Myrtes de Aguiar Macedo (*)
(*) Professora do Departamento de Serviço Social da PUC-RIO. Doutora em Política Social, pela University of Manchester. Pesquisadora do CNPq. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Trabalho Gênero e Políticas Sociais vinculado ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da PUC-Rio. Tem várias publicações referentes à temática trabalhos e políticas sociais, em particular, sobre a política de assistência social no contexto brasileiro, a partir dos anos de 1990.
A primeira parte desse texto traz reflexões sobre comunidade construídas a partir da realidade dos países capitalistas centrais em tempos de globalização. O retorno à comunidade nesses países está associado à questão do risco social crescente nas sociedades modernas, bem como, o desenraizamento do homem cosmopolita. Uma das principais contribuições nesse estudo vem sendo elaborada por Zygmunt Bauman, sociólogo polonês, e professor da Universidade de Leeds. Bauman possui vários livros traduzidos e publicados no Brasil pela Editora Zahar. Outra referência presente no debate recente sobre comunidade é representada pelo modelo de “comunidade cívica” construída por Putnam (1996) que tem por base a valorização da responsabilidade, colaboração e altruísmo enquanto virtudes capazes de construir “redes” integrativas.
As reflexões recentes desenvolvidas sobre os mudanças na relação entre Estado e sociedade no campo das políticas sociais brasileiras indicam a reelaboração do conceito de sociedade civil em decorrência da ênfase nas teorias comunitaristas que reforçam o enfoque humanitarista, intersubjetivo e integrativo das relações sociais. No Brasil, portanto, o debate atual sobre comunidade, no campo da intervenção prática, está associado ao crescimento do chamado Terceiro Setor que tem determinado o esvaziamento do conteúdo político no entendimento do conceito de sociedade civil. Para os objetivos desta comunicação, nos interessa focalizar a noção de comunidade nos processos de intervenção prática que constroem as novas formas de gestão das políticas sociais públicas.
A teoria social, que enfoca a condição de modernidade das sociedades globalizadas, reserva um lugar de destaque para a questão do risco social no debate contemporâneo. “ As sociedades de risco forjam-se a partir da precarização dos arranjos institucionais da existência humana...” (Carapinheiro, 2002). Nessa linha de pensamento, Bauman analisa a categoria de risco nas sociedades modernas pela sua ligação à desagregação de grupos sociais e de práticas sociais que antes eram unificadas, estabilizadas e consolidadas a partir da proteção social do Estado, reconhecida como Welfare State. Para Bauman, o comunitarismo “renascido” pode ser visto como um pêndulo que oscilando radicalmente, afasta-se do pólo da segurança na “díade dos valores humanos fundamentais”. Nesse contexto, Bauman aponta o desemprego, as perspectivas incertas na velhice e os infortúnios da vida urbana como as principais fontes da difusa ansiedade relativa ao presente, ao futuro próximo e ao futuro mais distante: “a falta de segurança é que une as três, e o principal apelo do comunitarismo é a promessa de um porto seguro, o destino dos sonhos dos marinheiros perdidos no mar turbulento da mudança constante, confusa e imprevisível” (Bauman, 2002). Apropriando-se da imagem do “homem modulado” para entender o homem no contexto dos grandes centros urbanos, o autor ressalta a fragilidade dos laços que ligam esses homens entre si. Neste sentido, os habitantes “modulados” não pertencem “inteiramente” a nenhum dos grupos de que participam. Isto porque nessa condição, todas as formas de comunhão são frágeis e vulneráveis, enquanto os módulos permanecem mal integrados – se constituem fonte de constante tensão. Para Semeraro, a corrente comunitarista hoje, se dirige à sociedade civil com um discurso que visa a recuperar as relações humanas e incentivar a integração social das pessoas, distanciando-se de qualquer concepção liberal, abstrata e universalista (Semeraro, 2001: 259).
Os Estados Unidos são apontados como o berço do comunitarismo nos anos 70, como uma reação ao projeto de renovação de liberalismo desencadeado 4
por J. Rawls através de seu livro A teoria de Justiça, publicado em 1971. Nas palavras de Semeraro: “a ‘onda’ comunitarista se apresenta como uma crítica ao individualismo, à dissolução dos vínculos familiares, comunitários e nacionais, bem com a toda visão contratualista e mercantilista introduzida na sociedade atual pelo projeto da modernidade (Semeraro, 2001: 259). Para os comunitarista, o “eu sem vínculo” dos liberais é antes de tudo um indivíduo destituído de dimensão moral e comunitária e não um sujeito livre e autônomo como defendem estes. Cabe ressaltar que os comunitaristas insistem no “bem comum”, nos deveres e na “solidariedade” para com a sociedade à qual pertencem. No comentário do autor, os comunitaristas ao contestarem as fragilidades de concepções fragmentárias e formalistas, tendem a enfatizar visões organicistas e holísticas de realidade. Com muita propriedade, Semeraro não considera as propostas comunitárias apenas como uma reação ao liberalismo, mas atribui a sua maior força a real necessidade de solidariedade e de valorização das pessoas para anular os impulsos ao anonimato e ao desinteresse predominantes no mundo de hoje que levam a desintegração crescente da sociedade atual.
Para os comunitaristas, os valores da solidariedade, da reciprocidade e os laços comunitários irão prevalecer, naturalmente, sobre as leis do mercado e a lógica da política. Nesse sentido, acrescentam que as virtudes da responsabilidade da colaboração e do altruísmo poderão constituir uma “comunidade cívica” nos termos de Putnam. Em termos práticos, uma “comunidade cívica” para o autor se caracteriza, primeiramente, pela participaçção dos cidadãos nos negócios públicos: “na comunidade cívica os cidadãos buscam o que Tocqueville chamava de ‘interesse próprio corretamente entendido’, isto é, o interesse próprio definido no contexto das necessidades públicas gerais, o interesse próprio que é sensível aos interesses dos outros” (Putnam, 2002: 102).
A comunidade cívica tem como eixo central a questão da cidadania, entendida enquanto direitos e deveres iguais para todos. A coesão no âmbito da comunidade supõe relações horizontais de reciprocidade e cooperação e não, relações verticais de autoridade e dependência. Neste sentido, os líderes devem ser responsáveis por seus concidadãos. Diz Putnam: “Tal comunidade será tanto mais cívica quanto mais a política se aproximar do ideal de igualdade política entre cidadãos que seguem as regras de reciprocidade e participam do governo”. (Putnam.2002:102). Mesmo admitindo a virtuosidade dos cidadãos numa comunidade cívica, esta não está livre de conflitos, visto que seus cidadãos têm opiniões firmes sobre as questões públicas, mas, em níveis toleráveis por parte de seus oponentes, afirma Putnam. No tocante às concepções e significados da noção de comunidade no contexto brasileiro estas se vinculam às resignificações do conceito de sociedade civil ao longo das lutas sociais e políticas no país. Neste sentido, destaca-se a análise de Gohn, que define a sociedade civil no Brasil como “uma idéia força na construção de alternativas democráticas durante o regime militar e que depois se transforma no espaço privilegiado de ações políticas mobilizatórias,voltadas para atuar em parceria com diferentes atores sóciopolíticos, em políticas sociais oficiais na esfera pública” (Gohn, 2002).
Esta análise que toma como base a conjuntura histórica, ressalta as ambigüidades das políticas sociais a partir da disseminação de estratégias de parcerias com a “comunidade organizada” e a noção de “capital social” difundidas nos anos de 1990. Esta visão privilegia as iniciativas “inovadoras” expressas nas mais diversas formas de cooperativas e ações solidárias e ainda as várias possibilidades de participação institucionalizada de cidadãos em fóruns e conselhos gestores de políticas públicas. Assim, no contexto da “reforma do Estado” a sociedade civil é articulada em torno de organizações filantrópicas e comunitárias. Mais uma vez, concordando com Semeraro (2002), reconhecemos que a visão comunitarista articula um discurso muito sedutor, cujas propostas, diz o autor: “derivam sua maior força da real exigência de solidariedade e de relações intersubjetivas, da valorização das pessoas num mundo que favorece o anonimato e o desinteresse”.
Uma retrospectiva das ações estatais e práticas mobilizatórias, ao longo das intervenções práticas, revela os diversos usos e sentidos atribuídos à noção de comunidade no Brasil. Na fase desinvolvimentista, os conceitos de comunidade e de desenvolvimento de comunidade marcaram sua história no que se relaciona à atuação dos profissionais de Serviço Social no sentido da mobilização e organização dos setores populares. Dentre os estudos realizados sobre este momento histórico, destacam-se: o de Safira Bezerra Ammann intitulado “Ideologia do Desenvolvimento de Comunidade no Brasil (1980); e o de Mariângela Belfiore Wanderley denominado “Metamorfoses do Desenvolvimento de Comunidade” (1993). Esses trabalhos levantam questões importantes sobre as práticas do desenvolvimento de comunidade na década de 1960 e início dos anos de 1970.
Entre os anos de 1960 a 1963, registra-se grande ênfase na educação popular, o que resultou na gestação de uma consciência de caráter nacional–popular e no engajamento de amplas camadas sociais na luta pelas reformas de estrutura.. No pós 1964, a integração, através da “ação comunitária” passa a ser postulada como fundamental para a harmonia do sistema, devendo ser estimulada a participação comunitária para preservar a harmonia, a continuidade e estabilização do sistema. A abordagem de comunidade é vista como um todo regido pelo consenso, com base na identificação de problemas e interesses comuns. Comunidade como unidade consensual leva a um tipo de intervenção onde os problemas são tratados não por interesse de classes, mas por grupos sociais definidos por faixa etária, sexo, etc. (Amman, 1980: 85).
Nas práticas estatais no campo das políticas sociais, destaca-se a implantação de Centros Sociais Urbanos como principal estratégia de intervenção voltada para a ação comunitária. Nos anos de 1970 e 1980, já num cenário de declínio do regime militar, o destaque em termos do entendimento de comunidade é dado pelo movimento das chamadas “Comunidades Eclesiais de Base” da Igreja Católica. Aqui a noção de comunidade ganha importância como dimensão legitimadora das iniciativas religiosas ou governamentais no plano local.
Segundo Eder Sader(1988), foi a matriz discursiva das pastorais da igreja, inspirada em Medellín, que preconizava a premência da ação, que mobilizou as CEBs em todo o país. As CEBs se multiplicaram rapidamente, alcançando em 1981 o total 80 mil comunidades de base (Sader, 1988:156) Na avaliação de Sader, os escritos sobre CEBs eram imbuídos de valores comunitários que tendiam a confundir o que “deve ser” com o “que é”. Em conseqüência, essa abordagem tende a não reconhecer diferenças e níveis de participação distintos no seu interior, visto que, trata-se de “comunidade de iguais” (Sader: 156).
O debate dos temas, na dinâmica das CEBs, seguia o método de “verjulgar-agir” das pastorais da Igreja Católica. Nessas práticas, os discursos que se sobressaem tinham como temas: o “povo”, a “igreja” e as “autoridades”. O “povo das comunidades” aparece como expressão dos sujeitos autônomos que compreendem a “caminhada da libertação”. São apontadas muitas ambigüidades nesse discurso. Com redemocratização do país no final dos anos de 1980, ocorre também o declínio da CEBs o qual se acentua nos anos de 1990, quando seus militantes passam a integrar os quadros partidários ou instituições estatais responsáveis pela formulação e execução das políticas sociais públicas.
Compreender o processo de reordenamento das políticas sociais brasileiras, a partir da década de 1990, requer uma incursão nos processos que determinaram a reforma do Estado de corte neoliberal, particularmente, no tocante às mudanças na sua relação com a sociedade. Essas mudanças se manifestam, de modo especial, na conformação de novas formas de gestão social que envolvem a presença de novos atores sociais, como parceiros do Estado, na provisão e gestão de bens e serviços sociais públicos. A literatura específica tem identificado esse processo pelo seu caráter regressivo, caracterizado no sentido de uma refilantropização no trato da questão social (Yazbek,2002). Essa interpretação ressalta, como tendência geral, a retomada de formas de intervenção social fora do registro dos direitos de cidadania o que significa um distanciamento do modelo de Seguridade Social Público desenhado na Constituição Federal de 1988. Acrescenta-se ainda nesse quadro, como dado da realidade, que o agravamento da pobreza em decorrência das transformações no mundo do trabalho vem tornando a relação entre Estado e sociedade mais complexa e contraditória. Essa constatação leva Telles (1998) a considerar, com muita pertinência, que estamos diante de uma atualização do fenômeno da pobreza pela presença dos novos “excluídos” originários da reestruturação produtiva.
Nesse contexto de acentuada desigualdade social, emergem estratégias distintas no enfrentamento da questão social, representando projetos societários diferentes na estruturação e implementação das políticas sociais públicas. Em conseqüência das ações diversificadas protagonizadas por atores sociais distintos, esse processo é tencionado pela disputa entre a defesa da universalização dos direitos sociais e a sua negação mediante a afirmação dos princípios de seletividade e focalização no atendimento às necessidades sociais. A construção do projeto de proteção social de caráter universalista vem sendo negado pela redefinição do papel do Estado sob o marco neoliberal que norteia a reforma do Estado brasileiro em curso. Trata-se de um movimento regressivo em referência a construção do sistema de seguridade social público. É, particularmente, com a entrada em cena de novos atores na prestação de serviços sociais, como representantes da sociedade que surge, nesta década, a questão da resignificação da categoria comunidade. Para Telles, este conceito assume, no contexto de redefinição das políticas sociais reconfiguradas através das parcerias, um sentido ampliado referindo-se “seja a família, sejam as organizações não governamentais, sejam as organizações filantrópicas tradicionais e suas formas modernas, aí incluindo a chamada filantropia empresarial” (Telles, 1999). Nos termos de Telles, a intervenção social protagonizada por esses atores não pode ser identificada com as velhas e tradicionais práticas de “gestão filantrópica da pobreza” porque traz inovações na forma de gestão das populações pobres, forjadas em um “encapsulamento comunitário” que ao negar os princípios universalistas de igualdade e de justiça social apaga as noções de direito e de cidadania. A contextualização dessa problemática remete a uma discussão que tem como eixo central o que vem sendo denominado, na literatura específica, de erosão da esfera pública. Entende-se que esse marco comunitarista projeta novas formas de intervenção que forjam um universo heterogêneo por onde transitam diferentes atores motivados, em sua grande maioria, por interesses particularistas. Em decorrência, a sociedade, que é redesenhada a partir desse marco, tende a ficar confinada nas particularidades que compõem esse cenário constituído pelos diferentes grupos sociais existentes o que acarreta perdas das referências totalizadoras e democráticas. Focalizando, de um modo especial, o campo das políticas sociais, é possível perceber diante das tendências em curso no contexto das mudanças na relação entre Estado e sociedade nos anos 90, um tipo de reordenamento comunitário dos programas sociais subsidiados pelos fundos públicos e mediados pelos critérios de eficiência e competição do mercado (Telles,1999). A marca dessa nova configuração das políticas sociais foi dada pelo Programa Comunidade Solidária criado pelo governo de FHC no ano de 1995. Desta forma, o PCS, embalado pelo crescimento do Terceiro Setor, teve como sustentação um viés comunitarista. Neste sentido, define sua linha de intervenção social articulada à noção de espaço público não-estatal que tem como fundamento a concepção de solidariedade no contexto da benemerência (Telles, 1998).
Afirma-se aí uma lógica de intervenção estatal norteada por uma estratégia de ação social despolitizada e consubstanciada por uma noção moral de responsabilidade, ditada como dever de solidariedade em relação aos mais pobres.
A literatura aponta como conseqüência mais imediata dessa lógica solidarista, um esvaziamento do conteúdo político da noção de espaço público, que passa a ser traduzido em termos de participação comunitária. A partir dessa concepção, neutraliza-se a esfera pública como campo político democrático de explicitação de conflitos e dissensos de negociação e interlocução em torno de questões importantes à vida em sociedade (Telles,1999).
Recentemente, no governo do Presidente Lula, o Ministério de Desenvolvimento Social está iniciando um processo de construção de um novo marco regulatório para a política de assistência, mediante a proposta de definição de um Sistema Único de Assistência Social (SUAS) que pretende adotar uma nova concepção de comunidade com base na noção de território. Mas o que se observa na prática, continua sendo a identificação da noção de comunidade à de terceiro setor.
Em síntese, a retomada do marco comunitarista no campo das políticas sociais está promovendo uma resignificação da noção de sociedade civil, na medida em que esta vem sendo esvaziada de sua dimensão política na perspectiva de construção de espaços públicos, para afirmar o que Vera Telles
muito adequadamente, denomina de “encapsulamento comunitário” pelo qual as ações coletivas locais são circunscritas de acordo com as particularidades dos diversos grupos sociais envolvidos.
Bibliografia:
AMMANN, S. B. Ideologia do Desenvolvimento de Comunidade no Brasil. São Paulo: Cortez Editora,1980.
BAUMAN, Z. Em Busca da Política. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor,2000.
BELFIORE-WANDERLEY, M. Metamorfoses do Desenvolvimento de Comunidade. São Paulo: Cortez Editora, 1993.
CARAPINHEIRO, G. A Globalização do Risco Social. In SANTOS, B. de S. (org.). A Globalização e as Ciências Sociais. São Pailo: Cortez Editora, 2002, pp. 197-230.
GOHN, M. G. Políticas Públicas e Sociedade Civil no Brasil nas últimas décadas. In CARVALHO, D. B. B. et al. Novos Paradigmas da Política Social. Brasília: UNB. Departamento de Serviço Social, 2002.
KOGA, D. Medidas de Cidades: entre territórios de vida e territórios vividos. São paulo, Cortez Editora, 2003.
PUTNAM, R. D. Comunidade e Democracia – a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: FGV Editora, 3ª ed. 2002.
SADER, E. Quando Novos Personagens entraram em cena. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1988.
SEMERARO, G. Gramsci e a Sociedade Civil. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, 2ª ed.
TELLES, V. A Nova Questão Social Brasileira. In Praga – estudos marxistas 6. São Paulo: Editora Hucitec, 1998 pp. 107-116.
YAZBEK, M. C. Assistência Social e Filantropia. In CARVALHO, D. B. B. et al. Novos Paradigmas da Política Social. Brasilia: UNB, Departamento de Serviço Social, 2002.
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