quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Entre o público e o privado


Facebook cria polêmica com nova ferramenta de privacidade

da France Presse, em San Francisco

O popular site de relacionamento Facebook lançou um novo dispositivo apresentado como um meio que permitirá a seus usuários administrar melhor o nível de confidencialidade do conteúdo que compartilham na rede, uma medida que, segundo alguns críticos, poderá ter um efeito inverso.

Desde quarta-feira (2), o site começou a pedir a seus mais de 350 milhões de membros que redefinam as características de seu perfil com uma nova ferramenta que lhes permite especificar quem pode ter conhecimento de cada foto, vídeo, atualização ou qualquer outro conteúdo colocado no site.


Facebook comemora 350 mi de usuários com novo modelo de privacidade


Segundo o Facebook, essa mudança permitirá aos usuários evitar que imagens inconvenientes ou atualizações muito atrevidas sejam vistas por chefes, conhecidos e outros que não fazem parte do círculo íntimo de amigos on-line.

"Será muito mais intuitivo para os usuários", opinou o diretor do Future of Privacy Forum, Jules Polonetsky. As redes regionais --associações comunitárias geográficas que o Facebook eliminou recentemente-- levavam os usuários a compartilhar, sem ter consciência disso, do conteúdo de seu perfil com milhões de usuários.

Os novos controles de privacidade também limitam a visibilidade do conteúdo criado por menores de 18 anos.

Mesmo que um menor selecione a opção "Todos" (podem ver suas fotos), a informação que compartilhar se limitará a seus "Amigos", "Amigos de amigos" e redes escolares.

As mudanças foram bem recebidas por inúmeros sites especializados em novas tecnologia.

Mas outros criticaram o fato de que o parâmetro, por defeito dos novos instrumentos de segurança, instauram um grau frágil de confidencialidade e que, nesse caso, as informações publicadas são visíveis para todos.

"O problema e que a maioria das pessoas não perde tempo configurando esse tipo de parâmetro", avaliou o jornal "The Washington Post".

Segundo o blog TechCrunch, o Facebook agiu para que as informações publicadas por seus usuários possam ser consultadas em tempo real e detectadas pelos motores de busca, de maneira a competir com o popular Twitter.

Era da privacidade na internet acabou, diz fundador do Facebook

da Folha Online

O fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, afirmou na sexta-feira (8) que, caso ele criasse o Facebook nos dias atuais, informações de usuários seriam públicas e não privadas --o que representa uma posição radicalmente oposta àquela defendida até então.

Em uma entrevista de seis minutos com o fundador do site de tecnologia TechCrunch, Zuckerberg passou 60 segundos falando sobre as políticas de privacidade do Facebook.

Modificadas no mês de dezembro, as configurações sobre privacidade no site de relacionamentos foram a base da questão. Agora, muitas das informações pessoais dos internautas podem ser vistas por toda a internet, caso o usuário permita.

"As pessoas realmente se sentem confortáveis não apenas em compartilhar mais informação e diferentes aspectos, mas mais abertura e com mais pessoas. É uma norma social que tem evoluído ao longo do tempo", disse ele. "Nosso papel é atualizar o nosso sistema para refletir de acordo com as normas sociais vigentes."

"350 milhões de usuários se inscreveram no Facebook sob a crença de que suas informações seriam compartilhadas apenas com amigos confiáveis. Agora a companha diz que isso é velho, e que as pessoas estão mudando", aponta o site ReadWriteWeb. "O Facebook está dizendo isso só porque ele quer que seja verdade."

"A alteração do contrato com os usuários, com base na suposta preocupação com seus desejos, é ofensiva e faz com que qualquer movimento feito pelo Facebook seja mais suspeito", indica o site.


Site que mistura jogo e localizador é o próximo Twitter, diz colunista da CNN

da Folha Online

O fundador e executivo-chefe do Marshable, popular blog norte-americano cuja temática gravita em torno de redes sociais, aposta agora em um site que parte da simples ideia de agregar um grupo de amigos para verificar os lugares nos quais eles estão.

Em sua coluna semanal na CNN, Pete Cashmore afirma que o Foursquare está além disso. O site, ele explica, é também um jogo virtual no qual os participantes ganham um distintivo para checar suas contas a partir de diversas localidades, comentando sobre o que há nelas --cafés, restaurantes, bares ou museus, por exemplo-- e ganhando pontuações. Ele diz que o mecanismo é tão viciante quanto Twitter, Facebook ou a checagem de e-mail no BlackBerry.

Cashmore afima que, "originalmente lançado como um aplicativo para iPhone e semeado pelos 'early-adopters' em cidades como Nova York e San Francisco, os fundadores do site foram capazes de pular de um trampolim de efeito imediato: o Twitter".

Os paralelos com o Twitter são numerosos, de acordo com ele, citando o blogueiro Robert Scoble: "Volte três anos atrás. O Twitter era usado pelas mesmas pessoas que hoje jogam o Foursquare".

As similaridades não param por aí. Ambos tiveram início em festivais de música norte-americanos. Membros de ambos construíram previamente startups de sociais de sucesso --e ambos foram incorporados pelo Google.

No entanto, a principal vantagem apontada pelo colunista é a de que o Foursquare estreou, nesta semana, o chamado API (interface de programação de aplicativos, que permite a inserção de pequenos softwares na plataforma do site, feita por terceiros).

"Isso tem se demonstrado, por diversas vezes, como uma força para esse tipo de ecossistema. De Flickr para Google Maps, para Twitter e mais além, fica claro que a massa crítica que antecede --em número suficiente de usuários e aplicativos para fazer um serviço inestimátivel-- prepara o terreno para uma vitória esmagadora", observa Cashmore, apostando que essa será a rede social que vai predominar em 2010.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Fim do consumismo seria a única saída para o planeta




A edição de 2010 do renomado relatório “State Of The World” afirma que sem uma alteração nos hábitos comportamentais e de consumo de nada adiantarão políticas públicas e avanços tecnológicos no combate ao aquecimento global e a outros desafios contemporâneos.

A reportagem é de Fabiano Ávila e publicado pelo sítio CarbonoBrasil, 12-01-2010.

As 500 milhões de pessoas mais ricas do mundo, cerca de 7% da população, são responsáveis por 50% das emissões de gases do efeito estufa, enquanto os três bilhões de pessoas mais pobres emitem apenas 6%. Com dados como esse, o relatório “State of the World 2010, Transforming Cultures: From Consumerism to Sustainability”, do Worldwatch Institute, publicado nesta terça-feira (12/1), traz como principal mensagem que sem uma mudança cultural que coloque valores sustentáveis acima do consumismo, não há milagre tecnológico ou política pública que resgatem a humanidade de graves problemas climáticos, sociais e ambientais.

O relatório chama de consumismo a orientação cultural que leva as pessoas a acharem contentamento, aceitação e significado para as suas vidas através do que possuem e utilizam. “Nós vimos alguns esforços encorajadores nos últimos anos no combate a crise climática. Porém fazer políticas ou mudanças tecnológicas enquanto a cultura segue centrada no consumismo e no crescimento não podem ir muito longe. Para que se consiga um avanço duradouro, é preciso que a sociedade mude sua cultura para que a sustentabilidade vire a norma e o consumo em excesso um tabu”, afirmou Erik Assadourian, diretor do projeto State of the World.

Em 2006, a humanidade consumiu US$ 30,5 trilhões em mercadorias e serviços, 28% a mais do que apenas 10 anos antes. O aumento do consumo resultou em um crescimento dramático da extração de recursos naturais. Os norte-americanos, por exemplo, consomem aproximadamente 88 quilos de recursos por dia. Se todos vivessem dessa maneira, a Terra sustentaria 1,4 bilhões de pessoas, apenas um quinto da atual população mundial.

“O padrão cultural é a raiz para a convergência sem precedentes de diversos problemas ecológicos e sociais; como as mudanças climáticas, epidemias de obesidade, declínio da biodiversidade, perda das terras cultiváveis e desperdícios de produção”, disse Assadourian.

Os 60 autores do relatório apresentam em 26 artigos algumas estratégias que já estão em funcionamento para a reorientação cultural. Algumas abrangem uma visão social do mercado, através da formação de cooperativas de agricultores, por exemplo. Outras avaliam modelos de planejamento familiar e esforços de marketing social. Há ainda a sugestão de que as escolas primárias sejam utilizadas na formação de uma nova cultura, com iniciativas simples como a alteração dos itens da merenda para uma alimentação mais saudável e baseada em produtos locais.

“Com o mundo lutando para se recuperar da mais séria crise econômica desde a grande depressão, nós temos uma oportunidade história para nos afastarmos do consumismo. No fim, o instinto de sobrevivência deve triunfar sobre a compulsão do consumo a qualquer custo”, concluiu Christopher Flavin, presidente do Worlwatch Institute.


terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A era pós-mídia



A era pós-mídia de massa: a desconfiguração e descentralização da Comunicação.

Entrevista especial com Ivana Bentes


Desconfigurar, descentralizar, até mesmo "explodir". Para a doutora em Comunicação e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ivana Bentes, o que caracteriza a "era pós-mídia de massa são justamente as práticas descentralizadas de comunicação". "A Internet é esse lugar de desconfiguração", afirma a professora em entrevista concedida, por email, à IHU On-Line.

Ivana acredita ainda que o fim da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo "abre uma série de novas questões e debates sobre o campo da comunicação pós-mídias digitais bem mais interessantes do que o velho muro das lamentações corporativas". Segundo ela, os cursos de Comunicação precisam "dar uma virada e explodir" o ambiente da sala de aula tradicional e pensar uma formação por projetos, uma "wiki-universidade".

Analisando os resultados do Fórum de Mídia Livre e da Confecom, afirma que foram "um momento histórico, vivo, vibrante das possibilidades e limites da atual democracia brasileira". "É a sociedade inteira que se apropria das tecnologias e da linguagem jornalística contra o jornalismo, explodindo o jornalismo corporativo", defende.

Ivana Bentes é doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora associada do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ e Diretora da Escola de Comunicação da UFRJ (ECO/UFRJ), também atua na área de Comunicação, com ênfase em estética, audiovisual, cinema, imaginário social, pensamento contemporâneo e cultura digital. Atualmente se dedica a dois campos de pesquisa: Estéticas da Comunicação, Novos Modelos Teóricos no Capitalismo Cognitivo e Periferias Globais: produção de imagens no capitalismo periférico. É coordenadora do Pontão de Cultura Digital da ECO/UFRJ. É curadora na área de arte e mídia, cinema, audiovisual.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Uma das principais discussões do II Fórum de Mídia Livre é pensar a produção de um novo mercado da comunicação: o mercado do diálogo. Como se apresenta esse mercado?

Ivana Bentes – O mercado não vem "primeiro". Ele é um resultado da articulação das redes de mídia livre, é o resultado da emergência de um movimento mídia-livrista. O que o Fórum de Mídia Livre tem buscado é dar visibilidade a essa rede de produtores de conteúdo em todas as mídias e aos novos movimentos do campo da comunicação, como o pessoal do Música Para Baixar, do Software Livre, dos blogs, além dos protagonistas históricos que lutam e lutaram pela democratização dos meios de Comunicação no Brasil (do rádio, das TVs comunitárias, públicas, do vídeo, da videoarte etc.).

"O que caracteriza a era pós-mídia de massa são práticas descentralizadas de comunicação, que podem criar novos ambientes colaborativos e participativos"

Então, é nesse sentido que temos que criar "mercados", num momento em que é a sociedade como um todo que produz mídia. Ou seja, se a mídia somos nós, com nossa capacidade cognitiva, afetiva, de produzir linguagem, valor, o mercado potencial de atuação é enorme, heterogêneo e diversificado. Mas, para existir, depende de uma série de fatores, entre eles a massificação das ferramentas e infra-estrutura para acesso amplo, livre, gratuito, a custo baixo, às redes e acesso às tecnologias e ferramentas de comunicação.

Ou seja, a questão do Fórum de Mídia livre é antes de mais nada potencializar esse momento de transição em que os intermediários e corporações que tinham uma "reserva de mercado" para a produção de conteúdos se veem em crise diante de uma tecnologia como a Internet, que tem potencial "livre", participativo e colaborativo, que demanda uma outra lógica, não hierarquizada, não centralizada, polifônica na produção das informações.

A palavra "mercado" não pode ser demonizada. Temos que criar e reivindicar a criação de novos mercados. Por exemplo, toda essa economia pós-Google dos centavos, dos downloads pelos aparelhos de celulares, os sites de textos, imagens em domínio público, os conteúdos licenciados em "creative commons": são mercados novos em que as próprias empresas pós-mídias de massa estão apostando, investindo e criando. Nós temos que inventar, criar valor e tornar desejável os nossos mercados a serem inventados.

No Fórum de Mídia, foi muito discutida, por exemplo, a possibilidade de criação de moedas sociais, moedas baseada na troca de serviços de comunicação ou outros, na linha do que o Cubo Card (www.cubocard.blogger.com.br) e Pablo Capilé inventaram para a cena musical e que deu muito certo. Inventaram uma moeda que faz circular serviços, bens e pessoas. Um mercado que vem viabilizando e dando visibilidade às bandas de rock do circuito fora das grandes capitais brasileiras, o projeto Fora do Eixo.

IHU On-Line – A situação dos realizadores independentes ainda é muito complicada nessa "Era pós-mídia"? Quais são os maiores desafios de se fazer comunicação alternativa hoje, em nosso país?

Ivana Bentes – Melhor falar em "produtores de conteúdo" de forma ampla, e sem o adjetivo "independente", pois o ambiente, seja para a mídia de massa, seja para novas mídias, está convergindo. Claro que existem assimetrias gigantescas entre os diferentes produtores de mídia, conteúdo etc. Mas nada está configurado ou determinado. Estamos no meio de dinâmicas muito velozes, que exigem uma disposição e experimentação de quem quer fazer mídia.

"A Internet, que tem potencial 'livre', participativo e colaborativo, demanda uma outra lógica, não hierarquizada, não centralizada, polifônica"


O que caracteriza essa era pós-mídia de massa são justamente as práticas descentralizadas de comunicação ponto a ponto, P2P (peer-to-peer), pós-Internet, que têm esse potencial de criar novos ambientes de trabalho, de educação, de lazer, colaborativos e participativos, rompendo com velhas formas de hierarquização e de aprendizagem unidirecionados e/ou centralizados, estimulando processos coletivos de ampla conectividade em rede. Essas proposições não têm nada de utópicas, são bem realistas, pragmáticas e imanentistas. Aliás, basta olhar para algumas práticas emergentes de mídia (a blogosfera, por exemplo) e os ambientes de ensino/aprendizado/convivência reais/virtuais.

Vejo de forma bem ampla a questão do mídia-livrismo, com a entrada de novos sujeitos sociais na produção de mídia, o que podemos chamar de inclusão subjetiva. As coberturas das guerras, catástrofes – como agora no Haiti, Afeganistão – e mesmo uma nova sensibilidade e crônica do cotidiano estão sendo feitas nos blogs, twitters, mídias sociais, redes de "pessoas comuns" que impactam o mundo.

Inclusão subjetiva significa que essas vidas, essas pessoas têm um potencial de produzir outras "linguagens". As redações de jornais e TVs têm um ambiente marcado socialmente, homogêneo demais. Então, a explosão dessa produção desterritorializada, heterogênea pode produzir dissenso, fricção, tensão. Falando das mídias tradicionais, é urgente colocar dentro das redações de jornais, TV, mídia, pessoas vindas de outros grupos sociais. Isso muda tudo. Um editor de polícia, urbanismo, que tem outra vivência da cidade, por exemplo. A Internet é esse lugar de desconfiguração. Claro que pode simplesmente reproduzir o modelo da mídia de massa, mas essa potencialidade está aí.

Existem projetos de produção de conteúdos e de mídia que podem vir diretamente das favelas, das prisões, dos hospitais, dos asilos, de ambientes quaisquer, que podem trazer consigo uma outra expressão e comunicação. Um exemplo brasileiro é a forma como os motoboys se articularam usando a Internet e produzindo mídia (http://www.zexe.net/SAOPAULO/intro.php?qt=).

São 12 motoboys de São Paulo que percorrem espaços públicos e privados da cidade com celulares e acesso a um site. Fotografam, filmam e publicam em tempo real na Internet as suas experiências. Fazem uma crônica/cobertura singular da cidade, gerando um conhecimento coletivo e partilhado. É um projeto original de mídia, em que a "vida" desses motoboys é que produz "linguagem" e valor.

Tem ainda projetos como o Observatório da Maré, os repórteres-comunitários do Viva Favela, sites do Rio que apontam para essas possibilidades, de gangues-guerrilheiras das notícias. Isto é a Ciberperiferia: a apropriação das novas mídias por outros grupos sociais.

IHU On-Line – O que você pensa sobre essa nova Lei de Publicidade? E quanto à retirada da obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício da profissão?

Ivana Bentes – O fim da exigência do diploma para se exercer o jornalismo no Brasil (como em tantos países do mundo inteiro) abre uma série de novas questões e debates sobre o campo da comunicação pós-mídias digitais, bem mais interessantes do que o velho muro das lamentações corporativas. Agora, será necessário constituir novos "direitos" para jornalistas e não-jornalistas, free-lancers, blogueiros e mídia-livristas. Todos terão que inventar novas formas de lutas comuns.

O fim do diploma tira da "invisibilidade" a nova força do capitalismo cognitivo, as centenas e milhares de jovens free-lancers, autônomos, mídia-livristas, inclusive os formados em outras habilitações de Comunicação que eram impedidos por lei de fazer jornalismo e exercer a profissão e que, ao lado de qualquer jovem formado em comunicação, constituem hoje os novos produtores simbólicos, a nova força de trabalho "vivo".

"O fim da exigência do diploma para se exercer o jornalismo abre novas questões sobre o campo da comunicação pós-mídias digitais"


Parece que vamos, finalmente, sair do piloto automático dos argumentos prontos "de defesa do diploma", que sempre escamotearam alguns pontos decisivos.

O fim da exigência de diploma para trabalhar em jornalismo não significa o fim do ensino superior em jornalismo, nem o fim dos cursos de Comunicação que nunca foram tão valorizados. Outros cursos, extremamente bem sucedidos e disputados no campo da Comunicação (como publicidade) não têm exigência de diploma para exercer a profissão e são um sucesso, com enorme demanda.

A qualidade dos cursos e da formação sempre teve a ver diretamente com projetos pedagógicos desengessados, com consistência acadêmica, professores de formação múltipla e aberta, diversidade subjetiva, e não com "especificidade" ou exigência corporativa de diploma. Isso traz um questionamento sobre a atual formação, pois as universidades não precisam (ou não deveriam) formar "peões" diplomados, mas sim jovens capazes de exercer sua autonomia, liberdade e singularidade, dentro e fora das corporações, não profissionais "para o mercado", mas sim capazes de "criar" novos mercados e ocupações, jornalismo público, pós-corporações, midiarte, jovens que inventam ferramentas, práticas e mercados pós-mídias massivas.

Nada justificava, pois, a "excepcionalidade" do diploma para os jornalistas, o que criou uma "reserva de mercado" para um pequeno grupo, reserva que diminuía a empregabilidade de jovens formados em cinema, rádio e TV, audiovisual, publicidade, produção editorial etc., proibidos pela exigência de diploma de exercer... jornalismo.

O raciocínio corporativo constituiu, até hoje, uma espécie de vanguarda da retaguarda, com um discurso fabril, estanque, de defesa da "carteira assinada" e dos "postos de trabalho", enquanto, no capitalismo cognitivo, no capitalismo dos fluxos e da informação, o que interessa é qualificar não para "postos" ou especialidades (o operário substituível, o salário mais baixo da redação!), mas sim para campos do conhecimento, para a produção de conhecimento de forma autônoma e livre, não o assujeitamento do assalariado, paradigma do capitalismo fordista.

A ideia de que, para se ter "direitos", é preciso se "assujeitar" em uma relação de patrão/empregado, de "assalariamento", é uma ideia francamente conservadora. O precariado cognitivo, os jovens precários das economias criativas estão reinventando as relações de trabalho; os desafios são enormes, a economia pós-Google não é o jornalismo fordista, não vamos combater as novas assimetrias e desigualdades com discursos e instrumentos da revolução industrial.

"As universidades não deveriam formar 'peões' diplomados, mas sim jovens capazes de exercer sua autonomia, liberdade e singularidade"


Devemos lutar não por cartórios do século XIX, mas pelos novos movimentos sociais de organização e defesa do precariado, lutar pela autonomia fora das corporações, para novas formas de organização e seguridade do trabalhador livre do patrão e da corporação.

As forças livres (frágeis, sem direitos, sem seguridade, nômades globais, precários, imigrantes, periféricos, doutores ou favelados) do precariado são a nova classe, grupo, força no capitalismo contemporâneo. São novos direitos, novas lutas... Não tem volta. Mesmo sabendo que o capitalismo cognitivo produz obviamente novas formas de coerção, capturas e despotencialização, a primeira questão é compreender as mudanças para intervir e construir o devir.

IHU On-Line – Em termos gerais, quais são os principais dilemas da comunicação no Brasil?

Ivana Bentes – Atualmente, é fazer a passagem de um sistema de Comunicação concentrado, hierarquizado e monopolista, que tem apenas privilégios e cujo horizonte são audiências massificadas, para um sistema de Comunicação horizontal, descentralizado, organizado em redes abertas, públicas e que pense não em termos de "audiência" ou público, mas sim em produtores de conteúdo e expressão. E que possa ter algum tipo de regulação social. Ou seja o consumidor de mídia como produtor e "observador" de mídia. Ninguém mais quer "aparecer" na TV ou no jornal simplesmente. As pessoas, grupos, coletivos, entidades, associações querem um canal de expressão, um canal de TV, acesso imediato aos meios de produção e distribuição, logo, de expressão.

Outra questão muito importante nesse momento é a universalização do acesso dos brasileiros à banda larga, com a criação e manutenção de uma rede de infra-estrutura pública de Internet, garantindo que essa passagem e mutação tecnológica não produzam mais assimetria de poder e aumentem a produtividade social como um todo. E também a criação de um marco legal civil para a Internet e as novas mídias que não criminalize as novas práticas sociais, como compartilhar arquivos, disponibilizar conteúdos em domínio público, assegurar a navegação anônima, uma série de "direitos" importantíssimos.

Outra questão: a alteração da legislação de Direito Autoral para garantir a ampliação das possibilidades de uso das obras protegidas para flexibilizar ou liberar totalmente os usos para fins de educação, pesquisa, de difusão cultural, preservação, uso privado de cópia integral sem finalidade comercial e também para uma gestão coletiva e estímulo ao licenciamento alternativo e garantia à proteção dos conteúdos em domínio público, de modo que esses conteúdos financiados publicamente (e outros) possam continuar livres.

"O raciocínio corporativo constituiu uma espécie de vanguarda da retaguarda, com um discurso fabril, estanque"

No campo da formação para as novas mídias, é importante a criação de escolas livres de formação multimídias em todo país, experimentando novas metodologias, novas ferramentas, jornalismo-cidadão, web jornalismo, blogagem, explodindo a formação disciplinar e hiperespecializada atual. Os cursos de Comunicação precisam dar uma virada e explodir (ou mudar) o ambiente da sala de aula tradicional e pensar uma formação por projetos, laboratórios, uma wiki-universidade, dinâmicas novas.

Isso sem falar em todas as mudanças necessárias na atual Lei Geral das Comunicações da década de 70 e totalmente defasada em termos tecnológicos, conceituais e que não está à altura da democracia já conquistada e desejada neste país.

IHU On-Line – A imagem é o novo capital? Poderia comentar essa ideia que inspira um de seus artigos?

Ivana Bentes – Estamos em um capitalismo cognitivo que tem como base o design, a publicidade, as imagens, a informação. Ou seja, a intuição do teórico francês Guy Debord nos anos 60/70 sobre a "sociedade do espetáculo" é interessante e importante, mas não pensada de uma forma simplificada e moralista pelo pessoal que sofre de iconofobia (medo das imagens) e que banalizou e generalizou de tal forma a critica da "sociedade do espetáculo" que a própria crítica virou um clichê teórico que se aplica de forma generalizada.

A frase decisiva de Guy Debord é: "O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas mediada por imagens" (Ver o texto "Depois do espetáculo: reflexões sobre a tese 4 de Guy Debord", de Juremir Machado da Silva, que vai em outra direção, mas é excelente).

Mas o que interessa aí, ao meu ver, é entender essa "relação social mediada por imagens", é reverter a impotência das imagens e dos clichês. Não é a "iconofobia", mas sim a iconofilia, o amor às imagens, que pode reverter os clichês em potência e arrancar dos clichês novas virtualidades. "Rachar" e explodir os clichês e arrancar daí a nova potência das imagens (Deleuze, Foucault dizem isso). Senão, seremos os anunciadores do apocalipse da sociedade do espetáculo, um tipo de discurso da impotência e do ressentimento diante do mundo, que faz o maior sucesso no nosso meio acadêmico.

"Devemos lutar não por cartórios do século XIX, mas por novos movimentos sociais de organização e defesa do precariado"
Vivemos com as imagens e entre imagens. É preciso entender o estatuto e nossa relação vital com as imagens. A imagem nunca foi investida de tanto valor, real e simbólico. A imagem-publicitária, a imagem-capital, as imagens produzidas no campo da arte, que podem atingir valores irracionais. Mas também o valor afetivo incomensurável de certas imagens com as quais nos relacionamos, que têm uma duração, que sobrevivem ao fluxo aniquilante, ao "esgoto público das imagens" que nos atravessa (YouTube, TV, web, jornais, publicidade na cidade, fluxo de imagens e discursos nos dispositivos tecnológicos).

Por isso é tão importante aprender (e ensinar) a "ler" as imagens e a produzir discursos pela imagem. Também as tecnologias de visualização me parecem decisivas, da câmera digital até o Google Maps, Google Stret View, Google Ocean, Marte etc. ferramentas capazes de escanear, mapear, localizar, de sobrepor camadas de informação vivas, criar imagens que não são mais representações de nada, mas que são a experiência mesma do mundo, mediado pelas imagens.

Ou seja é preciso pensar a imagem como algo "vivo" e nós como imagens entre imagens. Nada disso enfraquece o sentido da crítica, do pensamento. É preciso pensar com as imagens, através das imagens e, quando necessário, contra as imagens. Nesse sentido o último livro do Jacques Rancière, "O Espectador Emancipado", é excelente: esse espectador "alienado" não existe. Todo espectador é ativo.

IHU On-Line – De que forma essa imaterialidade influencia as práticas do trabalhador jornalista?

Ivana Bentes – O jornalista, os produtores de mídia e conteúdos sempre trabalharam com o "imaterial", produção de sentido, criação de valor, produção de "consensos" e opiniões (para o pior e para o melhor). A questão hoje é que há uma mudança, uma mutação em curso, que torna qualquer um habilitado a ocupar esse lugar dos "especialistas". A sociedade como um todo pode produzir mídia, com a universalização das técnicas, tecnologias, dispositivos outrora reservados e dominados por uma corporação. É a sociedade inteira que se apropria das tecnologias e da linguagem jornalística contra o jornalismo. Explodindo o jornalismo corporativo (ou reforçando, claro). Para mim, esta é a mudança que interessa: a apropriação tecnológica pela multidão, visando as novas lutas dentro do capitalismo cognitivo, imaterial, de produção e disputa de linguagens e processos. É a guerrilha semiótica, a disputa e a partilha do sensível pelas imagen s e discursos.

Estamos numa cultura/contexto em que a metalinguagem vai se tornando um aprendizado de massas: Alice atravessou o espelho, e é para esse mundo que o trabalhador-jornalista tem que produzir, ou seja, trabalhar ironicamente pela sua "desaparição", como mediador clássico. Não se trata de nenhuma contradição. Estou diretora e sou professora de uma Escola de Comunicação, mas luto para que qualquer brasileiro possa se tornar um produtor de informação, de linguagem, de estética singular e diferenciado. Essa é a revolução digital, tecnológica, mental que interessa.

IHU On-Line – Você sempre diz que a comunicação é importante demais para ficar sendo discutida apenas por profissionais da Comunicação. A partir disso, qual foi a consistência dos debates na Confecom?

Ivana Bentes – Um dos pontos positivos da Confecom foi ter mobilizado os novos movimentos sociais que pensam a mídia e a comunicação de "fora" das corporações, e que trazem um oxigênio novo. Todo mundo quer fazer mídia, entender de mídia. A mídia somos nós, toda a sociedade, a multidão, os movimentos ligados à música, ao software livre, aos direitos autorais, às favelas e periferias. Não para reforçar discursos identitários ou de guetos, simplesmente, mas quando conseguem se colocar como produtores de subjetividade, de linguagem e exigem sua inclusão subjetiva nas mídias.

"Os cursos de Comunicação precisam dar uma virada e explodir (ou mudar) o ambiente da sala de aula tradicional"
Vi claramente muitas vezes um "confronto" entre os que só pensam a mídia e a comunicação de forma "tradicional", clássica, mídia de massa, corporativa, "profissional", e essa emergência de um zona livre, dos mídia-livristas, dos que lutam por essa inclusão subjetiva.

Os debates foram bons, às vezes tensos e muito negociados para a votação dos pontos finais. Fiquei bastante decepcionada com a atuação de algumas entidades partidárias, entidades classistas, sindicatos, federações. Vêm com um discurso muito "conservador", com práticas antigas de fazer política, que não colam mais no horizonte de uma democracia participativa e não simplesmente representativa e aparelhada.

IHU On-Line – Como a Confecom e o Fórum de Mídia livre ajudam a democratizar a comunicação em nosso país?

Ivana Bentes – Esses Fóruns e conferências são o palco das lutas do presente e são também os laboratórios de criação de futuros. Futuros imaginados, fabulados, disputados, abortados. É uma experiência extraordinária e revitalizante, apesar de todos os obstáculos eventuais com propostas extraordinárias que vão ficando pelo caminho. Para mim, são espaços para existirmos criando e fabulando, e não apenas reagindo contra o estado das coisas. Nesse sentido, o fato de serem "diretrizes", propostas, carta de intenções não diminui em nada sua efetividade. São territórios de produção de virtualidades, a maior riqueza de todas.

IHU On-Line – Você defendeu também que um novo marco regulatório deve ser criado. O que deveria constar obrigatoriamente neste documento e porque ele é tão importante?

Ivana Bentes – São todas as mudanças necessárias na atual Lei Geral das Comunicações, da década de 70, que está totalmente defasada em termos tecnológicos, conceituais, em termos de democracia. São muitas as mudanças, e uma parte delas entrou nas propostas aprovadas pela Confecom e também no Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3), bombardeado nesse momento pelas forças mais conservadoras da sociedade brasileira.

"A iconofilia pode reverter os clichês em potência e arrancar dos clichês novas virtualidades. Vivemos com as imagens e entre imagens"

As mais importantes ao meu ver: o fim da propriedade cruzada e a proibição de monopólios e oligopólios em todos os setores das comunicações; a revisão dos critérios de concessão de canais de Rádio e TV, para que não sejam outorgas vitalícias; criação de mecanismo de avaliação destas outorgas; criação de mecanismos de monitoramento dos meios de Comunicação pela sociedade (observatórios, conselhos), como qualquer outro serviço público; a elaboração de um novo marco regulatório para os trabalhadores autônomos; a democratização das verbas publicitárias e propostas de apoio e financiamento público para criação de veículos de comunicação, redes de comunicação, de interesse público/comum. Ou seja, assegurar a Comunicação como um direito para toda a sociedade, em todos os níveis (Internet, telefonia, radiodifusão etc.)

O novo marco legal para as Comunicações implica em muitas alterações de ordem jurídica, ética, técnica. É um documento complexo que terá que ser construído coletivamente, mas as principais propostas já estão aí. Recomendo a leitura do documento final da Confecom e o Programa Nacional dos Direitos Humanos.

IHU On-Line – Qual é a sua avaliação geral sobre a Confecom? Quais são os principais avanços contidos no Relatório Final?

Ivana Bentes – A Confecom é uma criação de "futuro", o que a sociedade brasileira, os movimentos sociais, os movimentos pela democratização da comunicação lutaram nesses anos todos. E que teve que se confrontar ou se aliar com outros atores sociais: setor público, empresariado etc. Esse lugar de diálogo e disputa é decisivo e tem que ter continuidade e regularidade. Vejo muitos avanços, mas são propostas que terão ainda que ser defendidas no Congresso, diante da própria sociedade como um todo para serem implantadas e cumpridas.

Algumas questões históricas foram aprovadas dentre essas diretrizes como: a universalização da banda larga no país; o fim da propriedade cruzada e a proibição de monopólios e oligopólios em todos os setores das comunicações; a elaboração de um novo marco regulatório para os trabalhadores autônomos, propostas de apoio e financiamento público para criação de veículos de comunicação que priorizem a produção das periferias, movimentos sociais, minorias; a proposta de um novo marco civil para a Internet (que já está em curso) etc. E muitas outras proposições em termos de financiamento público, jornalismo público e cidadão, democratização das verbas publicitárias públicas.

Em resumo, vejo como principal avanço a ideia de uma Comunicação pública, produzida, regulada, voltada para a radicalização da democracia neste país, para além das corporações e da mídia tradicional, e a entrada em cena de novos atores ligados à cultura digital, blogs, periferias.

"É a sociedade inteira que se apropria das tecnologias e da linguagem jornalística contra o jornalismo. Explodindo o jornalismo corporativo"
Ao mesmo tempo muitas propostas importantes não passaram, foram barradas, negociadas, o que não significa que não possam vir ser implementadas, desde que a sociedade se mobilize para isso.

IHU On-Line – Concorda que houve um boicote das grandes empresas de telecomunicações à Confecom? Por quê?

Ivana Bentes – Houve boicote de algumas emissoras de TV e entidades de classe, ligadas aos empresários da Comunicação, que se sentem ameaçados por todas as mudanças, tecnológicas, políticas, de comportamento que forçam uma mudança do negócio e democratizam a comunicação. E que não tem volta. Diferentemente dos jogos de futebol, em que o adversário não aparece, e o outro ganha por "W.O". Em inglês Walk Over, o verbo significa "to win without difficulty against", ganhar sem dificuldade. Mas as conquistas da Confecom não foram sem dificuldades, e houve ameaças e jogo pesado até o último momento, mesmo com esse W.O. das emissoras de TV, pois todas as propostas ainda terão que ser implementadas, ou seja, serão disputadas uma a uma. Tem muito jogo para se jogar.

A parte boa é que a não participação de algumas emissoras de TV, que seria uma estratégia para "esvaziar" e neutralizar a Confecom, não deu certo. O documento está aí, uma bandeira fincada e reconhecida pela sociedade e pelo governo. Outras entidades e representantes e donos de canais de TV aceitaram discutir e disputar propostas. Houve embate de posições, negociações, e o texto consensuado da Confecom é o "estado da arte" do que a sociedade brasileira, neste momento, consegui consensuar, com todas as limitações e estratégias de esvaziamento. Foi um momento histórico, vivo, vibrante das possibilidades e limites da atual democracia brasileira.

(Reportagem de Greyce Vargas e Moisés Sbardelotto)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A farsa da gripe suína


Investigada, OMS revê regras de pandemia


Pressionada e investigada por causa da gripe suína, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu rever as regras para a declaração de futuras pandemias. O anúncio foi feito ontem pela diretora da entidade, Margaret Chan. Hoje, o Parlamento do Conselho da Europa inicia uma investigação para apurar suspeitas de influência indevida de farmacêuticas na OMS. Alguns cientistas da organização teriam constado na folha de pagamento de laboratórios.

A reportagem é de Jamil Chade e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 19-01-2010.

A acusação veio após a imprensa dinamarquesa obter oficialmente informações de que membros do grupo criado para sugerir medidas à entidade eram cientistas financiados por empresas do setor. Há oito meses, a OMS decretou que o vírus H1N1 havia saído do controle e que o mundo vivia a primeira pandemia do século XXI. Para isso, o critério foi a difusão do vírus em mais de dois continentes.

Países passaram a gastar milhões para se preparar e a indústria farmacêutica focou atenção na nova doença. Menos de um ano depois, o número de mortes foi bem menor do que o esperado, enquanto milhões de vacinas ficaram encalhadas.

Parlamentares europeus centrarão esforços no papel do Grupo Estratégico de Especialistas em Imunização (Sage, na sigla em inglês). Isso porque o jornal escandinavo Information se utilizou de uma lei de liberdade de informação para obter dados sobre as doações recebidas por institutos médicos. Os dados mostram que um membro da Sage, o finlandês Juhani Eskola, recebeu em seu instituto mais de US$ 9 milhões em financiamento da GlaxoSmithKline, uma das empresas que fabricam a vacina contra a gripe. Eskola nega conflito de interesse.

Outro cientista é o holandês Albert Osterhaus, que também faz parte do comitê de aconselhamento. Os deputados holandeses começaram a investigar sua relação com a indústria e o fato de ter recebido bolsas, financiamento e contribuições da GSK, Sanofi, Novartis e outras empresas. No Reino Unido, o cientista responsável por elaborar sugestões ao Ministério da Saúde, Roy Anderson, também passou a ser avaliado por ser um ex-diretor da GSK. "A campanha da gripe suína parece ter causado um dano considerável aos orçamentos públicos, assim como para a credibilidade de agências mundiais de saúde", diz a resolução aprovada pelo Conselho da Europa que dá início à investigação.

A GSK anunciou que vendeu US$ 1,3 bilhão em vacinas apenas no ultimo trimestre de 2009, cerca de 130 milhões de doses. No geral, o setor farmacêutico estimou que poderia vender cerca de US$ 7 bilhões com o novo vírus. Chan disse não "haver nenhuma inclinação a tomar decisões a favor de uma indústria". Ela sugeriu aos países da OMS que comecem revisar as regras de pandemias. "Vamos avaliar se o que fizemos foi bom ou ruim. Baseado nisso, tomaremos novas decisões." Ela acredita que o processo estará concluído até maio.

Os governos do Reino Unido e o do Japão, além da União Europeia, foram os primeiros a alertar que a revisão deveria modificar a forma pela qual a OMS declarará uma pandemia. Os britânicos querem que um dos critérios seja a intensidade do novo vírus. Já o Japão quer que a taxa de hospitalização da doença seja incorporada. O governo do Vietnã enviou uma carta à OMS questionando a entidade sobre as alegações de que teria exagerado nos alertas sobre a gripe. O país gastou US$ 50 milhões em remédios.

Paulo Buss, representante do Brasil no Conselho Executivo da OMS, que ocorre nesta semana em Genebra, acredita que a entidade tomou a decisão acertada em alertar para o vírus. "Ninguém sabia o que viria. Agora é fácil criticar", disse.

Para Chan, foi o trabalho da OMS que evitou que a doença se espalhasse mais. O H1N1 começa a perder força, mas a entidade afirma que é cedo para dizer que a pandemia terminou.



sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Como foi a grande invasão




David Alandete


Os alarmes se acenderam na sede do Google em Mountain View, Califórnia, no início deste mês. Os engenheiros encarregados da segurança das redes da empresa tinham encontrado um vírus troiano. Mais um. Este, no entanto, era diferente dos outros. Havia se alojado nos servidores durante dias, trabalhando silenciosa e incansavelmente. Os espiões tiveram acesso à informação muito valiosa da companhia e à informação relativa às contas de vários usuários do Gmail, o serviço de correio eletrônico do Google.

O troiano, batizado de Hydraq, tinha penetrado nos servidores do Google de uma forma já quase rotineira: um link anexado a um e-mail. Essa mensagem foi recebida por apenas alguns funcionários, mas tratava-se de um grupo muito seleto, que tinha acesso a redes valiosas para a empresa. Os hackers sabiam perfeitamente quem estavam atacando e que portas queriam forçar para entrar no Google e roubar a informação secretamente.

Os espiões tinham enviado mensagens verossímeis, com assuntos e textos semelhantes aos que esses funcionários teriam recebido em um dia normal de trabalho, segundo comprovaram posteriormente empresas de segurança online como Symantec e McAfee. Depois, através de uma falha no Internet Explorer da Microsoft, os hackers teriam causado uma profunda brecha no Google. Quando um troiano desse tipo se instala no computador ou servidor, pode assumir o controle dele; pode acionar e apagar programas, criar privilégios, permitir acessos e, sobretudo, pode enviar informação para seus donos a milhares de quilômetros, à vontade.

Para os engenheiros do Google, o principal era saber para onde o Hydraq tinha enviado aquela informação. Os engenheiros determinaram que se comunicava com servidores de comando e controle que a empresa rastreou imediatamente, seis endereços com nomes como yahooo.8866.org ou ftp2.homeunix.com. Todos eles estão localizados em Taiwan. A grande maioria, cinco, era propriedade da empresa local Era Digital Media.

O que o Google descobriu naqueles servidores era preocupante. O ataque não tinha sido dirigido só à empresa da máquina de buscas mais famosa do mundo. Havia outras 33 companhias atacadas. Muitas delas vitais para a segurança dos EUA, como a empresa química Dow Chemical ou a produtora dos caças B-2 Spirit, Northrop Grumman, contratada pelo Pentágono.

A pedido de Washington, o governo de Taiwan investigou o assunto e chegou à conclusão de que esses endereços eram só uma rota de ataque. Os hackers os haviam ocupado e usado para canalizar a invasão. "Esses endereços IP e os servidores dos quais partiu o ataque e se enviaram aquelas mensagens eletrônicas, todos foram usados no passado por hackers associados ao governo chinês ou por agências que dependem diretamente dele", explica um investigador que trabalha para uma empresa de segurança que presta serviços para outras firmas atacadas e prefere se manter no anonimato. "Isto dá uma ideia de que o ataque veio do governo ou de gente associada ao governo chinês."

O Google informou às outras empresas e ao governo de Washington, alertando sobre o que poderia ser o maior caso de espionagem industrial e estratégica da história. No Departamento de Estado houve certo nervosismo, suficiente para que sua titular, Hillary Clinton, emitisse um comunicado e anunciasse, dias depois, o envio de uma nota de protesto diplomático a Pequim. No Pentágono, entretanto, poucos estranharam: suas agências de inteligência já tinham descoberto em abril do ano passado uma série de ataques semelhantes, que deixaram um rastro de troianos e códigos maliciosos na rede elétrica dos EUA, procedentes da Rússia e principalmente da China.

Aquele ataque foi descoberto semanas e até meses depois de os espiões terem se infiltrado nas redes. O dano já estava feito. Se tivessem desejado, os espiões poderiam ter desligado a eletricidade de regiões inteiras dos EUA, por exemplo. A secretária de Segurança Nacional, Janet Napolitano, disse que se sabia "há algum tempo" desse tipo de infiltração, mas recomendava que o país "ficasse alerta". A China, através de seu Ministério das Relações Exteriores, afirmou que não havia se infiltrado em nenhuma rede pública americana.

Desde os anos da Guerra Fria e das sofisticadas operações de espionagem realizadas por agentes secretos, os procedimentos podem ter mudado drasticamente. "Assim poderia estar sendo feita a espionagem do futuro", explica Rob Knake, analista de ciber-segurança no Conselho de Relações Internacionais de Washington.

"O governo chinês tem todas as capacidades necessárias para armar uma operação dessa escala, disso não há dúvida, embora por enquanto tudo sejam suposições. E tem os recursos humanos e a disciplina necessária para executá-lo, algo que uma organização privada não poderia fazer. Isso demonstra como se pode estar efetuando a espionagem entre nações. Trata-se de operações realizadas através da rede, com muito pouco custo para os que as fazem, e, se derem certo, elevados benefícios."

Na delicada ordem mundial cibernética, a China supera os EUA: sua comunidade de internautas atingiu 380 milhões de pessoas, contra pouco mais de 220 milhões nos EUA, segundo a consultoria Nielsen Online. Além disso, "na China existe uma população abundante de jovens que são muito dedicados à causa do governo", explica Cheng Li, diretor do Comitê Nacional de Relações entre China e EUA e analista do Instituto de Pesquisas Brookings de Washington. "Não podemos dizer que sejam maioria. Mas existem, e são jovens com elevados conhecimentos de informática e com sentimentos indubitavelmente nacionalistas. E para alguns deles uma operação assim seria um triunfo, uma medalha."

Aí está o grande debate: se a operação foi algo cometido por alguns hackers vagamente associados ao governo, como um atentado em rede inspirado pelo fervor patriótico, ou se a mão do governo de Pequim se encontrava efetivamente por trás da operação. A reação da diplomacia americana parece indicar o segundo, pois Washington chegou a anunciar o envio de um protesto diplomático a Pequim.

Em um discurso em Washington na quinta-feira passada, Hillary Clinton deixou claro que os EUA não vão tolerar outro ataque dessas características, com duras advertências: "Quanto ao terrorismo de determinados Estados e seus associados, estes devem saber que os EUA protegerão suas redes, e aqueles que interromperem o livre fluxo de informação para nossa sociedade e para qualquer outra são considerados um risco para a economia, para o governo e para a sociedade civil".

O tipo de informação que os espiões obtiveram parece confirmar que por trás de seu ataque havia algo mais que um simples roubo de dados comerciais. O próprio vice-presidente executivo e chefe do departamento jurídico do Google, David Drummond, telefonou para a ativista tibetana Tenzin Seldon, estudante na Universidade Stanford, para avisá-la de que sua conta do Gmail tinha sido infiltrada. Levaram seu computador portátil. Procuraram troianos, alguma brecha do exterior e não encontraram nada. Os espiões tinham acessado seu correio através de informação armazenada nos servidores do Google.

Segundo um relatório feito no ano passado pela Northrop Grumman para a Comissão Governamental de Assessoria em Economia e Segurança EUA-China, esse é o tipo de informação que o governo de Pequim procura: "As categorias de informação roubada não têm qualquer valor monetário, como números de cartões de crédito ou informação sobre contas bancárias, que são objeto de organizações cibercriminosas. Informação técnica de engenharia de defesa, informação relativa aos exércitos ou documentos de análise política dos governos não são material facilmente vendável pelos cibercriminosos, a não ser que haja um comprador que seja um Estado-nação".

Ao intuir que haveria uma motivação política por trás do ataque, a direção do Google organizou um ato conjunto de desafio ao governo chinês. Pediu às outras empresas que dessem a entender que estavam fartas, que exigissem novas regras do jogo. Mas as negociações não tiveram êxito. As outras empresas -não só Dow Chemical ou Northrop Grumman, mas também a empresa de segurança online Symantec, o Yahoo ou a Adobe- preferiram continuar fazendo negócios na China como sempre, sem irritar o governo.

A própria natureza das empresas afetadas explica por que o Google reagiu desse modo e as outras não. Segundo Ed Stroz, um ex-agente do FBI que agora é codiretor da prestigiosa empresa de segurança digital Stroz Friedberg, "essas empresas têm uma segurança fortíssima. Estamos falando, em alguns casos, de firmas de segurança que trabalham ou trabalharam para o Pentágono. Não têm só uma rede. Normalmente essas empresas contam com diversas redes que não estão conectadas entre si, para salvaguardar a informação".

As empresas deixam vazios entre suas redes para evitar roubo de informação. "Duvido que os hackers tenham chegado ao coração da informação de muitas dessas companhias. Mas o caso é outro se a empresa afetada se dedica a prover serviços aos usuários. Uma empresa concentrada em buscas ou em correio eletrônico como o Google deve ter mais informação em seus servidores gerais. Para elas, a interconexão e a rapidez são vitais. Foi assim que se chegou a obter dados sobre as contas de ativistas, e daí a reação do Google", acrescenta Stroz.

Um dos temores do Google é que os hackers tenham contado com ajuda interna. Ao saber do ataque, a empresa começou a investigar seus funcionários na China. "Minha impressão é que as empresas que localizam sua pesquisa e desenvolvimento na China e empregam cidadãos chineses para trabalhar em seu software provavelmente melhoraram a capacidade de infiltração em informática dos serviços de inteligência e segurança chineses", explica Larry Wortzel, um dos mais reputados especialistas em relações sino-americanas e membro da Comissão Governamental de Assessoria em Economia e Segurança EUA-China.

Afinal, esses são os riscos associados a entrar no maior mercado de Internet do mundo. As empresas ocidentais que buscam um benefício sabem a que se submetem: um mercado opaco, duras normas de censura e a possibilidade de vazamentos e ataques. Para o Google é um preço alto demais. Outras, como Microsoft e Yahoo, decidiram continuar jogando.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Capitalismo oligárquico & crise ecológica



"Pela primeira vez, a humanidade se encontra com o limite dos recursos naturais''


Hervé Kempf, jornalista do Le Monde, acaba de publicar seu segundo livro – Para salvar o planeta é preciso sair do liberalismo – sobre a devastação dos recursos naturais. Expõe que, para desenhar políticas ecológicas, é preciso priorizar valores opostos aos que regem o ordenamento econômico e social do mundo.

A entrevista é de Eduardo Febbro e publicada pelo jornal Página/12, 11-01-2010. A tradução é de Vanessa Alves.

Com uma grande capacidade pedagógica e sem jamais cair na histeria anticapitalista ou na denúncia incendiária embebida em outras ideologias, Kempf apresenta uma evidência perante a qual o ser humano fecha os olhos: a humanidade se dirige para sua perda levada por um modelo político e econômico que terminou por contaminar e esgotar a essência mesma da vida. Como sobreviver a semelhante cataclismo? De uma só maneira, diz Kempf: rompendo as amarras que nos ligam ao capitalismo. Kempf demonstra que o capitalismo atual, enredado pela corrupção, a gula, a cegueira e o apetite especulativo de seus operadores é o responsável pela crise ecológica que ameaça a existência de nossa aventura humana. O único remédio é, diz Kempf, romper sua lógica, restaurar e inventar outros valores antes que um cataclismo nos engula. Hoje, o sistema capitalista nem sequer é capaz de garantir a sobrevivência das ge rações futuras. Para salvar o planeta é preciso sair do liberalismo sairá na Argentina no primeiro semestre deste ano sempre nas impecáveis e indispensáveis edições de Livros do Zorzal.

Eis a entrevista.

No seu livro anterior, Como os ricos destroem o planeta, o senhor expôs um aspecto do saque de nosso planeta. Nesta segunda obra, o senhor formula, ao mesmo tempo, uma denúncia implacável sobre os estragos causados pelo sistema ao planeta e propõe uma metodologia para atenuar a crise do meio ambiente.

Estamos ao mesmo tempo em uma situação de crise ecológica extremamente importante, com uma dimensão histórica nunca vista antes, e em um sistema econômico que não muda apesar de todos os indicadores ecológicos estarem no vermelho. A classe dirigente, que eu chamo oligarquia, escolheu não tomar as medidas necessárias para atenuar a crise ecológica porque quer manter seus privilégios, seu poder e suas riquezas exorbitantes. A oligarquia sabe perfeitamente que, para ir para uma política ecológica, seria preciso colocar em dúvida suas vantagens. Para a filosofia capitalista, todas as relações sociais estão garantidas unicamente pelo intercâmbio de mercadorias. Para sair dessa situação e voltar a uma política ecológica e de justiça social, é preciso trabalhar os valores de cooperação, de solidariedade, de bem comum, de interesse geral.

Há assim dois cataclismos simultâneos: o esgotamento do sistema econômico e o esgotamento dos recursos naturais e as mudanças do clima. Ambos poderiam acabar num enfrentamento.

Já estamos constatando esse enfrentamento. A oligarquia mantém um modelo cultural de hiperconsumo que divulga para o conjunto da sociedade através da televisão, a propaganda, os filmes. Esse modelo tem que mudar, mas está tão arraigado na maneira de viver da oligarquia com sua enorme acumulação de riquezas que esta se opõe a essas mudanças. Um milionário nunca aceitará andar de bicicleta porque seu modelo, seu poder, seu prestígio, é o carro caro. Se queremos atenuar a crise ecológica, este é o modelo que devemos romper. É necessário reduzir o consumo material e o consumo de energia. Estamos então em pleno confronto entre a ecologia e a justiça, por um lado, e, pelo outro, uma representação do mundo totalmente inadaptada aos desafios de nossa época.

Por acaso a defesa do meio ambiente, tudo o que está ligado ao clima, não pode chegar a se converter em uma nova forma de plataforma política mas já não marcada pela ideologia?

Sem dúvida que sim, ainda mais que estamos em uma situação histórica que nos impõe essa plataforma. A crise ecológica que estamos vivendo é um momento histórico. É a primeira vez que a humanidade se depara com os limites dos recursos naturais. Até agora, a natureza nos parecia inesgotável, e isso permitiu a aventura humana. Mas há uma geração compreendemos que chegamos num limite, entendemos que a natureza pode se esgotar e que a humanidade, a civilização, deve estabelecer um novo laço com seu meio ambiente, com a natureza, a biosfera. O momento é a tal ponto histórico que em um curto prazo, 20 ou 30 anos, este é o tema que dominará todas as questões políticas. Esse é o elemento-chave de toda política que, sem ideologias, busca definir um pós-capitalismo ecológico e social. Em menos de duas décadas, devemos mudar nossa sociedade para enfrentar o desafio do muro ecológico ao que a cultura humana está confrontada. Somos obrigados a realizar uma mutação cultural, não só na forma de conceber a sociedade, isto é, o desprendimento dessa cultura capitalista que se voltou mortífera, mas também na maneira em que interrogamos a cultura ocidental e essa dicotomia existente entre natureza e cultura. Passamos para outro momento histórico.

Mas hoje temos uma condição de paradoxo geral: estamos num sistema capitalista ultra-individualista e competitivo ao mesmo tempo em que vivemos numa sociedade de coletivização da informação e de contato através da Internet.

A Internet e a comunicação direta entre indivíduos não têm ainda o suficiente contrapeso. O poder capitalista não só controla os fluxos financeiros ou o poder econômico, também controla os meios de comunicação, e isso impede que exista uma verdadeira expressão da crítica social ou a difusão de visões alternativas. A Internet é, por enquanto, um canal de segurança através da qual a crítica social e a crítica ecológica, que agora começam a andar juntas, começam a ter canais de informação independentes. No entanto, por enquanto, essa utilidade é muito menos potente. As capacidades de informação alternativas da Internet ou dos livros e revistas são ainda frágeis frente aos meios dominantes, especialmente a televisão, que está nas mãos da oligarquia e que imprime na sociedade uma visão controlada, dirigida e convencional das coisas.

O senhor assinala também os limites da ilusão tecnológica. O senhor demonstra como a oligarquia nos faz acreditar que a tecnologia vai resolver todos os nossos problemas e como e por que se trata de uma mera ilusão destinada a perpetrar o sistema.

O sistema capitalista quer crer que vamos resolver os problemas, em particular o do aquecimento global, recorrendo aos agrocombustíveis, à energia nuclear, à energia eólica e a outras diversas tecnologias. É certo que essas tecnologias podem ter um papel, mas de nenhuma maneira estão à altura do desafio que nos coloca o aquecimento do planeta. E não é possível que seja assim porque, por um lado, o prazo e a dificuldade para levá-las à prática requerem muito tempo para assumir as transformações necessárias. As mudanças climáticas se produzem agora a uma velocidade muito alta e, daqui a uns dez anos, já temos que haver mudado de rumo. Por outra parte, todas essas técnicas, se bem que algumas têm efeitos favoráveis, também têm efeitos secundários muito prejudiciais que não podemos ignorar. É óbvio que é necessário seguir investigando novas tecnologias, mas não podemos colocar a tecnologia no centro das ações que devem empreender nossas socieda des. Essencialmente, para prevenir o agravamento da crise ecológica é preciso reduzir o consumo material e o consumo de energia. Essa é a solução mais direta. Mas essa mudança profunda de orientação de nossas sociedades só se fará se o esforço for compartilhado de maneira equitativa, e isso passa pela redução das desigualdades. Ninguém aceitará mudar seu modo de vida se ao mesmo tempo seguimos vendo milionários com Mercedes enormes, navios gigantescos e aviões privados. Esclareço que reduzir o consumo material e de energia quer dizer que vamos substituir, reorientar nossa riqueza coletiva.

O senhor diz a respeito que o futuro não está na tecnologia, mas no formato de uma nova relação social.

A questão que está no centro de nossas sociedades consiste em saber como os indivíduos pensam de si mesmos e como pensam dos demais. Por isso, devemos sair desta visão individualista e competitiva, dessa visão do crescimento indefinido. A briga se joga na cultura: trata-se de saber o que é que define uma consciência comum.

O senhor se burla com muita pertinência desse discurso de proteção do meio ambiente que tende a fazer de cada indivíduo um militante ecologista sempre e quando este fizer certos gestos – dividir o lixo, por exemplo– individuais. O senhor define esse método também como um engano da oligarquia.

Sim, há um discurso que diz “se cada um de nós fizer um esforço” isso resolverá as coisas. Não. Sem dúvida que consumir menos água e andar menos de carro ajuda, mas esse enfoque individualista não resolve nada. Por quê? Porque, no fundo, há uma questão política: se eu decido circular de bicicleta, mas o governo e as grandes empresas decidem construir novas estradas, de nada adiantará que eu circule de bicicleta. Além disso, dizer às pessoas que são elas que farão avançar as coisas com pequenas ações individuais equivale a permanecer no esquema individualista, que é o do capitalismo. Não resolveremos nada com soluções individualistas, mas mediante uma combinação coletiva e com atos coletivos.

Para o senhor existe um laço primordial entre a crise ecológica e a liberdade, por isso ressalta que é importante salvar a liberdade contra a tentação autoritária do capitalismo.

No curso de sua história, o capitalismo esteve associado à liberdade, à democracia. Inclusive, no período da Guerra Fria, o capitalismo estava associado ao mundo livre e à democracia na sua luta contra a União Soviética. Mas depois do desaparecimento da URSS, o capitalismo perdeu seu inimigo. Agora começamos a notar, no pensamento da oligarquia, uma negação da democracia e um abandono da ideia segundo a qual a democracia é algo positivo. Estamos em um período onde os capitalistas não estão de acordo com a democracia. Ao contrário, consideram que a democracia é, para eles, algo perigoso porque, evidentemente, uma sociedade democrática põe em dúvida o poder e, consequentemente, colocará em perigo a oligarquia. Tivemos um exemplo disso com a administração de George Bush. As democracias dos países do Norte, os Estados Unidos e a Europa, estão cada vez mais doentes, mais debilitadas.

Em que plano se inscreve a ecologia nesta crise da democracia?

As tensões ecológicas estão se agravando cada vez mais e, ao mesmo tempo, a oligarquia persiste em querer manter uma ordem social baseado na desigualdade. A tentação de recorrer a meios cada vez mais policiais é cada vez maior: vigiar a população, os opositores, ter arquivos imensos, mandar muita gente à prisão, para mudar, restringindo-os, os textos de lei relativos às liberdades individuais e de expressão. Se a sociedade não se acorda e não conseguimos que antecipem nossas ideias sobre a justiça social para fazer frente à crise ecológica, a oligarquia, enfrentada ao perigo ecológico, cairá na tentação de utilizar meios mais e mais autoritários.

Isso foi o que vimos ao vivo na conferência sobre o clima que aconteceu em Copenhague. A polícia reprimiu a tempo os representantes das ONG convidadas pela mesma ONU. Talvez Copenhague não tenha sido uma visão de nosso futuro?

Absolutamente, é assim. Em Copenhague, promoveu-se, além disso, uma convergência entre o movimento ecologista e os militantes antiglobalização, movimento baseado nos valores de justiça social. Isso quer dizer que agora a questão da mudança climática se coloca em termos políticos. O segundo, houve muitas manifestações, frequentemente muito alegres, imaginativas e não violentas, que foram reprimidas de maneira tão sutil quanto perigosa. Em Copenhague, vimos a experimentação de uma condição de ditadura suave que a oligarquia está aplicando. Copenhague foi uma entrevista importante porque ali se afirmou algo essencial: a contra-sociedade se manifestou ali de maneira mundial.


quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Incertezas sobre a 'web' 2.0





"A atual crise econômica (global, financeira e de confiança) colocou sob suspeita a rentabilidade das redes sociais de modo que, provavelmente, encontramo-nos perante a segunda borbulha, o segundo cybercrash da era Internet", escreve José Maria Álvarez Monzoncillo, catedrático de Comunicação Audiovisual na Universidade Rey Juan Carlos, em artigo publicado pelo jornal El País, 08-01-2010. A tradução é de Vanessa Alves.

Eis o artigo.

Depois de superada a crise da web 1.0 representada pela quebra das companhias pontocom no início do presente século, a web evoluiu para outro modelo menos voltado para o negócio e comércio eletrônico. Esta nova etapa, conhecida como web 2.0 ou redes sociais, baseia-se mais na comunicação entre pessoas e comunidades (many to many frente ao one to one). Nesta etapa, havia esperança de que as empresas de Internet alcançassem sua rentabilidade graças à publicidade e ao tráfego gerado. Isto fez com que os grandes nomes da Internet tomassem atitude frente ao fenômeno das redes sociais buscando novas sinergias (Google-YouTube, My Space-News Corporation, Facebook-Microsoft etc.) ou se introduzissem no negócio dos buscadores (Microsoft-Yah oo).

Simultaneamente, a web evoluiu de forma natural, otimizando as pesquisas. Já não só indexavam páginas web, mas levavam em conta o contexto e o significado (web 3.0 o web semântica). Esta lógica evolução da web obedece a seu design e a sua arquitetura iniciais: compartilhar (sua origem universitário) e deslocar e sobrepor (sua origem militar). Desta maneira, as duas formas de fazer se contrapõem: comunidades virtuais frente a pessoas, blogs versus home pages, directories versus tagging, portals versus RSS, pages views versus cost per click, adversiting versus word of mouth etc. É Netscape frente a Google, e, como con sequencia da lógica do negócio, e na atualidade, de todos contra Google.

Mas a atual crise econômica (global, financeira e de confiança) colocou sob suspeita a rentabilidade das redes sociais de modo que, provavelmente, encontramo-nos perante a segunda borbulha, o segundo cybercrash da era Internet. Parecia que a crise econômica não iria afetar Silycom Valley, mas já se observa certo movimento na falha de São Francisco. Em 2008, as redes sociais foram saudadas como antídoto para as empresas tecnológicas, mas hoje parece que o futuro está mais no lítio que no silício. A Nasdaq se desequilibrou como o resto dos setores, e os investimentos em start-ups ficaram escassos. Os mais de 1.200 milhões de pessoas conectadas em redes sociais não conseguiram ainda que YouTube, Facebook ou Tuenti sejam rentáveis. Somente My Space conta com um modelo de benefícios porque está ligado ao tráfego no telefone cel ular. Enquanto isso, os meios de comunicação estão tentando se adaptar à competência que representa a Internet, sem conseguir resultados importantes.

Mas, na atualidade, a publicidade está em crise, e também deixou de investir na Internet. O cost per mil foi reduzido no último ano em torno de 40%. As pequenas e médias empresas não conseguem entender a Internet. Os anúncios em redes sociais não são atrativos para as grandes companhias, pois não é uma publicidade contextual ao aparecer com outros vídeos, fotos ou links com mensagens contraditórias, e, em alguns casos, negativos para sua estratégia de marca. Os internautas tampouco parecem que sejam tão participativos e ativos na Internet. A regra 90-9-1 criada por Jacob Nielsen parece que se cumpre em todas as comunidades criadas: 90% são audiência, mas não geram conteúdos; 9% são editores ao modificar e opinar sobre o que outros geram, e somente 1% são criadores. Os milhões de blogs são verdadeiros monólogos, sem capacidade de influência e sem que suas opiniões cheguem a ninguém. A escada gerada por Forrester, s egmentando de acordo com os diferentes níveis de participação na rede, tampouco parece se cumprir (creators, critics, joiners, spectators, collectors e inactives). As redes sociais evoluirão para o marketing, desenvolvendo novas produtividades e rompendo a lógica pela qual surgiram.

A verdadeira revolução não vem da mão das redes sociais, e sim da aplicação assassina de maior êxito na Internet: os portais P2P. Ou do desfrute online de todo tipo de conteúdos, maquiados por novos intermediários. Um modelo que consiste em intercambiar arquivos gratuitos que outros fizeram trabalhando e investindo seu dinheiro. Até agora, o mercado tem dois lados que se equilibram: os que pagam e os que não. O dia em que se generalizar a escala planetária a gratuidade se acabará a informação contrastada, os bons filmes, séries e música. Estas surgem de um esforço que não se pode traduzir mais que em rendas de trabalho e em benefícios empresariais.

A sociedade amateur, a free culture de Lessing ou a free economics de Anderson são um sonho impossível, que está se convertendo numa nova religião com excessiva ideologia. Os conteúdos financiados somente pela publicidade e os autogerados pelos usuários sem lucro não podem substituir o conjunto dos meios de comunicação e as indústrias do entretenimento ao minguar drasticamente seus recursos. Se abrirá claramente uma brecha entre conteúdos low cost e premium. Assim como agora, uns pagarão a publicidade e outros diretamente os usuários-consumidores. Enquanto isso, a web 2.0 não dá benefícios, e já se fala da web 3.0. Outros põem o prefixo 2.0 em tudo porque está na moda, esperando que caiam as nozes sem balançar a nogueira.


terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Robôs para suprir a falta de seres humanos



Na maioria dos filmes norte-americanos de ficção-científica, os robôs costumam representar certo perigo para a humanidade, em alguns inclusive chegam a governar o planeta Terra acima dos seres humanos. Por outro lado, em filmes e na manga japonesa os robôs costumam ser criaturas amáveis, empáticas e com sentimentos. São seres benévolos e inclusive heróicos. Por exemplo, em algumas séries de desenho animado, os robôs ajudam a humanidade a salvar o nosso planeta das ameaças de extraterrestres. A maioria dos japoneses gosta da ideia de uma sociedade na qual os robôs tomem cada vez mais protagonismo auxiliando-os na vida diária.

A reportagem é de Héctor García e está publicada no jornal espanhol El País, 24-12-2009. A tradução é do Cepat.

Há uma previsão de que a população do Japão passe dos atuais 127 milhões de habitantes para 103 milhões, em 2050. Esta previsão é otimista quanto às taxas de natalidade e de imigração. Trata-se de uma diminuição de população sem precedentes na história da humanidade e que já está afetando a economia do país.

Atualmente, o Japão é o país com maior população de robôs do mundo. Em todo o planeta há 1.000.056 robôs industriais em funcionamento, de acordo com o censo realizado pela Federação Internacional da Robótica. Quase a terça parte destes robôs, 298.000 unidades, está no Japão, 166.000 nos Estados Unidos, Canadá e México, e 336.000 na Europa. O mercado da robótica industrial representou em 2008 mais de 9 bilhões de euros, e 79% deste mercado é controlado por corporações japonesas, sendo a maior delas a Kawasaki, mais conhecida no Ocidente por suas motos que por seus robôs.

Anos atrás se debatia o problema que poderia supor que os robôs tirassem trabalho dos seres humanos, o que aumentaria as taxas de desemprego. No Japão, o irônico é que a falta de seres humanos está fazendo necessário que os robôs os substituam sem afetar minimamente a taxa de desemprego. Os robôs se converteram em parte da mão-de-obra do país. A Toyota é a empresa do mundo que mais robôs industriais tem em funcionamento e é também a empresa que os utiliza com maior eficiência. As linhas de produção da Toyota são as mais rápidas do mundo; seus robôs podem construir um carro em horas sem nenhuma intervenção humana.

Outro tipo de robô que está começando a suprir a falta de pessoas são os robôs de serviço. O Japão enfrenta uma grande falta de enfermeiros e enfermeiras. Uma consequência do envelhecimento da população é que cada vez há mais pessoas que ingressam em hospitais e centros geriátricos. A falta de jovens que possam trabalhar assistindo a anciãos se resolve com robôs capazes de ajudar uma pessoa a se levantar da cama e acompanhá-la até o banheiro ou fritar-lhe um ovo.

Defesa, resgate, segurança e logística, são outros setores nos quais os robôs de serviço vão cobrando protagonismo. Já há vários casos em que os robôs foram os heróis de um resgate, sobretudo em casos de terremotos.

Entre robôs industriais, robôs de serviço e robôs domésticos se calcula que há uma população ativa de mais de cinco milhões de robôs no Japão. Para o final da próxima década as estimativas dizem que serão mais de 30 milhões. Os robôs estão cada vez mais presentes em nossa vida diária, não só no Japão, mas em todo o mundo. Estão aqui para facilitar a nossa vida e, de forma indireta, estão mudando as regras do jogo na sociedade e na economia, assim como o fizeram os computadores na segunda metade do século XX.


domingo, 17 de janeiro de 2010

Os passageiros estão nus





No futuro, quando se quiser viajar, primeiro será preciso ficar nu. É uma moda nova. Ela chegou nos EUA, mas a Europa a está adotando com estardalhaço. Holanda, depois Grã-Bretanha e França em seguida. O rebuliço todo foi motivado por um jovem nigeriano que tentou explodir um avião na rota de Amsterdã para Detroit, mas fracassou.

O comentário é de Gilles Lapouge, jornalista francês, e publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, 09-01-2010.

Para um atentado frustrado, ele até que funcionou. Temerosas, autoridades instalaram em aeroportos aparelhos complexos capazes de ver através das roupas e o nigeriano conseguiu obrigar uma legião de homens e mulheres a se despir diante de um funcionário de aeroporto.

A roupa - isso é, o pudor, a intimidade - é uma das marcas da condição humana. A quase totalidade das civilizações considera a nudez um tabu. É por isso que, quando europeus enfiaram seus narizes na América e na África, duas coisas os chocaram: primeiro, que aqueles "selvagens comiam uns aos outros" e, depois, que estavam todos nus.

Cientistas e teólogos inicialmente opinaram que aquela gente nua não era humana. Foi preciso que o papa escrevesse uma bula para decretar que é possível estar completamente nu e, mesmo assim, ser homem ou mulher.

É preciso que o pânico das sociedades seja grande ante a ameaça dos terroristas para que esse tabu tão antigo, tão maciço, se desfaça.

As resistências são grandes, é verdade. Estudam-se novos scanners que terão a delicadeza de queimar logo em seguida as imagens. Enfim, será dada aos viajantes a possibilidade de recusar o scanner, com a condição de aceitarem se submeter à "apalpação". A escolha é sua!

Podem-se imaginar os diálogos no aeroporto: "Minha senhora, o que prefere? Se mostrar inteiramente nua ou ser apalpada?" Tudo isso porque um nigeriano não conseguiu detonar uma bomba.

Ninguém subestima o terrorismo. Mas não será entrar no jogo do terror dar uma resposta tão gigantesca?

sábado, 16 de janeiro de 2010

Apocalipse do corpo





"O escâner nos aeroportos ampliará a já desrespeitosa indecência da esfregação em busca de objetos de metal nos passageiros", afirma José de Souza Martins, sociólogo, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 10-01-2010.

Eis o artigo.

A adoção de escâneres de corpo inteiro nos aeroportos, a começar da Inglaterra, escandaliza o que resta de consciência pudica neste mundo. É violação de privacidade e de direitos individuais, ainda que em nome da presumível segurança de todos. A reação da sociedade inglesa ao escaneamento de crianças nos aeroportos é bem indicativa da ilegalidade do procedimento. A saída já anunciada é mudar a lei que inibe o voeyurismo policial.

Aeroporto é outro mundo, que nada tem a ver com a nossa vidinha cotidiana, ainda demarcada pelas inocências do repetitivo. E não se trata apenas da repressão à imigração ilegal, ao tráfico de drogas ou ao terrorismo. Aeroportos são lugares de imensos desencontros culturais. Do mesmo modo que arquitetura de aeroporto é mais ou menos igual no mundo inteiro, a mentalidade de quem nele trabalha é idêntica em todas as partes, apesar das diferenças de nacionalidade e de língua. Embora pelos aeroportos passe, justamente, a imensa variedade da condição humana, a enorme diversidade cultural e social que na prática questiona essa uniformidade redutiva e repressiva. De modo que, mesmo que um país decida não adotar o escâner que viola a intimidade das pessoas, como a Espanha, que se manifestou nesse sentido, a mesma cultura repressiva, da qual o escâner é mero desdobramento, já se instalou na microssociedade de seus aeroportos, como o de Barajas, em Madrid. Ali apenas continuarão a ser usados os métodos da devassa consentida porque compulsória. Ou o passageiro se sujeita ou fica em casa.

Foi insólito o que no mesmo aeroporto se passou com um casal de primos meus, ambos descendentes de espanhóis imigrados para o Brasil há quase cem anos. Minha prima, já avó, é neta de avós espanhóis, que desembarcaram em Santos, em 1913, imigrantes pobres, com passagem paga pelo governo de São Paulo. Ficaram na Hospedaria dos Imigrantes até que a requisição de mão de obra de um fazendeiro de café, de Bragança Paulista, lhes decidisse o destino.

Minha prima e o marido, pequenos sitiantes, trabalhadores de roça, com cerca de 70 anos de idade, decidiram juntar as pequenas sobras da economia de uma vida e fazer curta viagem à Espanha mítica e ancestral. Passaportes nas mãos, passagens e algum dinheiro no bolso, desembarcaram em Madri para fazer a conexão para Málaga. Gente simples, educada na severa cultura caipira, com forte sotaque, conhecem apenas umas poucas palavras da língua espanhola, a única herança que lhes restou dos avós.

Não deu outra: não passaram pelo crivo visual do policial fardado que neles viu candidatos certos à devolução imediata, suspeitíssimos. Prostituição não era, em face da idade evidente. Tráfico, só por inocência. Trabalho clandestino, as marcas do desgaste físico não sugeriam. Aqueles dois eram um mistério não catalogado no manual de suspeições visuais da polícia do aeroporto. Eles, no entanto, ficaram felizes com a interpelação severa do policial carrancudo e a ela se sujeitaram com prazer e mesmo alegria. Achavam que o governo espanhol os recebia e lhes fazia a inquirição para obter evidências de que eram gente boa, como são. Era um exame de admissão e de caráter, ao fim do qual, tinham certeza, receberiam a aprovação do governo da pátria de seus avós, que, se estivessem vivos, deles se orgulhariam. Mais do que temer o interrogatório, ansiavam por ele.

Tão inocentes, que ainda quiseram tirar, sorridentes, fotografias com o policial enquanto ele fazia as perguntas. "Quanto dinheiro vocês trouxeram?" Levavam o que lhes pareceu suficiente à luz de sua modesta e rústica concepção de economia. Os dois trabalhavam desde quando eram crianças e passaram a vida no cabo do guatambu, como se diz na roça, puxando enxada em duras e longas jornadas de trabalho. Naquelas toscas economias da viagem ao paraíso estava resumida essa vida penosa, de muito suor e lágrimas.

Mais fotografias, encantados com o imenso respeito que viam no meganha que estava ali para mandá-los de volta e não para recebê-los. "Qual o nome e o endereço do hotel em que vão ficar?" "Não, moço, não vamos ficar em hotel, não. Nós temos família aqui." Iam ficar numa aldeia, na casa de uma parenta que não conheciam e com a qual trocavam correspondência. Ela os incitara à viagem, dizendo-lhes que podiam ficar em sua casa. Mais fotografias, sorrindo e agora passando o braço por cima do ombro do policial, como se ele também fosse parente. "E quanto tempo pretendem ficar na Espanha?", perguntou, ainda em busca de pretexto para mandá-los de volta. "Ah, moço, não é muito tempo não. Temos que voltar logo porque deixamos as vacas e a roça aos cuidados dos filhos." Últimas fotos e o policial se deu por vencido. Puderam, então, ver um pequeno canto da terra-mãe ancestral e matar a estranha saudade de quem nunca lá estivera.

A adoção do escâner da devassa corporal não superará essa cultura da repressão e da desconfiança nem desencontros como esse. Embora, de fato, tudo indique que a adoção do escâner de corpo inteiro represente um progresso em relação à barbárie aeroportuária que se expressa na grosseria e na arbitrariedade dos chamados oficiais de imigração em muitos países, como a Itália e a França. De fato, escaneados já são os passageiros com instrumentos comparativamente rústicos e com o olhar racista dos insensíveis à humanidade do outro. O escâner de corpo apenas ampliará o nível da desrespeitosa indecência que há na esfregação daquele aparelhinho que tenta localizar objetos de metal escondidos sob a roupa dos passageiros, mesmo no meio das pernas. Bispos, padres e freiras, sisudos judeus ortodoxos, resguardadas muçulmanas de véu ou de burka, solenes bispos e padres ortodoxos terão sua intimidade devassada e suas vergonhas acessadas. Chegamos ao fim do s tempos, os da violação visual dos corpos de cidadãos de pudica consciência, mesmo os revestidos das interdições do sagrado.