domingo, 24 de agosto de 2014

Supercapitalismo

Supercapitalismo: a transformação da sociedade
 
Por Ladislau Dowbor, novembro de 2009
 
O estudo de Robert Reich, “Supercapitalism”, é sem dúvida mais ambicioso que seu anterior “O futuro do sucesso”. Agora ele foca o conjunto das nossas relações econômicas, sociais e culturais, partindo do mesmo capital de conhecimento que lhe foi dado nos anos que passou tentando implementar uma política mais digna nas relações econômicas, no quadro do governo Clinton. Reich sente na ponta dos dedos como se dão as estruturas de poder realmente existentes no que chamou de Supercapitalismo.
Este supercapitalismo, na realidade, é simplesmente o vale-tudo econômico e financeiro que se instalou no quadro do que temos chamado de globalização, e cuja lógica interna o autor destrincha de maneira impressionantemente coerente. Não é aqui um comentário simpático sobre um livro simpático: Reich nos traz realmente uma compreensão das dinâmicas, com inúmeros exemplos práticos de empresas e comportamentos bem documentados, e o tipo de desafios que enfrentamos torna-se muito mais claro. Além do mais, Reich escreve de maneira excepcional: um comentarista do San Francisco Magazine escreveu sobre esta obra: “Reich faz parte de uma espécie muito exótica: um economista que sabe escrever”.
Reich parte dos bastidores: não vai culpar Margareth Thatcher, Ronald Reagan ou Milton Friedmann pelo fim dos Anos Dourados (1945-1975, que ele aliás qualifica de anos “não tão dourados”), e sim vai buscar as causas nas transformações tecnológicas, na globalização resultante, e no vale-tudo das guerras intercorporativas que de certa forma aniquilou as capacidades dos governos fazerem política econômica no sentido amplo. E o autor analisa extensamente a base política para este processo: o consumismo dos prósperos, que falam mal das truculências da Wal-Mart mas aproveitam os seus preços, e o interesse dos investidores que adoram o meio-ambiente mas compram ações da Exxon-Mobile porque rendem mais.
Gerou-se assim um esquizofrenia social, na medida em que como consumidores queremos o melhor negócio, como investidores o melhor retorno, enquanto como cidadãos queremos uma sociedade decente e sustentável. No centro da dinâmica, temos a apropriação dos políticos através do financiamento privado das campanhas, e a monopolização da agenda do congresso e do executivo pelos lobbies dos grandes grupos empresariais, com as suas gigantescas campanhas (a indústria farmacêutica contra a regulação dos medicamentos, da indústria da saúde contra a saúde pública etc.).
O mecanismo de mercado, que sobrevivia nos “Anos não tão dourados” mediante acordos relativamente equilibrados entre empresas, Estado e sindicatos, alimentando uma ampla classe média, já não nos protege. Wal-Mart (e outros tantos) esmagam os produtores ao usar o seu poder para reduzir os prêços na origem, e navegam na satisfação dos compradores e dos acionistas. Os jornais louvam. Os consumidores se lambuzam. Gera-se uma classe de rentistas prósperos e a correspondente concentração de renda. O meio-ambiente sofre e o consumismo leva a impasses planetários. Mas o baile continua.
O espaço político local de regulação desaparece. “Pittsburgh já abrigou as fábricas e operários que a Alcoa então precisava. Mas agora, esses tipos de bens podem ser encontrados em qualquer lugar, porque as cadeias globais de suprimentos da Alcoa os fornecem sem esforço nenhum. Executivos da empresa negociam rotineiramente com o mundo todo. Tudo o que a companhia precisa pode ser encontrado em Nova York, onde os executivos da Alcoa têm acesso imediato aos melhores bancos, advogados, consultores e profissionais de comunicação. Esse quadro de especialistas, junto com o time da Alcoa, implanta uma cadeia global de suprimentos e colocam no mercado os produtos e serviços da companhia de forma a satisfazer os investidores (representados por Wall Street) e os consumidores da Alcoa (representados pelo Wal-Mart e outras grandes redes varejistas) na sua luta diária para obter grandes ganhos”. (119)
Reich, por experiência adquirida, mas também por pesquisa, tem forte desconfiança de que os comportamentos irão mudar pela boa vontade das corporações. Inclusive, segundo ele, porque os investidores “não sabem ou não se importam”(176). O autor cosntata que “A maioria dos ‘fundos socialmente responsáveis’conta com a participação de praticamente todas as grandes empresas em uma típica carteira de fundo mútuo. Em 2004, trinta e três fundos socialmente responsáveis estavam ligados às ações do Wal-Mart, vinte e três ao Halliburton, quarenta à ExxonMobil, e quase todos à Microsoft, em sua tentativa de resistir ao controle de mercado. No início dos anos 2000, muitos possuíam ações da Enron, da WorldCom e da Adelphia, e nenhuma dessas empresas eram conhecidas por prestarem serviços públicos.”(177)
Malvadeza das corporações? Não, lógica do sistema. Permite remunerar bem os acionistas e oferece bons preços aos consumidores. Isto articula a poderosa minoria dos que concentram ações, e uma classe mais ampla de afortunados que têm capacidade de compra. E um CEO que não alimentar estes interesses perde o cargo. A solução não está (ou não apenas) na empresa ser decente, mas em haver leis que assegurem que esta decência seja respeitada, e não dependa da boa vontade passageira de um executivo. Inclusive, porque na dinâmica atual do mercado, quem incorrer em custos maiores por respeitar determinados valores sociais, vai perder mercado, e logo perder o emprego.
Reich tem aqui um surto de sinceridade: “Por muitos anos tenho pregado que responsabilidade social e lucro são conquistados no longo prazo. Isso porque uma empresa que respeita e valoriza seus funcionários, a comunidade e o meio ambiente certamente ganha o respeito e a gratidão dos funcionários, e de toda a comunidade – o que, eventualmente, ajuda o bottom line. Mas eu nunca consegui provar essa proposição, nem encontrar um estudo que a confirme.” (171)
As soluções, segundo Reich, não estão na recuperação da ética corporativa, mas no resgate da capacidade do Estado negociar os pactos necessários para uma sociedade mais equilibrada. Isto envolve, antes de tudo, tirar o dinheiro corporativo de dentro das campanhas eleitorais, o dinheiro do lobby do gabinete dos senadores e dos juizes, resgatando um equilíbrio que desapareceu, entre as nossas dimensões como consumidores, aplicadores financeiros, e cidadãos.
A perda da nossa dimensão cidadã leva à detorioração dos nossos interesses como sociedade, e exacerbação dos nossos interesses como indivíduos. “Se a maioria das pessoas sempre tem duas opiniões sobre o Supercapitalismo, porque então o lado dos consumidores-investidores sempre ganha? A resposta é que os mercados se tornaram extremamente eficientes em oferecer as melhores ofertas para os desejos individuais, mas são muito ruins em atingir os objetivos que gostaríamos de alcançar juntos. Enquanto o Wal-Mart e Wall Street agregam as exigências dos investidores e consumidores em formidáveis blocos de poder, as instituições que agregam os valores dos cidadão estão caindo.” (126)
Alternativas? São variadas e interessantes, e aqui aflora o ministro do trabalho que foi: “A única maneira para os cidadãos vencerem os consumidores e investidores em si mesmas é por meio de leis e regulações que façam de nossas compras e investimentos uma escolha ao mesmo tempo social e pessoal. Uma mudança na legislação trabalhista que facilite a negociação de melhores condições para os trabalhadores pode, por exemplo, aumentar ligeiramente o preço de produtos e serviços que se compra – especialmente nos serviços locais que não fazem parte da concorrência global. Meu consumidor interior não vai gostar muito disso, mas o cidadão em mim acredita que esse é um preço justo a se pagar. Eu também defendo um pequeno imposto sobre as vendas de ações, com o objetivo de diminuir ligeiramente o movimento de capitais para que as pessoas e as comunidades tenham um pouco mais de tempo para se adaptar às novas circunstâncias. Isso poderia reduzir o retorno no meu fundo de aposentadoria por uma pequena fração, mas o cidadão em mim acha que vale a pena. Pela mesma razão, parece-me que deveria haver “disjuntores” para prevenir que o número de trabalhadores em uma empresa grande e rentável caia mais do que uma certa proporção no decorrer de um ano.” (127)
“Eu não iria tão longe na re-regulação do setor de transportes aéreos ou em estabelecer um livre comércio com a China e a Índia – isso custaria-me muito mais como consumidor – mas eu apoiaria mais um seguro-desemprego combinado com um seguro-salarial e treinamento profissional para aliviar a dor dos trabalhadores que sofrem com as consequências da desregulamentação do comércio. E eu acho que os tratados comerciais deveriam exigir que todas as nações participantes permitam que seus cidadãos organizem sindicatos e estabeleçam salários mínimos, que seriam a metade do seu ganhos médios. Eu também apoiaria uma licença familiar remunerada para que os trabalhadores possam atualizar seus conhecimentos ou terem tempo para cuidar de um recém-nascido ou de um parente doente. Estas disposições podem acabar por me custar algum dinheiro, mas o cidadão em mim acredita que elas valem o preço. Não sei como vamos criar bons empregos de classe média se nossas escolas não forem muito melhores – o que exigirá pagamento bom o suficiente para atrair jovens homens e mulheres talentosos para as salas de aula do nosso país (a lei da oferta e da procura não foi revogada na porta da escola) e contratar mais professores para que menos crianças fiquem em cada sala de aula. Como pagar isso? Por meio de um sistema fiscal mais progressivo. O salário líquido de CEOs, banqueiros, gestores de fundos e celebridades chegou a um nível tão astronômico que um imposto mais elevado sobre a remuneração não desencorajaia as pessoas talentosas de perseguir esses trabalhos. Finalmente, eu dissociaria a saúde e o trabalho, e utilizaria a poupança fiscal – lembre-se que um plano de saúde pago pelo empregador é um benefício livre de impostos – para dar acesso ao seguro saúde a todos, sem exceção.”
Há muitas outras sugestões no texto. No conjunto, buscam o reequilibramento geral do sistema através do resgate da autonomia e capacidade negociadora do Estado, e do resgate da nossa dimensão cidadã, relativamente às nossas dimensões como consumidores e aplicadores financeiros. A meu ver, trata-se de um livro de fundamental importância. Li durante um fim de semana, texto bem escrito se lê com prazer, e o objetivo do livro, aliás, é justamente devolver esta dimensão às nossas vidas.