quinta-feira, 30 de agosto de 2007
Ícaro, o ácaro
in: A verdade e as formas jurídicas, Michel Foucault
Ícaro, o ácaro
Já no seu primeiro dia de existência o ácaro sabia que era diferente e que ao longo de uma vida inteira de 3 meses estava destinado a grandes feitos. Seu destino estava selado. Ele era, sem dúvida alguma, especial. Os pais alimentavam todas essas expectativas, esperando que a promessa de glória do filho respingasse neles próprios. Deram-lhe o nome de Ícaro.
E Ícaro descobriu que não veio ao mundo para comer pele, nem para morar na poeira. Ícaro queria ser cão. Cão comia ração, cão dormia na casinha, cão era o melhor amigo do homem. Não lhe importava todos os ácaros tragados pelo aspirador ou exterminados a 60°C de cobertores e almofadas, queria seu direito de ser cão. Saiu pelo mundo para ser reconhecido: na goiaba era minhoca, na terra era formiga, no lixo era barata, na merda era mosca. O mundo não o compreendia. Morreu sendo pulga, tão próximo de ser cão.
sexta-feira, 17 de agosto de 2007
Sobre sonhos... (4)
"Parece que sonhar lucidamente exige um equilíbrio entre o desligamento e a participação. Uma pessoa que, quando está sonhando, fica ligada muito rigidamente a um papel, passa a tomar parte de forma tão profunda que não consegue dar um passo atrás e ver o papel como papel. Ao contrário, uma pessoa rigidamente desligada participa tão pouco e fica tão "por fora" que não se importa com o papel.
Da minha própria experiência, digo que parece que a participação é um requisito prático para sonhar lucidamente. Embora de vez em quando eu tenha sonhos em que sou um simples observador, jamais fiquei lúcido em nenhum deles. Praticamente em todos os quase novecentos sonhos lúcidos que registrei, sempre estive corpoficado no disfarce costumeiro de mim mesmo. Só em três casos em que percebi que estava sonhando representei papéis que não foram o de "Stephen LaBerge". Essas exceções são interessantes: numa, sonhei que era simplesmente um ponto de luz descorporifiçado; em outra, era um conjunto de louça mágico; e na terceira era Mozart, se bem que só até ter percebido que estava sonhando. Depois senti-me "Stephen no papel de Mozart", um ator representando um papel que eu sabia que era apenas um papel. Mas de algum modo, por trás da máscara, eu não era outra pessoa, era eu. Quanto a isso pode haver diferenças individuais, mas, para mim, estar completamente corporificado (e geralmente no centro da ação) parece um pré-requisito prático para atingir a lucidez no sonho.
Ao mesmo tempo, parece necessário haver um certo grau de desligamento para poder dar um passo atrás do papel de ego de sonho e dizer: "Tudo isto é um sonho". Dizer isso é observar o sonho, pelo menos com uma parte de nós mesmos. Por isso, ficar lúcido no sonho exige também a perspectiva do observador, e com isso o sonhador lúcido parece possuir no mínimo dois níveis de percepção diferentes.
Nos meus próprios sonhos lúcidos algumas vezes fiquei perplexo quando surgiu essa percepção dual. Vamos relembrar o exemplo dado no início deste capítulo: primeiro me ocorreu pensar que, se passasse a ficar lúcido, não teria motivo para ter medo. E um instante depois percebi que estava sonhando.
O fato de o sonhador lúcido perceber que o próprio corpo de sonho não é quem o sonhador realmente é, tem implicações importantes que vão ser retomadas num dos próximos capítulos. Por agora é suficiente notar que tais sonhadores lúcidos percebem que seus egos são apenas modelos de si próprios e param de confundi-los consigo mesmos. "
A analogia com o sonho lúcido é a seguinte: do mesmo modo como as pessoas tiveram a expectativa tácita de que espadas são pretas e copas são vermelhas, também nós, sonhadores, normalmente supomos que estamos acordados. Quando acontecem coisas fantásticas no sonho, como ocorre frequentemente no sono REM, de algum modo assimilamos essas coisas no que consideramos possível. Se por acaso notamos ou sentimos tais coisas como algo incomum, normalmente somos capazes de racionalizá-las. No esquema conceitual (ilusório) de quem está sonhando, a suposição é: "deve haver uma explicação lógica".
Em diversas ocasiões algumas pessoas me disseram que, na mesma noite em que conversaram comigo sobre sonhos lúcidos, tiveram o primeiro sonho lúcido. São pessoas que correspondem aos casos do estudo psicológico que receberam as pistas com facilidade: sabiam então que, embora no mundo físico as incoerências aparentes normalmente tenham "uma explicação lógica", às vezes a explicação das anomalias é o que estamos sonhando.
As expectativas e suposições, conscientes ou inconscientes, que você alimenta a respeito de como são os sonhos, determinam num grau admirável a forma exata que os seus sonhos lúcidos vão tomar. Como já disse, isso se aplica igualmente bem à sua vida acordada. Como exemplo do efeito das limitações impostas ao desempenho humano, considere o mito dos dois quilômetros corridos em cinco minutos. Durante muitos anos achou-se impossível correr tão depressa assim. . . até que alguém o fez e o impossível se tornou possível. Quase imediatamente, muitas outras pessoas foram capazes de fazer a mesma coisa. Havia sido quebrada uma barreira conceitual.
(...)
quarta-feira, 15 de agosto de 2007
Magia e felicidade
Tem se falado/escrito (sonhado!) muito sobre sonhos aqui. Mas e se falássemos de magia? Segue um texto de Agamben para reflexão. Será que sonhar não é chegar à "aldeia dos magos", onde só se fala por gestos?
Ter um nome é abrir mão da magia, e portanto da felicidade (liberdade?).
Magia e felicidade[1]
Benjamin disse certa vez, que a primeira experiência que a criança tem no mundo não é a de que “os adultos são mais fortes, mas sua incapacidade de magia”. A afirmação, proferida sob o efeito de uma dose de vinte miligramas de mescalina, não é, por isso, menos exata. É provável, aliás, que a invencível tristeza que às vezes toma conta da criança nasça precisamente dessa consciência de não serem capazes de magia. O que podemos alcançar por nossos méritos e esforço não pode nos tornar realmente felizes. Só a magia pode fazê-lo. Isso não passou despercebido ao gênio infantil de Mozart, que, em carta a Bullinger, vislumbrou com precisão a secreta solidariedade entre magia e felicidade: “Viver bem e viver feliz são duas coisas diferentes, e a segunda, sem alguma magia, certamente não me tocará. Para isso, deveria acontecer algo verdadeiramente fora do natural”.
As crianças, como os personagens das fábulas, sabem perfeitamente que, para serem felizes, precisam conquistar o apoio do gênio na garrafa, guardar em casa o burrinho-faz-dinheiro [asino cacabaiocchi] ou a galinha dos ovos de ouro. E, em todas as ocasiões, conhecer o lugar e a fórmula vale bem mais do que esforçar-se honestamente para atingir um objetivo. Magia significa, precisamente, que ninguém pode ser digno da felicidade, que, conforme os antigos sabiam, a felicidade à medida do homem é sempre hybris, é sempre prepotência e excesso. Mas se alguém conseguir dobrar a sorte com o engano, se a felicidade depender não do que ele é, mas de uma noz encantada ou de um “abre-te-sésamo”, então e só então, pode realmente considerar-se bem aventurado.
Contra essa sabedoria pueril, que afirma que a felicidade não é algo que se possa merecer, a moral colocou desde sempre sua objeção. E o fez com as palavras do filósofo que, menos do que qualquer outro, compreendeu a diferença entre viver dignamente e viver feliz. “O que em ti tende ardorosamente para a felicidade”, escreve Kant, “é a inclinação; o que depois submete tal inclinação à condição de que deve primeiro ser digno da felicidade é tua razão”. Mas de uma felicidade de que podemos ser dignos, nós (ou a criança em nós) não sabemos o que fazer. É uma desgraça sermos amados por uma mulher porque o merecemos! E como é chata a felicidade que é prêmio ou recompensa por um trabalho bem feito!
Na antiga máxima segundo a qual quem se dá conta de ser feliz já deixou de sê-lo, mostra-se que o estreitamento do vínculo entre magia e felicidade não é simplesmente imoral, e que ele pode até ser sinal de uma ética superior. A felicidade tem, pois, com seu sujeito uma relação paradoxal. Quem é feliz não pode saber que o é; o sujeito da felicidade não é um sujeito, não tem a forma de uma consciência, mesmo que fosse a melhor. Nesse caso a magia faz valer sua exceção, a única que permite a um homem dizer-se ou considerar-se feliz. Quem sente prazer de algo por encanto escapa da hybris implícita na consciência da felicidade, porque a felicidade, embora ele saiba que a tenha, em certo sentido não é sua. Assim, Júpiter, que se une à bela Alcmena, assumindo as feições do consorte Anfitrião, não sente prazer com ela como Júpiter. Nem sequer , apesar das aparências, como Anfitrião. Sua alegria pertence totalmente ao encanto, e se sente prazer, consciente e puramente, só com o que se obteve pelos caminhos tortuosos da magia. Só o encantado pode dizer sorrindo: “eu”, e só a felicidade que nem sonharíamos merecer é realmente merecida.
Essa é a razão última do preceito segundo o qual só existe sobre a terra uma possibilidade de felicidade: crer no divino e não aspirar a alcançá-lo (uma variável irônica é, em conversa de Kafka com Janouch, a afirmação de que há esperança, mas não para nós). Essa tese aparentemente ascética só se torna inteligível se entendermos o sentido do não para nós. Não quer dizer que a felicidade esteja reservada apenas a outros (felicidade significa, precisamente: para nós), mas que ela só nos cabe no ponto em que não nos estava destinada, não era para nós. Ou seja, por magia. Nesse momento, quando a arrebatamos da sorte, ela coincide inteiramente com o fato de nos sabermos capazes de magia, com o gesto com que afastamos, de uma vez por todas, a tristeza infantil.
Se for assim, se não houver felicidade a não ser sentimo-nos capazes de magia, então se torna transparente também a enigmática definição dada por Kafka sobre a magia, ao escrever que, se chamarmos a vida com o nome justo, ela vem, porque “esta é a essência da magia, que não cria, mas chama”. Tal definição está de acordo com antiga tradição que cabalistas e necromantes seguiram escrupulosamente em todos os tempos, segundo a qual a magia é, essencialmente, uma ciência dos nomes secretos. Cada coisa, cada ser, tem, além de seu nome manifesto, um nome escondido, ao qual não pode deixar de responder. Ser mago significa conhecer e evocar esse arquinome. Disso nascem as intermináveis listas de nomes – diabólicos ou angélicos – com os quais o necromante garante para si o domínio sobre potências espirituais. O nome secreto é para ele apenas a sigla de seu poder de vida e de morte sobre a criatura que o traz.
Há, porém, outra e mais luminosa tradição, segundo a qual o nome secreto não é tanto a chave da sujeição da coisa à palavra do mago, quanto, sobretudo, o monograma que sanciona sua libertação com relação à linguagem. O nome secreto era o nome com o qual a criatura havia sido chamada no Éden, e, ao pronunciá-lo, os nomes manifestos e toda a babel dos nomes acabaram em pedaços. Por isso, segundo a doutrina, a magia chama por felicidade. O nome secreto é, na realidade, o gesto com o qual a criatura é restituída ao inexpresso. Em última instância, a magia não é conhecimento dos nomes, mas gesto, desvio em relação ao nome. Por isso, a criança nunca fica tão contente quanto quando inventa uma língua secreta própria. Sua tristeza não provém tanto da ignorância dos nomes mágicos, mas do fato de não conseguir se desfazer do nome que lhe foi imposto. Logo que o consegue, logo que inventa um novo nome, ela ostentará entra as mãos o passaporte que a encaminha à felicidade. Ter um nome é a culpa. A justiça é sem nome, assim como a magia. Livre de nome, bem-aventurada, a criatura bate à porta da aldeia dos magos, onde só se fala por gestos.
[1] In: AGAMBEN, GIORGIO. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
segunda-feira, 13 de agosto de 2007
Sobre sonhos...(3) – uma proposta preliminar a partir de algumas experiências
Um verdadeiro estado de consciência onírica pressupõe o estabelecimento de uma comunicação entre as esferas consciente e inconsciente. É como se, ordinariamente (e, portanto, da perspectiva do Ego), estivéssemos submetidos a uma espécie de “divisão de trabalho”, uma cisão fundamental, entre duas instâncias “especializadas”: a instância do consciente, dominada pelo Ego, cujo princípio preponderante é a racionalidade, o controle, a discriminação entre categorias, a classificação etc.; e a instância do inconsciente, criativa, indisciplinada, não classificadora, não hierárquica, sem controle. Nosso viver rotineiro é determinado por essa separação, por essa alienação. Entretanto, quer queiramos ou não, quer tenhamos consciência disso ou não, quer nos lembremos ou não, nós somos ambas as instâncias. De dia, normalmente nos guiamos pela instância do consciente, que se torna preponderante (embora não exclusiva); à noite, quando dormimos, o inconsciente emerge como a instância suprema de nossa mente (embora não exclusiva). Podemos vislumbrar um sem número de desdobramentos desse fenômeno, a começar pela própria filosofia ocidental, dominada por ambigüidades entre a busca da liberdade e o rigor científico; a proposta de elaboração de uma teoria integrada à práxis, a separação entre sujeito e objeto etc. Trata-se de uma questão a ser desenvolvida alhures. Voltemos à questão dos sonhos: sonhando, damos vazão a uma instância eminentemente criativa e criadora, que não admite disciplinamento; aquilo que ordinariamente chamamos de “consciência” por outro lado, é geralmente identificado com apego e controle, definições e classificações (Ego). Aparentemente estamos diante de um impasse que impediria a superação dessa cisão, pois a dificuldade reside exatamente em se aproximar conscientemente da instância criativa sem querer dominá-la, sem exercer apegos egóicos; fazendo-o, corremos o risco de interromper o processo de criação e... acordarmos. Não sei até que ponto podemos exercer o controle dos sonhos sem acordarmos. É verdade que já consegui isso duas vezes, obtendo um certo controle das minhas “ações” nos sonhos, mas em ambas acabei acordando. (Talvez a melhor forma de descrever isso seja de uma forma diferente, e essa diferença não é meramente semântica: melhor seria dizer que já exerci minha vontade por duas vezes nos sonhos, e não o controle desses sonhos). Penso que nos momentos em que essa vontade foi possível e o sonho se manteve, isso se deveu ao fato de ela não ter se traduzido em um controle sobre o sonho todo, sobre o cenário criado, sobre todos os acontecimentos oníricos. Embora tivesse, nesses breves momentos, consciência de que se tratava de um sonho, não coloquei em questão o próprio sonho, não questionei o fato de estar em uma dada situação (onírica) que, pelo fato de ser criação minha, pudesse ser dissolvida: ou seja, não questionei o paradigma do sonho, mas tão somente pude exercer uma vontade durante o sonho que se traduzia em ações do meu “Ego onírico”. Dessa forma permaneceu a separação entre o “Eu” e o “contexto onírico”, o mundo “exterior” do sonho. Enquanto se tratou de exercer somente essa vontade, o sonho se sustentou; porém, trata-se de um equilíbrio precário, pois assim que pomos em questão o próprio sonho, acordamos. Por exemplo: exerci ações conscientes no sonho, porém em interação com imagens aparentemente autônomas, como se fossem seres não criados por mim. Penso que essa aceitação é essencial para a continuidade do processo (não colocar em questão o próprio sonho, como paradigma). Devemos despertar no sonho, porém aceitando que ele (o sonho) interage com essa consciência de modo externo/autônomo, como um contexto. Exercemos nossa vontade, mas não dissolvemos o sonho. É isso que entendo por “respeitar o processo criativo” da instância inconsciente.
Por isso, mais frutífero – esse é o núcleo deste texto - é despertar nossa consciência nos sonhos, por meio de uma vontade autônoma, porém apenas para contemplar o processo criativo, senti-lo em ação, deixar fluir o sonho sem querer dominá-lo completamente (não colocar em questão que as situações e imagens são autônomas, de modo que possamos interagir com elas, ainda que voluntariamente, conscientemente).
Para isso, creio que devemos treinar, na vigília, esse estado meditativo, em que nos deixamos apreciar o fluir das idéias, das imagens e das emoções sem querer agarrá-las, sem pretender dominá-las ou classificá-las ou mesmo criticá-las.
A contemplação desse fluir permite entrar em contato com a instância criativa, que é também a fonte dos sonhos.
Por isso, aquilo que pode unir ambas as instâncias é a Vontade: vontade – instalada em ambas as instâncias - de se conciliarem e de abrir espaço à consciência para viver e sentir a presença da instância que é fonte de criação inesgotável, a partir da qual não existe esforço, nem cansaço, nem esgotamento. Uma espécie de unificação ou conciliação psíquica onde ambas as instâncias se modificam, devido à consideração mútua.
O sonho lúcido é uma ponte entre o consciente e o inconsciente, mas é também mais do que simplesmente isso: ao tornarmo-nos lúcidos no sonho, estamos dando voz ao inconsciente, permitindo que ele assuma, perante o consciente, a narrativa. Isso não ocorre no sonho normal, pois nele essa prerrogativa do inconsciente não se dá perante o consciente, não há ponte que possibilite uma comunicação, um diálogo (que é consciente por definição).
É possível que o aumento de freqüência de sonhos lúcidos se dê pelo treino da mudança de perspectiva durante a vigília, porém é importante que essa mudança receba o trânsito entre as esferas consciente/inconsciente. É uma questão ainda em aberto...
O sonho parece reproduzir - como uma espécie de meta-realidade - o estado de consciência que temos na vigília: assim se, na vigília, nos dedicamos concentradamente sobre um assunto, isso se refletirá no sonho. Por que? Porque, penso, quando nos encontramos absortos, realizamos uma comunicação intensa com o inconsciente, alinhamos a intenção consciente/inconsciente. Se estamos extremamente concentrados sobre um assunto, não apenas temos a tendência de rememorarmos esse assunto no sonho, mas, sobretudo, levamos para o sonho a constância de perspectiva que temos na vigília. Por exemplo: assumimos um ponto de vista (fixo) na vigília e o ponto de vista (no sonhos) será fixo. Ora, a aquisição de lucidez no sonho é uma mudança de perspectiva. Assim, para mudarmos a perspectiva no sonho (rumando para o sonho lúcido), temos que nos concentrarmos ou treinarmos a mudança de perspectiva na vigília.
Tudo se passa como se, do ponto de vista do consciente, aquilo que ocorre na esfera do inconsciente é um sonho; e, analogamente, do ponto de vista do inconsciente, aquilo que se passa na vigília é um sonho. Trata-se de abrir uma porta, uma janela que permita o trânsito entre essas duas esferas.
Meta-realidade
· As imagens oníricas são reflexos estruturais dos estados emocionais e do grau de consciência na vigília: se tenho uma forte emoção ao longo do dia – seja provocada por memórias, pensamentos ou fatos – isso tende a ser traduzido nos sonhos por fortes imagens (um sonho forte, “real”, denso). Um engajamento intenso na realidade (vivência intensa) se traduz em sonhos fortes (alinhamento consciente/inconsciente na vigília = sonhos fortes). As imagens oníricas são traduções de estados e sensações na vigília. O resultadoi é que a realidade onírica se impõe com intensidade;
· O “Ego onírico” corresponde à conscientização da vivência na vigília: se emoções fortes na vigília são traduzidas por imagens fortes, uma vivência intensa na vigília, acompanhada por uma consciência intensa dessa vivência (uma consciência reflexiva dessa vivência/sensação de estar presente nas situações), corresponde, nos sonhos, não apenas a imagens fortes, como a um “ego onírico” interagindo intensamente com essas imagens nos sonhos: o sonho torna-se “real” (a consciência na vigília é transposta para o sonho);
· Para “acordarmos” no sonho, devemos por em questão, no sonho, a validade dessas imagens, o que é obtido pelo questionamento íntimo quanto à validade dessas sensações na vigília. Assim, a pergunta onírica “isso é real ?” somente pode surgir se vivenciarmos na vigília, que “esta perspectiva/sensação não é necessária”. E, para tanto, a perspectiva na vigília já deve ter sido alterada, ainda que provisoriamente. Talvez aqui possamos sentir a utilidade de rememorarmos os sonhos, pois essa recuperação das sensações oníricas também se traduz numa mudança de perspectiva na vigília.
· A constância de perspectiva (no sonho) é a tradução de um ponto de vista fixo na vigília. Para questionarmos a realidade onírica, devemos não apenas aventarmos a hipótese de que nossa perspectiva na vigília pode ser mudada (indagando constantemente: “será que estou sonhando?”), mas mudar efetivamente a perspectiva na vigília, de modo que isso se traduza, no sonho, como: isto não é a realidade. Ou seja, colocando-se em dúvida a perspectiva na/da vigília, assumimos uma postura de "estranhamento" frente aos nossos próprios sentimentos, ao nosso modo de estar no mundo. Deve-se por em questão o ponto de vista/perspectiva do Ego da vigília, para que o ego onírico possa se perguntar: isso é real ?
Todas essas questões estão em aberto, é possível que eu mude de perspectiva no caminhar das pesquisas...
quarta-feira, 8 de agosto de 2007
Sonhos lúcidos: o surgimento da lucidez onírica e o seu estudo
Resumo
Os objetivos deste artigo são estudar a alteração da consciência que origina o sonho lúcido, uma modalidade de sonho na qual o ego onírico compreende que está sonhando e que seu corpo está adormecido, e analisar os motivos e as formas de se estudar o processo de transição do estado usual de consciência onírica para o estado não usual de lucidez. Sob este ponto de vista, avaliou-se as modificações psíquicas e cognitivas, que involvem mecanismos mnemônicos e perceptuais internos, presentes durante o estado de lucidez no sonho. © Ciências & Cognição 2005; Vol. 05: 50-66.
Palavras-chave: sonhos lúcidos; consciência; cognição; psicologia.
O presente artigo tem como tema o estudo da contemplação consciente do sonho durante seu processamento, isto é, uma mudança no funcionamento da consciência durante um tipo especial de sonho, denominado sonho lúcido . Além disso, objetiva-se compreender o processo subjetivo inerente à atribuição de significado às cenas imaginais durante o surgimento do estado onírico consciente e as formas de se estudá-lo, partindo do pressuposto provisório de que a perspectiva fenomenológica qualitativa é adequada. Esta é apropriada ao estudo de fenômenos singulares que apresentem certo grau de ambiguidade e se preocupa com os significados que as pessoas dão às coisas (Neves, 1996).
O objeto desta reflexão é o surgimento e o estudo da lucidez onírica, ou seja, o processo de instalação do discernimento de que se sonha ou ainda, em outras palavras, o modo específico de alteração no funcionamento da consciência durante o sonho no que concerne à percepção da própria oniricidade. Interessa-nos contribuir para aprofundar a compreensão sobre o processo cognitivo ou, se o preferirmos, metacognitivo que se encontra na transição do estado de consciência onírica (Leite, 1997) usual para o estado inusual de lucidez, durante o qual o sonhador, com pleno conhecimento de que está sonhando, é capaz de raciocinar com clareza, agir refletidamente e de acordo com planos decididos antes de adormecer (LaBerge, 2000).
1. Definições de consciência e de sonho lúcido
O mundo perceptual imediato está incluído entre os conteúdos da consciência (Baars, 1997) e, quando o sonhador está lúcido, contém a oniricidade detectada pelo ego onírico. Esta modalidade de experiência onírica é uma experiência psicológica na qual o sonhador atua conscientemente, sabendo que está adormecido enquanto sonha (Eeden, 1913, s/d; LaBerge, 1980; LaBerge, 1990; Gackenbach,1988; Harary e Weintraub, 1993; Lucidity Institute, 1996, LaBerge e Gackenbach, 2001) e que seu corpo permanece no leito. É um sonho em que a realidade interior não é confundida com a realidade exterior pois o ego onírico compreende o que está acontecendo, tal como vemos nas definições a seguir:
"Dreams in which the dreamer becomes aware of dreaming while continuing to dream are known as 'lucid dreams' " (Kahan e LaBerge, 1994: 251)
“Sonho lúcido é aquele no qual você está conscientemente informado do fato de que está sonhando” (Harary e Weintraub, 1993: 35)
“A definição básica do sonho lúcido não requer nada mais do que tornar-se consciente de que você está sonhando.” (Lucidity Institute, 1996: s/p)
“Sonhar lúcido é sonhar enquanto você sabe que está sonhando.(..) Normalmente, a lucidez começa no meio de um sonho, quando o sonhador percebe que o que está sendo vivido não ocorre na realidade física; é um sonho” (Lucidity Institute, 1996: s/p).
A expressão “sonho lúcido” foi cunhada por Frederik Willems van Eeden (1913/s/d) no início do século XX para designar esta modalidade de sonho, considerada por ele como a mais importante entre as que pesquisou para a Society for Psychical Research . Posteriormente foi cunhado o termo "onironauta” por Stephen LaBerge na Universidade de Stanford (LaBerge, 1990). A palavra "lucidez" é utilizada num sentido psiquiátrico, em oposição à idéia de delírio (LaBerge e Gackenbach, 2001).
A consciência simples, sem outros elementos adicionais, pode dar acesso a um reconhecimento acurado das coisas (Baars, 1997), entre as quais a qualidade onírica daquilo que se percebe. No sonho lúcido, o sonhador está consciente de que sonha enquanto o sonho se processa, podendo raciocinar claramente, recordar-se de sua vida vígil, agir reflexivamente, cumprir metas previamente estabelecidas, lembrar-se de instruções obtidas antes do sono, realizar experimentos e marcar momentos e eventos específicos do sonho por meio de sinalizações oculares (LaBerge, 2000). Verifica-se, portanto, um modo específico de funcionamento da consciência, a qual neste trabalho deve ser entendida como segue:
“Consciousness can be defined as the pattern of perception, cognition, and emotion characterizing an organism at any given point in time” (Krippner, s/d: s/p).
Alguns cientistas, entretanto, consideram que o discernimento de que se está sonhando não é suficiente para que um sonho seja considerado lúcido e que é necessário ultrapassarmos esta simples noção (LaBerge e Gackenbach, 2001; Tart, s/d), conferindo tal denominação apenas aos sonhos em que o sonhador apresenta controle consciente dos conteúdos imaginais (LaBerge e Gackenbach, 2001).
Em ciência, podemos apenas dar os passos que o conhecimento corrente permite, sem nunca conhecer o último porvir da jornada (Baars, 1997) e ainda não há consenso científico a respeito da essência da natureza dos sonhos em que a consciência apresenta o discernimento de estar em estado extra-vígil. Alguns modos sob os quais se apresentam adentram ao campo místico e estão fora do alcance de nossa visão científica atual (Kelzer, s/d). Sabe-se, entretanto, que podem quebrar as bases de nossas estruturas de realidade e levar à transcendência de todas as experiências formais (Kelzer, s/d). São fatos que ainda dificultam o estabelecimento de uma definição.
2. A lucidez e a falta de lucidez nos sonhos
Muitas vezes, durante o sono, o sonhador não se questiona a respeito da realidade que está vivenciando e não se dá conta, naqueles exatos momentos em que seu corpo está adormecido, de que está sonhando (LaBerge, 1980; LaBerge e Gackenbach, 2001; LaBerge, 2000; LaBerge, 1998). Em tais casos, o ego onírico não compreende que está em contato com imagens internas e tende, muitas vezes, a reagir ante as cenas que presencia como se estas fossem fisicamente reais e não pertencentes a um mundo imaginal desprovido de caráter físico (LaBerge, 1980; LaBerge e Gackenbach, 2001). Um indicador disso é a indiferença que apresentamos à subversão dos princípios lógicos que regem a realidade vígil por certas combinações tipicamente oníricas de acontecimentos (LaBerge, 1980). Nos sonhos há acontecimentos que ultrapassam o limite do possível para o mundo tridimensional: cavalos falantes, cadáveres que gritam etc. Não obstante, ficamos, muitas vezes, indiferentes ao fato de que tais acontecimentos são impossíveis para o mundo da vigília e não nos damos conta do teor fantástico que apresentam (LaBerge, 1980; LaBerge e Gackenbach, 2001; LaBerge, 2000; LaBerge, 1998) pois, em geral, não reagimos com estranheza ao caráter pouco usual de algumas cenas oníricas. As imagens representadas em alguns quadros surrealistas não são por certo muito comuns neste mundo... assim como cachorros falantes e esqueletos que tocam violino. Mas no mundo dos sonhos tudo é possível e aquilo que em vigília seriam acontecimentos impossíveis, absurdos e ilógicos, na dimensão imaginal onírica são indicadores de que o ego viaja por uma dimensão existencial fantástica. Mesmo assim, quase nunca nos damos conta da natureza onírica de uma cena “absurda” quando a estamos experienciando (LaBerge, 1980; LaBerge e Gackenbach, 2001; LaBerge, 2000; LaBerge, 1998), a despeito do fato de que o inconsciente nos envia sinais indicadores disso (Jung, 1963, s/d).
Não usualmente, entretanto, verifica-se um estado alterado no qual o sonhador compreende que está sonhando e em contato com imagens fantásticas (Eeden, 1913, s/d; LaBerge, 1980; LaBerge, 1990; Gackenbach, 1988; Harary e Weintraub, 1993; Lucidity Institute, 1996, LaBerge e Gackenbach, 2001; LaBerge, 2000; LaBerge, 1998), tal como comprovou Jung (1963, s/d) em um sonho com sua esposa falecida:
"(...) tive ainda uma vez a ocasião de viver esta objetividade: foi depois da morte de minha mulher. Ela me apareceu em sonho como se fosse uma visão. Postara-se a alguma distância e me olhava de frente. Estava na flor da idade, tinha cerca de trinta anos e trajava o vestido que minha prima, a médium, lhe fizera, talvez o mais belo que jamais usara. Seu rosto não estava alegre e nem triste, mas expressava conhecimento e saber objetivos, sem a menor reação sentimental, além da perturbação dos afetos. Sabia que não era ela mas uma imagem composta ou provocada por ela em minha intenção . Nessa imagem estava contido o início de nossas relações, os acontecimentos de nossos trinta e cinco anos de casamento e também o fim de sua vida. Diante de tal totalidade permanecemos mudos pois dificilmente podemos concebê-la. A objetividade vivida nesse sonho (...) pertence à individuação que se cumpriu" (:258, grifo do autor) .
Provavelmente, Jung se tornou lúcido por perceber a incoerência da imagem onírica: sua esposa falecida o olhava de frente. Isto é uma anomalia, um erro do ponto de vista lógico e, levando em conta que a detecção de erros é uma das funções da consciência (Baars, 1997), pode ter sido o traço indicador de oniricidade. Normalmente, o processo de detecção de erros e incoerências não é em si consciente, parecendo ser monitorado por sistemas inconscientes que agem interrompendo o fluxo da consciência quando erros são detectados (Baars, 1997). Raramente o conhecimento do que faz um erro ser um erro é consciente (Baars, 1997), ou seja, em geral não atentamos para os motivos pelos quais certos acontecimentos são considerados errôneos ou absurdos, apenas os detectamos sem nos questionarmos mais profundamente a respeito.
3. O estudo da lucidez onírica no passado
A lucidez no sonho é mencionada desde Aristóteles, no século IV a.C. (LaBerge, 1990; LaBerge, 1998; LaBerge, 2000), e aparece em uma carta de Santo Agostinho, no ano 415 d.C., o que indica que se trata de uma experiência que acompanha a humanidade há muito tempo (LaBerge, 1990). Foi aperfeiçoada no budismo tibetano (LaBerge, 1990; LaBerge e Gackenbach, 2001; Krippner, s/d; Tarab Tulku XI, s/d), no Yoga Indiano, no Sufismo, na Europa Medieval, com São Tomás de Aquino e representa um rico manancial para a pesquisa científica (LaBerge, 1990).
A lucidez onírica foi estudada no século XIX por Myers (LaBerge, 1990) e, muito brevemente e com ceticismo, por Alfred Maury e Havelock Ellis, psicólogos que consideravam sua ocorrência impossível (LaBerge, 1990) e tiveram suas idéias refutadas no século XX por trabalhos experimentais de base psicofisiológica realizados na América do Norte e na Europa (LaBerge, 1990; LaBerge e Gackenbach, 2001). Esses trabalhos comprovaram de modo inequívoco a ocorrência da lucidez no sonho por meio de sinais enviados por onironautas lúcidos em pleno sono REM; tais sinais se baseavam em códigos previamente estabelecidos entre onironauta e pesquisador a partir da correspondência entre movimentos dos músculos oculares reais e movimentos dos olhos oníricos (LaBerge, 1980; LaBerge, 1990; Lucidity Institute, 1996, LaBerge, 1998; LaBerge e Gackenbach, 2001). Entretanto, já em 1909 Freud inseriu uma nota a respeito na segunda edição de Die Traumdeutung (A Interpretação dos Sonhos):
“Há algumas pessoas que ficam muito bem acordadas durante a noite, quando estão adormecidas e sonhando, e que parecem, pois, ter a faculdade de dirigir conscientemente os próprios sonhos. Se, por exemplo, um sonhador deste tipo estiver insatisfeito com o rumo tomado pelo sonho, poderá interrompê-lo sem acordar e começar de novo em outra direção, como um dramaturgo popular pode, sob pressão, dar à sua peça um final mais feliz” (conforme citado por LaBerge, 1990: 41-42).
Em 1914, Freud se pronunciou novamente a respeito da lucidez no sonho em uma carta (conforme citado por Rooksby e Terwee, s/d) na qual respondia a alguns questionamentos levantados por van Eeden.
O conhecimento a respeito das experiências oníricas conscientes é parte do legado de conhecimentos a respeito da experiência humana. O estudo desta última forma um grande livro que se abriu há mais de dois mil anos, com os filósofos gregos e dos Himalaias, e vem sendo continuamente preenchido com novas páginas, as últimas das quais adicionadas pela psicologia e pelas ciências do cérebro, últimas contribuidoras de uma longa e eminente linhagem que talvez marquem o início de um novo capítulo nessa história (Baars, 1997). Atualmente, há importantes pesquisas sobre os sonhos lúcidos com sólidas bases psicofisiológicas (Krippner, comunicação pessoal, março de 2003; LaBerge e Gackenbach, 2001) e psicológicas (LaBerge e Gackenbach, 2001). A ciência considera que estes sonhos, nos quais o ego onírico compreende que está sonhando, são experiências sob estado alterado de consciência, uma vez que permitem ao experienciante sentir na consciência mudanças qualitativas radicais em relação ao seu modo de funcionamento ordinário (Tart, 1972).
4. Razões para a pesquisa da consciência nos sonhos lúcidos
Justificativas teóricas
O conhecimento de como a lucidez se instala no sonho vincula-se estreitamente ao desenvolvimento das técnicas indutoras deste estado alterado de consciência. Ao se somarem ao conhecimento previamente existente, as informações obtidas na análise dos casos relatados podem auxiliar no seu aperfeiçoamento. Considerando que as referidas técnicas visam influenciar a consciência, fazendo com que o teor onírico das imagens internas adentre ao seu campo, existe a possibilidade de que a análise da transição do estado de indiferenciação para o estado de discernimento revele detalhes que talvez tornem mais efetivos os procedimentos baseados no treinamento vígil da atenção e na aplicação de estímulos sensoriais externos durante o sono.
O estudo da lucidez no sonho e das técnicas para se induzi-la vai ao encontro da necessidade de se lançar mais compreensão sobre a amplitude dos estados de consciência (LaBerge e Gackenbach, 2001):
“Lucid dreaming is an experience ideally situated to cast light on a range of states of consciousness, both ordinary and anomalous. Further work needs to be done in a variety of areas, including developing techniques for having and optimally making use of lucid dreams, improving the understanding of the phenomenology and neuroscience underlying the experience, and elucidating the individual differences associated with the spontaneous emergence and talent for developing lucidity ” (: 175, grifo do autor).
O aprimoramento das técnicas de obtenção voluntária, segura e deliberada de lucidez pode nos auxiliar a melhor compreender até que ponto e em que condições as possibilidades de incidência espontânea ou induzida variam.
A possibilidade de contato direto e consciente com a dimensão dos sonhos nos coloca ante uma descoberta comparável à de Cristóvão Colombo no que se refere às chances de exploração de um mundo desconhecido (Kelzer, 2001). Permite que literalmente adentremos ao universo existente no interior do homem adquirindo um “conhecer com” (Edinger, 1999), um contato simultâneo entre sujeito e objeto de conhecimento no qual participamos da aquisição de consciência como sujeito e objeto simultaneamente (Edinger, 1999). O “conhecer com” exige o ver e o ser visto ao mesmo tempo: o sujeito domina o objeto pelo poder logóico com muito esforço e o objeto passa a ser vítima do conhecedor (Edinger, 1999). Sob estado onírico consciente, podemos ser simultaneamente sujeito e objeto da investigação.
A memória vígil dos acontecimentos oníricos é extremamente pobre, o que constitui uma grande dificuldade para a pesquisa do sonho, e, por outro lado, as lembranças desses sonhos lúcidos são mais completas do que as lembranças de sonhos não lúcidos, fatos que reforçam a importância do uso de onironautas como sujeitos de pesquisas (LaBerge, 2000). A possibilidade de “viajar” ao mundo do inconsciente mantendo a lucidez e, portanto, a faculdade crítica não parece ser desprezível pois a psique inconsciente possui tanta realidade quanto corpos celestes distantes e concretos mas inobserváveis diretamente:
“A existência de uma psique inconsciente (...) é tão plausível, poderemos dizer, quanto a de um planeta até agora não descoberto, cuja presença se deduz pelos desvios de alguma órbita planetária conhecida. Infelizmente, falta-nos o auxílio de um telescópio que certifique sua existência” (Jung conforme citado por Saiani, 2000: 48)
É possível que as viagens conscientes ao mundo dos sonhos estejam no caminho para a construção do telescópio que certificará a existência da psique inconsciente... O ego que compreende que está atuando no nível onírico nos instantes em que o seu corpo dorme tem diante de si uma possibilidade nova de obtenção de conhecimento: o contato direto com os complexos nos instantes em que se personificam e se manifestam oniricamente na forma de pessoas, animais, elementos naturais etc. podendo ser estudados. Abre-se, assim, um leque de possíveis experiências conscientes e não usuais.
A lucidez é ferramenta imprescindível para melhor compreensão do mundo dos sonhos:
"Theories of dreaming that not account for lucidity are incomplete, and theories that do not allow for lucidity are incorrect" (LaBerge, 2000, s/p).
O sonho lúcido permite testar teorias sobre os sonhos (LaBerge, 2000) e, considerando que a consciência permite o acesso à vasta fonte de sabedoria do inconsciente (Baars, 1997), proporciona contatos em nível de primeiro grau com a realidade onírica, podendo fornecer um conhecimento complementar ao obtido pela via analítica comum. Os sistemas complexos e inconscientes que usualmente se processam livres de interferência e que podem ser acessados pela mera consciência de seus resultados, bem como as inconscientes fontes de conhecimento que podem ser vastamente acessadas pela consciência (Baars, 1997), incluem o mundo dos sonhos.
Justificativas práticas
Do ponto de vista prático, a alteração da consciência não se vincula forçosamente a patologias (Tart, 1996) e não se detectou vínculos entre lucidez onírica e doenças psíquicas (LaBerge e Gackenbach, 2001) mas, ao contrário, fortes indícios de que ela pode auxiliar na melhora geral da saúde mental e emocional (MacKean, 1997; LaBerge, s/d; Kellogg, s/d; LaBerge e Gackenbach, 2001; LaBerge, 1990).
A lucidez no sonho pode servir como uma psicoterapia intrapessoal na qual a consciência onírica desperta pode ser usada terapeuticamente (Dane conforme citado por LaBerge, 2001). Auxilia na investigação de processos inconscientes, permite interação conciliadora direta com as figuras hostis dos pesadelos (Tholey conforme citado por LaBerge e Gackenbach, 2001; Green e McCreery conforme citado por Gackenbach, 1988; Gackenbach, 1988; LaBerge, 1990) e promove um contato simultâneo entre sujeito e objeto de conhecimento (Edinger, 1999) que amplia a consciência.
Além disso tudo, a possibilidade de socialização do acesso à experiência onírica consciente parece ser, ainda, uma vantagem porque, embora possamos encontrar na sociedade muitas pessoas que tenham passado por sonhos lúcidos espontâneos ou induzidos, elas ainda são minoria em relação ao total da população. O aperfeiçoamento de técnicas indutoras, aliado à produção e divulgação de conhecimento científico a respeito, poderá facilitar o acesso a esta experiência.
Além dos motivos apontados, o estudo dos sonhos lúcidos se justifica pelos resultados práticos adicionais que seguem:
• resignificação da morte (Lange, 1997), importante nos casos de pacientes terminais;
• contato direto com porções profundas da psique, ou seja, interação direta com os conteúdos oníricos ctônicos, possível elemento auxiliar na compreensão do que se passa no inconsciente e na investigação da natureza do sonho;
• exploração do mundo imagético inacessível diretamente aos cinco sentidos;
• terapia contra desordens pós-traumáticas (Tholey conforme citado por Gackenbach, 1988);
• mudanças na estrutura da personalidade (Tholey conforme citado por Gackenbach, 1988);
• colaboração voluntária do ego onírico com processos catárticos durante o sonho por meio da satisfação de desejos proibidos ou impossíveis de serem realizados (LaBerge, 1990).
• possibilidade de realização de uma modalidade intrapessoal de psicoterapia (LaBerge e Gackenbach, 2001) complementar e não alternativa à psicoterapia interpessoal.
Justificativas metodológicas
Do ponto de vista metodológico, a pesquisa sobre a lucidez onírica se justifica pela necessidade, verificada atualmente, de se complementar a abordagem psicofisiológica, experimental, do fenômeno com a abordagem psicológica (LaBerge e Gackenbach, 2001). A primeira, apesar de imprescindível e das imensas contribuições que tem dado, possui limitações, tais como a dificuldade em levar o sujeito a sonhar exatamente aquilo que o pesquisador objetiva estudar (LaBerge e Gackenbach, 2001), os parcos resultados obtidos perante os grandes esforços de pesquisa realizados (Foukes conforme citado por LaBerge e Gackenbach, 2001) e a interferência, no desenrolar do sonho e na percepção do seu conteúdo imagético, da necessidade de envio consciente de sinais pelo onironauta ao pesquisador (LaBerge e Gackenbach, 2001). Por outro lado, dispomos atualmente de estratégias para incremento de confiança na certeza de relatos subjetivos de lucidez (Snyder e Gackenbach conforme citado por LaBerge e Gackenbach, 2001) e podemos ser auxiliados por hábeis sonhadores lúcidos altamente treinados para observação acurada do funcionamento da consciência (LaBerge e Gackenbach, 2001) no interior do sonho. Tais fatos nos permitem considerar adequada a análise dos relatos sob perspectiva psicológica e, dado o caráter inerentemente subjetivo do objeto psíquico, fenomenológica.
O método qualitativo, uma das possíveis formas de estudo que podem ser adotadas, atualmente conquistou seu espaço " como forma promissora e viável de investigação" (Neves, 1996: s/p), tendo sido aplicado ao estudo da lucidez onírica em casos singulares por vários pesquisadores (Gackenbach et al. conforme citado por LaBerge e Gackenbach, 2001). Apresenta as vantagens de permitir a sensibilização para concepções que emergem do material coletado independentemente das expectativas do investigador (LaBerge e Gackenbach, 2001), a sensibilização para os contextos de ocorrência das experiências (LaBerge e Gackenbach, 2001; Martins e Bicudo, 1994; Neves, 1996) e a descrição individual oriunda da compreensão específica do fenômeno situado (Martins e Bicudo, 1994; Neves, 1996), bem como de suas singularidades (Martins e Bicudo, 1994; Ginzburg, 1989; Neves, 1996) a partir da base experiencial do pesquisador com as qualidades detectadas (Martins e Bicudo, 1994). Para que os resultados obtidos sejam mais confiáveis, as fases do projeto de pesquisa, coleta de dados, análise e documentação devem ser cumpridas de modo sequenciado e integral (Neves, 1996). Os problemas de confiabilidade e validação dos resultados podem ser minimizados ao se permitir a checagem da credibilidade do material investigado (Neves, 1996) e se " zelar pela fidelidade no processo de transcrição que antecede a análise, considerar os elementos que compõem o contexto e assegurar a possibilidade de confirmar posteriormente os dados pesquisados" (Neves, 1996: s/p).
O estudo do surgimento da consciência no sonho pela via qualitativa atende ainda a algumas situações específicas:
"A falta de exploração de um certo tema na literatura disponível, o caráter descritivo da pesquisa que se pretende empreender ou a intenção de compreender um fenômeno complexo em sua totalidade são elementos que tornam propício o emprego de métodos qualitativos" (Neves, 1996: s/p)
" Compreender e interpretar fenômenos a partir de seus significantes e contexto são tarefas sempre presentes na produção de conhecimento, o que contribui para que percebamos a vantagem no emprego de métodos que auxiliam a ter uma visão mais abrangente dos problemas, supõem contato direto com o objeto de análise e fornecem um enfoque diferenciado para a compreensão da realidade" (Neves, 1996: s/p).
O aspecto subjetivo das experiências conscientes constitui uma parte difícil da problemática posta por seu estudo, estando entre as mais interessantes questões das ciências da cognição ainda não resolvidas até hoje (Chalmers, 1995), e este é um motivo para se investigá-las enquanto fenômeno situado em um contexto onírico. Além disso, tentar explicá-las apenas em termos de habilidades e funções é adotar uma abordagem reducionista que se desvia de seus aspectos mais difíceis, os quais estão relacionados com a subjetividade (Chalmers, 1995) e constituem uma razão para se adotar uma abordagem fenomenológica. Afirmar que o não verificável exteriormente não possa ser real é negar o fenômeno da experiência humana consciente (Chalmers, 1995), uma vez que a mesma em essência não é fisicamente palpável.
A impossibilidade de observação direta do substrato subjetivo da experiência consciente em um contexto experimental não impede a avaliação de teorias a respeito:
“Even in the absence of intersubjective observation, there are numerous criteria available for the evaluation of such theories: simplicity, internal coherence, coherence with theories in other domains, the hability to reproduce the properties of experience that are familiar from our own case, and even na overall fit with the dictates of common sense” (Chalmers, 1995: s/p).
A narração de uma pessoa a partir de seu senso introspectivo é um testemunho que fornece uma descrição direta de seus próprios processos mentais, apesar da necessidade de ser corroborada por medidas fisiológicas, (LaBerge, 1990) e uma razão pela qual a análise de relatos de consciência onírica desperta se justifica.
A subjetividade inerente ao processo investigado faz com que seja conveniente abordá-lo sob uma perspectiva fenomenológica - no sentido original do termo fainomenon , ou seja, “aquilo que se mostra em si mesmo” (Martins e Bicudo, 1994: 22) - que vise compreender, mais do que explicar, (Martins e Bicudo, 1994) a mudança no significado atribuído às imagens internas pelo sonhador. Esta é apropriada para tratar de fenômenos singulares e dotados de certo grau de ambiguidade (Neves, 1996). A mera consideração dos processos físicos na análise da experiência de se tornar consciente de algo não revela porque a mesma surge (Chalmers, 1995). Há necessidade de se adotar uma abordagem não reducionista para se apreender melhor o aspecto subjetivo da consciência, o mais interessante e difícil dos problemas que sua investigação nos coloca (Chalmers, 1995), seja no campo onírico ou extra-onírico.
Sob as perspectivas fenomenológica ou psicofisiológica, estudos a respeito da consciência em geral e da consciência onírica em particular têm sido publicados por várias instituições científicas, tais como The American Association for the Advancement of Science (Tart, 1972 ), a Parapsychological Association (LaBerge e Gackenbach, 2001) e a Society for Psychical Research , e em periódicos acadêmicos, entre os quais podemos citar as revistas Psychology Today (LaBerge, 1980), Psicologia USP (Leite, 1997), Psicologia Revista (Muniz, 2001), Science (Tart, 1972) e o Journal of Consciousness Studies (Baars, 1997; Chalmers, 1995; Tart, 1996).
Nas universidades, os estudos sobre a lucidez onírica têm sido realizados por três vias: relatos de onironautas, experiência individual dos próprios pesquisadores diretamente com sonhos lúcidos e procedimentos experimentais de base psicofisiológica a partir de alterações nos movimentos oculares de onironautas em sono REM (Eeden, 1913/ s/d; LaBerge, 1980; LaBerge, 1990; Gackenbach,1988; Harary e Weintraub, 1993; Lucidity Institute, 1996, LaBerge e Gackenbach, 2001). No estudo qualitativo, podemos analisar relatos para obter dados indiciários (Ginzburg, 1989) a respeito do objeto, a partir dos quais podemos elaborar conclusões de xvalidade limitada à singularidade dos casos (Ginzburg, 1989; Martins e Bicudo, 1994) e oriundas de uma abordagem totalizante (Pereira, 1998), não reducionista (Chalmers, 1995), que vise mais a compreensão do que a explicação do fenômeno (Martins e Bicudo, 1994) em termos de causalidade linear (Pereira, 2000), ou seja, podemos buscar compreendê-lo pressupondo construção contínua do conhecimento e dentro de uma perspectiva holística em que o teor analítico qualitativo seja fundamental (Pereira, 2000). Uma consideração da experiência de tornar-se consciente de algo não pode explicá-la com sucesso se for reducionista (Chalmers, 1995) a ponto de excluir seu aspecto subjetivo.
5. A inserção da oniricidade no campo da consciência
Das definições citadas no início deste artigo, depreende-se que a oniricidade 1 das cenas imaginais adentra ao foco de atenção do sonhador, sendo captada em seu campo de consciência, como previsto no modelo teórico proposto por Baars (1997), o qual utiliza a metáfora de um holofote de teatro para ilustrar os processos de inserção de conteúdos no campo atencional.
A consciência possibilita o acesso ao desconhecido e inclui entre seus conteúdos o mundo perceptual imediato, as imagens e sons internos (Baars, 1997), o que nos permite supor que, ao estar desperta no sonho, a mesma apreende a realidade imaginal do aqui-agora onírico e pode contatar diretamente seus aspectos desconhecidos para observá-los e melhor conhecê-los.
Em geral, a lucidez parece provir da problematização em torno do conteúdo do sonho:
“Dreamers commonly became lucid when they puzzle over oddities in dream content and conclude that the explanation is that they are dreaming” (LaBerge e Gackenbach, 2001: 153).
Ao "quebrar a cabeça a respeito do estranho" (LaBerge e Gackenbach, 2001; tradução minha) e optar pela conclusão de que está sonhando como única explicação possível, o sonhador pode adquirir lucidez até o ponto de julgar sua situação em plena posse de suas faculdades cognitivas vígeis sem, no entanto, abandonar o estado de sonho e sono (LaBerge, 1998; LaBerge, 2000; LaBerge e Gackenbach, 2001). A dinâmica fenomenológica e psicológica deste processo cognitivo em sua totalidade, isto é, desde os instantes em que se principia até o ponto em que se conclui, está sendo alvo de tentativas de descrição e compreensão neste artigo. Excertos de dois relatos podem ilustrar melhor a natureza do fenômeno que estamos estudando (Muniz, 2001: 93):
“Narrando o sonho... Meu irmão já é falecido há quatro anos. E, recentemente, eu sonhei que ele se encontrava num caixão, como realmente aconteceu, na capela do cemitério. E aí ele levantava desse caixão. E na hora eu dizia assim: ‘ Nossa! Isso não pode estar acontecendo. Porque eu estou sonhando!? ' E, na realidade, ele realmente morreu. E nisso o sonho retrocedia.” (grifo do autor )
“Bom eu ´tava´ na entrada de uma casa, mais ou menos numa rampa. Não tinha garagem. E eu tinha que entrar naquela casa. Tentei várias vezes mas não tinha um caminho. Tinha que subir num muro, passar no meio de um jardim... E como eu não conseguia chegar, eu via a janela da casa mas não conseguia chegar até a janela, eu escutei uma voz que dizia: ‘Você precisa fotografar essa casa para poder lembrar'.
E eu respondia, mesmo sem saber de onde vinha a voz, que não tinha máquina fotográfica e eu não tinha como fotografar a casa. Então a voz me falou: ‘Então, quando você acordar , você vai desenhar essa casa porque é ´pra´ lembrar de todos os detalhes'.
E assim... eu tinha que observar todos os detalhes e na minha cabeça eu pensava: ‘Eu tenho que observar todos os detalhes'. Então eu me lembro de parar e ficar olhando: ‘Então, aqui tem uma rampa...' E eu ficava olhando aquela rampa vários minutos para não esquecer. Para quando eu acordar eu desenhar. Então que fiquei... eu parava e via todos os ângulos que aquela posição me proporcionava. Então eu via a rampa. Então eu fiquei vários minutos tentando gravar na minha mente aquela rampa depois o jardim... Como eu não tinha como fotografar, a mesma voz me pediu para desenhar.
E eu desenhei. Quando eu acordei eu desenhei a casa.
Algumas vezes, enquanto eu ´tava´ passando... em lugares longe da minha casa, em bairros que eu não conhecia, eu até cheguei a prestar atenção ´pra´ ver se eu via algumas casas parecidas. Mas não dava para ficar observando muito os detalhes... não consegui reconhecer.”
P-“Então você sabia que estava dormindo?”
R-“E, senti. Quando ela me falou: ‘... quando acordar ...' aí eu sabia que eu ´tava´ dormindo e que na hora em que eu acordasse eu tinha que fazer aquilo” (Moniz, 2001: 94-95, grifos do autor, segundo relato).
Como se vê nos relatos, n a instalação da lucidez há uma mudança qualitativa no significado atribuído às imagens mentais: antes de se tornar consciente o sonhador as considera físicas e as identifica com a realidade vígil exterior (LaBerge, 1980; LaBerge e Gackenbach, 2001) mas em seguida, após adquirir lucidez, a qualidade onírica das imagens é percebida, a despeito do fato de o sonhador ainda estar sob a letargia corporal profunda do sono REM (LaBerge, 1980; LaBerge, 1990; Lucidity Institute, 1996, LaBerge e Gackenbach, 2001), e o significado atribuído às mesmas é modificado. Portanto, dois significados atribuídos às cenas mentais oníricas devem ser levados em consideração: o de imagens físicas exteriores e o de imagens oníricas interiores.
A lucidez parece estar muitas vezes vinculada à história e a geografia da vida do indivíduo sonhante, se originando de um confronto lógico que este realiza entre as realidades espaço-temporais concretamente vivenciadas no cotidiano e a forma como estas aparecem em sonhos. Ativa participação da memória autobiográfica recente em seus aspectos temporal e espacial foi sugerida na Alemanha por Paul Tholey (1989) com base em aplicações de testes de realidade nos quais o sujeito sonhante se questionava a respeito de onde esteve nas horas antecedentes ao "presente" onírico, à representação interna do aqui-agora exterior. Deste modo, os saltos no tempo e no espaço 2 , ou seja, a descontinuidade na sequência dos acontecimentos típica dos sonhos, em que os acontecimentos não são encadeados de modo lógico, pôde ser captada conscientemente pelo onironauta e levá-lo à lucidez.
O despertar da consciência no interior do sonho implica em alteração do significado atribuído pelo ego onírico às cenas que vivencia. Considerando-se que consciência e cognição coerem intimamente e não funcionam desvinculadamente (Chalmers, 1995), devemos entendê-lo como um processo cognitivo ou metacognitivo especificamente voltado à oniricidade na medida em que corresponde a um “dar-se conta”, um estalo de compreensão e discernimento a respeito da condição em que o sonhador se encontra no nível presente e imediato, o “aqui-agora” do sonho.
6. Conclusões
Na compreensão do fenômeno da lucidez no sonho, os métodos qualitativo e quantitativo vêm se completando em vários países e com resultados que certificam sua existência.
A partir de uma base indiciária, a via qualitativa de pesquisa pode nos oferecer informações a partir de casos singulares analisados em relatos ou na literatura. Apesar da certeza restrita aos casos estudados, as informações oriundas de uma abordagem singularizada totalizante podem ser ponto de partida para posteriores estudos quantitativos que busquem detectar traços gerais do fenômeno.
Nos sonhos comuns, a consciência do sonhador não capta a oniricidade do que vivencia; percebe as representações internas de formas, cores e sons sem se dar conta de seu teor imaginal. No sonho lúcido, ao contrário, há o discernimento de que se sonha.
Originalmente, a palavra "lucidez" foi empregada em um sentido psiquiátrico, oposto ao de delírio, ou seja, no sentido de que o ego onírico não se deixa enganar pelas ilusões dos sonhos, supondo que as mesmas sejam reais. Ao estar consciente do teor ilusório do que percebe, o sonhador está lúcido, capaz de discernir entre o sonho e a realidade 3 .
Os sonhos lúcidos parecem corresponder a uma etapa evolutiva da consciência humana que ainda não foi atingida coletivamente, daí a persistência de seu caráter anômalo. Permitem uma interação direta e segura com o inconsciente e fornecem acesso a informações importantes sobre as profundidades dos mundos da mente e do sentimento.
A possibilidade de aprimoramento das técnicas indutoras de lucidez talvez possa permitir, inclusive, a verificação experimental da (in)existência de conexões interoníricas, ou seja, de pontos de contato entre os sonhos de duas ou mais pessoas, o que seria relevante na investigação parapsicológica e contribuiria para a desmistificação da teoria "ocultista" de que o mundo dos sonhos existe de modo independente da matéria.
Na literatura ocultista, diz-se que os sonhos são vivências do ego nos mundos denominados astral e mental, os quais corresponderiam respectivamente ao mundo dos sentimentos e dos pensamentos. Ambos existiriam por si mesmos, paralelamente ao mundo físico e o compenetrariam, sem com ele se confundirem. Durante a chamada "viagem astral" ou "desdobramento astral", o sonhador estaria atuando em um universo paralelo. O conhecimento sobre o surgimento da lucidez no sonho, e o conseqüente aprimoramento das técnicas indutoras, parece permitir que estas e outras alegações sejam testadas.
A lucidez corresponde à inserção de oniricidade no foco da consciência. Relaciona-se diretamente com uma predisposição do sonhador para detecção de anormalidades denunciadoras do sonho e com a memória, sem a qual seria impossível a comparação e a diferenciação entre a forma assumida pelos fatos no tempo e no espaço. A memória autobiográfica nos permite recordar quem somos, onde vivemos, onde estivemos e as características típicas do mundo físico para compará-las com o que percebemos em sonhos e captarmos a dissonância lógica.
O treinamento diário e correto da atenção vígil educa a consciência no sentido de mantê-la em freqüente expectativa, ainda que inconsciente ou subconsciente, para detecção de traços de oniricidade e está na base das técnicas indutoras perceptuais. O treinamento correto da memória educa a mente do sonhador para que este seja capaz de concluir se está ou não sonhando a partir da lembrança dos lugares em que esteve em seu passado altamente recente e se encontra na base da técnica reflexiva (Tholey, 1989).
A auto-educação para a lucidez no sonho passa diretamente pelo aperfeiçoamento da capacidade de se testar a realidade várias vezes ao dia. Adicionalmente, convém acrescentar que a consciência onírica desperta não se origina apenas do treinamento da atenção e da memória mas também do sentimento. A dúvida é um estado emocional de desconforto acompanhado normalmente pelo desejo de descobrir, de conhecer (Peirce, 1877, s/d). Quanto mais intenso for o desejo de sabermos se estamos ou não sonhando, mais efetivos serão os testes de realidade. Tais fatos nos permitem conjeturar se as pessoas altamente emotivas são mais propensas ou não à lucidez e pode servir de inspiração para estudos futuros.
7. Referências bibliográficas
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Notas
(1) O teor onírico das imagens percebidas, isto é, o fato das imagens pertencerem ao mundo interno do sonho e não ao mundo físico externo. Em geral, é detectada sob a forma de representações de configurações de tempo e espaço diferentes das formas como estas são experienciadas em vigília .
(2) Os sonhos apresentam súbitas rupturas nas sequências lógicas dos fatos: podemos saltar repentinamente de um ponto a outro do espaço e do tempo sem passarmos pelos momentos e lugares que os intermediariam na realidade vígil. Esta ruptura lógica caracteriza uma anormalidade indicadora de oniricidade que pode ser detectada pelo sonhador que reage criticamente à mesma.
(3) A despeito de controvérsia filosófica, empreguei aqui os termos "realidade" e "sonho" em seus sentidos tradicionais e mais comuns.
Agradecimentos
Agradeço ao Dr. Stanley Krippner e ao Dr. Stephen LaBerge pelos materiais de pesquisa providencialmente fornecidos.
Nota sobre o autor * C. M. Muniz é Especialista em Abordagem Junguiana pela COGEAE da PUC-SP, Licenciado em geografia e história, realizador do projeto musical Esplendor (world music com tendência ibérico-medieval e temáticas oníricas). E-mail para correspondência: othna@terra.com.br .