"A crise do euro não é uma crise econômica simplesmente", escreve Marcos Nobre, professor de filosofia na Unicamp, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 11-05-2010. Segundo ele, "é um pesadelo imaginar que a grande crise do neoliberalismo alucinado dos anos 1990 acabará por puxar para o túmulo também o projeto de um modelo social de âmbito europeu. Mas essa parece ser hoje a tendência".
Eis o artigo.
Quem lê o noticiário sobre a crise na Grécia pode achar que se trata de um problema econômico simplesmente. O problema de como administrar uma moeda multinacional.
A Europa seguiu ontem a estratégia dos EUA em 2008. Liberou uma quantidade colossal de recursos com o recado: se quiserem especular contra a Grécia, contra o euro, contra a Europa, vão perder dinheiro. Essa linguagem o "mercado" não apenas entende; também, e principalmente, agradece.
Tudo resolvido? Claro que não.
Porque a crise do euro não é uma crise econômica simplesmente.
Porque o euro não foi um projeto econômico simplesmente.
Para começar, o euro teve a ambição de ser contraponto à hegemonia mundial solitária dos EUA a partir dos 1990. Mas pretendeu sobretudo defender um modelo de capitalismo que seria próprio da Europa. Foi para preservar o quanto possível desse modelo que a Comunidade Europeia se tornou União Europeia, expandiu fronteiras e criou uma moeda comum.
Não que seja o paraíso na Terra, evidentemente. As diferenças internas são enormes, o modelo é mais imaginário do que real. Nem todo país é Suécia ou Alemanha. As dificuldades de financiamento são notórias.
Mas, pelo menos, é um modelo baseado na proteção social para quem vive do trabalho. Que pretende aliar democracia supranacional com coisas básicas, como poder sair à rua sem temer pela própria vida. É bem mais do que se pode encontrar nos EUA. Ou na China. Para não falar no Brasil, que nada tem de modelo, mas que segue o padrão europeu quando o assunto é escrever uma Constituição.
É um pesadelo imaginar que a grande crise do neoliberalismo alucinado dos anos 1990 acabará por puxar para o túmulo também o projeto de um modelo social de âmbito europeu. Mas essa parece ser hoje a tendência.
Não que o euro vá desaparecer, ou que algum país vá deixar o euro.
Nem que a União Europeia vá desaparecer. Mas o grau de integração tende a regredir. As instâncias supranacionais tendem a perder força e poder. A necessidade de elevar ainda mais os gastos públicos para financiar vários países ao mesmo tempo deve colocar a Europa em um ritmo ainda mais medíocre de retomada econômica.
Quando finalmente sair da crise, a Europa terá já perdido terreno precioso no campo internacional.
Porque o euro não é o dólar. Mas também porque, segundo a cartilha econômica ortodoxa, esse modelo de capitalismo é caro demais.
Imitar o modelo propagandeado pelos EUA sai muito mais em conta. Para não falar no capitalismo chinês, que é uma verdadeira pechincha social e política.
Depois da beira do abismo: e daí?
"Europa dá vexame, leva bronca dos EUA e vai assumir o risco de bancos ineptos a fim de não ir para o vinagre", escreve Vinicius Torres Freire, jornalista, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 11-05-2010.
Eis o artigo.
A finança mundial esteve à beira do abismo na tarde de quinta-feira e na sexta-feira, pois o Banco Central Europeu disse na manhã de quinta que não iria financiar governos sem crédito na praça, como era o caso da Grécia e seria, em poucos dias, o de Portugal.
O BCE, na pessoa de seu presidente, Jean-Claude Trichet, dizia também que não taparia rombo de banco caloteado. Disse, enfim, que o mercado poderia vir quente que ele estava frio feito um pepino.
Bem, o mercado veio quente e anunciou o fim do mundo. Os europeus levaram um susto, uma corrida, uma bronca dos EUA e, vexaminosamente, jogaram a toalha. Vão tapar rombos e fizeram picadinho de normas da União Europeia. Os EUA ainda ofereceram dinheiro para conter a quebradeira da prima.
Não vai haver despejo imediato do dinheiro prometido, 750 bilhões, US$ 958 bilhões ou R$ 1,7 trilhão (53% do PIB do Brasil). Um fundo europeu vai tapar eventuais rombos de caixa de governos falidos - por falar nisso, o governo de Chipre se comprometeu a emprestar US$ 1,27 bilhão, quatro vezes mais que o Brasil alardeou. Um fundo para "desastres naturais" (sic) e outras ocorrências excepcionais vai tapar súbitos rombos de caixa.
O FMI vai oferecer outro tanto de dinheiro e, vergonha, vai supervisionar as contas dos governos europeus. Por fim, o BCE se comprometeu a emprestar dinheiro para governos e bancos, a fim de evitar quebras, além de oferecer garantias. Algo parecido com o que EUA e seu BC, o Fed, fizeram na crise de 2008. Qual o resumo da ópera?
1) Mais uma vez os bancos transferiram os riscos de sua incompetência para o setor público, como o fizeram em 2008. Mamãe União Europeia vai cobrir eventuais calotes;
2) Para o Brasil, foi ótimo, ao menos no curto prazo (um ano). Há grande chance de não haver disparada do dólar nem seca global de crédito devida a quebras de bancos e governos europeus. Mas, como os europeus vão crescer muito pouco, algo dessa baixa global no consumo deve respingar por aqui;
3) O risco de calote de governos europeus não acabou. As medidas de arrocho, de cortes de gastos públicos e, indiretamente, redução de salários serão ainda mais pesadas. Se não houver arrocho, os governos quebram. A Grécia continua tão quebrada quanto na sexta. Os "povos do Mediterrâneo" continuam tão fritos quanto antes do pacote;
4) Haverá deflação e recessão ou crescimento muito pequeno na Europa por dois ou três anos, em especial na Grécia, em Portugal e na Espanha, talvez na Bélgica e na Itália. Assim, pode haver revolta social, política. Que pode derrubar governos e acordos de arrocho. A própria recessão vai criar dificuldades para o governos pagarem suas contas;
5) A União Europeia ficou politicamente desmoralizada. Só agiu aos 44 minutos do segundo tempo. Vai ter de, na marra, fazer algum tipo de governo comum no que diz respeito a gastos públicos e a financiamento da dívida pública. Coisa prevista faz tempo por acadêmicos e sábios, mas que terá de ser feita na marra, agora, ao menos em parte. Os governos nacionais, que já não têm moeda, terão ainda menos autonomia fiscal;
6) A crise ainda não acabou.
Essa crise é apenas o começo de uma série'
O economista Walter Molano, do BCP Securities, considera o pacote de quase US$ 1 trilhão uma “solução por ora”. Para o professor da Universidade de Columbia, a saída da crise passa pela desvalorização do euro. Ele defende que essa turbulência é o início de uma série de crises e sua força é bem maior do que a do Lehman Brothers: “Parece apocalíptico, mas é isso mesmo”.
A entrevista é de Fabiana Ribeiro e publicada pelo jornal O Globo, 11-05-2010.
Eis a entrevista.
O plano de resgate é suficiente para evitar uma crise geral na zona do euro?
Esse pacote de quase US$ 1 trilhão não resolve a questão da contaminação na zona do euro, e ainda levanta dúvidas sobre o destino de países como Grécia, Portugal e Espanha. O pacote dá apenas um tempo a esses países: é a solução por ora. E só.
A ameaça, portanto, continua?
Essa crise é apenas o começo de uma série de outras crises e sua força é bem maior do que a crise do Lehman Brothers. Só que ainda trará um agravante: as pessoas não estão gostando nada das medidas de austeridade exigidas pelos organismos para se aprovar um pacote. E uma crise maior e mais perigosa do que a crise do Lehman Brothers e certamente chegaria ao Brasil. É uma questão de tempo. Parece apocalíptico, mas é isso mesmo.
Mas os mercados ficaram mais animados..
Os mercados pensam a curto prazo. E a curto prazo o plano funciona. A Grécia enfrenta risco significativo de default e os bancos europeus estão muito expostos. Mas os problemas da Europa vão além de dinheiro. Essas questões se revolvem agora, mas voltarão. Não sei dizer se amanhã ou em um mês ou no ano que vem. Mas uma nova crise virá. E outras virão.
Tudo é para salvar o euro?
Certamente. E o custo é bem alto. Sem dúvida, hoje, o euro é um arrependimento para alguns países. Uma das saídas do momento seria, como recomenda a política do Fundo Monetário Internacional, uma forte desvalorização da moeda, o que aumentaria o nível de competitividade da economia. Mas os países não querem isso, não querem desvalorizar o euro.
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