Um verdadeiro estado de consciência onírica pressupõe o estabelecimento de uma comunicação entre as esferas consciente e inconsciente. É como se, ordinariamente (e, portanto, da perspectiva do Ego), estivéssemos submetidos a uma espécie de “divisão de trabalho”, uma cisão fundamental, entre duas instâncias “especializadas”: a instância do consciente, dominada pelo Ego, cujo princípio preponderante é a racionalidade, o controle, a discriminação entre categorias, a classificação etc.; e a instância do inconsciente, criativa, indisciplinada, não classificadora, não hierárquica, sem controle. Nosso viver rotineiro é determinado por essa separação, por essa alienação. Entretanto, quer queiramos ou não, quer tenhamos consciência disso ou não, quer nos lembremos ou não, nós somos ambas as instâncias. De dia, normalmente nos guiamos pela instância do consciente, que se torna preponderante (embora não exclusiva); à noite, quando dormimos, o inconsciente emerge como a instância suprema de nossa mente (embora não exclusiva). Podemos vislumbrar um sem número de desdobramentos desse fenômeno, a começar pela própria filosofia ocidental, dominada por ambigüidades entre a busca da liberdade e o rigor científico; a proposta de elaboração de uma teoria integrada à práxis, a separação entre sujeito e objeto etc. Trata-se de uma questão a ser desenvolvida alhures. Voltemos à questão dos sonhos: sonhando, damos vazão a uma instância eminentemente criativa e criadora, que não admite disciplinamento; aquilo que ordinariamente chamamos de “consciência” por outro lado, é geralmente identificado com apego e controle, definições e classificações (Ego). Aparentemente estamos diante de um impasse que impediria a superação dessa cisão, pois a dificuldade reside exatamente em se aproximar conscientemente da instância criativa sem querer dominá-la, sem exercer apegos egóicos; fazendo-o, corremos o risco de interromper o processo de criação e... acordarmos. Não sei até que ponto podemos exercer o controle dos sonhos sem acordarmos. É verdade que já consegui isso duas vezes, obtendo um certo controle das minhas “ações” nos sonhos, mas em ambas acabei acordando. (Talvez a melhor forma de descrever isso seja de uma forma diferente, e essa diferença não é meramente semântica: melhor seria dizer que já exerci minha vontade por duas vezes nos sonhos, e não o controle desses sonhos). Penso que nos momentos em que essa vontade foi possível e o sonho se manteve, isso se deveu ao fato de ela não ter se traduzido em um controle sobre o sonho todo, sobre o cenário criado, sobre todos os acontecimentos oníricos. Embora tivesse, nesses breves momentos, consciência de que se tratava de um sonho, não coloquei em questão o próprio sonho, não questionei o fato de estar em uma dada situação (onírica) que, pelo fato de ser criação minha, pudesse ser dissolvida: ou seja, não questionei o paradigma do sonho, mas tão somente pude exercer uma vontade durante o sonho que se traduzia em ações do meu “Ego onírico”. Dessa forma permaneceu a separação entre o “Eu” e o “contexto onírico”, o mundo “exterior” do sonho. Enquanto se tratou de exercer somente essa vontade, o sonho se sustentou; porém, trata-se de um equilíbrio precário, pois assim que pomos em questão o próprio sonho, acordamos. Por exemplo: exerci ações conscientes no sonho, porém em interação com imagens aparentemente autônomas, como se fossem seres não criados por mim. Penso que essa aceitação é essencial para a continuidade do processo (não colocar em questão o próprio sonho, como paradigma). Devemos despertar no sonho, porém aceitando que ele (o sonho) interage com essa consciência de modo externo/autônomo, como um contexto. Exercemos nossa vontade, mas não dissolvemos o sonho. É isso que entendo por “respeitar o processo criativo” da instância inconsciente.
Por isso, mais frutífero – esse é o núcleo deste texto - é despertar nossa consciência nos sonhos, por meio de uma vontade autônoma, porém apenas para contemplar o processo criativo, senti-lo em ação, deixar fluir o sonho sem querer dominá-lo completamente (não colocar em questão que as situações e imagens são autônomas, de modo que possamos interagir com elas, ainda que voluntariamente, conscientemente).
Para isso, creio que devemos treinar, na vigília, esse estado meditativo, em que nos deixamos apreciar o fluir das idéias, das imagens e das emoções sem querer agarrá-las, sem pretender dominá-las ou classificá-las ou mesmo criticá-las.
A contemplação desse fluir permite entrar em contato com a instância criativa, que é também a fonte dos sonhos.
Por isso, aquilo que pode unir ambas as instâncias é a Vontade: vontade – instalada em ambas as instâncias - de se conciliarem e de abrir espaço à consciência para viver e sentir a presença da instância que é fonte de criação inesgotável, a partir da qual não existe esforço, nem cansaço, nem esgotamento. Uma espécie de unificação ou conciliação psíquica onde ambas as instâncias se modificam, devido à consideração mútua.
O sonho lúcido é uma ponte entre o consciente e o inconsciente, mas é também mais do que simplesmente isso: ao tornarmo-nos lúcidos no sonho, estamos dando voz ao inconsciente, permitindo que ele assuma, perante o consciente, a narrativa. Isso não ocorre no sonho normal, pois nele essa prerrogativa do inconsciente não se dá perante o consciente, não há ponte que possibilite uma comunicação, um diálogo (que é consciente por definição).
É possível que o aumento de freqüência de sonhos lúcidos se dê pelo treino da mudança de perspectiva durante a vigília, porém é importante que essa mudança receba o trânsito entre as esferas consciente/inconsciente. É uma questão ainda em aberto...
O sonho parece reproduzir - como uma espécie de meta-realidade - o estado de consciência que temos na vigília: assim se, na vigília, nos dedicamos concentradamente sobre um assunto, isso se refletirá no sonho. Por que? Porque, penso, quando nos encontramos absortos, realizamos uma comunicação intensa com o inconsciente, alinhamos a intenção consciente/inconsciente. Se estamos extremamente concentrados sobre um assunto, não apenas temos a tendência de rememorarmos esse assunto no sonho, mas, sobretudo, levamos para o sonho a constância de perspectiva que temos na vigília. Por exemplo: assumimos um ponto de vista (fixo) na vigília e o ponto de vista (no sonhos) será fixo. Ora, a aquisição de lucidez no sonho é uma mudança de perspectiva. Assim, para mudarmos a perspectiva no sonho (rumando para o sonho lúcido), temos que nos concentrarmos ou treinarmos a mudança de perspectiva na vigília.
Tudo se passa como se, do ponto de vista do consciente, aquilo que ocorre na esfera do inconsciente é um sonho; e, analogamente, do ponto de vista do inconsciente, aquilo que se passa na vigília é um sonho. Trata-se de abrir uma porta, uma janela que permita o trânsito entre essas duas esferas.
Meta-realidade
· As imagens oníricas são reflexos estruturais dos estados emocionais e do grau de consciência na vigília: se tenho uma forte emoção ao longo do dia – seja provocada por memórias, pensamentos ou fatos – isso tende a ser traduzido nos sonhos por fortes imagens (um sonho forte, “real”, denso). Um engajamento intenso na realidade (vivência intensa) se traduz em sonhos fortes (alinhamento consciente/inconsciente na vigília = sonhos fortes). As imagens oníricas são traduções de estados e sensações na vigília. O resultadoi é que a realidade onírica se impõe com intensidade;
· O “Ego onírico” corresponde à conscientização da vivência na vigília: se emoções fortes na vigília são traduzidas por imagens fortes, uma vivência intensa na vigília, acompanhada por uma consciência intensa dessa vivência (uma consciência reflexiva dessa vivência/sensação de estar presente nas situações), corresponde, nos sonhos, não apenas a imagens fortes, como a um “ego onírico” interagindo intensamente com essas imagens nos sonhos: o sonho torna-se “real” (a consciência na vigília é transposta para o sonho);
· Para “acordarmos” no sonho, devemos por em questão, no sonho, a validade dessas imagens, o que é obtido pelo questionamento íntimo quanto à validade dessas sensações na vigília. Assim, a pergunta onírica “isso é real ?” somente pode surgir se vivenciarmos na vigília, que “esta perspectiva/sensação não é necessária”. E, para tanto, a perspectiva na vigília já deve ter sido alterada, ainda que provisoriamente. Talvez aqui possamos sentir a utilidade de rememorarmos os sonhos, pois essa recuperação das sensações oníricas também se traduz numa mudança de perspectiva na vigília.
· A constância de perspectiva (no sonho) é a tradução de um ponto de vista fixo na vigília. Para questionarmos a realidade onírica, devemos não apenas aventarmos a hipótese de que nossa perspectiva na vigília pode ser mudada (indagando constantemente: “será que estou sonhando?”), mas mudar efetivamente a perspectiva na vigília, de modo que isso se traduza, no sonho, como: isto não é a realidade. Ou seja, colocando-se em dúvida a perspectiva na/da vigília, assumimos uma postura de "estranhamento" frente aos nossos próprios sentimentos, ao nosso modo de estar no mundo. Deve-se por em questão o ponto de vista/perspectiva do Ego da vigília, para que o ego onírico possa se perguntar: isso é real ?
Todas essas questões estão em aberto, é possível que eu mude de perspectiva no caminhar das pesquisas...
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