segunda-feira, 28 de maio de 2007

Sobre a desobediência civil

Fê,
veja como críticas "chapas-brancas" como aquela do Sergio Adorno são facilmente contra-argumentáveis.
Beijos

Sobre a desobediência civil
Diante das manifestações de membros da comunidade acadêmica, inclusive de cientistas sociais, desqualificando a estratégia de desobediência civil e ação direta adotada pelos estudantes da Universidade de São Paulo que ocuparam a reitoria, gostaríamos de chamar atenção para alguns pontos.
Os críticos da ocupação enquanto estratégia argumentam que ela fere não apenas o princípio da legalidade, como também a civilidade e o diálogo e que, portanto, trata-se apenas de uma ação violenta, autoritária e criminosa.

As instituições civilizadas que esses críticos defendem, do voto universal para cargos legislativos até os direitos trabalhistas e as leis de proteção ambiental foram frutos de ações diretas, não mediadas pelas instituições democrático-liberais: foram fruto de greves (num momento em que eram ilegais), de ocupações de fábricas, de bloqueios de ruas. Não é possível defender o valor civilizatório destas conquistas que criaram pequenos bolsões de decência num sistema econômico e político injusto e degradante e esquecer das estratégias utilizadas para conquistá-las. Ou será que tais ações só passam a ser meritórias depois de assimiladas pela ordem dominante e quando já são consideradas inócuas?

As ações diretas que desobedecem o poder político não são um mero uso de força por aqueles que não detêm o poder, mas um uso que aspira mais legitimidade que as ações daqueles que controlam os meios legais de violência. Talvez fosse o caso de lembrar, mesmo para os cientistas sociais, que nossas instituições democrático-liberais são instrumentos de um poder que aspira o monopólio do uso legítimo da violência. Há assim, na desobediência civil, uma disputa de legitimidade entre a ação legal daqueles que controlam a violência do poder do estado e a ação daqueles que fazem uso da desobediência reivindicando uma maior justiça dos propósitos.

Os críticos da ocupação da reitoria, em especial aqueles que partilham do mesmo propósito (a defesa da autonomia universitária), podem questionar se a ocupação está conquistando, por meio da sua estratégia, legitimidade junto à comunidade acadêmica e à sociedade civil. Esse é um dilema que todos que escolhem este tipo de estratégia de luta têm que enfrentar e que os ocupantes estão enfrentando. Mas desqualificar a desobediência civil e a ação direta em nome da legalidade e da civilidade das instituições é desaprender o que a história ensinou. Seria necessário também lembrar que mesmo do ponto de vista da legalidade, nossas instituições não vão tão bem?

Independente de como a ocupação da reitoria termine, ela já conseguiu seu propósito principal: fomentar a discussão sobre a autonomia universitária numa comunidade acadêmica que permaneceu apática por meses às agressões do governo estadual e que só acordou com o rompimento da ordem.


Adma Fadul Muhana, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Albana Azevedo, técnica da UFRJ
Alexandre Fortes, professor do Instituto Multidisciplinar da UFRJ
Andréia Galvão, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Andriei Gutierrez, doutorando no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Angela Lazagna, doutoranda do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Anita Handfas, professora da Faculdade de Educação da UFRJ
Antonio Carlos Mazzeo, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP
Alessandro Soares da Silva, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP
Alexander Maximilian Hilsenbeck Filho, mestre pela Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP
Alvaro Bianchi, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel, doutoranda do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Arley R.Moreno professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Armando Boito, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Caio N. de Toledo, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Candido Giraldez Vieitez, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP
Celso Fernando Favaretto, professor da Faculdade de Educação da USP
Cilaine Alves Cunha, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Claus Germer, professor do departamento de Economia da UFPR
Cristiane Maria Cornelia Gottschalk, professora da Faculdade de Educação da USP
Daniel Barbosa Andrade de Faria, pós-doutorando do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Danilo Enrico Martuscelli, doutorando no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Davisson C. C. de Souza, doutorando na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Dora Isabel Paiva da Costa, professora da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP
Doris Accioly e Silva, professora da Faculdade de Educação da USP
Eleutério Fernando da Silva Prado, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP
Felipe Luiz Gomes e Silva, professor da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP
Filipe Raslan, mestrando do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Filippina Chinelli, professora da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP
Francisco de Oliveira, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Glaydson José da Silva, pós-doutorando do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Henrique Soares Carneiro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Hivy Damasio Araújo Mello, douroranda do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Homero Santiago, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Isabel Loureiro, professora da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP
Ivana Jinkings, editora
Jefferson Agostini Mello, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP
Jesus Ranieri, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
João Adolfo Hansen, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
João Bernardo, escritor e professor
João Henrique Oliveira, mestre pelo Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF
João Quartim Moraes, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Jorge Machado, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP
Júlia Moretto Amâncio, mestranda no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Laymert Garcia dos Santos, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Leandro de Oliveira Galastri, doutorando no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Leda Paulani, professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP
Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida, professor da PUC-SP
Luiz Renato Martins, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP
Luiz Roncari, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Luziano Pereira Mendes de Lima, professor da UNEAL
Marcelo Badaró Mattos, professor do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF
Marcos Barbosa de Oliveira, professor da Faculdade de Educação da USP
Marcos Del Roio, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP
Maria Marce Moliani, professora do departamento de Educação da UEPG
Maria Socorro Ramos Militão, professora da Faculdade de Artes, Filosofia e Ciências Sociais da UFU
Marisa Brandão, professora do CEFET-RJ
Marta Maria Chagas de Carvalho, professora da Faculdade de Educação da USP e da Universidade de Sorocaba
Marta Mourão Kanashiro, doutoranda na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Moacir Gigante, professor da Faculdade de História, Direito e Serviço Social da UNESP
Neusa Maria Dal Ri, professora da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP
Otília Arantes, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Pablo Ortellado, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP
Patrícia Curi Gimeno, mestranda do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Patrícia Vieira Trópia, professora da Faculdade de Educação da PUC-Campinas
Paulo Eduardo Arantes, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Pedro Castro, professor do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF
Renata Belzunces, professora da UNIP e da Faculdade Comunitária de Campinas
Ricardo Antunes, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Ricardo Musse, professor da Facualdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Roberto Lehrer, professor da Faculdade de Educação da UFRJ
Rosanne Evangelista Dias, professora do Colégio de Aplicação da UFRJ
Rubens Machado Jr., professor da Escola de Comunicação e Artes da USP
Ruy Braga, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Sean Purdy, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Sergio Lessa, professor departamento de filosofia da UFAL
Sérgio Silva, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
Silvia Viana Rodrigues, doutoranda da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Sonia Lucio Rodrigues de Lima, professora da Escola de Serviço Social da UFF
Soraia Ansara, professora da Faculdade Brasílica de São Paulo
Weslei Venancio, graduando de Ciências Econômicas da Universidade Estadual de Londrina

Metafísica?

Mais uma vez recorro a Novalis (sou suscetível a esse tipo de "obsessão", a essas "paixões" temporárias). Trata-se, agora, do fragmento logológico 21, e que me parece uma proposta de um princípio transcedental e/ou metafísico (?), que dá sentido, no caso da proposta romântica, à poesia do poeta-filósofo. Vocês vão notar que apesar de transcendente e/ou absoluto, o referencial guarda uma profunda subjetividade (pelo menos como me parece). Os grifos são meus e destacam alguns pontos que acho interessantes.

"Há certas ficções em nós, que parecem ter um caráter totalmente outro, que as demais, pois são acompanhadas do sentido de necessidade, e no entanto não se apresenta nenhum fundamento externo para elas. Parece ao ser humano, como se ele estivesse envolvido em um diálogo, e algum ser desconhecido, espiritual, o ocasionasse de um modo prodigioso ao desenvolvimento dos pensamentos mais evidentes. Esse ser tem de ser um ser superior, porque se põe em relação com ele de uma maneira, que não é possível a nenhum ser ligado a fenômenos - Tem de ser um ser homogêneno, porque o trata como um ser espiritual e o solicita apenas à mais rara auto-atividade. Esse eu de espécie superior relaciona-se ao homem, como o homem à natureza, ou como sábio à criança. O homem anseia igualar-se a ele, assim como procura tornar o não-eu igual a si".

domingo, 27 de maio de 2007

Questão a ser discutida...

Em relação à integração empreendida pelo sistema ideológico, proponho a seguinte questão, diretamente relacionada às reflexões situacionistas.
Estou partindo do caráter fragmentador do capitalismo e que deu causa à chamada "crise da cultura" contemporânea.
Em relação a esse diagnóstico (fragmentação, perda do sentido), as vanguardas do século XX adotaram a posição bem conhecida, de proceder ao descondicionamento mediante desestruturação da própria linguagem. Pois bem : em se tratando de um sistema ideológico que prima, ele próprio, pela fragmentação, talvez esteja aí a causa que redundou na absorção ideológica dessaas vanguardas. A desconstrução vanguardista "resvala" para a própria ideologia, por se limitar à negatividade. O sistema se alimenta de uma negatividade desconstrutora: a perda do sentido, seja ela qual for, "nutre" a ideologia.

sábado, 26 de maio de 2007

Sobre sonhos...

Sobre os sonhos...para além da cisão consciente x inconsciente
Parte I

Tomemos como exemplo os mecanismos que levam à geração dos sonhos.

Durante a vigília, somos invadidos por um grande fluxo de sensações: estas são não apenas provocadas por estímulos externos - internalizados - como também pela memória e por novos pensamentos, idéias, imagens e emoções. Tudo isso constitui um inesgotável universo produtor de sensações. (Há, ainda, inúmeras sensações que não são transferidas para a consciência, como por exemplo, a conversão automática de sons em imagens etc.). A hipótese é a seguinte: essa enorme quantidade de sensações pretende-se sempre ser tornada consciente, que é a instância simbólica por excelência, na qual o indivíduo "materializa" e manipula não apenas informações como também e sobretudo as próprias sensações - pelos mais diversos meios, seja pela geração de palavras, seja pela elaboração de imagens ou por idéias abstratas, mas que sempre têm a estrutura de uma linguagem. Em suma, as sensações são recepcionadas pela consciência por meio da geração de signos. Entretanto, segue-se que, nesse processo, subsiste um resíduo (e a hipótese é de que esse resíduo é estrutural, inerente), constituído por um conjunto de sensações, muito sutil, que não é nunca transferido à consciência, não é manipulado por meio dos símbolos (poderíamos mesmo dizer, quase escapara à esfera da linguagem, mas essa é uma questão ainda em aberto). Pois bem, ao dormirmos, é exatamente esse resíduo que requer e que demanda seu processamento por meio de signos, que se dá por meio da geração dos sonhos.

O sonho é assim um novo código, no qual sensações armazenadas e não expressadas (o resíduo) são traduzidas por imagens etc.; estas não guardam a mesma relação significativa que aquela estabelecida na vigília. Ou seja, na vigília, estamos sob o domínio de um código de correspondências - determinado em grande parte culturalmente - entre signos e significados (emocionais etc). No sonho, estamos sob domínio de um outro código, no qual sensações também são traduzidas por imagens ou signos, embora de maneira diferente. Entretanto, interessa-nos aqui o processo pelo qual esse fenômeno opera: ou seja, sob que forma, esse resíduo "motivacional" ("pulsional"?) consegue estabelecer uma ponte que possibilite ser traduzido de forma simbólica, gerando imagens etc (o sonho).

Para que essa transformação opere, há uma fase "intermediária", um pouco antes de entrarmos na fase do sonho, quando se processa uma operação de desconstituição do código da vigília. Nessa fase, inicia-se a retomada do resíduo, ou seja, as preocupações conscientes (e simbolizadas pelo código da vigília) começam a ser mescladas com o resíduo (que começa a emergir e tomar seu lugar); quando este último começa a se impor como significado dominante, inicia-se um relacionamento desse conteúdo inconsciente com imagens e signos comuns ou ordinários (e, note-se, também com elementos difusos e indeterminados): poderíamos dizer, as sensações começam a se transformar em signos, mas esse processo é paulatino e mais ou menos lento e caótico por definição; as sensações começam a adquirir um novo sentido. O processo termina com a elaboração e atribuição de signos completos para as sensações do resíduo, quando as percepções difusas e não elaboradas passam a ser traduzidas integralmente por imagens e sons (reconhecíveis em vigília, mas elaboras a partir de outro significado, que é o resíduo).

Nos sonhos, não há a geração de resíduos[1], pois os próprios resíduos constituem a matéria-prima para a geração e percepção dos signos oníricos. Por isso, tudo é automaticamente traduzido em imagens e fatos. E, assim, para que possamos obter uma consciência dentro do sonho (uma espécie de controle do sonho), torna-se necessário que a consciência seja de outra espécie, não podendo estar ancorada nos resíduos. A hipótese que surge, portanto, é de que o "Eu", nesse caso, deve estar ancorado em algo "além" das sensações, percepções, emoções que constituem a matéria-prima dos sonhos, pois, caso contrário, não haverá controle do sonho: o resíduo é sempre e imediatamente ("automaticamente") traduzidos em signos, durante o sonho.

Se isso for verdadeiro, temos aqui uma segunda questão: se podemos explicar os signos criados durante o sonho por meio de sua vinculação com o resíduo, muito mais complexo será o procedimento inverso, ou seja, verificar por que tal ou qual conjunto de resíduos deu origem àquela determinada imagem (e não outra) dentre um conjunto infinito de signos possíveis de serem criados. Por exemplo: se sonho com uma grande onda no mar que me atinge, posso explicar a correspondência disso com o resíduo; porém, mais difícil é explicar porque esse resíduo não deu origem a outra espécie de imagem, por exemplo, um cão latindo... Evidentemente, essa questão se assemelha àquela, já clássica, levantada por Levi-Strauss acerca dos mitos, com os quais os sonhos guardam muitas semelhanças e, entendemos, poderiam também ser eles próprios analisados estruturalmente. Pois bem, a hipótese aqui é de que essa determinação é impossível: não há uma lógica na escolha dessa ou aquela imagem para a tradução simbólica do resíduo, vigindo o "princípio de indeterminação" de Saussurre, segundo o qual a escolha desse ou daquele signo não obedece a um princípio determinado. E aqui, talvez, encontremos a dimensão da liberdade: há uma liberdade na construção do código que gera a construção dos signos. Haveria assim uma matriz inteiramente livre, que molda o código.
Parte II
Uma outra questão interessante acerca dos sonhos se refere à estrutura onírica e à vontade envolvida nos sonhos.
Vou tentar explicar essas 2 questões, começando pela segunda.
Quando sonhamos, uma série de acontecimentos se desenrrolam e reagimos a eles das mais diversas formas. Entretanto, nossas reações a esses "acontecimentos" não se dão de acordo com o mesmo tipo de vontade que move nossos atos na vigília. (E, além disso, devemos ter claro que tudo o que ocorre em nossos sonhos é produzido por nós mesmos). Ou seja, os sonhos também são um ato de nossa vontade. Há porém uma diferença importante: na vigília, posso decidir pegar um objeto ou me mover nessa ou naquela direção. E assim os atos são produzidos. Porém, nos sonhos, os "acontecimentos" - imagens, sons, personagens, sentimentos etc - parecem se desenrrolar independentemente de nossa vontade. Isso parece realmente ocorrer, porque elegemos como critério critério a vontade ordinária que rege nossas ações na vigília. Contudo, sabendo-se que o sonho resulta de uma ação de nossas próprias mentes, devemos concluir que em sua produção acionamos um outro tipo de vontade: aquela que dá origem à produção dos próprios sonhos. A questão, portanto, é estarmos em contato com esse tipo de vontade, que, sendo parte de nós mesmos, se impõe, contudo, durante o sonho ( e será que somente no sonhos ?) como se fosse um poder externo (pois no interior do sonho os eventos aparentam ser "externos" a nós mesmos).
A outra questão - a estrutura dos sonhos - relaciona-se com a primeira.
Quando sonhamos, parece que os acontecimentos e nossas ações são do tipo "reativo". Estamos como que inteiramente "condicionados" nos sonhos, apenas reagindo a essa ou aquela imagem, acontecimento etc. Entretanto, se tivermos em conta que tudo nos sonhos são parte de nós mesmos - produto daquela vontade descrita acima - temos que o caráter reativo do sonho tem por referência apenas aquilo que identificamos com o "EU" nos sonhos, uma espécie de "Ego onírico": o "Ego onírico" é que se encontra condicionado, não o Eu real, que é produtor do sonho todo. O "Ego onírico" ou "consciência onírica" diz respeito àquela identificação que temos no sonhos com um personagem qualquer (tido como "eu" no sonho) e que geralmente se encontra condicionado pelos eventos oníricos, meramente reagindo a eles.
Isso nos permite elaborar uma espécie de homologia entre o sonho e a vigília: é como se o sonho nos demonstrasse como nosso Ego se encontra falsamente condicionado, não dando chance à nossa vontade real interferir de maneira plena em nosso cotidiano. Ou seja, recuperando-se a vontade, recuperaríamos a nossa liberdade, nossa existência não dependente, tanto nos sonhos, quanto na vigília. Dessa forma, tudo se passa como se na vigília também estivéssemos num sonho: a cisão consciente/inconsciente não nos deixa acordar e recuperar nossa autonomia.
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[1] É verdade, entretanto, que já tive sonhos em que fiquei "preocupado": ou seja, aparentemente, esse sonho ocorreu à semelhança da vigília, em que um determinado fato ocorria paralelamente à minha consciência, que se movia, ela própria, independentemente do fato que se desenrolava: por exemplo, enquanto alguém me ameaçava, eu examinava a situação, por meio de pensamentos...Mas parece não ser isso o que ocorre na fase intermediária...

sexta-feira, 25 de maio de 2007

Situacionismo...novas considerações (2)

A crítica ao fetichismo somente pode ser pensada dentro da reflexão sobre a linguagem. Ou, seja, para Debord, ambas as reflexões são uma só, o que implica dizer que a reificação se dá dentro e a partir dos mecanismos da linguagem. O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupa integralmente a vida social e pode ser entendido como o contrário do diálogo (do "antagonismo", na acepção de Zizek - podemos estabelecer aqui também um diálogo com Habermas). Debord afasta-se, entretanto, das vanguardas artísticas, na medida em que, para ele, o inconsciente no pós-modernismo, perde a negatividade (conforme Jameson, "inconsciente colonizado").
"Daí a necessidade de se proceder à "elaboração consciente do desejo" e de um novo horizonte com base no qual a crítica da reificação precisa ser feita: uma nova linguagem comum, o diálogo nprático, uma nova comunicação." (in Reificação e Linguagem em Guy Debord - João Emiliano Fortaleza de Aquino)
A superação do fetichismo, da reificação e da alienação tem como pressuposto a recuperação do "jogo criativo e prático da comunicação e do diálogo" que tem no espetáculo seu antagonista mais acabado.
Debord também pensa a Sociedade do Espetáculo como aquela que põe fim à linearidade do tempo e à noção de progresso, que ele localiza ter sido fundada, dentro do Ocidente, na Grécia antiga. Se as sociedades agrícolas eram regidas pela noção de tempo cíclico, os "senhores de Atenas" promoveram uma ruptura, pois, assumindo o poder e tomando para si seus próprios destinos - o que pressupõe uma vida autônoma e fundada no diálogo - puderam pensar suas prórpias histórias (individuais e coletiva). Portanto, Debord considera que a própria noção de história finca sua raízes na possibilidade do diálogo. E é nesse sentido que o espetáculo inaugura um pseudo-tempo cíclico (fim da história, fim da política, percepção de que nada vai mudar etc.).

Situacionismo...novas considerações

Em outra mensagem, havia levantado a questão acerca do caráter simbólico da existência moderna e suas formas de contestação, também voltadas para a dimensão cultural.
Gostaria de acrescentar novos elementos a essa indagação.
O situacionismo é uma resposta ao problema do fetichismo (Marx), reificação (Lukacs) e da alienação. Para outros autores não marxistas (Weber, por exemplo), esse problema também assume uma posição central, quando chamam a atenção para a racionalidade crescente – que subtrai o sentido da vida – para a especialização dos saberes e a crescente autonomia das esferas da ação social (por exemplo, da arte), que se movem por lógicas próprias. Em, Simmel, o mesmo fenômeno guarda implicações quase transcendentais, pois sua análise trata da oposição entre os “impulsos vitais” e as “formas” pelas quais esses impulsos se manifestam.
Pois bem, essa temática é também o cerne dos movimentos artísticos de vanguarda do início do século XX: o futurismo (1909), o dadaísmo (1916) e o surrealismo (1924). Para esses movimentos de vanguarda, trata-se de unir a arte à vida, buscando-se a superação da separação entre as “esferas” (numa linguagem weberiana), retomando e conferindo um sentido à própria vida e suas manifestações (cultura). De uma certa forma, a proposição é negar a própria arte – como até então esta era concebida – fazendo com que “vida” (cotidiana) e “arte” sejam uma só: é a superação da existência alienada e da reificação. Esse é o cenário em que o impulso situacionista ocorre. No pós-II Guerra Mundial, as vanguardas (ou melhor suas manifestações, os signos por estas elaborados ou, numa linguagem “à la Simmel”, suas “formas”) são apropriadas ou integradas pelo sistema ideológico. Os situacionistas iniciam suas reflexões nesse momento, ao recusar essa integração: buscam a retomada do projeto vanguardista, porém em um outro registro. A reflexão estética irá assumir contornos cada vez mais políticos...
"A arte será assim ultrapassada, conservada e superada numa atividade mais complexa.(...)Seus elementos poderão se reencontrar aí parcialmente, mas transformados, integrados e modificados pela totalidade." (IS, n.4)

quinta-feira, 24 de maio de 2007

Texto do prof. Sérgio Adorno sobre a atual situação da USP

Achei muito interessante, e uma visão um tanto quanto ponderada... Vale a pena divulgar!!

A USP E A DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Prezados(as) colegas:
Prezados(as) membros do Conselho Departamental e do Colegiado de Pós-Graduação,

Venho, como cada um de nós, acompanhando com enorme apreensão os rumos dos acontecimentos desde a ocupação do prédio da Reitoria da USP.
Não quero entrar na discussão a respeito do mérito das reivindicações estudantis. Como todos nós, persisto acreditando na autonomia universitária, antes de tudo da pesquisa e do ensino, com apoio na autonomia administrativa e orçamentária. Igualmente, reconheço princípios de justiça em movimentos que cuidam defender a pertinência do ensino público assim como lutam pela melhoria das condições que permitam a realização das atividades-fim (ensino, pesquisa e extensão) e das atividades-meio (gestão administrativa) com vistas à formação de profissionais e pesquisadores capazes de responder aos desafios postos por uma sociedade cada vez mais sequiosa por justiça social.
O que me parece estar em discussão não são os fins do movimento, mas seus meios. Pessoalmente, como pesquisador que venho há anos estudando violência e a violação de direitos humanos, não posso, sob qualquer hipótese, deixar de reconhecer que o ato de ocupação fez apelo à violência. Mesmo que a atitude das autoridades universitárias tenha sido arbitrária e violenta em não atender prontamente os alunos – não as estou julgando, até porque não disponho de informações suficientes para fazê-lo –, um ato violento não justifica outro. Por que entendo que a ocupação valeu-se de meios violentos? Porque impõe, pelo uso ou ameaça arbitrários do uso da força, barreiras ao livre acesso daqueles(as) aos quais a comunidade universitária, pelo sim ou pelo não, confiou o governo de nossas atividades. Impedi-los de assumir seus postos, é impedi-los não apenas de responder por seus atos, inclusive o de zelar pelo cumprimento das leis e regulamentos que nos regem, como também o de poder negociar conflitos. Nunca é demais lembrar, o uso arbitrário da violência impõe o silêncio, o mais insidioso dos arbítrios porque impossibilita o outro de expressar-se, vale dizer de pensar criticamente e agir com sabedoria política.
Não é de se esperar que, em um espaço social e institucional onde viceja, por excelência, a ciência – como é a universidade – a violência seja recurso de pressão e imposição da vontade de uns contra a vontade de outros, por contraste ao recurso à persuasão e ao convencimento pela palavra, atributos da razão.
No decorrer dos acontecimentos, sei que foram feitos esforços para uma saída do impasse. Até onde tenho acompanhado, as autoridades universitárias estão tendentes a negociar e a atender parte das reivindicações, desde que o prédio seja desocupado. Por sua vez, os alunos – cuja representatividade política não me parece claramente definida haja visto o documento apócrifo publicizando as reivindicações logo no início do movimento (afinal, o DCE assumiu a liderança do movimento?) –, não parecem dispostos a aceitar a exigência da Reitoria, pretendendo inclusive explicitação de sua posição face aos decretos governamentais, o que parece ter sido atendido com o documento subscrito pelos três reitores das universidades estaduais, divulgado pela mídia impressa e eletrônica no final da semana passada e inserido no site da USP.
Diante do prosseguimento do impasse, à Reitoria pareceu não restar outra solução que não fosse recorrer à justiça para recuperar a posse do prédio. Se não o fizesse, poderia ser judicialmente interpelada, inclusive pelo Ministério Público, por improbidade administrativa.
Decisão judicial determinou a reintegração. Cabe, portanto, o cumprimento da decisão, como se espera no estado democrático de direito.
Não sejamos ingênuos, porém: a execução da decisão judicial implica recurso ao poder coercitivo, cuja atribuição é da competência legal da Polícia Militar. Sabemos que, se houver resistência dos alunos – e tudo indica que possa haver – as conseqüências poderão ser imprevisíveis, sobretudo para a integridade física de quem quer que seja e, no mínimo, para a preservação do patrimônio público e tudo o mais que esteja sob a guarda e tutela das autoridades universitárias, como documentos e registros oficiais.
Não sem razão, a comunidade uspiana guarda em sua memória as intervenções violentas da polícia (civil e militar) durante a ditadura. Tem motivos para desconfiar do apelo ao poder coercitivo mediante o uso – ainda que legítimo porque regulamentado no estado democrático de direito – da violência, mesmo que seja para o cumprimento de decisão judicial. Essa a razão pela qual foi produzida a moção, por iniciativa de docentes da FFLCH, que refuta “qualquer ação violenta de desocupação do prédio”.
Refleti sobre o documento e decidi não subscrevê-lo, porque creio que ele é insatisfatório. Ele silencia sobre questão fundamental. Ao silenciar, hesita sobre o papel das leis e do direito em sociedades democráticas.
De fato, também guardo profundas desconfianças quanto ao recurso à polícia militar. Igualmente receio que seu emprego possa produzir resultados indesejados, mormente porque – os estudos que venho desenvolvendo assim o indicam – não estou convencido de que a polícia militar possa exercer seu papel – neste caso, o de cumprir decisão judicial – sem apelo ao uso abusivo da força física. E, se compararmos a experiência internacional, por mais preparadas que as forças policiais sejam não é raro que intervenções em movimentos de protesto coletivo resultem em feridos, quando não em mortos. Inclino-me também à solução negociada.
O que a moção não diz é como a decisão judicial vai ser cumprida sem o recurso ao poder coercitivo, enquanto a resistência à desocupação se mantiver.
Esse silêncio pode ser interpretado de vários modos. Chamo a atenção para apenas três: primeiramente, a moção não aceita a decisão judicial. Bem, em tese, isso é legítimo. Se é assim, por que não propôs, como seria esperado no estado democrático de direito, o recurso à instância judicial superior para barrar os efeitos da decisão? Assim, seria suspenso o cumprimento da decisão e as negociações correriam por conta do livre jogo político. Poder-se-ia argumentar que a intermediação judicial é morosa. Todavia, não tem sido assim em casos de extrema urgência política, que envolvem decisões que não podem ser postergadas, tanto assim que o pedido de reintegração de posse mereceu resposta imediata. Eu confesso que me sentiria mais confortável se poucas palavras tivessem sido ditas a respeito.
Alternativamente, a moção reconhece a decisão judicial e indica por que meios o poder coercitivo vai ser exercido já que negociação e entendimento, por sua própria natureza, estão excluídos dessa modalidade de poder. Certamente, é preciso certa dose de imaginação política para anunciá-los, mas nunca é demais tentar essa sorte de “poder coercitivo alternativo”.
Mais preocupante, no entanto, é que o silêncio – seja quais forem suas razões – pode sugerir que a moção não reconhece legitimidade à intermediação judicial. Neste caso, pode-se estar sugerindo que a Reitoria não deveria ter ido bater à porta do poder judiciário. Mas, se ela não fosse, estaria deixando de cumprir leis que reclamam deveres e responsabilidades no trato da coisa pública. Em outras palavras, poder-se-ia estar dizendo que a negociação, em uma sociedade democrática, prescinde de leis, de pactos, da resolução de conflitos pelas vias institucionalmente reconhecidas como imperativas porque legítimas já que legitimadas pelo processo político que as assim constituiu.
Se eu, em um exercício algo arbitrário de aproximação, transpuser esse raciocínio para o domínio da violência urbana – com todo o cenário que os(as) colegas bem conhecem e acompanham, se não através de estudos que alcançam os mais variados objetos ao menos através do noticiário cotidiano – serei levado a descrer nas leis, nas agências encarregadas de controle da ordem pública e deslegitimar a justiça criminal como o lugar onde – a despeito de todas as críticas que vimos acumulando nas duas últimas décadas – é possível enfrentar os problemas e lutar por resolvê-los, ou seja encontrar saídas no interior da ordem constituída e não en dehors. Caso contrário, paradoxalmente, eu serei levado a atribuir a uma certa ordem natural – o jogo de forças que inclusive apela para armamentos cada vez mais poderosos, a “guerra de todos contra todos” etc. – o lugar onde o consenso pode ser conquistado (já que estamos em guerra).
Não há solução para o problema da violência e do crime urbano que não passe pela polícia e pela justiça criminal; não há solução, neste domínio, que possa prescindir do uso da força e do poder coercitivo legitimamente constituído, emprego esse utilizado por quem legalmente investido para tanto e exercido de modo responsável, com respeito aos limites legais, com prestação de contas à sociedade civil e com a mais resoluta recusa às formas abusivas e excessivas de seu emprego. Não é o poder coercitivo que é ilegítimo ou moralmente reprovável por sua própria natureza; o que o torna ilegítimo é ou a ilegitimidade de quem o emprega por não estar legalmente investido, ou a forma arbitrária ou violenta de que se reveste.
Em suma, entendo que há sim violência nos acontecimentos envolvendo a ocupação do prédio da Reitoria porque os atores não estão legalmente investidos do direito de recurso à violência para solução de conflitos nas relações sociais e institucionais. Mais preocupante é constatar que o apelo à violência coloca a comunidade universitária no mesmo espaço jornalístico destinado à violência urbana cotidiana. Ao invés de comparecer ao caderno de cultura, destinado à produção da obra de arte e da ciência e tecnologia, passamos agora a fazer figuração no noticiário policial. Espero que este não seja o prenúncio final de um projeto grandioso que começou com uma elite política de vanguarda, visionária e capaz de pensar um projeto de universidade décadas à frente – como foi o projeto de criação da USP – e culmine tristemente numa grande repartição pública tocada por “especialistas sem espírito, gozadores sem coração” (Weber).
No impasse da USP, não há solução que não passe pela recusa à violência, parta de onde vier. Mas, igualmente, não há solução que passe pela suspensão das leis e das decisões judiciais. Não há meia-democracia, senão seremos levados a dizer que há meia-ditadura.
Espero que a multiplicação de atores, para além da universidade – classe política, OAB e Ministério Público – possa ajudar a desfazer o nó. Está nas mãos dos alunos demonstrarem maturidade política neste delicado momento. A desocupação do prédio é o melhor sinal na disposição para negociar. Não se trata aqui de contabilizar vitórias e derrotas. Para os alunos, a mobilização da sociedade e sua encenação no espaço público, inclusive mediático, colocam em evidência suas reivindicações para além dos muros da USP. Pressionam pela discussão de temas candentes como o das relações entre o governo de estado e as universidades. Contribuem, ainda que de modo torto, para a composição da agenda política. Para as autoridades universitárias, a dura lição das ruas – a da urgência política, a do diálogo permanente, constante e mediado com todas as lideranças da universidade, sem o que episódios e acontecimentos como este tenderão a se repetir com mais e maior freqüência.
Por fim, espero que:
1 – as negociações desta segunda-feira (21/05) cheguem a bom termo, o que inclui a desocupação do prédio;
2 – seja restabelecida a liderança legítima do movimento estudantil;
3 – seja constituída uma comissão de alunos, professores e funcionários para encaminhamento das demandas, mais propriamente relacionadas com as condições de trabalho, de ensino e de pesquisa;
4 – seja constituída uma comissão, igualmente tripartite, para estudar com maior densidade as iniciativas do governo estadual para que se possa compreender seu alcance e extensão, inclusive eventuais motivações latentes, não manifestas;
5 – que se possa, mais à frente, mobilizar, ao menos a comunidade da USP, para refletir sobre um projeto universitário para as próximas décadas.

Sérgio Adorno
Professor Titular de SociologiaCoordenador do NEV-CEPID/USP

Grupo de Estudos...

Pessoal,
Complementando o belo texto de Novalis, modestamente ressucitei nosso pequeno texto sobre o Grupo de Estudos (abaixo). A idéia aqui é que cada um promova, sempre que quiser, qualquer alteração (por exemplo, suprimindo ou adicionando algum autor, ou alterando a ordem; ou ainda, polemizando com o próprio texto !).
"Grupo de estudos de Teoria Social Contemporânea





1. JUSTIFICATIVA

Choques históricos recentes sinalizaram a erupção da contemporaneidade. Uma nova configuração tecnológica, econômica, política e social emergiu e solapou as estruturas simbólicas da modernidade. Novas formas, marcadas pela fluidez e instabilidade, desafiam a Teoria Social moderna e põem em questão antigos paradigmas, como família, classes sociais, Estado, partidos políticos, sindicatos etc. E mesmo a separação analítica sujeito/objeto é relativizada, propiciando o ressurgimento das religiões em um ambiente de degradação ambiental e incerteza quanto ao futuro do planeta.
A reflexão sociológica não se encontra alheia a esses fenômenos contemporâneos: autores pouco estudados no curso de graduação vêm construindo diferentes abordagens acerca desses problemas, o que torna essencial o desprendimento das amarras burocrático-institucionais para que possamos acompanhar - e talvez desenvolver – as reflexões que estejam à altura de tais desafios.

2. EIXO TEMÁTICO

Para uma abordagem aprofundada e objetiva, torna-se necessária a definição de certos temas, que constituirão um eixo para a seleção dos autores e textos e para o desenvolvimento das reflexões.
Para tanto, ficaram definidos as seguintes indagação e eixos temáticos, intimamente relacionados entre si e que não serão, necessariamente, tratados de maneira separada:
1. a (im-)possibilidade da reconstrução da via coletiva e/ou política de contestação aos paradigmas do capitalismo tardio, bem como os caminhos que essa via poderia tomar;
2. a validade (ou não) dos conceitos de fetichismo, alienação e racionalidade, bem como as novas abordagens teóricas acerca da natureza desses fenômenos.
3. as alterações na subjetividade e na construção do “eu” em razão da emergência de uma nova configuração tecnológica, econômica e cultural.

3. METODOLOGIA

As reuniões serão realizadas quinzenalmente e privilegiarão uma atmosfera de livre debate, reflexão ampla e não metódica, bem como a soma dos conhecimentos e experiências dos participantes nas mais diversas áreas. Dessa forma, a seleção de textos e autores funcionará com eixo temático, não prejudicando a interdisciplinaridade e a livre associação com outros autores já tratados ou quaisquer outros. Não obstante, enfatize-se a necessidade de manter as linhas gerais já definidas, assim como a necessidade de todos promoverem um prévio preparo individual para as reuniões, mediante a leitura dos textos selecionados e, sempre que possível, da busca de informações gerais acerca do autor, de seu contexto e, sobretudo, de informações acerca dos diálogos e debates que o autor tenha travado.

4. AUTORES

1. Jean Baudrillard (“seminário” de apresentação do autor e das obras “A Sociedade de Consumo”, “Simulacros e Simulação” e “Sombra das Maiorias Silenciosas”);
2. Situacionismo, Guy Debbord e anarquismo cultural (texto base para consulta: “A Sociedade do Espetáculo” e “Comentários à Sociedade do Espetáculo” – recomenda-se pesquisa acerca do autor, bem como do Situacionismo e das manifestações modernas de anarquismo cultural – Zona Autônoma Temporária, intervenções urbanas etc).
3. Zygmunt Bauman (textos: “Modernidade Líquida” e “Identidade”).
4. F. Jameson e Jean-François Lyotard (textos: “Pós-Modernismo: a lógica cultural do Capitalismo tardio” e “A cultura do dinheiro”; “A Condição Pós-Moderna” )
5. C. Lasch , R. Sennett e Daniel Bell;
6. Slavoj Zizek.(textos base: “Multiculturalismo, ou a lógica cultural do capitalismo multinacional” e qualquer dos demais textos do livro “Zyzek Crítico – Política e Psicanálise na Era do Multiculturalismo”; verificar ainda as obras de Zyzek: “Arriscar o impossível – conversas com Zyzek”)
7. Ernesto Laclau. (texto sugerido: “Hegemonia Y Estrategia Socialista”; ver ainda o livro que traz o debate Zyzek x Laclau x Bulter: “Contingency, Hegemony, Universality”).
8. G. Agamben (textos: “Homo Sacer” e “Estado de Exceção”)
9. Deleuze
10. C. Castoriadis
11. J.Habermas (texto: “O Discurso Filosófico da Modernidade”).
12. Niklas Luhmann"


















Possível princípio norteador

Amigos,
escrevo aqui um dos fragmentos logológicos de Novalis, o de número 3, pois acho que expressa muito bem os intentos das discussões deste blog.

"A letra é apenas um auxílio da comunicação filosófica, cuja essência própria consiste no suscitamento de uma determinada marcha de pensamento. O falante pensa produz - o ouvinte reflete - reproduz. As palavras são um meio enganoso do pré-pensar - veículo inidôneo de um estímulo determinado, específico. O genuíno mestre é um indicador de caminho. Se o aluno é de fato desejoso da verdade, é preciso apenas um aceno, para fazê-lo encontrar aquilo que procura. A exposição da filosofia consiste portanto em puros temas - em proposições iniciais - princípios. Ela é só para amigos auto-ativos da verdade. O desenvolvimento analítico do tema é só para preguiçosos ou inexercitados. Estes últimos precisam aprender a voar através dele e a manter-se numa direção determinada. (...) Genuíno filosofar-em-conjunto é portanto uma expedição em comum em direção a um mundo amado - no qual nos revezamos mutuamente no posto mais avançado, que torna necessária a tensão máxima contra o elemento resistente, no qual voamos".

Introdução à Sociedade do Espetáculo

DEBORD E A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
Nilldo Viana
Guy Debord nasceu em 1931 e suicidou-se em 1994. Apesar de ter escrito sobre sua própria vida em seu livro Panegírico, não nos deixou muitas informações sobre sua história. Alguns fatos fragmentários, tal como o seu gosto por bebidas alcóolicas, as suas relações com criminosos comuns e políticos, sua recusa da sociedade moderna. Sabemos, porém, de sua ação política através da Internacional Situacionista e de seu pensamento através de suas obras, em especial, A Sociedade do Espetáculo. Aqui nos interessa sua análise da sociedade moderna, do que ele denomina sociedade do espetáculo. Além de alguns textos menos importantes, a sua visão da sociedade moderna está expressa de forma mais acabada em A Sociedade do Espetáculo. Está é também uma das principais obras que expressam as concepções da Internacional Situacionista, organização contestária da qual Debord foi um dos mais destacados representantes e que existiu de 1957 a 1972. Debord busca na vida cotidiana a base da contestação social de nossa época. O espetáculo produzido pela sociedade capitalista fundamentada na mercantilização de tudo e no fetichismo generalizado abre caminho para sua teoria crítica da sociedade moderna, da qual trataremos no presente ensaio. A Sociedade Espetacular Marx afirmou que, à primeira vista, a sociedade capitalista aparece como uma “imensa coleção de mercadorias” (1). Parafraseando Marx, Debord afirma que “toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” (Debord, 1997, p. 13). O que é o espetáculo? Debord nos apresenta inúmeras características do espetáculo. Ele “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediadas por imagens”; é também uma cosmovisão; resultado e projeto do capitalismo; o “modelo atual da vida dominante na sociedade”; a “afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre desta escolha; “a justificativa total das condições e dos fins do sistema existente”; “a presença permanente dessa justificativa, como ocupação da maior parte do tempo vivido fora da produção moderna”; o sentido da prática total; “a principal produção da sociedade atual”; herdeiro da filosofia baseada nas categorias do ver; “sonho mau”; etc., etc. Richard Gombim esclarece com mais precisão o significado do espetáculo: “a degradação e a decomposição da vida cotidiana correspondem à transformação do capitalismo moderno. Nas sociedades de produção do século XIX (cuja racionalidade era a acumulação de capital), a mercadoria tinha-se tornado um fetiche na medida em que era considerada como figurando um produto (objeto), e não uma relação social. Nas sociedades modernas, em que o consumo é a ultima ratio, todas as relações humanas têm sido impregnadas da racionalidade do intercâmbio mercantil. É o motivo por que o vivido se afastou ainda mais numa representação: tudo aí é representação. É a este fenômeno que os situacionistas chamam espetáculo (a concepção de Lefebvre é mais neutra: o espetáculo moderno, para ele, deve-se simplesmente à atitude contemplativa dos seus participantes). O espetáculo instaura-se quando a mercadoria vem ocupar totalmente a vida social. É assim que, numa economia mercantil-espetacular, à produção alienada vem juntar-se o consumo alienado. O pária moderno, o proletário de Marx, não é já tanto o produtor separado do seu produto como o consumidor. O valor de troca das mercadorias acabou por dirigir o seu uso. O consumidor tornou-se consumidor de ilusões”(Gombim, 1972, p. 82). A sociedade moderna passa a ser compreendida, então, como o reino do espetáculo, da representação fetichizada do mundo dos objetos e das mercadorias. O espetáculo, assim, consagra toda a glória ao reino da aparência. Ele domina os homens a partir do momento em que a economia desenvolveu-se por si mesma, sendo o reflexo fiel da produção das coisas e a objetivação infiel dos produtores. Esta temática de Debord vai de encontro com as teorias da sociedade de consumo. Baudrillard, por exemplo, irá tratar do mundo dos objetos e da esfera do consumo. Lefebvre também não deixou de lado o problema da sociedade de consumo, qualificada por ele de “sociedade burocrática de consumo dirigido”. Erich Fromm irá analisar a passagem da valorização do ser para o ter. Arendt fez considerações sobre a sociedade de consumidores e assim por diante (1). Mas a sociedade de consumo para Debord é a sociedade do espetáculo, da reificação, para utilizar expressão lukacsiana. Porém, isto difere sua abordagem das demais, pois aqui a passagem do ser para o ter é complementada pela passagem para o parecer. Nesta sociedade, há a produção circular do isolamento (através do automóvel, da televisão, etc.). Desta forma, a temática da separação e do isolamento assumem um papel central na concepção de Debord. O consumo e a imagem (representação reificada) ocupam o lugar da ação direta, do diálogo. Provocam o isolamento e a separação. Debord retoma a discussão em torno do fetichismo da mercadoria. A mercadoria surge como força que ocupa a vida social e constitui a economia política, “ciência dominante e ciência da dominação”. “O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social (...). A produção econômica moderna espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura” (Debord, 1997, p. 31). A abundância da produção de mercadorias produz a preocupação da classe dominante com o proletário enquanto consumidor, criando o “humanismo da mercadoria”, encarregado do “lazer” do trabalhador. “Assim, ‘a negação total do homem’ assumiu a totalidade da existência humana” (Debord, p. 32). Neste contexto, o consumo deve aumentar sempre, mas este aumento só é possível pelo motivo de que contem em si uma privação, “a privação tornada mais rica”. O consumismo derivado daí leva a uma “sobrevivência ampliada”, produzindo também a produção de pseudo-necessidades para garantir esse processo de expansão da produção e do consumo. Na sociedade em que domina o espetáculo, a oposição a ela também é envolvida por ele. As lutas “espetaculares” são ao mesmo tempo falsas e reais. São falsas por não colocarem em questão a sociedade do espetáculo e por serem, elas mesmas, espetaculares. São reais pelo motivo de que expressam lutas reais entre classes ou frações de classes. Segundo Debord, A resistência das regiões subdesenvolvidas não difere muito desta caso. Tal como ele colocou: “a sociedade portadora do espetáculo não domina as regiões subdesenvolvidas apenas pela hegemonia econômica. Domina-as como sociedade do espetáculo. Nos lugares onde a base material ainda está ausente, em cada continente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície social. Ela define o programa de uma classe dirigente e preside sua formação. Assim como ela apresenta os pseudo-bens a desejar, também oferece aos revolucionários locais os falsos modelos de revolução” (p. 39). A sociedade do espetáculo também transforma a revolta em rebelião puramente espetacular, através da transformação da insatisfação em mercadoria. O mesmo ocorre, com algumas diferenças de pormenor, no capitalismo de estado (2). Segundo Debord, “a satisfação denuncia-se como impostura no momento em que se desloca, em que segue a mudança dos produtos e a das condições gerais de produção. Aquilo que, com o mais perfeito descaramento, afirmou sua própria excelência definitiva transforma-se no espetáculo difuso e também no espetáculo concentrado. É apenas o sistema que tem que continuar: Stálin tanto quanto a mercadoria fora de moda são denunciados por aqueles mesmos que os impuseram. Cada nova mentira da publicidade é também a confissão da mentira anterior” (Debord, p. 47). Neste contexto, Debord analisa o marxismo a partir da obra de Marx. Coloca em evidência o ponto de vista revolucionário da teoria de Marx e sua transformação em ideologia, tanto pela social-democracia quanto pelo bolchevismo. Debord faz uma severa crítica a diversas correntes políticas, tais como o anarquismo, a social-democracia, o kautskismo, o leninismo, o stalinismo, o trotskismo. Para ele, a social-democracia e o bolchevismo inauguram a ordem de coisas que expressa o espetáculo moderno: “a representação operária opôs-se radicalmente à classe” (Debord, p. 68). Qual é a alternativa para a sociedade do espetáculo? Como se pode trilhar um caminho alternativo que não passe pela social-democracia, pelo bolchevismo ou pelo anarquismo? Debord retoma a resposta dada já na década de vinte pelos chamados “comunistas conselhistas” (Korsch, Pannekoek, Mattick, Rühle, etc.) (3): os conselhos operários são a forma de emancipação proletária. Tais conselhos rompem com a idéia de representação, tanto parlamentar (social-democracia) quanto a vanguardista-partidária (bolchevismo). Segundo Debord, “a organização revolucionária só pode ser a crítica unitária da sociedade, isto é, uma crítica que não pactua com nenhuma forma de poder separado, em nenhum ponto do mundo, e uma crítica formulada globalmente contra todos os aspectos da vida social alienada” (p. 85). Assim, ele propõe os conselhos operários como alternativa global para a alienação global: “quando a realização sempre mais avançada da alienação capitalista em todos os níveis, ao tornar sempre mais difícil aos trabalhadores reconhecerem e nomearem sua própria miséria, os coloca na alternativa de recusar a totalidade de sua miséria, ou nada, a organização revolucionária deve ter aprendido que não pode combater a alienação sob formas alienadas” (Debord, p.85). Aqui notamos um aspecto do situacionismo e do pensamento de Debord que continua extrema e ortodoxamente marxista: “vemos o que esta concepção tem de radical; o corte que ela opera com todo o movimento de esquerda deste meio século confere-lhe um tom milenarista, herético. Sobre um ponto, entretanto, ela parece dar ainda prova de ortodoxia: o sujeito revolucionário, o portador da revolução, o emancipador, permanece, para a Internacional Situacionista, o proletariado” (Gombin, 1972, p. 86). Enfim, estas são as principais colocações de Debord sobre a sociedade do espetáculo e de suas características.
Observações Finais
A obra de Debord representa uma determinada concepção de sociedade moderna. Trata-se de uma concepção que parte de uma perspectiva crítica e de oposição a esta sociedade. Debord se filia ao chamado esquerdismo, sendo um representante da Internacional Situacionista. Porém, ele faz sua crítica da sociedade moderna de forma diferente do que a esquerda tradicional costuma fazer. Os conceitos mais importantes para a esquerda tradicional são os de exploração, imperialismo, etc., e o locus privilegiado de debate é a esfera da economia e da política. Isto será criticado de forma intensa pelos representantes da Internacional Situacionista e por Debord em particular. A separação entre economia e política e entre estas “esferas” da realidade e as demais. A própria separação é questionada como um produto da ideologia espetacular. A realidade foi separada mas não existe tal separação na realidade. Debord focaliza sua crítica à sociedade moderna concebendo-a como sociedade do espetáculo e esta se caracteriza pela generalização do fetichismo da mercadoria que invade a vida cotidiana. A crítica da vida cotidiana torna-se o fundamento da crítica à sociedade moderna. O espaço (e juntamente com ele o urbanismo, a arquitetura, etc.), o tempo, o lazer, a cultura, a arte, a comunicação e tudo o mais é perpassado por esta alienação generalizada da sociedade contemporânea. Tendo em vista que a alienação é total, então Debord propõe a contestação total do capitalismo moderno (Debord, 1961). Segundo Gombin, “esta consiste numa multidão de atos espontâneos tendentes a modificar radicalmente o espaço-tempo atribuído pela classe dominante. A nova revolução não poderia, pois, aspirar à simples tomada de poder, a uma renovação da equipe ou da classe dirigente: é o próprio poder que é necessário suprimir para realizar a arte, que é o objetivo último. A realização da poesia, que será também a sua ultrapassagem, exige, evidentemente, um reconhecimento dos seus próprios desejos (asfixiados pela sociedade do espetáculo e rebaixados a pseudo-necessidades): a palavra livre, a comunicação verdadeira (e não mais unilateral e manipulada), a recusa do trabalho produtivo como trabalho produtivo, a recusa igualmente da hierarquia, de toda a autoridade e de toda especialização. O homem libertado não será mais o homo faber, mas o artista, quer dizer, o criador das suas próprias obras. A revolução, será, portanto, um ato de afirmação da subjetividade de cada um no terreno da cultura, que é o terreno mais vulnerável da civilização moderna. Porque é a arte que revela em primeiro lugar o estado de decomposição dos valores: o que Marx e Engels não viram ou não quiseram ver; ora, a cultura, ao mesmo tempo que reflete as forças dominantes da sua época, é também e já o projeto de sua ultrapassagem. Os grandes artistas foram também grandes profetas revolucionários: Latréamont, Rimbaud, que ultrapassaram a sua época na e pela sua obra. Trata-se de retomar esse fio que, depois, se perdeu (pois que a obra de arte moderna se tornou uma mercadoria como qualquer outra). Trata-se de recriar uma linguagem de comunicação na comunidade do diálogo: a contestação será também a procura dessa linguagem, é o motivo por que será antes de mais uma revolução cultural. O dadaísmo e o surrealismo começaram a destruir a linguagem (alienada) antiga: mas não souberam encontrar um novo estilo de vida. O seu fracasso explica-se pela imobilização do assalto revolucionário desse primeiro quarto de século. (...). Parafraseando os esquerdistas, poderíamos dizer que os homens serão felizes no dia em que forem todos artistas” (Gombin, 1972, p. 92-94). Desta forma, a modernidade é a sociedade do espetáculo. O reino do fetichismo e do consumo. Um mundo fragmentado, separado. A modernidade, tal como Lefebvre já havia colocado, é a última estratégia da dominação burguesa. Neste sentido, para Debord, a sociedade moderna é a negação da humanidade e somente a recuperação desta poderá promover a negação da sociedade moderna. Enfim, trata-se de uma concepção severa e verdadeira sobre a sociedade moderna e a modernidade. Uma acusação do seu caráter alienante, fetichista, espetacular.
Bibliografia
ARENDT, Hanna. A Condição Humana. 8a edição, Rio de Janeiro, Forense, 1997.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
DEBORD, Guy. Considerações sobre a Sociedade do Espetáculo. In: A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
DEBORD, Guy. Panegírico. Lisboa, Antígona, 1995.
DEBORD, Guy. Perspectives de Modification Consciente de la vie Quotidiene. In: Internacionale Situationniste, nº 6, Agosto de 1961.
FROMM, Erich. Ter ou Ser? 10a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1988.
GOMBIN, Richard. As Origens do Esquerdismo. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1972. LEFEBVRE, Henri. A Vida Cotidiana no Mundo Moderno. São Paulo, Ática, 1990.
LÊNIN, W. O Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo. São Paulo, Global.
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. 2a edição, Rio de Janeiro, Elfos, 1989.
MARX, Karl. O Capital. 3a edição, vol. 1, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
VIANA, Nildo. O Capitalismo de Estado da URSS. in: Revista Ruptura.
VIANA, Nildo. A Utopia Concreta Contra o Realismo Político. in: Revista Ruptura.
Notas
(1) O processo de mercantilização das relações sociais é o elemento fundamental para explicar a sociedade de consumo e está intimamente ligado com a questão da composição orgânica do capital. Sobre a mercantilização das relações sociais, cf. Viana, Nildo. A Utopia Concreta Contra o Realismo Político. in: Revista Ruptura.
(2) Debord é um dos teóricos que defendem que o regime da antiga União Soviética, Leste Europeu, China, Albânia, etc., era um capitalismo de estado, não tendo nada a ver com uma sociedade autenticamente socialista. Os primeiros defensores desta tese foram os esquerdistas russos de oposição ao bolchevismo e os esquerdistas alemães, holandeses e italianos, duramente criticados por Lênin, em O Esquerdismo, A Doença Infantil do Comunismo.
(3) Os comunistas conselhistas também foram chamados de “comunistas de esquerda”, de “comunistas de princípios”, de “esquerdistas” e de “comunistas internacionalistas”. Fizeram feroz oposição ao regime soviético e ao leninismo, tanto do ponto de vista filosófico quanto político e econômico (sobre tal corrente e sua influência sobre a Internacional Situacionista, cf. o livro citado de Gombim).
Fonte: Núcleo de Pesquisa Marxista (http://www.npm.hpg.ig.com.br/ ).

quarta-feira, 23 de maio de 2007

Entrevista com Hakim Bey

Transcrevo uma entrevista com Hakim Bey, extraído do site Rizoma.


ENTREVISTA COM HAKIM BEY NA HIGH TIMES MAGAZINEZero Boy

Muito antes dele se tornar uma lenda “cult”, eu ouvi pela primeira vez o nome do misterioso e esquivo Hakim Bey quando girava o dial do rádio em Nova York. Ele foi mencionado em um programa da WBAI FM chamado “A Cruzada Moura Ortodoxa”. Mas logo, amigos estavam falando em surdina sobre suas buscas à Zona Autônoma Temporária. Intrigado, eu procurei pelo clássico underground de Hakim, T.A.Z., A Zona Autônoma Temporária: Anarquismo Ontológico e Terrorismo Poético (Autonomedia, po Box 568, Brooklyn, ny 11211). Eu o achei numa pequena livraria esotérica que tinha desde trabalhos de Emma Goldman até Aleister Crowley. Eu comecei a perguntar sobre a Sociedade do Anarquismo Ontológico e sobre esse enigmático Hakim Bey. Ninguém sabia como chegar ao efêmero Hakim. Ligar para os editores dele me deixou ainda mais frustrado.
Hakim Bey também lançou um CD declamado com música de Bill Laswell pelo selo Axiom, chamado também de TAZ. Então eu os contatei também - inutilmente. Então um dia eu acho um bilhete na minha cama dizendo para vir à Rua Mott às 9 da noite para uma entrevista. Como isso veio parar aí? Na Rua Mott, um carro anônimo encosta e me leva a um obscuro restaurante num porão em Chinatown, onde uma cabine privada com cortinas está separada, com um pequeno narguilé e um prato cheio de Bolas de Templo Nepalesas(1). Sou convidado a entrar.
HIGH TIMES: Hakim, de onde você é?
HAKIM BEY: Bem, a informação padrão (que é tudo que eu falo) é que eu era um poeta da corte de um principado sem nome no norte da Índia, que eu fui preso na Inglaterra por um atentado anarquista a bomba e que eu vivo em Pine Barrens, Nova Jersey, em um trailer da Airstream(2). Quando eu venho a Nova York eu fico num hotel em Chinatown.
HT: O que é a Zona Autônoma Temporária?
HB: A Zona Autônoma Temporária é uma idéia que algumas pessoas acham que eu criei, mas eu não acho que tenha criado ela. Eu só acho que eu pus um nome esperto em algo que já estava acontecendo: a inevitável tendência dos indivíduos de se juntarem em grupos para buscarem liberdade. E não terem que esperar por ela até que chegue algum futuro utópico abstrato e pós-revolucionário.
A questão é: como os indivíduos em grupos maximizam a liberdade sob as situações dos dias de hoje, no mundo real? Eu não estou perguntando como nós gostaríamos que o mundo fosse, nem naquilo em que nós estamos querendo transformar o mundo, mas o que podemos fazer aqui e agora. Quando falamos sobre uma Zona Autônoma Temporária, estamos falando em como um grupo, uma coagulação voluntária de pessoas afins não-hierarquizada, pode maximizar a liberdade por eles mesmos numa sociedade atual. Organização para a maximização de atividades prazeirosas sem controle de hierarquias opressivas.
Existem pontos na vida de todos que as hierarquias opressivas invadem numa regularidade quase diária; você pode falar sobre educação compulsória, ou trabalho. Você é forçado a ganhar a vida, e o trabalho por si só é organizado como uma hierarquia opressiva. Então a maioria das pessoas, todos os dias, tem que tolerar a hierarquia opressiva do trabalho alienado.
Por essa razão, criar uma Zona Autônoma Temporária significa fazer algo real sobre essas hierarquias reais e opressivas – não somente declarar nossa antipatia teórica a essas instituições. Você vê a diferença que eu coloco aqui?
No aumento da popularidade do livro, muitas pessoas se confundiram com esse termo e usaram ele como um rótulo para todo o tipo de coisa que ele realmente não é. Isso é inevitável, uma vez que o próprio vírus da frase está solto na rede (para usar metáforas de computadores). Se as pessoas usam erroneamente ele ou não isso não é tão importante, porque o significado está incrustado no termo. É como um vírus verbal. Ele diz o que significa.
HT: Uma Zona Autônoma Temporária necessariamente se abstém do uso do dinheiro?
HB: Isso é difícil em uma situação real, mas pode acontecer. O Rainbow Gathering (3), por exemplo, se abstém do uso do dinheiro. Isso é quase que uma garantia de um grau muito maior de autonomia temporária para as pessoas que estão participando.
Eles na realidade aumentam seu prazer saindo fora da economia de dinheiro/mercadorias.
HT: A imprensa ligou o fenômeno TAZ ao movimento cyberpunk. Você acha que a Internet é uma Zona Autônoma Temporária?
HB: Não. Um mal entendido muito peculiar veio à tona. A revista Time fez uma matéria sobre o ciberespaço que me citou erroneamente - o que me deixou particularmente feliz. Se a Time entendesse o que eu estava falando, eu seria forçado a reestruturar toda minha filosofia, ou talvez desaparecer pra sempre em desgraça.
Eles diziam que o ciberespaço era uma Zona Autônoma, e eu não concordo. Enfaticamente não concordo. Eu acho que a liberdade inclui o corpo. Se o corpo está em um estado de alienação, então a liberdade não é completa em nenhum sentido. O Ciberespaço é um espaço sem corpo. Ele é, de fato, um espaço abstrato e conceitual. Não existe cheiro nele, nem gosto, nem sentimento e nem sexo. Se qualquer uma dessas coisas existe lá, são apenas simulacros dessas coisas e não elas mesmas.
A única coisa que a Internet ou o cIberespaço podem ter com relação à Zona Autônoma Temporária é que eles são instrumentos ou “armamento” para alcançar a liberdade. Então é importante trabalhar para proteger as liberdades de expressão e comunicação que estão abertas neste exato momento pela Internet contra o FBI e Clinton e a “Infobahn” (um bom termo em alemão para designar a auto-estrada da informação). Cuidado para não ser atropelado na Infobahn! Comunicando-se por uma BBS(4), um grupo pode planejar um festival de maneira muito mais eficaz, alguma coisa como um Rainbow Gathering, estruturado nas chances para maximizar o potencial para o surgimento de uma TAZ real. A Internet também pode ser usada para montar uma rede econômica alternativa genuína. Trocas e permutas trilhadas na Internet em comunicações privilegiadas.
HT: Você pode explicar o “Terrorismo Poético”?
HB: Por terrorismo poético eu entendo ações não-violentas em larga escala que podem ter um impacto psicológico comparável ao poder de um ato terrorista - com a diferença de que o ato é de mudança de consciência. Digamos que você tem um grupo de atores de rua. Se você chamar o que você está fazendo de “performance de rua”, você já criou uma divisão entre o artista e a audiência, e você alienou de si mesmo qualquer possibilidade de colidir diretamente nas vidas diárias da audiência. Mas se você pregar uma peça, criar um incidente, criar uma situação, pode ser possível persuadir as pessoas a participar e a maximizar sua liberdade. É uma estranha mistura de ação clandestina e mentira (que é a essência da arte) com uma técnica de penetração psicológica de aumento da liberdade, tanto no nível individual quanto no social.
HT: Você pode fazer algumas sugestões especial ao leitor da HIGH TIMES para criar uma TAZ?
HB: Ok, tudo bem. Eu gostaria de dizer isso ao movimento canabista, e, em um nível mais amplo, eu gostaria de direcionar isto ao movimento libertário em geral, que é um aliado próximo, cruza e tem áreas de contingência com o movimento canabista.
Se os Libertários tivessem gasto os últimos quinze anos organizando redes econômicas alternativas para potencializar a emergência de uma Zona Autônoma Temporária e levá-la rumo a uma Zona Autônoma Permanente, ao invés de jogar o jogo fútil das políticas de terceiros, que é uma posição fracassada desde o início; se o movimento canabista tivesse colocado sua energia nos últimos quinze anos na organização de redes econômicas alternativas, não necessariamente baseadas em trocas “criminosas” de dinheiro por maconha mas nas necessidades e possibilidades básicas da vida real; se toda essa energia fosse direcionada nesse sentido, ao invés do que parece para mim uma quimera total, um fantasma totalmente abstrato chamado “poder político democrático legislativo” - então eu penso que estaríamos há muito no caminho claro da mudança revolucionária nessa sociedade.
Nessas circunstâncias, toda essa boa intenção e grande energia foi mal direcionada em um jogo - um jogo em que a autoridade cria as regras, e nas quais “eles” criaram as regras para que pessoas como eu e você não possam ganhar poder dentro desse sistema.
Agora isto é uma crítica anarquista que eu estou fazendo, com os motivos mais camaradas possíveis. Eu acho que é uma tragédia essa energia ter sido mal direcionada. Eu não acho que é tarde demais para acordar e ver o que está na verdade acontecendo(5) aqui.
Outro ponto que eu gostaria de falar é que a HIGH TIMES foi particularmente culpável durante a última eleição, quando conclamou seus leitores (incluindo uma grande porcentagem de usuários de maconha nesse país) a votar naquele Clinton filho da puta, baseado em um rumor extremamente suspeito: de que Al Gore, um conhecido mentiroso, hipócrita e embusteiro, cochichou pra alguns ativistas da maconha que ele estava do lado deles. E por isso, presumivelmente, milhares, se não milhões, de fumantes de maconha saíram e votaram em um outro bando de filhos da puta, se esquecendo toda a sabedoria do antigo slogan anarquista, “nunca vote, isso só encoraja os bastardos.”
Eu vou fazer uma aposta agora. Eu como a edição da revista em que isto será impresso se, sob a administração Clinton, existirem quaisquer melhoras na lei relacionada ao uso da cannabis por prazer. Pode haver um pequeno abrandamento no uso da maconha medicinal ou comercial. Mas não haverá abrandamento - de fato, somente haverá uma maior regulação - no uso da erva por prazer. Ok? E se isso não for verdade, eu como a porra da revista com uma merda de um leite e um açúcar.
HT: Isso seria um ato de terrorismo poético?
HB: Heh, heh.
HT: Você acha que o movimento canabista é contraproducente em alguns aspectos?
HB: Antes de qualquer crítica, eu preciso enfatizar que eu pertenço a uma religião em que a maconha é um sacramento, e eu sou um defensor vitalício de ações pró-maconha. Eu uso o termo “ação” ao invés de “legalização” por uma razão muito específica, na qual eu vou chegar. Daí eu ofereço crítica em um espírito construtivo. Eu quero que isso fique bem claro, como Nixon costumava dizer.
Nos anos em que vêm existindo um movimento pela legalização da maconha, todas as leis desse país ficaram piores e mais opressivas. No tempo em que vêm existindo um movimento de legalização da maconha, o preço da erva ficou proibitivamente caro por causa da Guerra às Drogas. Existe aí uma relação direta entre a Guerra às Drogas e o movimento pela legalização da maconha? Provavelmente não muita. Porém, tagarelar tudo todo o tempo e fazer tudo aberto, deixando as estatísticas e listas de discussões disponíveis para as agências de inteligência e outras não é uma tática boa quando você está na verdade lidando com uma substância ilegal.
Eu acho que temos um complexo de mártir nessa situação. Existem pessoas que querem confrontamento contra uma projeção psicológica do que eles acham que é a “autoridade”. Em outras palavras, contra quem é relativo à autoridade de um jeito autoritário. Simplesmente por desafiarem abertamente essa autoridade, eles estão se definindo como criminosos e vítimas do estado.
HT: Você acha que eles poderiam usar um pouco de terrorismo poético?
HB: Eu acho que eles poderiam usar um pouco de clandestinidade sensata e um pouco do senso do terrorismo poético, sim.
HT: Você escreveu extensamente sobre os tongs(6), as sociedades secretas Chinesas. Você diria que a economia underground da maconha é organizada de forma semelhante aos tongs?
HB: Absolutamente, é organizada como uma soma, como uma... bem, não é organizada como uma soma de tongs, e é isso que é o problema. O ponto é que um tong é uma sociedade secreta. E isto, novamente, é algo que não é somente uma fantasia; é algo real. Um grupo de amigos com afinidades que se junta para intensificar seu prazer e liberdade por meios que não sejam reconhecidos como legais pela sociedade criou inconscientemente uma tong. O que eu acho que eles poderiam fazer é conscientemente criar uma tong. O que nós precisamos aqui é uma estética e uma tradição de sociedades clandestinas não-hierárquicas.
Como nós organizamos verdadeiras redes secretas de permuta? Mas também, como nós criamos uma poética desta situação, como nós fazemos disto algo que funcione não somente num nível econômico prático, mas também num nível imaginário, onde os corações das pessoas estão comprometidos?
HT: Uma comunidade.
HB: Eu iria além, ao usar o termo de Paul Goodman, communitas, para mostrar que nós estamos falando sobre algo que é mais que um arranjo a esmo, mas realmente um objetivo pela qual nós estamos nos esforçando.
Eu vejo a Zona Autônoma Temporária como o florescimento temporário do sucesso dessas redes. O que nós estamos esperando é que as estruturas não hierárquicas atuais maximizem seu potencial para o surgimento de uma TAZ.
Vamos falar sobre as redes como uma espécie de subsolo rico em micélios que são por si só o corpo verdadeiro da planta. E ele pode se espalhar por milhas, como você sabe. Os cogumelos que aparecem, os frutos - eles são como uma Zona Autônoma Temporária, esses são as florescências da rede, se eu consigo fazer aqui minha metáfora botânica.
Uma das formas mais óbvias de florescimento é o festival: a rave, o Rainbow Gathering, os festivais Zippies(7) e coisas como o festival Burning Man(8) em Nevada - esses tipos de festivais espontâneos, não regulados, não mercantilizados, que aparecem.
HT: Mas talvez eles tenham vidas, “vidas de prateleira”(9) - só uma certa quantidade de tempo quando eles podem criar e florescer.
HB: Existem algumas coisas que são inerentemente temporárias. E existem outra coisas que são temporárias somente porque não somos fortes o suficiente para fazê-las permanentes. Digamos que você se instala por alguns meses em um lugar bonito perto de uma floresta, na beira de um lago, no verão, com alguns amigos e você tem uma TAZ verdadeira. Erotismo e beleza natural e liberdade pra correr pelado por aí e fumar maconha ou fazer o que você quiser. Mas como isto tudo é movido pelo dinheiro que as pessoas têm que fazer no mercado onde elas vendem o trabalho, isto pode durar somente um certo tempo. Nós gostaríamos de fazer isto durar para sempre, transformado a TAZ em uma PAZ, uma Zona Autônoma Permanente (Permanent Autonomous Zone). Nós não temos o poder econômico para fazer isto. É temporário somente porque nos falta o poder para fazermos isto mais permanente.
Outras coisas são claramente temporárias, e devem ser apreciadas pela sua temporalidade. Quando a essência saiu delas nós devemos perceber isto, e deixar esta forma em busca de outras formas. Então uma certa quantidade do que vem sendo chamado de “trabalho de flutuação” é necessário. Você tem que estar sintonizado com onde a liberdade e o prazer estão sendo potencializados e onde não estão, para que você possa espontaneamente se manter flutuando e ficar à frente desse fenômeno. Isso é exatamente o que hordas de pessoas estão fazendo por aí: velhos camaradas em rv´s(10), caras novos viajando clandestinamente, está tudo acontecendo. Não estou descrevendo um esquema utópico, é o que está acontecendo de qualquer jeito. Tenhamos consciência disso. Vamos perceber que isso é um verdadeiro valor, porque faz algo por nossas vidas, diferentemente de todo essa jogatina política estúpida.
Nós somos constantemente seduzidos a colocar nossas forças e nosso amor e nossa criatividade em objetivos que são imediatamente reocupáveis e cooptáveis e mercantilizáveis por “eles”. Isso devia parar.
HT: Eu vejo pessoas tendo problemas para comunicar-se com outras porque elas estão acostumadas a se falar pela televisão. Então, quanto você está trabalhando em uma comunidade, o primeiro passo para criar uma TAZ seria a comunicação.
HB: Absolutamente. As pessoas estão alienadas pela mídia. Isso é algo que tem que ser repetido constantemente. Quanto mais você se relaciona com os meios, menos você se relaciona com outros seres humanos em sua proximidade física. Novamente, isso não é uma grande teoria, isto é algo que simplesmente está acontecendo. Você gasta mais tempo vendo TV, você gasta menos tempo se relacionando com seus amigos. E quando isto se espalha em nível social, você começa a ver algumas coisas muito estranhas ocorrendo. A corrente tem mais força que qualquer participação individual na corrente. Existe uma sinergia negativa, um efeito de realimentação negativa por meio do qual sua alienação de outras pessoas está sendo causada por televisões e rádios e filmes e jornais e livros. Eu certamente não isento os impressos dessa crítica. E subitamente você descobre que não é somente uma questão de alienação, é uma questão de miserabilidade. Essa separação de você da realidade física está fazendo você miserável.
Muitas pessoas chegaram a esse ponto. Eles não sabem o que fazer porque nós não estamos dando a eles uma direção. Digo, radicais fumantes de maconha não estão dando a eles uma alternativa clara e realista, mas ao invés disso estão sonhando acordados com várias merdas de New Age e estilo de vida.
HT: Onde as pessoas podem achar Zonas Autônomas Temporárias às quais você estaria disposto a dizer quando e onde encontrar?
HB: Eu não posso - porque elas não existem precisamente em mapas com coordenadas cartesianas. Existem outras dimensões que não os mapas onde as Zonas Autônomas Temporárias podem ser achadas. Eu gosto de metaforizar estas dimensões como dimensões fractais, o que traz toda a questão de caos e complexidade. E uma das razões pelas quais eu não posso te dar nenhum indicativo é porque essa é uma situação fractal carregada de complexidade. A qualquer momento uma TAZ pode ocorrer. Em um nível mínimo, um jantar na casa de alguém pode repentinamente evoluir em uma TAZ. Não qualquer jantar, mas o potencial está lá porque é organizado de uma maneira não hierárquica, para convivência. E, em um nível máximo, você teve Zonas Autônomas Temporárias que duraram muito mais, onde a festa na realidade continuou por alguns anos. Quando estamos falando sobre a Zona Autônoma Temporária, per se, como nodos realmente intensos de consciência e ação, é possível que os seres humanos não possam aguentar muito disso. Talvez dezoito meses ou dois anos de festa contínua seja tudo que alguém pode aguentar.
HT: Bem, eu conheço algumas pessoas...
HB: Claro! Mas nós podemos falar de Zonas Autônomas Permanentes, você sabe, o que é um conceito diferente.
HT: Você chamaria o Rainbow Gathering de Zona Autônoma Permanente?
HB: Eu chamo ele de Zona Autônoma Periódica, o que é ainda outra variação dessa idéia. Existem certas Zonas Autônomas que você não pode manter o tempo todo, mas que você pode realizar com uma certa freqüência constante, e os festivais anuais são os exemplos. O que nós temos que fazer é evitar a mercantilização. Preciso dizer algo mais desse assunto? Ok?
O festival é um momento intenso, mas periódico. É momentâneo, mas periódico. Assim como no Rainbow, não é realmente necessário ser dono da propriedade, como eles inteligentemente descobriram. Qualquer grupo de pessoas na América pode fazer isso. Você não precisa se juntar às tribos Rainbow e seguir seu estilo de vida (que eu particularmente não acho atrativo). Você só faz um encontro em uma floresta nacional e monta sua tenda fora da linha de visão, ou você pega um lugar onde tenham poucos ursos.
No festival Burning Man, o guarda florestal mais próximo está a 75 milhas de distância, e eles converteram ele a um amigo e defensor do festival, de qualquer jeito. É organizado por alguns artistas da Califórnia que vão para a pior parte do deserto de Nevada, só um mar de areia preta até onde a vista alcança, e eles fazem uma estátua gigantesca de um homem de vime, então no último dia do festival eles ateiam fogo a ele e todo mundo bebe um monte de cerveja e vê ele queimar. É um tremendo sucesso e está sendo repetido sempre com uma periodicidade anual. As pessoas amam isto. Um jornal é impresso no lugar, uma mini estação de rádio FM é montada cada ano e todos os tipos diferentes de pessoas vêm, de caras que moram isolados em rvs a ciclistasa hippies, o pessoal “flower” e o pessoal Rainbow e os hobos(11) e artistas da Califórnia. E todo mundo se diverte muito, e então eles arrumam as malas e vão embora e esse é o fim daquilo, e o guarda florestal não incomoda eles porque está a 75 milhas de distância e ele gosta daquilo de qualquer jeito porque eles deixam o lugar limpo. Então qualquer um pode fazer isso. Você não precisa esperar pela permissão de alguma autoridade tribal.
HT: Criar uma TAZ é quase como criar o seu próprio espaço autônomo livre em você mesmo.
HB: Eu fico repetindo a frase “maximize o potencial para o aparecimento”. Eu sei que é uma frase meio grotesca e complicada, mas ela precisa ser sempre inserida em qualquer frase que nós falemos aqui. Você não pode declarar uma TAZ. Ou, se você pode, você é um mágico muito mais eficiente do que eu. Você simplesmente não pode decidir ter uma TAZ. Uma TAZ é algo que acontece espontaneamente. Quando de repente você diz, uau, sabe, tem N pessoas aqui, mas tem N mais N energia, excitação, prazer, liberdade, consciência. Certo? Esse momento de sinergia de corrente cruzada acontece quando um grupo de pessoas está tendo algo mais de uma situação que a soma do que os indivíduos estão colocando nisto. Você não pode prever isto. Tudo o que você pode fazer é maximizar o potencial para o aparecimento.
Glossário
1. Bolas de Templo Nepalesas (Nepalese Temple Balls) - nome dado para pelotas de haxixe.
2. Airstream - Tradicional marca americana de trailers e motor-homes, pertencente à Thor Industries. Seu website é http://www.airstream-rv.com/.
3. Rainbow Gatherings - festival-encontro dos participantes da “Família Arco-Íris da Luz Viva”(Rainbow Family of Living Light), que na realidade não é uma organização, mas diferentes pessoas que pregam a construção de pequenas comunidades, não violência, estilo de vida alternativo, Paz e Amor, e tradições indígenas americanas. Esse encontro, que acontece anualmente, tem por objetivo rezar pela paz no planeta.
4. BBS - Bulletin Board System, um termo de informática que designa uma base de dados de mensagens acessível pela Internet, ou melhor ainda, um mural de recados eletrônico.
5. No original, “I don’t think that it’s too late to wake up and smell the coffee here.”
6. Tong - sociedade secreta chinesa, do cantonês tong, “assembléia de todos”.
7. Festival Zippy - encontro das pessoas da cultura zippie - que se definem, em parte, como hippies tecnológicos, que acreditam em funções religiosas na tecnologia. O nome vem de hippies com zip. Retirado de http://www.fiu.edu/~mizrachs/Zippies.html
8. Festival Burning Man - festival que reúne anualmente cerca de vinte e cinco mil pessoas, e envolve música, arte e comunidade. Retirado de http://www.burningman.com/
9. Vida de Prateleira - extensão de tempo que um produto, especialmente alimento, pode permanecer na prateleira de uma loja antes de se tornar impróprio para uso; prazo de validade.
10. RV (recreation vehicles) - veículos como trailers e motor-homes.
11. hobo - Alguém que viaja de lugar a lugar procurando por lares e empregos temporários. Retirado de www.hobotraveler.com/hobo.shtml
Traduzido e revisado por Guilherme Caon em 20/03/2002.
Esta tradução, bem como qualquer uma de suas partes, não pode ser utilizada para nenhum tipo de fim comercial, a não ser com a expressa autorização do tradutor.
Fonte: http://hakimbeydasilva.cjb.net/

Sobre Ricardo Rosas e o site www.rizoma.net

Transcrevo abaixo uma nota de falecimento do escritor e pesquisador Ricardo Rosas, tirada do site midiaindependente.org.



Para Ricardo Rosas
http://midiaindependente.org/pt/blue/2007/04/380110.shtmlPor HOMENAGEM 24/04/2007 às 12:55
Com muita tristeza, comunicamos o falecimento do escritor Ricardo Rosas, dia 11 de abril, em sua cidade natal, Fortaleza, por problemas de saúde. Autodidata incansável, Ricardo sempre se preocupou em compartilhar seus estudos e descobertas com outras pessoas, através do http://www.rizoma.net/. Como um dos idealizadores e organizadores do Festival Mídia Tática Brasil, ele aproximou artistas, techs e ativistas políticos. Nos últimos anos Ricardo se dedicou a dois livros, prestes a serem lançados: um sobre gambiarras, chamado "Truquenologia" e o "Net Cultura", co-organizado com Giseli Vasconcelos.
O Rizoma está temporariamente fora do ar, mas amigos estão dispostos a retomar e dar continuidade ao projeto. Além disso, ao longo dos últimos anos Ricardo construiu uma grande biblioteca e existe a vontade de algumas pessoas trabalharem para tornar público o acesso a estes livros.
Neste momento, como declarou um amigo próximo, "a melhor coisa a fazer é recordar que o Ricardo deixou um legado muito importante para todos nós. Sempre lembrarei com entusiasmo das nossas conversas e do quanto ele era espontâneo, criativo e com muita vontade de trocar experiências".

Sobre o partido Diacriano e os Thetas

Não é por acaso que pouca gente ouviu falar do Partido Diacriano ou mesmo sobre os Thetas. Se se fizer uma rápida pesquisa na Internet, por exemplo, praticamente nada se obterá. Os Thetas compunham a camada pais pobre e marginalizada da antiga Atenas :
"os thetas formavam a camada inferior, eram trabalhadores braçais, camponeses, marginalizados econômica e politicamente. A concentração fundiária, a cunhagem de moeda e a colonização do Egeu, e a marginalização de georgóis e thetas foram os fatores responsáveis pelo acirramento da luta de classes, processo que determinou a criação da democracia na cidade. A passagem do arcontado para a democracia foi fruto portanto da luta contra os privilégios da minoria eupátrida, sendo que esse processo completou-se cerca de um século depois."

Situacionismo - questões introdutórias

Sobre Guy Debord e o Situacionismo.
Questões introdutórias.
O Situacionismo abre duas chaves de discussão, que estão relacionadas.
A primeira delas, de cunho sociológico, refere-se à prevalência da dimensão cultural no mundo contemporâneo. Tendo constatado que as existências são vivenciadas de modo cada vez mais simbólico, a contestação também opera cada vez mais dentro da esfera cultural (artística etc.) A ação contestatória é uma persistente tentativa de quebra do código vigente e, portanto, tem por alvo a própria linguagem (resignificação de obras artísticas, escândalos etc). Abre-se aqui toda um leque de discussões: é possível produzir uma contestação dentro do universo simbólico vigente ? Até onde a quebra do código pode operar e até que ponto isso realmente produz uma ruptura no sistema (descondicionamento) ?
A segunda chave – de natureza mais filosófica - diz respeito ao caráter transitório, fugidio, fugaz das intervenções situacionistas. Isso se refere diretamente à necessidade de não-formalização, não-institucionalização, manter aberto o canal da criatividade – é a criação permanente. Se, por um lado, isso é uma tática para escapar à reação do sistema, que se move e se nutre pela (e para) a reabsorção dos signos produzidos pela ação contestatória, por outro, isso permite ao contestador manter viva dentro de si a criatividade, não permitindo que ele próprio caia na repetição burocrática e perca o contato com seu íntimo-criativo.
É impossível existir uma pintura ou uma música situacionista. O que pode ocorrer é uma utilização situacionista destes meios. Numa acepção mais básica, o ‘detournement’ no interior das antigas esferas culturais constitui um método de propaganda, testemunhando o desgaste e a perda de importância destas esferas”. (Revista da IS, n.1)
As duas chaves acima se encontram relacionadas, pois a questão de fundo diz respeito à vivência condicionada e o modo como se produz esse condicionamento: somente por meio da quebra do código que rege as interpretações é que podemos abrir caminho para a ruptura das relações de dominação e da alienação, dentre outros efeitos.