Com o suicídio terminou a luta de Guy Debord com a «sociedade do espectáculo». Se fosse verdadeira a tese de que o espectáculo impera, e impera absolutamente, com este gesto consumar-se-ia a sua entrada no espectáculo, agora na cena e não já no público. Algo de indefinido faz com que Debord escape a este destino, no momento mesmo em que parece que a sua aceitação é geral. É certo que Debord gozara sempre de uma fama subterrânea, a que sempre se pretendeu furtar. Mas o eclipse voluntário, antecipando uma espécie de suicídio, desperta atenções. Aliás, depois de durante anos ter editado em editoras marginais e pequenas revistas, já em 1990 começou a ser publicada pela Gallimard, essa editora dos Grandes nomes da cultura. Para alguns, inseridos na tradição da Internacional Situacionista, de que fora um dos membros mais influentes, esse é um resultado longamente preparado, e esperado. É o caso do grupo que se oculta sob o «nome colectivo» de Luther Blissett, que fala na consumação da «deboredom» (reino da chatice) como um gesto preparado por «Guy The Bore» (Guy o chato). Também Régis Debray, que se prepara para lhe ocupar o lugar com a sua inefável mediologia, insiste no paradoxo: «Não existe actualmente um publicitário, um responsável pela programa televisiva, um conselheiro de comunicação, um arrivista da cultura que não se passei com A Sociedade do espectáculo debaixo do braço». Debord está noutro sítio, escapando-lhes a estes que o atacam e aos outros que o defendem, com o seu humor muito especial. Sabe-se que nos seus filmes recorre abundantemente à voz off, e a sua voz contínua fora destas pequenas paixões. Num desses filmes, talvez o mais importante, Hurlements à faveur de Sade, uma voz dizia: «A ambiguidade é a perfeição do suicídio». Debord é essa ambiguidade feita pessoa. Ocultando-se infinitamente, quando aparece fá-lo com frases que não ficam nada a dever à megalomania de Nietzsche. No roteiro de Im Girum imus nocte mostra-se convencido de que a sua obra terá «acabado por sacudir a ordem do mundo». Mas aqui o mais grave não é a pseudo-temática da recuperação que alimentava o ressentimento dos anos 60, nem mesmo que os media o usem por aquele abuso característico que é o de aquecer as máquinas com algumas paixões postiças, como sejam as provocadas pela morte dos outros. O mais preocupante é que, pelo menos desde há 20 anos se tem vindo a fazer com Debord o que já tinha sido feito a McLhuan. A sua redução a uma fórmula: a sociedade do espectáculo, metonímia de Debord, como o TIDE é a metonímia dos detergentes. Por mim estou convencido que por trás desta fórmula havia algo de novo, que ainda está bem vivo e actuante. Escolho por isso a via de analisar este conceito de espectáculo, de modo a determinar da sua utilidade para a vida. Ou da sua inutilidade. Mas também de desinseri-lo das cadeias com que foi amarrado pelo saber, pelos media. Para evitar, em suma, o seu anestesiamento pela cultura contemporânea. Não por Debord, mas por nós. Antes de mais seria preciso distinguir entre a fórmula do «espectáculo» e as potencialidades da obra de Debord. Aparentando confundir-se, há entre ambos aspectos uma tensão apreciável. Algumas das críticas a Debord provêm desta confusão. É o caso de Regis Débray que reduz Debord a um pequeno acontecimento de reciclagem do marxismo e das análises do fetichismo da mercadoria. As frase famosas sobre a mundo como uma «imensa acumulação de espectáculos», ou então que «o espectáculo não é conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediadas por imagens... » , traz a marca dessa ambiguidade. O oposição entre espectáculo e vida é inquietante, pois pressupõe que deverá existir uma apresentação directa da vida, e que toda a representação ou imagem implica uma negação dessa mesma vida. Nós, herdeiros do barroco mediterrânico, temos razões para suspeitar de uma crítica que recusa a mediação, como momento de divisão, de separação. Como disse um dia Beckett, arrancadas todas as máscaras, por trás estaria o vazio ou a morte. Aparentando Debord estar a prosseguir a crítica marxista ao valor abstracto, à ideologia, etc., elemento que está nitidamente presente na sua obra magna, faz mais do que isso. Pretendendo recorrer à mediação para a recusar, ao mesmo tempo ele revela que a mediação e a imagem são o novo do nosso tempo. Mais ainda, que não se trata de algo abstracto, antes palpável, existencialmente pertinente. O que faz dele um autor essencial, junto a Walter Benjamin e a McLhuan. Isso sobreleva o facto de continuar a funcionar dentro do esquema da dialéctica hegeliana, corrigida pela teoria da alienação do neo-marxismo de Lefèvbre, Marcuse, Gabel. A maior debilidade provém, contudo, daí: o espectáculo é visto uma imagem invertida da «realidade social», que se separou da sociedade para se voltar contra os homens. Daí a sensação de que Debord se deixa apanhar pela patologia apocalíptica, denunciando incansavelmente tudo e todos, levando-o a recusar a negatividade, a divisão, a separação, em suma, a finitude do homem moderno. Se virmos a sua prática política na Internacional situacionista, baseada na permanente divisão do movimento, por uma necessidade que parece advir de uma necessidade absoluta do seu pensamento, se reflectirmos no tipo de cinema que praticava, verificamos que existe um outro Debord, que nos pode interessar bem mais que o Debord basic da fórmula da «sociedade do espectáculo». A ambiguidade é então a seguinte: ele que recorria a procedimentos de negação que foram dos mais radicais deste século, e ao mesmo tempo recusa-os na teoria, sacrificando-os a uma história de reconciliação final, da comunidade humana realizada e «sem história». Tudo indica que Debord é verdadeiramente radical no momento da criação, que a própria criação revela uma política nova, capaz de aceitar gestos únicos e irrepetíveis que mais do que se legitimarem pela «humanidade do homem» são toda a humanidade em si. Mas, por outro lado, a sua teoria do espectáculo, e mais ainda, a sua concepção nostálgica da história em busca de uma unicidade perdida, é antitética de tudo isso. É preciso reactivar este diferendo interno da gesta de Debord. No fundo esta necessidade estava implícita na tese de que o espectáculo se disseminara absolutamente, estendendo-se a toda a experiência. A ser assim, então já não haveria um não-espectáculo, a própria divisão entre o actor activo, e o espectador passivo, desapareceria. Não fora este resultado já previsto por Nietzsche quando, no Crepúsculo dos Ídolos, mostra que a revelação de que tudo é aparência, leva a abolir a própria distinção entre aparência e verdade (ou não-aparência)? Não nos faz isso mais responsáveis pelas imagens que inventamos, sem a ilusão de que alguns são os proprietários da imagem da verdade? Quando o espectáculo emerge como espectáculo no estado puro, o que surge é a experiência como meio absoluto. Contrariamente ao que pressupunha Debord o problema não é a divisão nem a separação, mas a fusão, a indiferenciação. Tanto mais grave quanto o nosso meio dá ao virtual um suporte tecnologicamente estável. A actual discussão em torno de Debord é bem sintomática. A sua superação por Regis Débray (nos Manifestes Médiologiques) em busca de uma nova ciência, pesadamente inútil; a sua radicalização por Giorgio Agamben (na Comunidade que Vem) que identifica o espectáculo com a perda da linguagem e, portanto, da política humana; a sua dulcificação pelo filósofo americano Mark Taylor (em Imagologies) que nele um dos antecipadores do «pós-moderno», em que «o poder se tornou imaginário» e em que «ninguém está no controle», revela que há algo de excessivo em Debord, que escapa à apreensão. É esse «algo» que deve ser voltado contra o próprio Debord. Por mim suspeito que é na luta contra o controlo que tudo se joga . Hoje está em causa não apenas o controlo dos homens, mas o controlo do controlo, que alimenta a ilusão de dominar a tecnologia, apenas a potenciando. O novo espaço cibernético tende a inscrever na sua estrutura virtual o espaço da vida, todos os locais, como o espaço da visão e das paixões. A tendência à fusão das máquinas com as paixões, a todos amarrando pela imagem mostra que é a resposta passa pela divisão, pela desagregação, pelos pequenos vincos que possamos fazer nessa superfície extensa e ligada que é a da mediação. A categoria de espectáculo pressupunha ainda uma distancia, uma separação, entre o que era espectáculo e o que não o era. A sua aplicação é mínima, pouco se podendo esperar dela. É interessante verificar que Debord tem afinidades secretas com um dos grandes génios do nosso século, William Burroughs, que teve a vantagem de extrair dos seus procedimentos artísticos toda a filosofia e política de que precisava. Num pequeno texto, Quick Fix, Burroughs está já a anos-luz da pesada dialéctica do espectáculo. Numa frase aparentemente enigmática diz-se: «The theater is closed» («o teatro fechou»). E, sem qualquer argumento, somos arrastados por outras frases que refulgem uma sobre outras, acentuando que já não há lugar fora do teatro, tudo ocorre no mundo, que estamos divididos nesse mundo, que não há lugar para onde escapar, que tudo se resume a cortar as «linhas» das palavras e dos sentimentos com as máquinas. E a injunção que, no fundo, estou convencido, fazia mexer Debord: «Smash the control machine» ("Destrói a máquina de controlo"). Esse é o desafio estético e político do nosso tempo. A famosa noção de espectáculo revela-se como aquilo que é: um efeito da máquina de controlo. Neste sentido é preciso lutar contra ela. E podemos contar com Debord, que nos fala em voz off, como no seu cinema, para essa luta. Apesar de todas as ambiguidades...
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