terça-feira, 30 de outubro de 2007

Cavalcanti e Trigueirinho



Pesquisando a vida e a obra de Alberto Cavalcanti - artista de vanguarda, admirado, dentre outros, por Glauber Rocha e diretor de Death of Night - deparei-me com a associação deste com Trigueirinho Neto, cuja trajetória, de promissor cineasta a líder espiritual, encontra-se resumida abaixo.
(As fontes se encontram ao final dos textos.)


I- Primeira fase: O cineasta Trigueirinho

artigo de José Inacio de Melo Souza -
extraído de http://www.mnemocine.com.br/pesquisa/pesquisatextos/banespa.htm, com partes suprimidas)

Trigueirinho Neto (José Hipólito de Trigueirinho Neto, São Paulo, 1929) começou a sua carreira na Cia. Vera Cruz como assistente do produtor geral Alberto Cavalcanti. Nessa condição, B.J. Duarte o destacou como um dos freqüentadores da casa de Cavalcanti em São Bernardo do Campo, onde aos domingos o grupo composto dele, Caio Scheiby, Múcio Porfírio Ferreira, José Cañizares e o próprio B.J. promoviam animadas discussões sobre os rumos do cinema brasileiro.
Seu aprendizado teórico foi no Centro de Estudos Cinematográficos do Museu de Arte de São Paulo. Trabalhou com Adolfo Celi em Caiçara. Para o crítico de Anhembi, Trigueirinho Neto colaborou na roteirização de documentários, tendo escrito um de propaganda para o Jockey Clube de São Paulo, provavelmente nunca realizado.
Em 1953, foi um dos ganhadores da bolsa de estudos oferecida pelo Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro para o Centro Sperimentale de Cinematografia, em Roma, juntamente com César Mêmolo Júnior (na comissão de seleção, além dos "padrinhos" Cavalcanti e B.J. Duarte, estavam Vinicius de Moraes e Edoardo Bizarri, diretor do Instituto).
A permanência na Itália foi longa, de 1953 a 1958, dos quais apenas três eram necessários para a obtenção do diploma de diretor de cinema. Em 1956, ainda por intermédio de Alberto Cavalcanti, participou como argumentista, da parte brasileira da produção internacional coordenada por Joris Ivens, Die Windrose (A rosa dos ventos; o episódio brasileiro "Ana" foi dirigido por Alex Viany). Escreveu ainda um argumento para Mario Soldatti, Roma de notte, outro para Giorgio Bassani, Estate romana, e roteirizou Epoca bella, de Luigi Magni (nenhum desses projetos foi concretizado).
O roteiro de Bahia de Todos os Santos foi pensado e escrito neste momento, tendo concorrido ao Prêmio Fábio Prado, enquanto o diretor realizava na Itália o documentário Nasce um mercatto.
Os trabalhos italianos e a vitória no Prêmio Fábio Prado de 1958 de melhor roteiro, dividido com Walter Hugo Khouri (A Ilha), animaram Trigueirinho Neto a retornar ao país para a realização do filme.
No segundo semestre estava trabalhando para Desidério Gross na Rex Filme.
Bahia seria filmado com Jurandir Pimentel (anunciado como assistente de Nasce um mercatto) e Lola Brah.
O filme estava centrado na vida de um grupo de marginais da cidade de Salvador num passado recente (a maioria dos críticos tendeu a identificar o período com o Estado Novo, no início da década de 40). A figura central é Tonio (Jurandir Pimentel), um mulato em constante atrito com a família praticante do candomblé (sua avó é mãe de santo; numa das primeiras cenas o terreiro é invadido pela polícia) e a amante inglesa, Miss Collins (Lola Brah). Tonio e seus companheiros vivem de pequenos furtos e contrabando. Mas também está ligado aos portuários e, durante uma greve sufocada pela polícia, é o dinheiro subtraído da amante que mandará para fora de Salvador um sindicalista perseguido. O dilema do grupo está no devir, o que cada um fará de sua vida. Segundo a leitura de João Carlos Rodrigues, a cor da pele de cada um define os destinos: o branco (Geraldo del Rey) tentará a vida no Rio de Janeiro como desenhista; um negro será morto na repressão policial à greve; um cabra se casará com uma moça grávida de outro e o mulato Tonio ficará paralisado, sem forças para abandonar a amante ou sair de Salvador.
No elenco, poucos artistas profissionais: Lola Brah, Araçari de Oliveira e Sadi Cabral (logo depois acrescido de Eduardo Waddington, Antonio Vitor e Geraldo del Rey). A explicação foi dada pelo próprio diretor: a "atração de 'Bahia de Todos os Santos' não está na popularidade do elenco: o poder que a fita exercerá sobre o público estará nos elementos nativos da Bahia, nos verdadeiros tipos colhidos nas ruas, na própria cidade de Salvador e arredores. Esses tipos trarão ao cinema nacional uma nova contribuição. Meninos, negros, soldados, as gentes do porto, todos comporão o afresco descrito no 'roteiro técnico' anexo, que tem seu principal ponto de apoio no elemento 'autenticidade'. Seria um enorme prejuízo para a fita, a inserção de atores habituados com certo tipo de representação, distante do realismo, entre os típicos personagens daquele estado do norte."
Embora já tivéssemos tido as experiências de Rio 40 graus (1955), Rio zona norte (1957) e O grande momento estivesse em finalização, em nenhum momento Trigueirinho Neto vai se alinhar ao neo-realismo, pelo contrário, ou a qualquer um dos diretores dessa escola ("o filme neo-realista reconstitui acontecimentos sociais ou vivências individuais, com um caráter de cotidiano mesmo, como que sob o impulso natural da vida. 'Bahia' foi inteiramente planificado a priori como filme de ficção. Não há um plano que não tenha sido previsto", declarou a Ely Azeredo).
A comissão do Prêmio Fábio Prado, para Hélio Furtado, tinha visto menos que o necessário. O roteiro anunciava três aspectos: era um "documento social de inestimável valor sociológico, pois capta o homem baiano em suas raízes ontológicas, indicando o problema da miscigenação"; inseria-se na questão do homem e do humanismo, não na sua vertente marxista, mas católica; trabalhava uma corrente do cinema moderno, o documentário social. Desenvolvendo suas idéias sobre o roteiro, ele declarou que a proposta se passava no período ditatorial com preocupações pelo universo dos personagens: o candomblé, o sindicalismo, a greve e a questão racial.
Em termos de religião, o diretor não se declarava católico (tinha interesse pelo budismo), nem era partidário dos cultos afro-brasileiros; na concepção estética da película, buscou um mergulho no barroco baiano. O próprio diretor "barroquizou-se", segundo Hélio, aliás, seguindo as mesmas preocupações de Roberto Rossellini e Federico Fellini pelo barroco, assim entendidas por Geneviève Agel.A aproximação com os diretores italianos demarcavam-no, como autor, dentro do mundo "rosselliniano".
Ao lado de Walter Hugo Khouri, Trigueirinho Neto compunha a "dupla de jovens mais talentosos do cinema nacional [...]. Mas ambos refletem tendências opostas: I) Walter Hugo Khouri, fortemente influenciado por Rubem Biáfora, segue uma linha formalista; profundo conhecedor do sueco Ingmar Bergman, um dos maiores cineastas da atualidade; II) Trigueirinho Neto tende a um realismo social; à captação do homem: vincula-se naturalmente, ao neo-realismo, principalmente ao 'rosselliniano' [...] principalmente por suas obras 'Francisco, arauto de Deus' e 'Romance na Itália' [...]".
Por essa via, o roteiro centrava-se no homem, "não o homem 'abiliano' [Abílio Pereira de Almeida de Moral e concordata] (pobre, deformado e sem adequação realística e brasílica) mas o homem em 'ses coordenades spatiales et temporalles...'", vinculada ao personagem Tonio.
Fazendo o diretor falar por meio de um diálogo imaginário, atitude dentro de um parecer técnico estranhíssima, Hélio Furtado do Amaral conclui que é "o sexo que vai servir de orientação para captação temática: revela a presença terrena dos personagens (como 'Zampanó' em 'Na estrada da vida' em oposição a Gelsomina; 'Tonio' menos preso à terra e mais espiritual [...] 'Tonio' é um ser plenamente humano; seus amigos também são concretos, vinculados a uma humanidade existencializada (o diretor não pretende dessencializar a realidade humana... tende a um existencialismo)".
A procura do homem "rosselliniano", de fundas raízes católicas, se resolveria no filme por meio de uma dramaturgia em que Tonio, sustentado pela amante inglesa, libertava-se da sujeição para encontrar a plenitude do ser em sua conversão. O conceito de conversão, tirado de Ignace Lepp em Itinerário de Marx a Cristo, definia não uma "ruptura com o passado, mas a realização plena desse passado, sua integração a uma síntese existencial nova e superior à precedente. A ruptura de 'Tonio' com 'Miss Collins' não se integra a uma tergiversação da questão: é mais um ato preparatório à conversão. E o que houve com 'Tonio' foi a plena realização de seu ser, embora tenha utilizado, como instrumento, a libertação." A purificação é o resultado final do processo de busca do homem como elemento temático.
A modernidade de Trigueirinho Neto, portanto, era maior que a de Khouri, reduzido à adaptação dos processo formais do protestante sueco Bergman. A forma com que expressava esta modernidade se encontrava também em outros aspectos como a improvisação, "pode favorecer a criação artística", com o uso de atores não-profissionais: "Tal concepção (fundada na escola neo-realista italiana) é fortemente criticada por teóricos, principalmente por aqueles que se prendem à escola expressionista alemã [...]. A escolha de atores não-profissionais é sábia, porque: a) há um sentido documentário no filme; b) há a necessidade de extrair o ator do contexto social; c) há conveniência de um afastamento do artificial."
O "realismo sincero" da proposta poderia chocar os católicos, entretanto estava distante da pornografia (o realismo "abiliano"). Ela era superior a Rio 40 graus - filme lamentado por certos "católicos" - pela sua visão de mundo, e pelo sentido antropológico da pesquisa (simpatia pelo mulato).
Postas estas observações vinha a discussão da moralidade ou imoralidade do filme, fato que interessava diretamente ao Banco. O realismo, como já tinha sido ressaltado, não conduzia à pornografia. No roteiro apareciam cenas de homossexualismo, "relações ilícitas", diálogos chulos (expressões como "Que merda!"), cenas realistas (Miss Collins em camisola), todas atenuadas, ou porque não desenvolvidas, ou porque integradas à realidade da narrativa (funcionais à trama). É claro que a película era inconveniente aos menores de 18 anos; para os adultos poderia trazer uma contribuição cultural; para os cultos, uma visão exata da Bahia e para os incultos, discutiria a problemática do mulato, da miscigenação.

(...)
A urgência na obtenção do financiamento suplementar encontrava-se no convite para exibição de Bahia na XXI Mostra Internacional de Veneza, que começaria em agosto. A Divisão Cultural do Itamarati considerou ótima a película, tendo o diretor acelerado o processo de sonorização. Perdida a oportunidade em Veneza, Trigueirinho Neto tinha esperanças de enviar o filme para os festivais de São Francisco, Berlim e Karlovy-Vary (A Divisão Cultural, numa reviravolta, vetou a participação do filme no exterior).
(...)
Por ele, vemos como Trigueirinho Neto surgiu no cenário cinematográfico como uma revelação promissora para críticos cinematográficos, professores, produtores, que apostaram na sua carreira. Por uma década se criou esperanças num cineasta dentro de um grupo, que grosso modo podemos identificar com a "herança de Cavalcanti" (até onde vão as afinidades entre O Canto do mar e Bahia é uma questão em aberto).
Os estudos no Centro Sperimentale deram-lhe um cabedal cultural (não era um "aventureiro"), afinado com as mais modernas tendências cinematográficas (o mundo "rosselliniano"), sem que precisasse para isso desfraldar bandeiras de lutas (o nacional-popular em política ou o neo-realismo em cinema ou as duas juntas).
Segundo suas palavras, "esses homens [Cavalcanti e Rossellini] contribuíram para que eu me dedicasse de corpo e alma ao cinema. Mas, se sua linguagem fosse reconhecida em minha fita, isso significaria falta de perfeita assimilação de minha parte. Cultura é exatamente aprender o máximo, manifestando-se em seguida através de recursos próprios. Seria absurdo imitar Rossellini e Cavalcanti, já que, no que se propuseram exprimir, eles foram completos."
Esperava-se uma modernização conceitual de um cinema ainda ancorado no modelo hollywoodiano, expresso claramente pela oposição de Flávio Tambellini, sem que fosse necessário apego às fórmulas políticas (desencadeando uma "rebelião independente", denunciada por Glauber Rocha).
Durante a produção do filme, abriu-se uma nova perspectiva para alguns críticos, futuros cineastas, em Salvador, para quem Bahia seria uma fonte de inspiração e de esforço de correção de percurso (Barravento, de Glauber Rocha, caminha neste sentido).
Na avaliação que fez do papel do diretor na Revisão crítica do cinema brasileiro, Glauber considerou-o um autor, seguindo a opinião de Paulo Emilio no Suplemento Literário de O Estado de S.Paulo, e mais do que isso, um sinal de ruptura com o cinema "tradicional".
Tratava-se agora de se expressar por meio de uma "mise-en-scène", dentro de uma política cinematográfica que Trigueirinho Neto tinha mostrado como factível.
Por fim, aparece um depois, com a decepção advinda de uma profissionalização abortada. Trigueirinho Neto promete a filmagem do romance de Mário de Andrade, Amar verbo intransitivo, mas parou num único longa.
Com o abandono da carreira, várias interrogações ficaram sem resposta. Qual teria sido o seu papel dentro do Cinema Novo? Qual o papel que o homossexualismo (o suicídio de Jurandir Pimentel pode ser parte de um contexto maior) jogou na construção de um personagem como Tonio, por exemplo? Esse sentimento de uma sexualidade dilacerada pode ser ampliada para um sentimento de fissura na identidade nacional do cineasta, dividido entre dois países, o Brasil e a Itália (novamente podemos pensar qual o peso que o modelo de carreira internacional de Alberto Cavalcanti teve na decisão de permanecer no exterior).
Haviam ainda dúvidas de fundo religioso que o levaram a um misticismo cada vez mais atuante até o internamento numa comunidade da qual é o líder.


II - Segunda Fase: Trigueirinho, líder espiritual

artigo extraído do site oficial de Trigueirinho
(http://www.trigueirinho.org.br/autor.html)

A história de Trigueirinho inclui a experiência que é chamada de "transmutação" ou troca de alma, experiência acenada também nas obras de H. P. Blavatsky, Rudolf Steiner e Alice A. Bailey. Por meio da transmutação, o Ser Interno de uma pessoa pode deixar seu corpo para que outro Ser Interno venha assumi-lo. Mas a história de Trigueirinho difere das da maioria das trocas de alma conhecidas, uma vez que ele, depois de já ser um instrutor espiritual, contatou um membro encarnado da Hierarquia que o convidou a servir do modo como agora faz. Acompanhou Trigueirinho até o Vale de ERKS, na Argentina, onde permaneceram enquanto ocorriam as mudanças necessárias. Nível após nível a natureza de Trigueirinho foi purificada e realinhada energeticamente para que a nova consciência que estava transmutando em seus corpos pudesse levar adiante não só trabalhos públicos, através de palestras e encontros, mas também a manifestação de novos livros, bem diferentes dos que Trigueirinho havia escrito até então.

Desde 1987, ano da fundação do centro espiritual no qual trabalha em regime de tempo integral, Trigueirinho caminha sobre uma linha tênue entre as realidades internas e as externas, e sua mente registra interações com o invisível, com seres que vivem na harmonia dos planos internos, e ele procura transmitir essa vivência em palestras que hoje se concentram em Figueira, centro espiritual no interior do estado de Minas Gerais, Brasil.

2 comentários:

vkitsis disse...

Tô passada! Não sabia que o Trigueirinho havia sido cineasta!
Nunca ouvi falar disso, acho que nem ele se lembra mais...

jholland disse...

Até que a "vida anterior" dele, como cineasta, era razoavelmente conhecida. O que me surpreendeu foi a relação dele com o Cavalcanti. Vc notou a referência ao Budismo (já naquela época) ?