terça-feira, 25 de maio de 2010

A crise, motor do capitalismo




“Os bancos já grandes demais para falir tornaram-se ainda maiores! Nestas condições, desmantelar esses grandes conglomerados, por exemplo, separando-os em bancos de investimento e bancos de depósitos, deveria ser uma prioridade. Um banco grande demais para falir deveria ser igualmente grande demais para existir. Mas essa política implica uma profunda mudança das mentalidades, o que, ao menos por enquanto, parece bastante remota. Globalmente, o G-20 continua a pensar no contexto do capitalismo neoliberal. No entanto, se o nosso diagnóstico estiver correto, a persistência da crise vai exigir uma mudança de paradigma”, escreve André Orléan em artigo publicado no Le Monde, 30-03-2010. A tradução é do Cepat.

André Orléan nasceu em 1950 em Paris. Foi membro do Conselho Científico da Comissão das Operações da Bolsa, que se fundiu, em 2003, com o Conselho de Mercados de Capitais para formar a Autoridade dos Mercados Financeiros (AMF). Desde 2006, é diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Faz parte do comitê executivo da revista Annales. Histoire, Sciences Sociales.

Orléan é autor de vários livros, entre eles Le pouvoir de la finance [O poder das finanças] (Odile Jacob, 1999), A violência da moeda (Brasiliense), escrito em parceria com Michel Aglietta, e Da euforia ao pânico, já comentado em Notícias Diárias.

Eis o artigo.

A história do capitalismo coincide com a história de suas crises. Ao longo do período 1970-2007, podemos contar nada menos que 124 crises bancárias, 208 crises cambiais e 63 crises de dívida soberana! Mesmo que a maioria delas seja limitada a países periféricos, não deixa de ser uma declaração muito impressionante.

Confrontado com estes números, a ideia de auto-regulação dos mercados parece ser insuficiente. Para entender como o capitalismo administra seus excessos, parece que a hipótese alternativa de uma regulamentação pelas crises não carece de argumentos. Para se convencer disso, basta considerar o que se chama de "grandes crises" ou crises estruturais. Uma vez que são períodos de profunda mudança, seu papel no desenvolvimento histórico do capitalismo é crucial. O mais célebre deles é a Grande Depressão (1929-1939).

Trata-se de crises profundas, não só pela sua intensidade quantitativa, mas também qualitativamente pela extensão das transformações institucionais que elas iniciam. Estas crises são causadas pelo esgotamento de um modelo de crescimento que não consegue mais conter seus desequilíbrios. Para recomeçar, o sistema econômico necessita de novas regras, novas instituições e novos compromissos. Esta é a questão das grandes crises: reinventar um novo modelo de crescimento.

Assim, durante o período de 1929-1945, o capitalismo soube se transformar ao propor um projeto original, baseado não mais na concorrência para todos, mas sobre um ajuste permanente, centrado na grande empresa industrial, entre aumentos do salário real, ganhos de produtividade e crescimento. Para descrever este modelo que surge no final da II Guerra Mundial, fala-se de "regulação fordista”, por referência a Henry Ford, que havia compreendido que conseguir vender carros e obter lucros, os seus trabalhadores deveriam receber bons salários.

Após conhecer uma excepcional prosperidade, conhecido como os Trinta Gloriosos (1945-1973), o regime fordista entra, por sua vez, em crise. É a estagflação dos anos 1970 (1973-1982), que mistura de maneira inédita inflação e baixo crescimento. Se esta grande crise difere da de 1929, o seu significado permanece o mesmo: o fim de uma era e o advento de uma nova forma de capitalismo. Assim, após a estagflação dos anos 1980, emerge o capitalismo financeiro, também chamado de "capitalismo patrimonial" ou "capitalismo neoliberal".

A ruptura com o regime anterior é prodigiosa, especialmente pela magnitude experimentada pela desregulamentação financeira. Assistimos ao desmantelamento progressivo do quadro regulatório que, notavelmente, levou à eliminação de qualquer crise bancária durante o período fordista, entre 1945 e 1970. Politicamente, é a chegada ao poder dos governos liberais Margareth Thatcher, no Reino Unido (maio 1979), e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos (janeiro de 1981), que marca o início desta nova fase. Mas, do ponto de vista da regulação econômica, a origem desse novo capitalismo se encontra na transformação revolucionária que a política monetária conhece. Agora, a inflação é o alvo prioritário.

Para combatê-la, Paul Volcker, feito presidente do Federal Reserve (Fed), em 1979, pratica um aumento impressionante das taxas de juros no curto prazo, que chegam a 20% em junho de 1981. Essa política cria uma mudança completa e definitiva do equilíbrio de poder entre devedores e credores em favor dos últimos. De agora em diante, os proprietários de ativos financeiros não correm mais o risco de ver sal sua rentabilidade sendo corroída pela inflação. Eles têm o campo livre. Assim começou um período de 25 anos, que tem por característica central a de colocar a finança de mercado no centro da regulação, bem além da mera questão técnica do financiamento. Para dizê-lo com palavras simples, são os mercados financeiros que controlam de agora em diante os direitos de propriedade, algo nunca visto até então.

Nos capitalismos anteriores, a propriedade do capital era exercida sob a forma do controle majoritário em estruturas específicas fora do mercado, a exemplo do Hausbank alemão (“banco da casa") ou do controle familiar. O representante emblemático do capitalismo patrimonial é o investidor institucional. Ele é portador de uma nova governança corporativa, centrada sobre o “valor acionário".

A crise que começou em agosto de 2007 deve, em nossa opinião, ser entendida como marcando a chegada dos limites do capitalismo patrimonial e sua entrada em grande crise. Assim como os capitalismos precedentes, sucumbe quando o próprio princípio do seu dinamismo está se voltando contra ele para tornar-se uma fonte de desequilíbrios. Neste caso, é a questão financeira que se torna determinante. O capitalismo patrimonial não é mais capaz de controlar a expansão de seu setor financeiro, cujo peso é uma desvantagem ultrapassado um determinado umbral.

Para ver isso, consideraremos a dívida total dos Estados Unidos, no conjunto de todos os setores. Entre 1952 e 1981, durante o período fordista, seu crescimento permanece moderado: entre 126% e 168% do PIB. Durante a fase neoliberal, essa relação explode, chegando a 349% em 2008! O mesmo acontece com o total dos ativos financeiros dos Estados Unidos. Ele permanece estável de 1952-1981, entre 4 e 5 vezes o PIB, para depois aumentar em mais de 10 vezes o PIB em 2007. Em nível mundial, a observação é a mesma: o total dos ativos financeiros, que equivalem a 110% do PIB mundial em 1980, atingem 346% em 2006.

Se, inicialmente, a expansão financeira participou ativamente na formação do crescimento neoliberal, parece que hoje se tornou desproporcional. Acredito que este setor se apropria de 40% dos lucros totais norte-americanos em 2007, contra 10% em 1980, ao passo que representa apenas 5% do emprego. A desproporção é extrema. Ela pesa sobre a economia global, através de muitos canais. Primeiro, através das exigências de rentabilidade. A mundialização financeira dos direitos de propriedade deu aos acionistas substituídos pelos investidores institucionais um poder sem precedentes. Permitiu o surgimento de um padrão de desempenho em cerca de 15% para as empresas cotizadas. Esta exigência de rentabilidade é insustentável no longo prazo. Pouquíssimas atividades industriais oferecem retornos tão elevados.

Por conseguinte, a falta de empregos rentáveis, sob a pressão do valor acionário, as empresas foram obrigadas a fornecer capital aos acionistas através de dividendos ou recompra de ações. Sabemos que nos Estados Unidos a emissão líquida de ações é negativa nos últimos quinze anos. Em outras palavras, o mercado bursátil norte-americano financia os acionistas e não o contrário. Pelo fato de pesar sobre o crescimento dos países desenvolvidos e alimentar as estratégias de deslocalização, esta rentabilidade exigida leva a uma queda significativa do emprego industrial na Europa e nos Estados Unidos.

A segunda consequência é deduzida imediatamente: uma forte pressão sobre os salários. Ela decorre de uma relação de forças extremamente desigual entre uma representação unificada dos acionistas e uma extrema fragmentação das organizações sindicais. Por conseguinte, enquanto no regime fordista uma parte significativa dos ganhos de produtividade era devolvida aos trabalhadores, o que alimentava o dinamismo da demanda aquecida, isso não mais é verdade no capitalismo patrimonial. Os salários reais estagnaram, o que é um freio permanente para o crescimento econômico. Daí o recurso ao endividamento das famílias com os efeitos que conhecemos.

Terceira consequência: um grande aumento das desigualdades. Com efeito, uma característica central da nova governança corporativa é ter derrubado o alto management do lado dos proprietários. É toda a questão das novas regras de remuneração com vistas a alinhar os interesses dos dirigentes com os dos acionistas. Seguiu-se uma explosão das desigualdades nos países desenvolvidos. A diferença entre o salário médio dos operários e dos dirigentes passou de 40 para 500 nos Estados Unidos.

Ainda mais impressionante: se considerarmos os 90% dos trabalhadores menos ricos e compararmos a sua renda média com o 1% mais rico, no período entre 1973-2006 (33 anos) constataremos que em termos reais a renda média dos primeiros diminui ligeiramente quando é multiplicada por 3,2 para os mais ricos. Lembremos que no período precedente - 1933-1973 - houve uma certa recuperação. Essas desigualdades têm efeitos tanto políticos, como econômicos. Em última análise, é a unidade da sociedade que fica comprometida.

É impressionante constatar o quanto os mercados foram incapazes de influenciar ou mesmo simplesmente atenuar esses desequilíbrios. É uma lição que é preciso manter em mente. Assim, de acordo com a teoria da eficiência financeira, a concorrência teria que aumentar o bem-estar dos consumidores, ou seja, dos devedores de hipotecas, fornecendo produtos de boa qualidade, capazes de gerenciar os riscos que comporta o acesso à propriedade, a custos baixos.

É em nome de um tal resultado que a liberalização dos mercados foi justificada. E não para aumentar os bônus bancários. Isso não aconteceu. Da mesma forma, atraídos pelos altos salários, muitos dos nossos engenheiros mais bem formados migram para o setor financeiro. Será esta uma situação satisfatória quando se consideram todos os desafios técnicos que temos que enfrentar? A entrada em crise corresponde ao momento em que esses desequilíbrios são tão grandes que a coerência global é questionada. Levanta-se então a questão de uma nova regulação.

No entanto, a crise não oferece soluções fáceis. Longe disso, inicialmente, ela só agrava os problemas porque exacerba as tendências próprias ao capitalismo patrimonial. Tomemos a questão financeira, que, como vimos, exerce um papel crucial. Durante os últimos quinze anos, o setor bancário evoluiu para um elevado grau de concentração em torno de um pequeno número de bancos muito grandes. Esta tendência é problemática porque produz gigantes que, devido ao seu tamanho, são portadores de risco sistêmico.

Consequentemente, as autoridades públicas são, de fato, obrigadas a vir em seu auxílio em caso de dificuldades. Todos os economistas concordam em que essa situação não seja aceitável. Ela leva esses atores a assumirem riscos excessivos, posto que os lucros lhes revertem ao passo que as perdas são socializadas. Ora, a crise e as medidas de emergência tomadas pelas autoridades públicas acentuaram ainda mais a concentração do setor bancário. Tendo os bancos Bear Stearns, Lehman Brothers, Merril Lynch, Wachovia e Washington Mutual desaparecido, os demais tornaram-se ainda mais importantes.

Em outras palavras, os bancos já grandes demais para falir tornaram-se ainda maiores! Nestas condições, desmantelar esses grandes conglomerados, por exemplo, separando-os em bancos de investimento e bancos de depósitos, deveria ser uma prioridade. Um banco grande demais para falir deveria ser igualmente grande demais para existir. Mas essa política implica uma profunda mudança das mentalidades, o que, ao menos por enquanto, parece bastante remota. Globalmente, o G-20 continua a pensar no contexto do capitalismo neoliberal. No entanto, se o nosso diagnóstico estiver correto, a persistência da crise vai exigir uma mudança de paradigma.

As próximas dificuldades a serem enfrentadas são de duas ordens: não só a manutenção de um desemprego em massa nos países desenvolvidos, mas também o desenvolvimento de grandes dificuldades monetárias. Note-se que, até agora, a crise foi principalmente de natureza financeira e bancária. As autoridades públicas têm conseguido controlá-la graças à manipulação vigorosa da arma monetária. Para colocá-lo simplesmente, elas afogaram as dificuldades de liquidez com o apoio ativo dos bancos centrais.

Hoje, no entanto, a massa de liquidez assim produzida associada ao crescimento vertiginoso das dívidas públicas marca o início de uma nova fase em que a questão do valor das moedas comparece como central. A este respeito, não faltam os cenários de uma possível ruptura: o que aconteceu com a hegemonia do dólar, a unidade da zona do euro, a paridade do yuan ou a fraqueza da libra esterlina? É a coesão internacional do neoliberalismo que se encontrará então diretamente questionada.

As forças de instabilidade que vieram à tona em agosto de 2007 ainda não terminaram de fazer sentir seus efeitos devastadores.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Dieta Para Um Planeta Consciente






(Do livro “The World we Have”, de Thich Nhat Hanh)




Buda uma vez contou a seguinte estória aos monges dele:

Um casal e o seu filho mais novo estavam cruzando um vasto deserto a caminho de buscarem asilo em outra região. Mas eles não tinham planejado bem e, no meio do deserto, estavam somente na metade do caminho quando ficaram sem comida. Percebendo que todos os três iriam morrer no deserto, os pais tomaram uma decisão horripilante: matar e comer o próprio filho. Toda manhã eles comiam um pedacinho da carne do filho, o suficiente para ter energia de caminhar um pouco mais adiante, o tempo todo chorando. “Onde está o nosso garotinho?” Eles carregavam o restante da carne do filho nos ombros, para que continuasse secando ao sol. Toda noite o casal olhava um para o outro e perguntava: “Onde o nosso amado filho está agora?” E choravam e puxavam os cabelos, e consternados batiam no peito. Finalmente, eles foram capazes de cruzar o deserto e chegar à nova terra.



Quando Buda terminou de contar esta estória, perguntou aos monges: “Vocês acham que este casal gostou de comer a carne do filho deles?”

“Não,” responderam os monges. “Esses pais sofreram terrivelmente quando tiveram que ingerir a carne do filho.” Então Buda disse: “Nós temos que praticar nos alimentando de um modo tal que retenha compaixão em nosso coração. Temos que comer em estado de consciência plena. Senão comeremos a carne de nossos próprios filhos.”

No Sutra “A Carne do Filho”, Buda nos ensina a praticar o consumo consciente para preservar o nosso futuro. O nosso futuro pode ser sempre vislumbrado em nosso presente. Se o presente parecer de um jeito, o futuro provavelmente parecerá o mesmo, pois o futuro é feito do presente. Portanto, para salvaguardarmos nosso futuro temos que fazer mudanças no presente. Se aplicarmos o Sutra “A Carne do Filho” em nosso cotidiano, seremos capazes de nos salvar e salvar o nosso planeta.

A situação em que a Terra se encontra hoje foi construída pela produção inconsciente e pelo consumo inconsciente. Estamos violentando nossos lares e estamos nos defrontando com o aquecimento global e mudanças climáticas catastróficas. Criamos um ambiente que é conducente à violência, ódio, discriminação e desespero.

No mundo moderno as pessoas pensam que os seus corpos lhes pertencem, e que elas podem fazer o que quiserem consigo mesmas. “Temos o direito de viver nossas próprias vidas,” dizem elas. A lei apóia tal declaração; esta é uma das manifestações do individualismo. Mas de acordo com o ensinamento de Buda, o seu corpo não é seu. O seu corpo pertence aos seus ancestrais, aos seus pais e às futuras gerações. Ele também pertence à sociedade e a todos os outros seres vivos. Todos eles se reuniram – as árvores, as nuvens, o solo, tudo – para trazer a presença deste corpo. Nossos corpos são como a Terra. E existe a Bodisatva Portadora da Terra, sustentando tudo em conjunto.

Manter o seu corpo saudável é uma forma de expressar gratidão e lealdade a todo o cosmos, a todos os ancestrais e futuras gerações. Se formos saudáveis, todos podem se beneficiar disso – não apenas os seres humanos, mas também os animais, plantas e minerais. Este é um preceito do bodisatva. Quando praticamos os cinco treinamentos da consciência plena nós já estamos no caminho de um (a) bodisatva.

Nós somos o que consumimos. Se olharmos profundamente para o quanto e quais itens consumimos diariamente, iremos conhecer muito bem a nossa própria natureza. Temos que comer, beber e consumir, mas se fizermos isto irrefletidamente, podemos destruir nosso corpo e nossa consciência, demonstrando ingratidão para com os nossos ancestrais, nossos pais e futuras gerações. Todos nós sabemos que às vezes abrimos o refrigerador e tiramos um item que não é bom para nossa saúde. Somos inteligentes o bastante para reconhecer isto. Mas mesmo assim continuamos e comemos aquilo para tentar cobrir a inquietação dentro de nós. Consumimos para esquecer nossas preocupações e nossas ansiedades. A prática recomendada por Buda é a de que quando um sentimento de ansiedade ou medo surge, não devemos tentar suprimi-lo através do consumo. Ao invés, convidamos a energia da mente consciente a se manifestar. Praticamos caminhando conscientemente e respirando conscientemente para gerar a energia da consciência plena, e solicitamos a esta energia que cuide da energia que está nos fazendo sofrer. Se não praticarmos, não teremos suficiente energia de consciência plena para cuidar do nosso medo, da nossa raiva, e é por isso que consumimos para reprimir tais energias negativas.

Buda recomenda que cada monge e monja tenham uma tigela para levar à ronda da mendicância. O termo budista para a tigela de mendicância é “recipiente de medida apropriada”. Visto que a tigela é exatamente do tamanho correto, sempre sabemos o quanto comer. Nunca comemos demais, porque comer muito trás doença aos nossos corpos. Obesidade se tornou um imenso problema de saúde na sociedade ocidental, enquanto povos nos países pobres não têm o suficiente para comer.

Ignoramos a regra da moderação. Consciência plena da alimentação nos ajuda saber o que e o quanto devemos comer. Devemos nos servir somente do que podemos comer. Eu sugiro, para a maioria de nós, que nos sirvamos menos do que estamos habituados a comer diariamente. Vemos que pessoas que consomem menos são mais saudáveis e mais alegres, e àquelas que consumem muito podem sofrer muito profundamente. Se mastigarmos cuidadosamente, se comermos somente o que é saudável, não iremos levar doenças para dentro de nossos corpos e mentes. Não iremos comer a carne dos nossos ancestrais, filhos e netos.

Quando comemos com a mente consciente, estamos em contato íntimo com a comida. O alimento que comemos chega até nós a partir da natureza, dos seres vivos e do cosmos. Tocá-la com a nossa total consciência é mostrar nossa gratidão. Comer conscientemente pode ser uma grande alegria. Nós pegamos a comida com o nosso garfo, olhamos para ela por alguns instantes antes de colocá-la na boca, e então a mastigamos cuidadosamente e conscientemente, pelo menos cinqüenta vezes. Praticando desta forma, estamos em contato com todo o cosmos.

Existem tipos de alegria que podem ser nutritivas e saudáveis, trazem-nos calma, conforto e nos deixam cheios de paz e frescor, e nos ajudam a permanecer claros e lúcidos. Este é o tipo de alegria que precisamos. Existem outros tipos de alegria que podem nos trazer muito sofrimento posterior: a alegria de ingerir alimentos prejudiciais à saúde, bebidas alcoólicas, doces em demasia, que trazem toxinas para dentro do nosso corpo. Temos que distinguir entre estes dois tipos de alegria. Uma é saudável e nutritiva e a outra destrutiva.

O alimento que comemos pode revelar a interconexão do universo, da Terra, de todos os seres vivos e de nós mesmos. Cada mordida no vegetal, cada gota de molho de soja, cada pedaço de tofu contém a vida do sol e da Terra. Podemos ver e provar todo o universo em um pedaço de pão! Podemos ver o significado e valor da vida nestes preciosos pedacinhos de comida.

Ter a oportunidade de sentar com a família e amigos e saborear um magnífico alimento é algo precioso, algo que nem todo mundo tem. Muitas pessoas no mundo estão passando fome. Quando eu seguro uma tigela de arroz ou um pedaço de pão, sei que sou afortunado e sinto compaixão daqueles que não têm o que comer e estão sem amigos ou família. Esta é uma prática muito profunda. Não precisamos ir a um templo ou uma igreja para praticar isto. Podemos praticar isto à nossa mesa de jantar. Comendo conscientemente podemos cultivar as sementes da compaixão e compreensão que fortalecerão nossa determinação de fazer algo para ajudar a nutrir as pessoas famintas e solitárias.

Uma coisa que podemos fazer é considerar o quanto de carne nós consumimos. Por mais de dois mil anos, muitos budistas têm sido vegetarianos com o propósito de nutrir compaixão pelos animais. Agora nós também descobrimos que mudar para uma dieta vegetariana pode ser uma das maneiras mais efetivas de lutarmos contra a fome mundial e o aquecimento global. A prática de criar animais para alimentação tem criado alguns dos piores prejuízos ambientais no planeta e é responsável por um quarto das emissões de gás do efeito estufa.

A nossa forma de comer e produzir alimento pode ser muito violenta para outras espécies, para os nossos próprios corpos e para a Terra. A Mãe Terra sofre profundamente por causa da maneira como nos alimentamos. Animais criados para abate é a maior fonte mundial de poluição de água; os dejetos das fábricas das fazendas e açougues escorrem para nossos rios, córregos e água potável. Somente nos Estados Unidos centenas de milhões de acres de florestas foram devastadas para plantar milho para alimentar animais de criação. As preciosas florestas tropicais que mantém o frescor do nosso planeta e provêm moradas para a maioria das espécies de plantas e animais da Terra estão sendo queimadas e limpas para criar terras de pastos para o gado.

Grande parte dos milhões de toneladas de grãos que plantamos não é usada para alimentar as pessoas, mas sim para criar gado para o abate e para produzir bebidas alcoólicas. Uma agência de proteção ambiental relata sobre a produção da agricultura de milho nos Estados Unidos no ano 2000 que de acordo com a National Corn Growers Association, cerca de 80% de todo milho plantado nos Estados Unidos é consumido pelos semoventes de fazendas ou granjas de criação nacionais e estrangeiras, produção de aves domésticas e peixe.3 Quando você segura um pedaço de carne e olha profundamente para ela, verá que uma quantidade imensa de grãos e água foi usada para fazer aquele único pedaço de carne. Uma enorme quantidade de grãos e água também é usada para fazer álcool. Todo dia dezenas de milhares de crianças morrem de fome e desnutrição; aquele grão poderia alimentá-las. Quando ingerimos bebida alcoólica em estado de consciência plena, compreendemos que estamos bebendo o sangue de nossos filhos. Estamos comendo nossos filhos, nossa mãe e o nosso pai. Estamos devorando a Terra.

Temos que pressionar as indústrias de semoventes para mudarem. Se pararmos de consumir elas pararão de produzir. Ao comer carne nós compartilhamos a responsabilidade de causar mudança climática, as destruições das florestas, e envenenamento do nosso ar e água. O simples ato de se tornar um vegetariano pode fazer uma diferença na saúde de nosso planeta. Se você não consegue parar completamente de comer carne, você ainda assim pode decidir se esforçar para diminuir. Retirando carne da sua dieta por dez ou mesmo cindo dias por mês, você já estará realizando um milagre – um milagre que ajudará a resolver o problema da fome nos países em desenvolvimento e reduzir dramaticamente os gases do efeito estufa.

A cada refeição, fazemos escolhas que ajudam ou prejudicam a Mãe Terra. “O que devo comer hoje?” é uma pergunta profunda. Pode ser que você queira fazer esta pergunta a si mesmo toda manhã. Você pode descobrir que, na medida em que pratica o consumo consciente e começa a olhar profundamente para o que come e bebe, o seu desejo por carne e bebida alcoólica diminuirá.

Em muitas tradições budistas, monges e monjas são vegetarianos. Muitos praticantes budistas laicos na China e Vietnã também são vegetarianos e existem outros que se abstém de comer carne dez dias por mês. Eu recomendo veementemente a todos que cortem os seus consumos de carne ao menos pela metade. Durante as minhas mais recentes visitas aos Estados Unidos, muitos praticantes budistas americanos me disseram que eles tinham se comprometido a parar de comer carne ou a comer cinqüenta por cento menos. Este é um despertar coletivo que já está acontecendo. Se conseguirmos assumir o compromisso de nos tornar vegetarianos, ou parcialmente vegetarianos, sentiremos bem-estar – teremos paz, alegria e felicidade desde o momento em que assumimos este compromisso. Nosso despertar coletivo pode criar mudanças no mundo inteiro.

Temos que praticar o consumo consciente para nos proteger, proteger nossas famílias, sociedades e planeta. Crianças, professores e pais todos podem praticar o consumo consciente. Os líderes de organizações e comunidades podem praticar o consumo consciente e encorajar outras pessoas a seguir seus exemplos. Se você fosse um Prefeito, iria querer proteger as pessoas da sua cidade do consumo irrefletido que traz mais violência e sofrimento para a sua cidade. Até o presidente da nação mais poderosa do mundo pode ser encorajado a consumir mais conscientemente. Até o presidente tem natureza búdica – a semente da compreensão e compaixão – em algum lugar dentro dele.

Quando somos capazes de sair da casca do nosso pequeno eu e ver que estamos inter-relacionados com todos e com tudo compreendemos que todos os nossos atos afetam toda humanidade e todo o cosmos. Manter o seu corpo saudável é um ato amoroso dirigido aos seus ancestrais, aos seus pais, futuras gerações e sociedade. Saúde não significa apenas saúde física, mas também saúde mental. Consumo consciente traz saúde e cura para nós mesmos e para o nosso planeta.



Fonte:

http://www.viverconsciente.com/textos/dieta_planeta_consciente.htm




(Tradução para o português: Tâm Vân Lang - Maria Goretti Rocha de Oliveira)

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Marketing de comportamento


"Uma frase típica de jantares inteligentes é: "Hoje temos outra cabeça!". Eu digo que não. Não temos "outra cabeça". Somos mais tagarelas sobre nossas mentiras. A mentira virou ciência: virou marketing", escreve Luiz Felipe Pondé, professor da PUCSP, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 10-05-2010. E confessa: "Sim, tenho problema com as mulheres, quem não tem? Só os mentirosos". "Ser bem resolvido com as mulheres é ser gay", atesta.

Eis o artigo.

Uma frase típica de jantares inteligentes é: "Hoje temos outra cabeça!". Eu digo que não. Não temos "outra cabeça". Somos mais tagarelas sobre nossas mentiras. A mentira virou ciência: virou marketing.
Acho, sim, que muitos profissionais das ciências humanas afirmam que existe essa "outra cabeça" (no sentido de sermos mais bem resolvidos) simplesmente para justificar seu lugar de gurus de uma vida melhor. Pretendem seduzir as pessoas dizendo para elas palavras bonitas.

Principalmente as mulheres. Enganam-se porque as mais interessantes entre elas detestam bajulação. A praga da "autoajuda" não é privilégio de magos decadentes, bruxas loiras e gurus desdentados. Essa praga assola tudo, fazendo da vida inteligente um marketing da autoimagem.

Progredimos, sim, em remédios, repelentes de mosquitos e cirurgias (tecnologias médicas), aviões, computadores e celulares (tecnologias de transporte e comunicação). Mesmo a democracia eu julgo sobrevalorizada em muitos casos devido à inequívoca vocação para a retórica e para a tirania da opinião pública.

Mas a má-fé se esconde no fato de que todos esses avanços técnicos implicam o tipo de vida (degradada, instrumental, apressada) que temos. Como diz o filósofo francês André Comte-Sponville, o "progresso" em escala global é uma ameaça à vida.

Sem dúvida que algumas coisas "mudam". Hoje, por exemplo, muitas mulheres podem ser "mais" do que secretárias, elas podem ser médicas, engenheiras, cientistas. E negros podem ser presidentes. Mas nada disso (de antibióticos a médicas negras) implica em "outra cabeça": continuamos invejosos, manipuladores, inseguros, traiçoeiros e podemos destruir muita gente dando uma de "defensores dos mais fracos". Os "ganhos sociais" só se instalam quando se acomodam e passam a servir às velhas mazelas humanas.

Uma leitora, irritada, pergunta: "Você não acredita que existam mulheres sozinhas e bem resolvidas? Você deve é ter problemas com as mulheres". Dou duas respostas.

Primeira: não acredito em pessoas bem resolvidas, acho que todo mundo que se diz bem resolvido é um mentiroso contumaz, mulher ou homem. No fundo, o que existe hoje é um marketing de comportamento que se apoia no consumo crescente de antidepressivos e hábitos macabros como conversar com gatos, cachorros, plantas ou extraterrestres.

Só eremitas conseguem viver bem sozinhos. Amar a solidão sempre implica alguma forma de trauma ou desencanto com a vida.

Segunda: sim, tenho problema com as mulheres, quem não tem? Só os mentirosos. Vou contar uma história. No maravilhoso livro "Contraponto", de Aldous Huxley, existem duas personagens femininas, entre outras, Marjorie e Lucy. A primeira é aquele tipo clássico da mulher que se faz vítima do homem, grávida e traída. A segunda é o outro tipo clássico de mulher (e oposto à Marjorie), o ideal de toda mulher moderna: a devoradora de homens, que transa com quem quer.

Lucy, em sua vivência de mulher livre, descobre um tesouro de sabedoria: só os gays não têm problemas com as mulheres porque são indiferentes a elas. Ser bem resolvido com as mulheres é ser gay. Para o gay, a mulher é obsoleta. Exigir dos homens "afetos corretos" para com as mulheres é querer que todos sejam gays. O mesmo vale para as mulheres: toda mulher tem problema com os homens. Quando se trata da relação entre homens e mulheres, estamos num pântano de medo, insegurança, baixa autoestima e jogos de manipulação. O inferno do desejo.

Conhece?

E por que existe tanta gente que faz uso desse marketing de comportamento dizendo por aí que "hoje temos outra cabeça"? De novo, dou duas respostas.

Primeira: eu me vendo como bem resolvido para fazer os outros se sentirem mal e com isso elevo minha autoestima. Nunca subestime a delícia que é fazer o outro se sentir mal mesmo que você não esteja se sentindo tão bem assim.

Segunda: como derivação da primeira, eu me vendo como bem resolvido para elevar meu preço no mercado dos afetos e das relações.

As duas se resumem no velho pecado da vaidade. Esse é apenas um dos sete pecados capitais (caso a cara leitora queira saber mais, leia são Tomás de Aquino). Melhor do que todo o papo de luta de classes, ideologia, política dos corpos, sexismo e blá-blá-blás associados, experimente usar os sete pecados capitais para ver se eles não iluminam a chacina cotidiana em que você vive.



sexta-feira, 14 de maio de 2010

Quanto custa um capitalismo





"A crise do euro não é uma crise econômica simplesmente", escreve Marcos Nobre, professor de filosofia na Unicamp, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 11-05-2010. Segundo ele, "é um pesadelo imaginar que a grande crise do neoliberalismo alucinado dos anos 1990 acabará por puxar para o túmulo também o projeto de um modelo social de âmbito europeu. Mas essa parece ser hoje a tendência".

Eis o artigo.

Quem lê o noticiário sobre a crise na Grécia pode achar que se trata de um problema econômico simplesmente. O problema de como administrar uma moeda multinacional.

A Europa seguiu ontem a estratégia dos EUA em 2008. Liberou uma quantidade colossal de recursos com o recado: se quiserem especular contra a Grécia, contra o euro, contra a Europa, vão perder dinheiro. Essa linguagem o "mercado" não apenas entende; também, e principalmente, agradece.

Tudo resolvido? Claro que não.

Porque a crise do euro não é uma crise econômica simplesmente.

Porque o euro não foi um projeto econômico simplesmente.

Para começar, o euro teve a ambição de ser contraponto à hegemonia mundial solitária dos EUA a partir dos 1990. Mas pretendeu sobretudo defender um modelo de capitalismo que seria próprio da Europa. Foi para preservar o quanto possível desse modelo que a Comunidade Europeia se tornou União Europeia, expandiu fronteiras e criou uma moeda comum.

Não que seja o paraíso na Terra, evidentemente. As diferenças internas são enormes, o modelo é mais imaginário do que real. Nem todo país é Suécia ou Alemanha. As dificuldades de financiamento são notórias.

Mas, pelo menos, é um modelo baseado na proteção social para quem vive do trabalho. Que pretende aliar democracia supranacional com coisas básicas, como poder sair à rua sem temer pela própria vida. É bem mais do que se pode encontrar nos EUA. Ou na China. Para não falar no Brasil, que nada tem de modelo, mas que segue o padrão europeu quando o assunto é escrever uma Constituição.

É um pesadelo imaginar que a grande crise do neoliberalismo alucinado dos anos 1990 acabará por puxar para o túmulo também o projeto de um modelo social de âmbito europeu. Mas essa parece ser hoje a tendência.

Não que o euro vá desaparecer, ou que algum país vá deixar o euro.

Nem que a União Europeia vá desaparecer. Mas o grau de integração tende a regredir. As instâncias supranacionais tendem a perder força e poder. A necessidade de elevar ainda mais os gastos públicos para financiar vários países ao mesmo tempo deve colocar a Europa em um ritmo ainda mais medíocre de retomada econômica.

Quando finalmente sair da crise, a Europa terá já perdido terreno precioso no campo internacional.
Porque o euro não é o dólar. Mas também porque, segundo a cartilha econômica ortodoxa, esse modelo de capitalismo é caro demais.

Imitar o modelo propagandeado pelos EUA sai muito mais em conta. Para não falar no capitalismo chinês, que é uma verdadeira pechincha social e política.


Depois da beira do abismo: e daí?


"Europa dá vexame, leva bronca dos EUA e vai assumir o risco de bancos ineptos a fim de não ir para o vinagre", escreve Vinicius Torres Freire, jornalista, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 11-05-2010.

Eis o artigo.

A finança mundial esteve à beira do abismo na tarde de quinta-feira e na sexta-feira, pois o Banco Central Europeu disse na manhã de quinta que não iria financiar governos sem crédito na praça, como era o caso da Grécia e seria, em poucos dias, o de Portugal.

O BCE, na pessoa de seu presidente, Jean-Claude Trichet, dizia também que não taparia rombo de banco caloteado. Disse, enfim, que o mercado poderia vir quente que ele estava frio feito um pepino.

Bem, o mercado veio quente e anunciou o fim do mundo. Os europeus levaram um susto, uma corrida, uma bronca dos EUA e, vexaminosamente, jogaram a toalha. Vão tapar rombos e fizeram picadinho de normas da União Europeia. Os EUA ainda ofereceram dinheiro para conter a quebradeira da prima.

Não vai haver despejo imediato do dinheiro prometido, 750 bilhões, US$ 958 bilhões ou R$ 1,7 trilhão (53% do PIB do Brasil). Um fundo europeu vai tapar eventuais rombos de caixa de governos falidos - por falar nisso, o governo de Chipre se comprometeu a emprestar US$ 1,27 bilhão, quatro vezes mais que o Brasil alardeou. Um fundo para "desastres naturais" (sic) e outras ocorrências excepcionais vai tapar súbitos rombos de caixa.

O FMI vai oferecer outro tanto de dinheiro e, vergonha, vai supervisionar as contas dos governos europeus. Por fim, o BCE se comprometeu a emprestar dinheiro para governos e bancos, a fim de evitar quebras, além de oferecer garantias. Algo parecido com o que EUA e seu BC, o Fed, fizeram na crise de 2008. Qual o resumo da ópera?

1) Mais uma vez os bancos transferiram os riscos de sua incompetência para o setor público, como o fizeram em 2008. Mamãe União Europeia vai cobrir eventuais calotes;

2) Para o Brasil, foi ótimo, ao menos no curto prazo (um ano). Há grande chance de não haver disparada do dólar nem seca global de crédito devida a quebras de bancos e governos europeus. Mas, como os europeus vão crescer muito pouco, algo dessa baixa global no consumo deve respingar por aqui;

3) O risco de calote de governos europeus não acabou. As medidas de arrocho, de cortes de gastos públicos e, indiretamente, redução de salários serão ainda mais pesadas. Se não houver arrocho, os governos quebram. A Grécia continua tão quebrada quanto na sexta. Os "povos do Mediterrâneo" continuam tão fritos quanto antes do pacote;

4) Haverá deflação e recessão ou crescimento muito pequeno na Europa por dois ou três anos, em especial na Grécia, em Portugal e na Espanha, talvez na Bélgica e na Itália. Assim, pode haver revolta social, política. Que pode derrubar governos e acordos de arrocho. A própria recessão vai criar dificuldades para o governos pagarem suas contas;

5) A União Europeia ficou politicamente desmoralizada. Só agiu aos 44 minutos do segundo tempo. Vai ter de, na marra, fazer algum tipo de governo comum no que diz respeito a gastos públicos e a financiamento da dívida pública. Coisa prevista faz tempo por acadêmicos e sábios, mas que terá de ser feita na marra, agora, ao menos em parte. Os governos nacionais, que já não têm moeda, terão ainda menos autonomia fiscal;

6) A crise ainda não acabou.


Essa crise é apenas o começo de uma série'


O economista Walter Molano, do BCP Securities, considera o pacote de quase US$ 1 trilhão uma “solução por ora”. Para o professor da Universidade de Columbia, a saída da crise passa pela desvalorização do euro. Ele defende que essa turbulência é o início de uma série de crises e sua força é bem maior do que a do Lehman Brothers: “Parece apocalíptico, mas é isso mesmo”.

A entrevista é de Fabiana Ribeiro e publicada pelo jornal O Globo, 11-05-2010.

Eis a entrevista.

O plano de resgate é suficiente para evitar uma crise geral na zona do euro?

Esse pacote de quase US$ 1 trilhão não resolve a questão da contaminação na zona do euro, e ainda levanta dúvidas sobre o destino de países como Grécia, Portugal e Espanha. O pacote dá apenas um tempo a esses países: é a solução por ora. E só.

A ameaça, portanto, continua?

Essa crise é apenas o começo de uma série de outras crises e sua força é bem maior do que a crise do Lehman Brothers. Só que ainda trará um agravante: as pessoas não estão gostando nada das medidas de austeridade exigidas pelos organismos para se aprovar um pacote. E uma crise maior e mais perigosa do que a crise do Lehman Brothers e certamente chegaria ao Brasil. É uma questão de tempo. Parece apocalíptico, mas é isso mesmo.

Mas os mercados ficaram mais animados..

Os mercados pensam a curto prazo. E a curto prazo o plano funciona. A Grécia enfrenta risco significativo de default e os bancos europeus estão muito expostos. Mas os problemas da Europa vão além de dinheiro. Essas questões se revolvem agora, mas voltarão. Não sei dizer se amanhã ou em um mês ou no ano que vem. Mas uma nova crise virá. E outras virão.

Tudo é para salvar o euro?

Certamente. E o custo é bem alto. Sem dúvida, hoje, o euro é um arrependimento para alguns países. Uma das saídas do momento seria, como recomenda a política do Fundo Monetário Internacional, uma forte desvalorização da moeda, o que aumentaria o nível de competitividade da economia. Mas os países não querem isso, não querem desvalorizar o euro.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Pode-se viver sem petróleo, mas não sem plantas





O último estudo sobre a diversidade biológica exibe o padrão do sexto maior evento de extinção do planeta: a transformação da Amazônia em uma savana, afirmam cientistas.

A reportagem é de Stephen Leahy, publicada por Terramérica e reproduzida por Envolverde, 10-05-2010.

Negócios e políticas como as que levaram ao atual vazamento de petróleo no Golfo do México estão minando a arquitetura vital do planeta, segundo a Perspectiva Mundial sobre a Diversidade Biológica 3 (GBO3), divulgado hoje pela Organização das Nações Unidas. O vazamento de aproximadamente cinco mil barris diários por dia, causado pelo rompimento, no dia 20 de abril, de uma plataforma de exploração de petróleo da British Petroleum (BP), terá efeitos devastadores nos ecossistemas marinhos e costeiros que durarão décadas, afirmam especialistas.

Estes tipos de negócios e políticas, multiplicados milhares de vezes nos últimos cem anos, colocou em risco os pilares da vida terrestre, segundo o GBO3. Trata-se do registro mais recente do estado da diversidade de espécies de flora e fauna, os organismos vivos que nos fornecem saúde, riqueza, alimentos, combustíveis e outros serviços essenciais.

Nesse estudo “distingue-se claramente o perfil do que pode ser o sexto maior evento de extinção da vida na Terra”, afirmou o cientista Thomas Lovejoy, chefe de Biodiversidade do Heinz Center for Science, Economics and the Environment, com sede em Washington, e conselheiro-chefe da presidência do Banco Mundial. As tendências são quase todas negativas: quedas exponenciais e sombrios pontos de inflexão, disse ao Terramérica este destacado estudioso da biologia tropical, que dirigiu o comitê de revisão e está encarregado de apresentá-lo hoje em Nairóbi, na abertura da reunião científica do Convênio sobre a Diversidade Biológica. Um desses pontos de inflexão é o colapso irreversível da selva amazônica.

Uma pesquisa recente revelou que a possível combinação de três fatores poderia desatar uma incontrolável transformação da Amazônia em savana. Esses fatores são a elevação em dois graus centígrados da temperatura média global, perda de 3% a 4% mais da cobertura de selva original e os incêndios florestais. Dessa forma se desataria uma enorme perda de espécies e abundantes emissões de dióxido de carbono na atmosfera, esquentando o clima.

Os impactos em milhões de habitantes da região “seriam assombrosos”, afirmou Lovejoy. “Devemos tomar o GBO3 como um grande chamado para o despertar”, acrescentou. Esse é o ano Internacional da Biodiversidade, mas as campanhas de alerta soam já há bastante tempo. Em 2002, 123 países-membros do Convênio se comprometeram a ações urgentes para deter o ritmo de perda de espécies. Oito anos depois, com os dados proporcionados por essas mesmas nações, o GBO3 registra que as promessas não foram cumpridas.

Quase um quarto das espécies vegetais conhecidas está em risco de desaparecer, os corais e anfíbios diminuem de forma acentuada e a quantidade de animais de todos os vertebrados caiu em um terço nos últimos 30 anos. Perguntado sobre a importância da extinção de espécies quando contamos com todo tipo de tecnologia, Lovejoy respondeu: “Você não se alimenta de Internet”. Tampouco é possível respirar sem as plantas que fornecem oxigênio à atmosfera. Mas, pode-se viver sem petróleo.

Entretanto, a preocupação com os ecossistemas sempre está em segundo lugar quando se decide explorar em busca de petróleo, minerais ou madeira, disse Kierán Suckling, diretor-executivo do não governamental Centro para a Diversidade Biológica dos Estados Unidos. “Se os ecologistas consultados ao final forem suficientemente agressivos, talvez possam conseguir que o projeto se reduza em 5%”, disse Suckling ao Terramérica. “O poder reside sempre naqueles que impulsionam o desenvolvimento”, insistiu.

A britânica BP foi eximida de controles ambientais para operar no Golfo do México, acrescentou Suckling. E não havia planos para lidar com um vazamento importante de petróleo. “Era um desastre anunciado, mas a companhia e o governo fizeram de conta que não aconteceria”, acrescentou. Apesar do enorme valor dos ecossistemas, é difícil calculá-lo em termos monetários, prosseguiu. O Golfo do México é um enorme recurso alimentar, estimado em US$ 2 bilhões anuais somente para o norte-americano Estado da Louisiana.

Mas isso nem mesmo se aproxima do valor real dessa região. “Como colocar preço em seus vastos mangues que existem há centenas de milhares de anos? Durante milhões de anos as tartarugas marinhas desovaram nas praias arenosas do Golfo. Quem somos para chegar e em apenas algumas décadas condená-las à extinção?”, questionou Suckling. Para ele, proteger a diversidade é um imperativo ético. “Sua perda é um empobrecimento para os seres humanos, pois evoluímos para interagir com todas essas espécies”, afirmou. Segundo Lovejoy, se fosse dado valor econômico aos ecossistemas, seria possível conseguir uma administração de riscos mais inteligente.

Em lugar de explorar petróleo no mar, a sociedade poderia decidir elevar sua eficiência em consumo de combustível. Por exemplo, se os carros e caminhões percorrerem 18 quilômetros por litro de gasolina seriam economizados milhões de barris de petróleo por ano e milhares de milhões de dólares em gasto com combustível, segundo uma análise da não governamental União de Cientistas Comprometidos.

“Deve-se aumentar a importância da biologia na agenda de preocupações humanas”, afirmou Lovejoy. A questão é “como conseguir isso antes que ocorram terríveis desastres. A infraestrutura biológica do planeta periga e é do nosso maior interesse fazer algo para salvá-la”, concluiu.