e transitar em alta velocidade pelo planeta não geram consequências para a própria espécie? Em artigo publicado pela agência Carta Maior, 01-02-2013, Najar Tubino debruça-se sobre dados da Organização Mundial de Saúde e de inúmeras pesquisas acadêmicas para mostrar como as transformações geradas pelo homem já geram efeitos dramáticos sobre ele mesmo.

Eis o artigo.

Não é uma discussão filosófica, sobre ecologia, envolvendo o ambiente, o próprio planeta, e uma de suas espécies. Trata-se das consequências da dominação da população humana sobre os ecossistemas responsáveis pela manutenção da vida. Indo direto ao ponto: desmatar, poluir a atmosfera, aumentar a temperatura, desregular o clima, migrar para aglomerados urbanos e transitar em alta velocidade pelo planeta não geram consequências para a própria espécie?

E mais: como anda o funcionamento dessa espécie, em pleno século XXI, com seus sete bilhões de habitantes, l% de ricos comandando os sistemas financeiro e cultural, e um modelo econômico suicida? Uma pergunta que está respondida na declaração do secretário-geral da Cruz Vermelha, Bekele Geleta: “Se a livre interação entre as forças de mercado produziram um resultado em que 15% da humanidade passam fome, enquanto 20% estão obesos, alguma coisa deu errada”.

Andei mergulhado durante 15 dias entre as estatísticas da Organização Pan-americana de Saúde e da Organização Mundial de Saúde. Consultei uma bibliografia razoável, i ncluindo algumas teses recentes de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da Universidade do Mato Grosso, da Universidade do Rio Grande do Norte, da Unicamp, o Plano Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, entre outras coisas.

A primeira questão fundamental está relacionada à saúde. Se a temperatura aumenta, isso significa alguma coisa para milhões de pessoas? Significa muito. As mudanças ocorridas no planeta com o crescimento populacional, mais de 50% das pessoas morando em cidades, com o desmatamento de extensas áreas, alteraram a situação de vários vetores que são intermediários na disseminação de doenças. Entre eles, várias espécies de mosquitos. O caso mais conhecido é o do Aedes Aegypti, que transmite a dengue e a febre amarela.

O Aedes era considerado erradicado no Brasil desde a década de 1950, quando ho uve um combate massivo, em razão da febre amarela que impactava as populações urbanas, principalmente do Rio de Janeiro. Ele voltou ao país, provavelmente pela fronteira amazônica, na década de 1980, e o primeiro surto foi registrado em 1984 em Roraima. Logo depois em Açu, no Rio Grande do Norte. Menos de 30 anos depois está presente em vários bairros de Porto Alegre e já provocou dois surtos em Ijuí e Santa Rosa, no interior do Rio Grande do Sul.

Dengue se alastra
A Organização Mundial de Saúde confirma o registro de dois milhões de casos por ano em 100 países. No início de janeiro um surto na Ilha da Madeira, território português, havia contabilizado 2,1 mil casos. A previsão das autoridades sanitárias europeias é que a dengue alcance Portugal no próximo verão e se espalhe pelo sul da Europa, onde as temperaturas são mais altas. No Brasil, uma epidemia, novamente atingiu Campo Grande (MS), com mais de 20 mil casos. Se continuar dessa forma, a OMS calcula 50 milhões de casos nos próximos 30 anos, com uma média de 24 mil mortes. Atualmente, morrem entre cinco e seis mil pessoas por dengue, a maior parte por dengue hemorrágica, o tipo mais terrível da doença, ou por síndrome do choque.

A pesquisadora Rosires Magáli Bezerra de Barros, da Universidade Federal do Rio Grande d o Norte, fez uma tese de pós-graduação para o Centro de Ciências Humanas a respeito da dengue. Ela tem mais de 20 anos de atividades em saúde coletiva. A pesquisa envolve trabalho de campo em quatro bairros de Natal, cidade que passou por vários surtos de dengue desde a década de 1980, e tem um aparato de saúde pública destroçado, depois que uma apresentadora de televisão foi transformada em prefeita – afastada do cargo pela Justiça, por pagar contas pessoais com dinheiro público.

É um mal social
Um trecho do trabalho de Rosires: “A saúde está relacionada à sustentabilidade. A degradação ambiental e social, decorrente de um modelo econômico predatório e globalizado, contribui para a existência de condições inadequadas ou insuficientes, atingindo diretamente a qualidade da vida humana no planeta. Entre as causas dessa situação estão o crescimento sem precedentes da população humana, urbanização não planejada, aumento da temperatura global, da densidade e da distribuição dos mosquitos vetores, e a deterioração da infraestrutura de saúde”.

O lugar onde as pessoas vivem tem relação direta com as condições de saúde. Um bilhão de pessoas vivem em favelas, ou em cortiços, ou em habitações sem condições nenhuma de sobreviver. No Brasil, calcula-se entre 10 e 15% da população vivendo em favelas.

“A dengue é um mal social, que vai desde a ignorância pura e simples até a arrogância”, comenta Rosires Barros. É fato, pelas campanhas públicas, que os moradores precisam colaborar no combate à dengue, porque o mosquito coloca seus ovos em água limpa, em caixas d’água, tambores, bebedouros de animais domésticos. No campus da UFRN, os agentes de saúde encontraram focos em copos descartáveis de alunos e professores dentro do campus universitário. Em 147 residências visitadas mais de uma vez por equipes de saúde, com entrevistas com moradores, é surpreendentes que apenas 6,1% considerem os quintais como área de convivência e de lazer. Preferem a sala, a cozinha, o quarto com televisão.

Como comentou um agente de campo: as pessoas se preocupam com as fachadas das casas e esquecem os quintais. Também tem medo de informar os vizinhos q ue foi encontrado um foco na sua casa.

A pesquisadora Marta Pignati, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso, mostrou como algumas infecções voltaram a afligir as populações, como a tuberculose, a hepatite e a malária no Brasil. Na verdade são as mesmas do mundo.

E ela analisa muito bem esta questão: “Em um período recente, as mudanças sem precedentes no ambiente, o crescimento econômico, a crise social, o advento da aids estão contribuindo para a emergência de novas doenças e o reaparecimento de outras antigas. Embora os avanços da tecnologia médica pudessem controlar várias doenças infecciosas, algumas delas ressurgiram no mundo com novas identidades e com novos padrões de comportamento”.

Entre as muitas previsões otimistas e delirantes, estava a errad icação de doenças infecciosas como a tuberculose e a malária. Na Índia, os medicamentos que tratam da tuberculose não fazem mais efeito. Além disso, metade dos soropositivos em HIV perdem as defesas contra a bactéria que transmite a tuberculose e contraem a doença.

As doenças ressurgiram
Na década de 1970, o Brasil chegou a registrar 500 mil casos por ano de malária. Desmatamento intenso, construção das estradas internas na Amazônia, além de garimpos e projetos de mineração estão entre os fatores. Claro, a circulação de pessoas. A OMS considera que dois bilhões de pessoas tiveram contato com o vírus da hepatite B, e que existam pelo menos 325 milhões de portadores crônicos. No Brasil, são 130 casos a cada 100 mil habitantes.

A malária é transmitida por um protozoário, o Plasmodium, que vive no organismo do mosquito Anopheles. Marta Pignati também cita a cólera, que chegou às águas costeiras do Peru em 1991, provavelmente na água de lastro de um navio chinês, e o vibrião acabou se reproduzindo nas águas podres da baía, enriquecidas com nitrogênio e fósforo da matéria orgânica de esgoto não tratado. En tre 1991 e 1996, o Brasil registrou mais de 154 mil casos, principalmente na região Norte, a grande maioria, e no Nordeste. Nos últimos dois anos, mais de 10 mil pessoas morreram em consequência da cólera no Haiti.

“A rapidez nos meios de transporte leva portadores a várias áreas do mundo e, devido às condições encontradas nestes ambientes, há a possibilidade destes agentes espalharem-se rapidamente. Vetores, como os insetos, e portadores não humanos de doenças também foram introduzidos em áreas onde não existiam previamente”, explica a pesquisadora Marta Pignati.

Em 2012, dois bilhões e novecentos milhões de pessoas viajaram de avião pelo mundo. Este ano a previsão passa dos três bilhões. O aumento de temperatura também levou o mosquito Aedes Aegypti a alcançar o sul dos Estados Unidos, passando pelo México, a uma altitu de de dois mil metros – antes era registrado em altitude de mil metros. O Aedes também é transmissor da febre amarela. No Brasil ainda não foi registrado nenhum caso de febre amarela urbana. Mas a febre amarela denominada silvestre tem aparecido em regiões periféricas, onde a mata foi derrubada e existem vilarejos e cidades pequenas.

Calazar o próximo perigo
Outra doença que está em processo de aclimatação em centros urbanos é a leishmaniose tegumentar, já sendo observada em algumas áreas do Vale da Ribeira (SP) e em Campinas. Existe ainda outra variante, que é a leishmaniose visceral, chamada de Calazar. Esta é mais grave porque está entrando em grandes centros urbanos. As duas são transmitidas por mosquitos, que também picam os cães, servem como fonte de alimentação e tornam a infectar os mosquitos. Em Montes Claros (MG), entre 2009 e 2011, foram registrados 2.472 casos de cães positivos em Calazar, o que definiu uma campanha do Programa Federal de Controle da Leishmaniose, colocando coleiras nos cachorros com um inseticida para combater o mosquito.

No Piauí foram registrados 823 casos em humanos, entre 2007 e 2010. No país são registrados entre 3,5 e 4 mil casos em humanos por ano , com 200 mortes. A Organização Mundial de Saúde confirma o registro de 500 mil casos no mundo em humanos, com 59 mil óbitos. Existem 12 milhões de pessoas infectadas. A doença provoca apatia, perda de peso, febre e anemia. O mosquito deposita seus ovos em locais ricos em matéria orgânica.

O peso ambiental
Um estudo da Organização Mundial da Saúde realizado em 2006 apontou que 24% das doenças em nível mundial e 23% das mortes prematuras são decorrentes de exposição a riscos ambientais evitáveis. Por exemplo: 94% das doenças diarreicas, 42% das doenças respiratórias e 42% dos casos de malária. Falta de água tratada e esgoto contribui em 88% na incidência de 1,5 milhão de mortes de crianças causadas por diarreias, no ano. Mais de um milhão morrem por infecções respiratórias agudas. Nos países em desenvolvimento, 18% do total de doenças e mortes prematuras estão relacionadas ao meio ambiente. Falta de água e saneamento responsáveis, por 7%, poluição atmosférica, 4%, doenças causadas por vetores contaminantes, 3%, poluição atmosférica urbana, 2%, e lixo agroindustrial, 1%.

Pequim, janeiro de 2013. A cidade está tomada pela fumaça. As pes soas usam máscara para conter a poluição, pior, as partículas microscópicas que penetram nos pulmões e entram na corrente sanguínea provocam doenças cardiovasculares e infecções agudas. Uma pesquisa do Greenpeace-Ásia, em conjunto com uma universidade chinesa, identificou 8,6 mil mortes prematuras em 2012, consequência da poluição atmosférica. No Brasil, os estudos apontam para 20 mil mortes por ano, quatro mil somente na cidade de São Paulo. A OMS diz que o recomendável é que circulem 20 microgramas por metro cúbico das partículas poluentes. Em algumas cidades o índice é 15 vezes maior. Em Pequim chegou a 25. Pequim parece Londres em 1952, quando uma inversão térmica concentrou a fuligem do carvão das usinas térmicas e das fábricas, matando quatro mil pessoas.

Planeta doente, população saudável
Até tratamos de doenças relacionadas diretamente ao ambiente ou às mudanças provocadas por ação antrópica, como dizem os cientistas. Mas a questão é a seguinte: poderíamos ter um planeta doente e populações saudáveis, com saúde exuberante, como os povos do rico norte europeu? Claro que não. Antes de qualquer palpite, a espécie humana é parte integrante do planeta, está inserida. Provoca ações, mas sofre reações. Não somente físicas, químicas ou biológicas. Mas mentais, psicológicas. A obesidade é uma prova disso. Modo de vida, a inatividade física, segundo a OMS, provoca a morte de quase dois milhões de pessoas por ano. É responsável por 22% dos casos de doenças isquêmicas do coração, por 10 a 16% dos casos de diabete e de câncer da mama, do cólon e do reto.

Para concluir: 17 milhões de pessoas morrem por doenças cardiovascul ares anualmente no mundo. No Brasil, são 300 mil. Houve um congresso mundial de cardiologistas no Rio em novembro de 2012. A expectativa é que as mortes aumentem para 23 milhões em 2030. Eles anunciaram algumas medidas necessárias para conter o problema: reduzir 10% do sedentarismo, aumentar 25% do controle da pressão, limitar a ingestão de sal em cinco gramas por dia, reduzir em 30% o número de fumantes e em 10% o consumo excessivo de álcool, diminuir o consumo de gordura saturada em 15%, deter o aumento da obesidade em 20%. Isso tudo até 2025.

No mundo, um bilhão são dependentes de nicotina. Então, o modo de vida que inclui alimentação industrial, refrigerantes, a fórmula “amo muito tudo isso” ou “abra a felicidade” tem demonstrado que a mentira está colocando milhões de pessoas a caminho do cemitério. Para piorar, há o uso de agrotóxicos na produção de alimentos, que se transformam em resíd uos venenosos e se disseminam pelo planeta. Como aponta a ONU, 500 milhões de pessoas estão expostas aos venenos. No Brasil, são quase 14 milhões.

Mais algumas estatísticas
Comparei mais algumas estatísticas do cotidiano das pessoas. O carro é o símbolo da modernidade e do poder da técnica. A essência do capitalismo é individual e suicida. O número da OMS é de 2009 – morreram 1,3 milhão por acidente de trânsito em 178 países. Esta é a década “da ação pela segurança no trânsito”, decretada pela ONU. Por que se continuar a expansão da frota, principalmente em países em desenvolvimento, os índices crescerão para 1,9 milhão em 2020 e 2,4 milhões em 2030.

O dado é significativo: 90% das mortes ocorreram em países com menos da metade dos veículos no mundo. No Brasil, em 2010, 66,6% das vítimas fatais eram pedestres, ciclistas e motoqueiros. Em 2000, o Brasil registrava 28.995 mortes no trânsito. Em 2010, 40.989. Os motoqueiros possuíam quatro milhões de motos em 2000, e morreram 3.910. Dez anos depois, com 16,5 milhões de motos, morreram 13.452. Talvez em 2015 as mortes no trânsito superem o número de homicídios no país. No planeta, um contingente entre 20 e 50 milhões sobrevive com traumatismo e feridas.

Por consumo excessivo de álcool, morrem entre 2,0 e 2,5 milhões de pessoas. No resumo da OMS: 4% das mortes no mundo tem álcool como causa. O consumo médio mundial é de 6,1 litros brutos. O Brasil está na média – 6,2 litros. Na Europa são 11 litros de álcool bruto. Li uma pesquisa sobre álcool na Europa. Eles consultam os entrevistados sobre o “consumo esporádico excessivo” (“binge drinking”), não é outra coisa senão um porre. Oitenta milhões de europeus, acima de 15 anos, mais de 1/5 da população adulta disse ter praticado “binge” pelo menos uma vez por semana. Isso foi antes da crise de 2008.

Drogas ilícitas
Parte da saúde mental humana também está ligada ao consumo de drogas ilícitas. Entre 149 e 272 milhões de pessoas consomem algum tipo, segundo a ONU. A primeira delas é a canabis, popular maconha. O número de consumidores varia de 125 a 203 milhões. Mas em segundo lugar estão as anfetaminas (metanfetamina e ecstasy), droga do mundo globalizado, da permanente ligação, ou do regime alimentar compulsório. O número de consumidores, entre 14 e 57 milhões. A maioria das anfetaminas é fabricada nos Estados Unidos, onde em 2009 foram fechados 10.600 laboratórios.

Terceira droga mais usada é a heroína, junto com o ópio, entre 12 e 14 milhões de usuários. A maior produção – 130 mil hectares de papoula – é do Afeganistão. É um mercado que rende 68 bilhões de dólares ao crime organizado, uma minúscula parte (440 milhões) ficou com os agricultores em 2009. A cocaína é a quarta mais consumida, cheirada ou fumada – o crack. A área plantada caiu nos últimos anos, mas é de 149 mil hectares – diminuiu na Colômbia, mas aumentou no Peru e na Bolívia. Os consumidores dos Estados Unidos estão no topo da lista, com 167 toneladas. Em segundo lugar, os europeus com 123 toneladas. É um mercado de US$ 85bilhões.

Para encerrar o fator humano: um milhão de pessoas praticam suicídio por ano no mundo, outros 20 milhões tentam, pelo menos uma vez na vida. A maioria, adolescentes.