"O escâner nos aeroportos ampliará a já desrespeitosa indecência da esfregação em busca de objetos de metal nos passageiros", afirma José de Souza Martins, sociólogo, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 10-01-2010.
Eis o artigo.
A adoção de escâneres de corpo inteiro nos aeroportos, a começar da Inglaterra, escandaliza o que resta de consciência pudica neste mundo. É violação de privacidade e de direitos individuais, ainda que em nome da presumível segurança de todos. A reação da sociedade inglesa ao escaneamento de crianças nos aeroportos é bem indicativa da ilegalidade do procedimento. A saída já anunciada é mudar a lei que inibe o voeyurismo policial.
Aeroporto é outro mundo, que nada tem a ver com a nossa vidinha cotidiana, ainda demarcada pelas inocências do repetitivo. E não se trata apenas da repressão à imigração ilegal, ao tráfico de drogas ou ao terrorismo. Aeroportos são lugares de imensos desencontros culturais. Do mesmo modo que arquitetura de aeroporto é mais ou menos igual no mundo inteiro, a mentalidade de quem nele trabalha é idêntica em todas as partes, apesar das diferenças de nacionalidade e de língua. Embora pelos aeroportos passe, justamente, a imensa variedade da condição humana, a enorme diversidade cultural e social que na prática questiona essa uniformidade redutiva e repressiva. De modo que, mesmo que um país decida não adotar o escâner que viola a intimidade das pessoas, como a Espanha, que se manifestou nesse sentido, a mesma cultura repressiva, da qual o escâner é mero desdobramento, já se instalou na microssociedade de seus aeroportos, como o de Barajas, em Madrid. Ali apenas continuarão a ser usados os métodos da devassa consentida porque compulsória. Ou o passageiro se sujeita ou fica em casa.
Foi insólito o que no mesmo aeroporto se passou com um casal de primos meus, ambos descendentes de espanhóis imigrados para o Brasil há quase cem anos. Minha prima, já avó, é neta de avós espanhóis, que desembarcaram em Santos, em 1913, imigrantes pobres, com passagem paga pelo governo de São Paulo. Ficaram na Hospedaria dos Imigrantes até que a requisição de mão de obra de um fazendeiro de café, de Bragança Paulista, lhes decidisse o destino.
Minha prima e o marido, pequenos sitiantes, trabalhadores de roça, com cerca de 70 anos de idade, decidiram juntar as pequenas sobras da economia de uma vida e fazer curta viagem à Espanha mítica e ancestral. Passaportes nas mãos, passagens e algum dinheiro no bolso, desembarcaram em Madri para fazer a conexão para Málaga. Gente simples, educada na severa cultura caipira, com forte sotaque, conhecem apenas umas poucas palavras da língua espanhola, a única herança que lhes restou dos avós.
Não deu outra: não passaram pelo crivo visual do policial fardado que neles viu candidatos certos à devolução imediata, suspeitíssimos. Prostituição não era, em face da idade evidente. Tráfico, só por inocência. Trabalho clandestino, as marcas do desgaste físico não sugeriam. Aqueles dois eram um mistério não catalogado no manual de suspeições visuais da polícia do aeroporto. Eles, no entanto, ficaram felizes com a interpelação severa do policial carrancudo e a ela se sujeitaram com prazer e mesmo alegria. Achavam que o governo espanhol os recebia e lhes fazia a inquirição para obter evidências de que eram gente boa, como são. Era um exame de admissão e de caráter, ao fim do qual, tinham certeza, receberiam a aprovação do governo da pátria de seus avós, que, se estivessem vivos, deles se orgulhariam. Mais do que temer o interrogatório, ansiavam por ele.
Tão inocentes, que ainda quiseram tirar, sorridentes, fotografias com o policial enquanto ele fazia as perguntas. "Quanto dinheiro vocês trouxeram?" Levavam o que lhes pareceu suficiente à luz de sua modesta e rústica concepção de economia. Os dois trabalhavam desde quando eram crianças e passaram a vida no cabo do guatambu, como se diz na roça, puxando enxada em duras e longas jornadas de trabalho. Naquelas toscas economias da viagem ao paraíso estava resumida essa vida penosa, de muito suor e lágrimas.
Mais fotografias, encantados com o imenso respeito que viam no meganha que estava ali para mandá-los de volta e não para recebê-los. "Qual o nome e o endereço do hotel em que vão ficar?" "Não, moço, não vamos ficar em hotel, não. Nós temos família aqui." Iam ficar numa aldeia, na casa de uma parenta que não conheciam e com a qual trocavam correspondência. Ela os incitara à viagem, dizendo-lhes que podiam ficar em sua casa. Mais fotografias, sorrindo e agora passando o braço por cima do ombro do policial, como se ele também fosse parente. "E quanto tempo pretendem ficar na Espanha?", perguntou, ainda em busca de pretexto para mandá-los de volta. "Ah, moço, não é muito tempo não. Temos que voltar logo porque deixamos as vacas e a roça aos cuidados dos filhos." Últimas fotos e o policial se deu por vencido. Puderam, então, ver um pequeno canto da terra-mãe ancestral e matar a estranha saudade de quem nunca lá estivera.
A adoção do escâner da devassa corporal não superará essa cultura da repressão e da desconfiança nem desencontros como esse. Embora, de fato, tudo indique que a adoção do escâner de corpo inteiro represente um progresso em relação à barbárie aeroportuária que se expressa na grosseria e na arbitrariedade dos chamados oficiais de imigração em muitos países, como a Itália e a França. De fato, escaneados já são os passageiros com instrumentos comparativamente rústicos e com o olhar racista dos insensíveis à humanidade do outro. O escâner de corpo apenas ampliará o nível da desrespeitosa indecência que há na esfregação daquele aparelhinho que tenta localizar objetos de metal escondidos sob a roupa dos passageiros, mesmo no meio das pernas. Bispos, padres e freiras, sisudos judeus ortodoxos, resguardadas muçulmanas de véu ou de burka, solenes bispos e padres ortodoxos terão sua intimidade devassada e suas vergonhas acessadas. Chegamos ao fim do s tempos, os da violação visual dos corpos de cidadãos de pudica consciência, mesmo os revestidos das interdições do sagrado.
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