Entrevista com Giovanni Arrighi
Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=12075
Giovanni Arrighi não acredita realmente na existência de um grande cassino da economia mundial. É um estudioso que sempre acreditou na dimensão histórica, "processual", dos fenômenos sociais e econômicos. Em seu último livro, que na Itália será editado pela Feltrinelli com o título Adam Smith em Pequim, o estudioso italiano, professor na Universidade John Hopkins e diretor nessa mesma Universidade do Centro Fernand Braudel, propõe uma análise do capitalismo histórico tão fascinante quanto discutível.
Sua tese é que o centro da economia mundial foi deslocado para Pequim, ao passo que os Estados Unidos continuam seu lento, mas inexorável declínio. Uma tese "partidista", que discute criticamente a distância com aqueles que, como o geógrafo marxista David Harvey ou a ativista Naomi Klein, consideram fundamental sistematizar teoricamente o ciclo neoliberal, considerado por Arrighi apenas um parêntese, ao contrário daqueles que o consideraram como um modelo social cuja compreensão ajudaria a entender as tendências do desenvolvimento econômico capitalista.
A entrevista foi realizada em Roma, onde Arrighi foi participar de um seminário organizado pelo Centro de Reforma do Estado, sobre o qual escreveu neste jornal Angela Pascucci, Il Manifesto, 22-01-08, e que foi testemunha ativa da reunião e da discussão produzida durante a mesma.
A entrevista, dada a Benedetto Vecchi, foi publicada originalmente no Il Manifesto, 23-01-2008. Para fins de tradução tomamos aqui uma versão espanhola reproduzida no sítio La Haine, 6-02-2008, entre outros. Na entrevista, Arrighi fala sobre as principais teses que defende no seu novo livro Adam Smith em Pequim, cuja edição brasileira está sendo realizada pela Boitempo Editorial. A tradução é do Cepat.
Adam Smith em Pequim começa com a fascinante sugestão sobre o retorno do baricentro da economia mundial à China, uma sociedade de mercado não capitalista. Uma imagem que contradiz as estatísticas, assim como as análises procedentes de sua realidade, que descrevem um país que tomou decisivamente o caminho do capitalismo. No final do livro, a sociedade de mercado não capitalista se converte mais numa esperança que numa realidade. Em que ponto estamos?
Não falaria de um caráter cíclico do desenvolvimento histórico. Para começar se recorda que a Europa conheceu um desenvolvimento capitalista com características únicas, cujo início coincide com o arranque da "grande divergência" entre Oriente e Ocidente. A aposta teórica sobre a qual é preciso se basear é entender porque o desenvolvimento capitalista mostra limites evidentes e porque a Ásia e a China em particular, se converteram no centro do mercado mundial, tal como eram no começo da grande divergência.
A China tem uma longa tradição de economia de mercado onde estiveram presentes elementos capitalistas muito inovadores. Ao mesmo tempo, a existência de uma diáspora chinesa permitiu sempre a este país ter uma estreita relação com o resto da Ásia e, a partir do século XIX, também com os Estados Unidos. Entretanto, a partir do século XV nenhum capitalista chinês tratou de controlar o Estado, fator indispensável para exercer uma hegemonia sobre a sociedade, como sustentaram, ainda que a partir de prospectivas nem sempre coincidentes, Karl Marx e Fernand Braudel.
Portanto, não expresso uma esperança, mas examino a possibilidade de que em tal país esteja tomando forma uma sociedade de mercado não capitalista. O que não exclui a possibilidade de que, pelo contrário, se desenvolva um sistema capitalista.
André Gunder Frank, a quem dediquei o livro, me repetia, antes de morrer, que se abandonasse a categoria capitalismo. Não estava de acordo, mas sua provocação pode ser acolhida como um convite para considerar o capitalismo como uma realidade que, como escreveu Fernand Braudel, deve mudar continuamente para sobreviver.
De fato, o capitalismo se caracterizou pela escravidão e pela expansão territorial. E por isso tivemos o colonialismo e formas agressivas de imperialismo. Depois houve o welfare state nos países centrais e diversas formas de subordinação política e econômica de grande parte da população mundial. Agora estamos assistindo ao esgotamento do impulso propulsor constituído pelo militarismo e o imperialismo. Portanto, é evidente a perda da capacidade heurística dos paradigmas utilizados até aqui para compreender para onde se encaminha a economia mundial.
No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels prospectam uma homologação capitalista do mundo. Isto os leva a uma ênfase, muito discutível, no caráter progressivo do capital. Sua profecia não está muito longe do "mundo plano" de uma analista liberal como Thomas Friedman. O mundo atual, no entanto, é tudo menos plano, como evidenciam os acontecimentos chineses.
Não sei se a China é capitalista ou um socialismo de mercado, mas sua irrupção na cena mundial provoca uma mudança de relações no sistema interestatal e que o Sul se apresenta agora com uma posição de força em relação ao Norte do mundo. Ultimamente, falei com freqüência da possibilidade de uma "nova Bandung". Quer dizer, de um entendimento entre os países do Sul do mundo, baseado em seu aumento de peso no mercado mundial.
A utilização que fazes de Adam Smith é fascinante. Enquanto o ensaísmo dominante o descreve como o teórico do capitalismo, tu o consideras como um estudioso favorável ao mercado, mas não do capitalismo. Mesmo assim, o autor de Riqueza das Nações tem como objetivo elaborar categorias úteis para compreender o funcionamento do capitalismo. Nós nos limitamos a perceber uma grande mudança, mas temos dificuldades para inovar as categorias úteis para entender as transformações em curso. Te proponho uma provocação: a análise do tão maltratado Lênin sobre o capitalismo de estado administrado pelo partido poderia ajudar a entender o dinamismo econômicos na Ásia oriental ou no Sudeste asiático. Não crês?
Podemos sustentar que existem diversas formas através das quais as elites nacionais exercem o poder de governo na sociedade. Uma tese já avançada precisamente por Adam Smith. Na China, as reformas de Deng Xsiao Ping foram lançadas para salvar a revolução popular da revolução cultural e se centravam no campo. Foi depois que chegaram os capitais estrangeiros. Nos anos 90 a situação escapou das mãos do grupo dirigente, que agora tenta retomar o controle. Deixam-me muito perplexo algumas leituras sobre o caráter totalitário da sociedade chinesa, marcada historicamente pelas revoltas contra o poder central ou local. Atualmente, o número de greves, manifestações, revoltas, é impressionante. E são revoluções que implicam centenas de milhões de homens e mulheres.
O partido comunista chinês tem, portanto, o problema de conter esta tendência à revolta. Há também outro aspecto sobre o qual poucos se detêm. No último decênio aconteceu, por exemplo, que a maior parte dos quadros intermediários se voltou para os negócios. Portanto, o vértice do partido e do Estado não dispõe da câmara de compensação necessária para exercer um governo sobre a sociedade.
No teu livro escreves que a crise das bolsas não é uma tragédia...
A crise das bolsas provoca empobrecimento. Isto é indubitável. Mas se pensarmos em termos de sistema, é benéfica, porque põe fim à loucura dos anos 80 e 90 caracterizada pela corrida espasmódica para conseguir superlucros. Duas décadas durante as quais ocorreu de tudo. Crescimento do crédito para o consumo, aquisição por parte do Sul do mundo dos bônus do Tesouro americano, que arrojaram uma massa de capital monetário nos Estados Unidos que alimentou o financiamento da economia. Se não houve uma derrocada, devemos dar graças ao Sul do mundo que alimentou a demanda mundial, produziu mercadorias de baixo custo para os consumidores norte-americanos e, em menor medida, europeus; tanto a China como o Japão adquirem, nos anos 80, bônus do Tesouro americano através dos quais os Estados Unidos financiam seu domínio no mundo.
A crise das bolsas põe fim a esta loucura. Também marca o fim da hegemonia americana na economia mundial. Agora a locomotiva está representada pela China e, em menor medida, pela Índia, que sustentam a demanda. Outra coisa é o problema de como fazer frente às conseqüência sociais da crise das bolsas. Em relação a isso, me parece que as propostas existentes são, para dizer pouco, deprimentes.
Como escreves num certo ponto, citando uma conhecida frase de Marx, para compreender o capitalismo falta desvelar o segredo dos laboratórios da produção...
Uma indicação metodológica de Marx que os marxistas logo tiraram. Foi Mario Tronti com "Operários e capital" que novamente a pôs a reluzir. Entretanto, duvido muito que a indicação de descer aos laboratórios da produção ajude a compreender algum segredo. Para compreender o funcionamento do capitalismo devemos tomar em conta a proliferação de formas econômicas de mercado, ainda que não necessariamente capitalistas. E também a simultaneidade de diversos modelos de capitalismo.
O "mundo não será plano", mas então por que não pensar que existem também, simultaneamente, diversos modelos produtivos interdependentes entre si? O Vale do Silício, por exemplo, não pode existir sem o "lager" onde se produzem microchips com força de trabalho quase reduzida à escravidão ou a uma condição carcerária. Em outras palavras, a higt-tech ou as biotecnologias tem uma dupla conexão com a militarização do trabalho, presente tanto no Norte como no Sul do mundo...
Seria preciso escrever outro livro para responder a esta pergunta. No momento, o que me interessa é compreender o papel exercido pelo militarismo. Muitas inovações produtivas foram conseqüência, por exemplo, da produção de armas. Por outro lado, sou polêmico com aqueles que fazem coincidir o capitalismo com sua fase industrial.
O Vale do Silício não é industrialismo...
Certo. Estou convencido da crise do fordismo. Se é preciso falar de um modelo produtivo emergente, este é Wal-Mart. Repito: se quisermos entender como o capitalismo exerceu sua hegemonia sobre grande parte da população mundial, é preciso tratar de compreender a relação entre militarismo e imperialismo. O que significa expansão e conquista territorial. Por exemplo, o capitalismo se desenvolveu através da escravidão...
Mas nos Estados Unidos a escravidão convivia com a indústria do aço que inova profundamente a produção...
Sim, mas o elemento fundamental para compreender a difusão do capitalismo e a hegemonia que exerce no mundo deve compreender o papel do militarismo, da potência militar. Disse há pouco que existe uma atitude para a insubordinação na sociedade chinesa. Mas não se compreende qual é a relação entre esta conflitualidade difusa e o poder político. Como se resolve, então, a relação entre movimentos e instituições?
A revolução constituiu uma vertente na história chinesa. A partir de então o arbítrio do Estado pode ser contestado. E quando isso ocorre, as formas da crítica vão desde a greve até a verdadeira revolta. Durante uma visita à China falei com um quadro do partido que havia constituído uma jont-venture com uma empresa francesa para a produção de champagne na China. Chegados a um certo ponto, a seção local do partido propôs a expropriação da terra. Os camponeses seqüestraram os dirigentes de fazendas, os funcionários estatais e os do partido, pondo uma condição: "iremos libertá-los apenas se assinarem um acordo de que a terra continuará sendo cultivada por nós". O partido assinou o acordo rapidamente.
Gosto de lembrar este episódio porque indica claramente que o partido pode decidir isto ou aquilo, mas se os homens e mulheres objeto das decisões não estiverem de acordo nada se faz, porque se sentem legitimados por alguns princípios de base da revolução.
Pelo que dizes, não estás em sintonia com aqueles que sustentam que o neoliberalismo é o modelo hegemônico no capitalismo...
O neoliberalismo foi um parêntese de loucura com que os Estados Unidos e seu fiel aliado, a Inglaterra, trataram de impor seu modelo. Mas ambos fracassaram, como testemunham a queda das bolsas e a derrota norte-americana no Iraque. Estamos numa fase turbulenta cujas saídas são ainda difíceis de prever. No momento, grande é a desordem debaixo do céu, mas não sei se a situação é excelente.
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