quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A água, recurso estratégico no século XXI




Transcrevo abaixo duas pequenas matérias sobre a crescente importância das reservas de água doce, num mundo de configuração imperial.

O primeiro artigo é um pequeno relato de dois participantes do Fórum de Davos, assumindo portanto a perspectiva das elites econômicas e políticas.

O segundo artigo, de Gilberto Dupas, é mais instigante, tratando das consequências estratégicas e geopolíticas dessa questão.




23/1/2008

Primeiro artigo: "Atualmente 70% da água doce consumida no mundo é concentrada na produção de alimentos e tecidos"



"Na produção de cada litro de gasolina são necessários 2,5 litros de água. Em média, as safras plantadas para produzir bioenergia utilizam pelo menos mil litros de água para gerar 1 litro de biocombustível. São necessários 2,7 mil litros de água para a produção de uma camiseta de algodão; até 4 mil litros para produzir um quilo de trigo; e 16 mil litros para produzir um quilo de carne bovina", constatam Klaus Schwab, undador e presidente-executivo do World Economic Forum; e Peter Brabeck-Letmathe é presidente e chief-executive officer da Nestlé, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 23-01-2008.


Informando que este será um dos temas a ser discutido em Davos, eles afimam que "não possuímos água suficiente para suportar a demanda global por alimentos nas próximas décadas sem mudanças urgentes e fundamentais para o uso da água na agricultura".

Eis o artigo.


Com economias e populações crescentes, o mundo está à beira de uma crise de abastecimento de água. É importante ter consciência exatamente de qual o montante de água necessário para fazer a economia funcionar. Na produção de cada litro de gasolina são necessários 2,5 litros de água. Em média, as safras plantadas para produzir bioenergia utilizam pelo menos mil litros de água para gerar 1 litro de biocombustível. São necessários 2,7 mil litros de água para a produção de uma camiseta de algodão; até 4 mil litros para produzir um quilo de trigo; e 16 mil litros para produzir um quilo de carne bovina. Até a produção das necessidades mais básicas da economia, como cimento, aço, químicas, mineração e geração de energia precisam de toneladas de água.

Em 2007 testemunhamos o impacto nos preços dos alimentos causado pela combinação de seca e migração de safras para a produção de biocombustíveis. A água é o maior problema que podemos ver nesse assunto, pois tem o potencial de gerar um impacto muito mais profundo nos consumidores e eleitores. Nas áreas agrícolas ao redor do mundo, que ajudam a alimentar populações urbanas de rápido crescimento, estamos nos aproximando do momento em que serão necessárias concessões dolorosas. Devemos usar a água tão escassa para alimentos, combustível, pessoas e cidades ou para o crescimento industrial? Qual a quantidade exata de água de um rio que pode ser represada? Como encontramos medidas para garantir que cada participante da economia consiga receber a água necessária para suas necessidades humanas e aspirações culturais e econômicas? E como podemos garantir a preservação do meio ambiente e seu desenvolvimento?

São perguntas difíceis. Ao contrário da redução de carbono, não existe uma alternativa, nenhum substituto. E não existe uma solução global que possa ser negociada. A água é local, por isso bacias de água serão pontos de grande tensão no futuro. São áreas grandes, que alimentam os maiores rios do mundo. Essas regiões abrigam milhões de pessoas, áreas para agricultura, florestas, cidades, indústrias e, freqüentemente, atravessam várias fronteiras políticas. A água utilizada para agricultura, na produção de alimentos e tecidos, será estudada com atenção - atualmente 70% da água doce consumida no mundo é concentrada nesses setores.

A pedido do International Water Management Institute, 500 cientistas testaram a água usada para a agricultura. O relatório desse estudo levou cinco anos para ser produzido e mostrou que não possuímos água suficiente para suportar a demanda global por alimentos nas próximas décadas sem mudanças urgentes e fundamentais para o uso da água na agricultura.

As mudanças climáticas devem acelerar esse processo, tornando-o ainda pior. O último relatório do IPCC mostrou que, se as temperaturas médias globais subirem em 3 graus Celsius, centenas de milhões de pessoas sofrerão com a falta de água. Esse é o alerta que precisávamos para começar a agir.

Os indícios dessa crise devem começar a aparecer nos próximos anos. E isso tudo em conjunto com a situação moralmente indefensável de 20% da população global que ainda vive sem acesso à água potável.

Mas ainda não é uma catástrofe. A solução se encontra em uma ação coletiva. As empresas podem otimizar a utilização da água e conseguir avanços significativos. Existem muitos casos de sucesso. Mas todos devem trabalhar juntos para mudar o cenário. Isso torna o desafio ainda mais difícil. Ainda há tempo para enfrentar esse problema. Com rapidez, inovação e novas formas de colaboração entre governo e empresas essa crise ainda pode ser evitada.

É nesse contexto que estaremos nos reunindo no Encontro Anual do World Economic Forum para debater o perfil político e econômico da água - para conscientizar colegas de trabalho, políticos e a sociedade sobre a necessidade de mudança para enfrentar esse desafio. Como podemos começar agora para garantir um mundo com água suficiente para todos no futuro, inclusive para nossos próprios negócios, até 2020? O nosso objetivo nessa reunião em Davos, na Suíça, é de criar uma Parceria Público-Privada inédita, de alto impacto, para ajudar a encontrar meios de gerir as necessidades futuras de água antes que haja uma crise.












Segundo artigo: Conflitos por água doce


Por: Gilberto Dupas


"A importação de grãos e matérias-primas é a maneira mais eficiente para os países com déficit hídrico importarem água em larga escala daqueles que a têm", constata Gilberto Dupas, coordenador-geral do Grupo de Conjuntura Internacional da USP, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais (IEEI), em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 19-01-2008. Segundo ele, a "América do Sul, obviamente, ainda não tem condição de “precificar” a escassez futura de água no mundo, mas precisa zelar vigorosamente pela qualidade de seus estoques e considerar estrategicamente quanto quer comprometer de suas reservas num quadro global de escassez que poderá elevar consideravelmente o preço futuro desses produtos".

Eis o artigo:



Na medida em se torna globalmente mais escassa, a água doce deixa de ser considerada um bem público. De acordo com o poder dos diferentes grupos, ela se torna propriedade cada vez mais privada e menos comum, gerando um grave conflito ecológico distributivo. No caso do Brasil, a complexa e pouco aprofundada polêmica sobre a transposição das águas do Rio São Francisco é um importante ensaio inicial sobre essa questão.

Os severos estragos que a poluição por resíduos químicos e o aquecimento planetário estão fazendo nos estoques mundiais de água doce os colocam como prioridade na discussão estratégica sobre poder - e pode abrir imensas oportunidades para a América do Sul. Segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), já há mais de 1 bilhão de pessoas no planeta com severa carência de água potável; e vários cenários internacionais consideram que a disputa pelo acesso a ela poderá conduzir a inúmeros conflitos regionais. Uma pesquisa feita pela CIA, pelo Ministério de Defesa britânico e pela PriceWaterhouseCoopers prevê várias possibilidades de futuras guerras por água no Oriente Médio, Ásia e África subsaariana. Na Europa, enquanto bilhões de euros são gastos na despoluição dos seus rios, cresce o mercado de importação desse líquido vital. A água doce não poluída de superfície já não é suficiente para atender à população dos EUA. Mais grave ainda é a situação das águas subterrâneas, envenenadas progressivamente por produtos químicos e bactérias, pela marcha da industrialização. A redução da disponibilidade de água já está gerando pesadas disputas naquele país. Os consumidores consideram-na um bem público essencial à saúde e à vida. Já os fornecedores negam qualquer relação entre acesso à água potável e temas como direitos humanos e questões sociais. Em busca de novas possíveis fontes de água, a atenção dos norte-americanos volta-se para o sul do continente. Alguns especialistas detectam estar-se moldando uma Doutrina Monroe ambiental, segundo a qual os recursos naturais do Hemisfério devem levar em conta as prioridades dos EUA. O México, com situação ainda tranqüila, pode vir a ser o primeiro a ser pressionado.

Esse quadro crítico, no entanto, se inverte na América do Sul, onde a água doce ainda é abundante. Com 12% da população mundial, possuímos 47% das reservas de água globais, e boa parte delas se encontra submersa. Às grandes Bacias do Amazonas, do Orenoco e do Prata, mais inúmeros rios, lagos e estuários, se somam aqüíferos de grande porte, entre os quais o Guarani - o terceiro maior do mundo -, espalhado pelos territórios do Brasil, do Paraguai, do Uruguai e da Argentina. Muitos estudiosos acreditam que quem controlar os recursos ambientais da tríplice fronteira - o que inclui aquele aqüífero - terá a seu dispor matérias-primas essenciais para a manutenção da vida e para a sustentabilidade de processos produtivos geradores de desenvolvimento econômico e social em amplas áreas do Cone Sul.

Quanto à exportação de água, é preciso lembrar que sua forma mais eficaz ocorrerá de maneira crescente por via indireta, por meio de alimentos e produtos industrializados que a utilizem em seu processo produtivo. São necessários 1.650 litros de água para produzir 1 kg de soja, 1.900 para 1 kg de arroz, 3.500 para 1 kg de aves e 15 mil para 1 kg de carne bovina. O mesmo ocorre com produtos industrializados. São 10 litros de água para 1 de gasolina, 95 para 1 kg de aço, 324 para 1 kg de papel e 600 litros para 1 kg de cana-de-açúcar voltada para a produção de etanol. Como se vê, a importação de grãos e matérias-primas é a maneira mais eficiente para os países com déficit hídrico importarem água em larga escala daqueles que a têm. A América do Sul, obviamente, ainda não tem condição de “precificar” a escassez futura de água no mundo, mas precisa zelar vigorosamente pela qualidade de seus estoques e considerar estrategicamente quanto quer comprometer de suas reservas num quadro global de escassez que poderá elevar consideravelmente o preço futuro desses produtos. No caso dos industrializados, a água agrega ainda mais valor em função do maior preço. Se esses fatores não forem adequadamente incluídos nos preços, a divisão internacional do trabalho e da produção poderá impor mais uma vez restrições futuras importantes aos países sul-americanos.

Há quem chame também a atenção para eventuais ações norte-americanas na América do Sul. Estudo realizado por John Ackerman, do Air Command and Staff College da US Air Force, diz: “Nós (EUA) deveremos passar progressivamente da guerra contra o terrorismo para o novo conceito de segurança sustentável.” E cita, como motivações para intervenções armadas, secas, crises da água e eventos meteorológicos extremos. O Center for Naval Analysis, em relatório recente, asseverou que “a mudança climática é uma realidade e os EUA, bem como o Exército, precisam se preparar para as suas conseqüências”. Na mesma perspectiva, o Plano do Exército Argentino 2025 vê “a possibilidade de conflito com outros Estados pela posse de recursos naturais”, com destaque para o Aqüífero Guarani, como o problema que mais tem possibilidades de conduzir a conflitos bélico com vizinhos. E afirma que o país “deverá desenvolver organizações militares com capacidade para defender a nação de um inimigo convencional superior”, incluindo a organização de resistência civil.

Como vemos, a América do Sul pode ter na escassez da água doce global uma enorme vantagem mundial, ou meter-se em encrencas internas e hemisféricas. Tudo depende de bom senso, visão estratégica e articulação conjunta entre os países da região. Essa é uma oportunidade preciosa, num mundo que caminha para difíceis impasses.

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