quarta-feira, 11 de junho de 2008

O dilema de Barack Obama



Seu discurso realça a luta por direitos para todos na era pós-industrial. Sua história de vida encarna a esperança de outra globalização possível. Suas posições estão bem à esquerda da média do Partido Democrata. Mas como ele enfrentará o desafio da disputa eleitoral, num país marcado pelo conservadorismo?
John Gerring, Joshua Yesnowitz

Além de uma campanha eleitoral clássica, a candidatura de Barack Obama é um movimento, como revelam as multidões eletrizadas que comparecem a seus encontros, as dezenas de voluntários que o apóiam e mais de um milhão de pequenos doadores. Este movimento agregou uma grande quantidade de novos eleitores ao processo de escolha do Partido Democrata, particularmente jovens e independentes [1]. Como resultado deste entusiasmo, o comparecimento às primárias e caucuses do Partido Democrata alcançou um recordes históricos. Aparentemente, Obama injetou nesta disputa um calor que esteve ausente por muitos anos [2].

E no entanto, há enormes diferenças de opinião sobre o significado da candidatura de Barack Obama. Para seus eleitores, ele é uma força fundamentalmente nova para a política norte-americana, já que vai além do partidarismo e convida a ultrapassar um jogo eleitoral viciado. Para seus oponentes no Partido Democrata (aqueles que apóiam a candidatura da senadora Hillary Clinton), ele é um espalhafatoso vulgar, combinando juventude e inexperiência. E para os partidários ao republicanismo, é um sujeito fascinante, mas que não tem nada de misterioso: um progressista ultrapassado, desejoso de redistribuir a renda por meio de impostos, pouco diferente daqueles que o precederam.

Cada uma destas perspectivas contém elementos de verdade. Porém, o que este homem traz de novo, seu ineditismo, e também sua história de vida, têm fornecido um amplo acervo para os diversos palpites. Tendo um pai do Quênia e uma mãe do Kansas, Obama foi criado no Havaí e na Indonésia, para onde sua mãe se mudou a fim de aprofundar suas pesquisas de doutorado em Antropologia (e onde acabou se casando de novo, o que deu a Obama um padrasto Indonésio). Ele freqüentou a faculdade na Califórnia (Occidental) e em Nova Yorque (Columbia), depois mudou-se para o Sul de Chicago, onde foi organizador de comunidades, até receber seu diploma de Direito em Massachussetts (Harvard). Não é de surpreender que Barack Hussein Obama tenha servido como um pergaminho de diversas camadas, sobre o qual o mundo projetou muitos dos grandes temas contemporâneos.

Barack Obama é um mensageiro, mas não um arquiteto do moderno Partido Democrata. Exotismos à parte, a candidatura de Obama está fincada nas questões que agora são tradicionais do Partido Democrata. Do fim do século 19 até a metade do século 20, as causas do partido eram definidas pela oposição à concentração de poder e dinheiro na sociedade norte-americana. Candidatos democratas à presidência – incluindo William Jennings Bryan (em 1896, 1900, 1908), Woodrow Wilson (1912, 1916), Franklin Roosevelt (1932, 1936, 1940 e 1944), e Harrry Truman (1948) – fizeram campanha pelo “povo” e contra os “interesses [privados]”. Eram marcados por uma visão plebiscitária do poder político, em que as pessoas comuns se juntavam para governar diretamente (ou o mais diretamente possível), e conchavos “privados” entre representantes do poder eram considerados corruptos, plutocráticos. Nos discursos, investiam contra o poder concentrado dos capitalistas, referindo-se a eles como trusts e Big Business. Contra os privilégios desfrutados pelas elites, os democratas lutavam pelos direitos do homem comum -– este, assumidamente branco e de origem européia. Assim foi era populista da ideologia do Partido Democrata [3].

Mutações no discurso do Partido Democrata. A luta por um "governo da maioria" e a denúncia do Big Business são substituídas pelos "direitos para todos" — inclusive as minorias
Na Era pós-II Guerra, a começar pelas campanhas de Adlai Stevenson (1952,1956), e depois com as de John Kennedy (1960), Lyndon Johnson (1964) e Hubert Humpphrey (1968), o discurso ácido da era populista diluiu-se. O antagonismo das classes sociais foi deslocado. Em seu lugar, entram os novos objetivos políticos e auto-imagem do partido. Os democratas do pós-guerra defendiam as reformas sociais da era progressista e do New Deal, e de vez em quando buscavam estender o alcance destas políticas (especialmente, as de seguridade social). No entanto, em seu discurso público, todas as conotações ligadas à luta de classes desapareciam. No lugar delas, os democratas adotaram a ideologia do universalismo, em que todas as raças, credos e classes pudessem estar envolvidas.

Essa estratégia retórica tinha como objetivo central o desejo de escapar dos possíveis perigos de um comunismo em ascensão (sobretudo, no auge da Guerra Fria), e da crescente impopularidade do movimento trabalhista. Os democratas do pós-guerra raramente faziam apelos ao governo para regular o setor privado; e nunca atacaram o setor do Big Business. Além disto, a adoção de uma ideologia universalista de união nacional não era somente uma ferramenta retórica, por meio da qual se evitavam acusações de práticas de socialismo e não-americanismo. Ela também articulava um novo objetivo político, fundamental para o Partido Democrata.

A partir de 1948, com a adoção do primeiro modelo de direitos civis, os democratas passaram a apoiar o engajamento ativo do governo na garantia de direitos para as mulheres e minorias. No princípio, o significado de minorias ficava restrito aos afro-americanos. Com o passar do tempo, o precedente dos direitos civis aos negros foi se estabelecendo, e o partido passou a defender, da mesma forma os direitos das mulheres, dos hispânicos, dos homossexuais e uma miríade de outros temas, menos etnicistas e mais baseados em causas. Assim, a filosofia dos direitos foi incessantemente estendida. De fato, o partido ao longo do curso do século vinte passou pelo processo de transformação, da ideologia do “governo da maioria” para a ideologia de “direitos das minorias”.

No entanto, o passo seguinte nesta caminhada para a unidade entre irmãos e irmãs acabou não acontecendo. O padrão dos candidatos do partido à presidência inclui apenas homens e brancos. Mulheres e minorias foram encorajadas a votar para os democratas, mas nunca contempladas com a indicação ao posto (ainda que alguns tenham tentado, como Geraldine Ferraro e Jesse Jackson). Agora, depois de pregar a fala da inclusão por meio século, o partido está sendo induzido a dançar conforme a música. Este ano, não importa qual dos dois candidatos for escolhido, tanto ele (Barack) quanto ela (Hillary) vão encarnar, em suas histórias de vida, a marca do Partido Democrata contemporâneo. O único postulante sério com pele branca e cromossomo Y – John Edwards – suspendeu sua campanha após ser davastado nas primárias, em que não ganhou sequer em um estado. É de notar que Edwards promovia uma campanha populista, focada em disparidades de classe e desigualdade de renda, uma estratégia falida para ganhar força.

Obama afirma-se enquanto o ápice da inclusão democrática. Sua vitoriosa história de vida e sua retórica retumbante captam o clima desta era pós-industrial
Dos dois candidatos-líderes, um colocou o tema universalista com maior força que o outro. Enquanto Hillary Clinton apresenta-se como mestre da política, protagonista dos cuidados com a saúde e co-presidente da administração Clinton, Barack Obama afirma-se enquanto o ápice da inclusão democrática. Não somente sua vitoriosa história de vida, como também sua retórica retumbante captam o clima do partido nesta era pós-industrial.

Apresentado a uma platéia nacional pela primeira vez em julho de 2004, quando se dirigiu à convenção do Partido Democrata, o então candidato de Illinois ao Senado cativou os delegados com seu apelo não-ideológico à comunidade e sua crença cívica. Estas palavras pertencem ao discurso que fez na ocasião, e que se tornou famoso:

Não existe uma América liberal e uma América conservadora: existem os Estados Unidos da América. Não existe uma América branca e uma América negra, uma América latina e uma América asiática: existem os Estados Unidos da América... Nós cultuamos um Deus todo-poderoso nos Estados azuis [democratas], e não gostamos de agentes federais bisbilhotando nossas bibliotecas, nos Estados vermelhos [republicanos]. Nós organizamos campeonatos de basquete nos estados azuis e temos amigos gays nos estados vermelhos. Existem patriotas que se opõem à guerra no Iraque e patriotas que a apóiam. Nós somos um só povo, todos nós prezamos a as estrelas e as listras, todos nós defendemos os Estados Unidos da América.

Nos eventos de campanha – que chegaram a ser comparados, por observadores, a rituais religiosos – Obama relembra seus apoiadores, de forma consistente, que todos os norte-americanos, sem distinção de raça, classe, ou gênero podem prosperar. Seu próprio nome, ele diz, é um símbolo da possibilidade norte-americana de mobilidade e destaque social:

[Meus pais me deram] um nome africano, Barack, ou “abençoado”, acreditando que, em uma América livre, um nome não deve ser uma barreira para o sucesso. Eles me imaginaram freqüentando as melhores escolas do país, mesmo que não fossem ricos, porque em uma América generosa você não precisa ser rico para realizar seu potencial.

Como mostrou no caso do Iraque, ele não evita tomar posições. Mas seus apoiadores as minimizam muitas vezes, em favor da representação de conjunto que ele expressa
Obama promove sua candidatura enquanto um político pós-partidário e pós-racial, buscando construir uma totalidade inclusiva, um consenso para a “mudança”. Isto permite a seus eleitores definir o que Obama representa para eles mesmos, livres das reais posicões políticas que o candidato defende. Não é tanto que Obama tenha evitado tomar posições (ele as assumiu de forma clara, por exemplo, sobre a guerra do Iraque: [4] são seus apoiadores que as minimizam muitas vezes, em favor da representação do conjunto que ele expressa.

Nada expresa melhor a confluência entre forma e conteúdo, na mensagem de Obama, que seu slogan “Sim, podemos” Yes, we can. Ele incorpora temas universalistas de inclusão e tolerância, num estilo em que o orador faz o apelo e espera a resposta, remanescente da tradição participativa da igreja afro-americana (Ver, em “Yes, we can” um exemplo)

Não é de se supreender, no entanto, que as massas do Partido Democrata tenham se unido a este arauto na atual temporada de primárias. Obama reflete o que o partido veio afirmando durante toda a segunda metade do século passado. Ele é a apoteose do universalismo democrático.

Ao longo do curso da campanha, Obama foi atacado repetidas vezes – primeiro por Clinton e agora pelo senador John Mccain, provável candidato republicano. Ambos julgaram-no “meramente retórico” e “eloquente, mas vazio” querendo dizer sem substância, sem estofo. Alega-se que seu conhecimento de política é fraco e que ele não tem uma agenda clara.

A modernidade de Obama não tem nada a ver com a de Bill Clinton. Se escolhido por seu partido, Obama será o mais à esquerda entre os democratas desde George Mc Govern, em 1972
Embora esta linha de ataque expresse uma preocupação legítima, é também necessário apontar que a política é uma arte feita de palavras, o elemento mais forte e sonoro que evoca poesia no léxico político de hoje (“poeta” é outro epíteto, supostamente desqualificador, atirado contra Obama). As palavras e a capacidade de usá-las são habillidades da profissão, visto que a política é essencialmente uma arte retórica. As pessoas ouviam Ronald Reagan e gostavam do que ele dizia. O mesmo não poderia ser dito de H.W. Bush, nem de G.W. Bush.

Da mesma forma, o sinal que distingue Bill Clinton de de quase todos os outros recentes aspirantes a presidente democratas (incluindo sua esposa) é sua maestria na arte de comunicação. Sem isto, Obama (ou Hillary) não podem conseguir grande coisa. O senso comum (repetido incansavelmente na campanha de Hillary Clinton) de que se faz campanha em poesia e se governa em prosa omite que, nesta era de permanente campanha, é preciso dominar ambos os meios, todo o tempo. Não é por acidente que os líderes norte-americanos julgados como grandes são aqueles de cujas palavras podemos nos lembrar.

Assim como Obama hoje, Lincoln foi também acusado, por seus oponentes, de disfarçar sua verdadeira agenda por trás de uma névoa de palavras bem-ditas, mas substancialmente ambíguas. Durante sua campanha para presidente, em 1860, ele foi pressionado várias vezes a tomar partido claro em relação à abolição da escrevatura. Mas a bandeira sob a qual preferiu conduzir sua campanha foi a do nacionalismo. Lincoln autodenominava-se um salvador da União e não o protetor dos homens e mulheres negros. Ele declarou sua repugnância pela escravidão, mas sempre deixou claro que esta era uma opinião pessoal e não partidária, e teria poucos desdobramentos políticos, caso fosse eleito. Neste sentido, a performance de Lincoln poderia ser vista como um dos maiores estelionatos eleitorais na história da política... E, ainda assim, é um dos mandatos que os norte-americanos, brancos e negros, provavelmente defenderiam hoje. Sua estratégia era a única que poderia assegurar sua nomenação como candidato republicano, e — com um pouco de sorte... — a presidência.

Se Obama for escolhido entre os democratas para defender suas cores em novembro, o ponto mais sensível de seu discurso político não será a raça, mas o caráter supostamente progressista de sua candidatura. Seu histórico de votações (como parlamentar no Estado de Illinois e senador em Washington), assim como suas alianças políticas, indicam que ele está na ala esquerda do Partido Democrata, e bem mais à esquerda que a maioria dos candidatos recentes. Neste sentido, a modernidade de Obama não tem nada a ver com a de Bill Clinton, quando eleito em 1992. Se for o escolhido de seu partido, Obama poderá ser classificado pelos historiadores como o mais à esquerda entre os democratas desde George Mc Govern, em 1972. Optará por fazer campanha como um progressista de carteirinha? Ou preferirá aparecer como alguém acima das disputas políticas?




traduções deste texto >> English — Obama: the Democrats in person Esperanto — La aŭdaca veto de Barack Obama français — L'audacieux pari de Barack Obama فارسى — قمار بي باکانه برک اوباما
[1] Cidadãos que optaram por não se afiliar a nenhum dos dois grandes partidos, no momento de sua inscrição eleitoral. A questão sobre seu vínculo partidário lhes é apresentada para determinar de que primárias eles poderão participar. Porque, em muitos Estados, um eleitor inscrito como democrata, ou como republicano, não pode participar da primária de outro partido

[2] Para dados sobre grupos demográficos e participação eleitoral, ver The United States Election Project http://elections.gmu.edu

[3] Este esboço histórico inspira-se em John Gerring, Party Ideologies in America, 1828-1996. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

[4] Em 2/10/2002, no momento em que uma maioria dos norte-americanos parecia apoiar a política do presidente George W. Bush, Obama participou de uma manifestação anti-guerra e pronunciou um discurso importante.


Fonte: http://diplo.uol.com.br/2008-04,a2352

Hegel problemático


Adepto de algumas releituras do sistema filosófico hegeliano realizado por Cirne-Lima, e contrário a outras, o pensador analítico Paulo Roberto Margutti Pinto afirma, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, que o filósofo “nos convida a repensar e a não a repetir Hegel”. Com isso, avalia, “ele provoca não só os hegelianos tradicionais, que não vêem com bons olhos a lógica formal, mas também os filósofos de tendência analítica, como eu, que não vêem com bons olhos a lógica dialética hegeliana. O resultado é um debate muito estimulante e frutífero em torno do significado da obra de Hegel”. Confira, na entrevista a seguir, as considerações do pesquisador referentes às teorias de Cirne-Lima, especificamente sua crítica à contrariedade.

Paulo Roberto Margutti Pinto é graduado em Filosofia e mestre em Filosofia Contemporânea, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Cursou o doutorado na Universidade de Edinburgh e, atualmente, é docente da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Belo Horizonte, MG.

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Paulo Roberto Margutti Pinto: Cirne-Lima: defensor de uma posição única no debate filosófico

Por: Márcia Junges e Patricia Fachin, 09/06/2008

IHU On-Line - Como o senhor percebe as ponderações apresentadas por Cirne-Lima aos possíveis “erros de Hegel”?

Paulo Roberto Margutti Pinto -
Como pensador de tendências analíticas que sou, creio que Cirne-Lima tem razão ao criticar certos erros em Hegel. Um deles, em minha opinião, está na idéia de que a tese, em sua evolução histórica, caminhará em direção à sua contraditória, que se expressará na antítese. Ora, não há sistema algum de lógica que seja capaz de gerar a antítese não-A a partir da tese A e permanecer consistente depois disso. O outro erro está em supor que a síntese possa ser formada pela conjunção de A com não-A. Uma vez admitido que a síntese seja formada por essa conjunção, o sistema hegeliano se torna trivial, no sentido de poder provar qualquer coisa. Aliás, esse é um dos maiores problemas da Ciência da Lógica, que, ao fim e ao cabo, prova absolutamente tudo, não deixando coisa alguma fora do sistema. Cirne-Lima tenta superar esses erros, alegando que a oposição entre tese e antítese é por contrariedade e não por contradição. Como duas proposições contrárias podem ser falsas ao mesmo tempo, ele pode, então, construir uma síntese em que a tese e a antítese se tornam simultaneamente falsas, evitando a presença de contradição no sistema e a conseqüente trivialidade. Em meu debate com ele, procuro mostrar que a oposição por contrariedade, embora evite os problemas de Hegel, cria outros. Por exemplo, a contrariedade não tem a força da contradição para impulsionar o movimento histórico; uma síntese em que os elementos contrários da tese e da antítese se tornam falsos certamente constitui uma superação da oposição, mas é incapaz de conservar os elementos contrários que superou, porque esses se tornaram falsos. Em nossas discussões, tentei mostrar-lhe, através de processos formais, que a proposta dele era inconsistente. Esse foi, provavelmente, um dos fatores que levou Cirne-Lima a tentar defender a consistência de sua proposta através da formalização da lógica dialética baseada na oposição por contrariedade. Como se pode ver, tivemos uma rica troca de experiências intelectuais. Espero que ela possa continuar mesmo depois da aposentadoria de Cirne-Lima.

IHU On-Line - Como o meio acadêmico hegeliano vê as empreitadas de Cirne-Lima, como a da formalização da Ciência da Lógica?

Paulo Roberto Margutti Pinto -
Os hegelianos vêem a lógica formal como um mero capítulo de um movimento maior, a lógica dialética. A primeira é estática e não dá conta de explicar os processos históricos, que se desenvolvem no tempo. A segunda é dinâmica e possui a capacidade de explicar os processos históricos. A lógica formal fica paralisada quando depara com uma contradição. A lógica dialética avança justamente quando depara com uma contradição. Nessa perspectiva, qualquer tentativa de formalização da dialética é vista pelos hegelianos como uma diminuição da mesma. É como se estivéssemos utilizando a parte – lógica formal – para explicar o todo – lógica dialética – ou o inferior para explicar o superior. O meio acadêmico hegeliano não vê com simpatia a iniciativa de Cirne-Lima. Para piorar, o meio acadêmico de tendência analítica, ao qual pertenço e que enfatiza a lógica formal em detrimento da dialética, também não vê com bons olhos essa iniciativa, pois considera-a desnecessária e destinada ao fracasso. Isso coloca as idéias de Cirne-Lima numa situação em que se encontram expostas ao fogo inimigo em dois flancos, mas, ao mesmo tempo, lhe confere uma posição única no debate filosófico.

IHU On-Line - Cirne-Lima, ao avaliar o pensamento hegeliano, concorda com duas críticas introduzidas por Schelling. A primeira diz que Hegel não foi suficientemente claro em dar ênfase para a facticidade da história. A segunda é que, para Hegel, a razão funciona e se movimenta mediante a contradição. O senhor concorda com essas posições?

Paulo Roberto Margutti Pinto -
Concordo com a primeira, mas tenho reservas quanto à segunda. No que diz respeito à primeira crítica, reconheço que a ênfase na facticidade da história é indispensável para que a dimensão contingente dos acontecimentos seja devidamente respeitada. Em Hegel, parece valer o seguinte princípio: “Se os fatos não concordam com a teoria, então azar dos fatos”. Ora, essa não me parece uma estratégia acertada para uma teoria científica adequada. Cirne-Lima também está preocupado em recuperar a dimensão contingente dos fatos e, por esse motivo, tenta articular uma dialética descendente que, paradoxalmente, não é determinista. Através dela, ele não faz deduções de acontecimentos necessários no processo histórico, mas admite a presença de acontecimentos contingentes. No que diz respeito à segunda crítica, Cirne-Lima tenta substituir a dialética baseada na contradição por outra, baseada na contrariedade. Como disse, essa última não consegue explicar adequadamente o movimento e não oferece uma síntese adequada dos elementos opostos. Minha proposta alternativa consiste em preservar a contradição e a lógica formal, apesar de reconhecer as limitações dessa última para dar conta de uma realidade muito mais complexa do que ela. Nessa perspectiva, só podemos utilizar a lógica formal para descrever aspectos da realidade, nunca ela toda. Desse modo, a lógica formal poderia ser usada tanto para descrever o aspecto-tese como o aspecto-antítese da realidade. Mas, como esses aspectos são mutuamente excludentes, nunca poderemos descrevê-los simultaneamente e sob o mesmo ponto de vista. Teremos de nos conformar com descrições parciais e complementares da realidade, que nunca poderão ser superpostas, sob pena de inconsistência. Nessa dialética, a contradição ficaria preservada como geradora do movimento e nunca haveria uma síntese, o que evitaria o problema da trivialidade. No entanto, essa é uma outra história, que não me parece oportuno desenvolver em detalhe aqui.

IHU On-Line - Quais são as maiores contribuições desse filósofo para o avanço nos estudos sobre Hegel?

Paulo Roberto Margutti Pinto -
Penso que Cirne-Lima assume uma postura muito diferente daquela dos demais estudiosos de Hegel no Brasil, que se limitam a comentar mais ou menos escolasticamente a obra do grande pensador alemão. Cirne-Lima nos convida a repensar e não a repetir Hegel. Sua proposta não é exegética, mas dialética no sentido mais autêntico da expressão. Como discípulo autêntico de Hegel, Cirne-Lima, embora extraia sua inspiração do mestre, se propõe a superá-lo, utilizando elementos de lógica formal que são caros aos pensadores analíticos. Com isso, ele provoca, segundo mencionei, não só os hegelianos tradicionais, que não vêem com bons olhos a lógica formal, mas também os filósofos de tendência analítica, como eu, que não vêem com bons olhos a lógica dialética hegeliana. O resultado é um debate muito estimulante e frutífero em torno do significado da obra de Hegel para nós hoje, que só não é maior porque, infelizmente, os pesquisadores brasileiros tendem a silenciar sobre aquilo com que não concordam, ao invés de discuti-lo para atingir uma melhor compreensão. Mesmo assim, Cirne-Lima contribuiu inegavelmente para um estudo da obra de Hegel, que se revelou mais independente e capaz de estimular a formação de uma escola de pensamento.

IHU On-Line - De que maneira a obra de Cirne-Lima contribuiu para a construção e consolidação do pensamento filosófico no Brasil?

Paulo Roberto Margutti Pinto -
De diversas maneiras. Em primeiro lugar, pela coragem em apresentar um sistema filosófico próprio, num país em que a pesquisa em nível de pós-graduação está predominantemente voltada para o comentário exegético de autores estrangeiros e em que qualquer iniciativa de elaboração pessoal é vista como um atrevimento imperdoável. Em segundo lugar, por ter tido liderança suficiente para criar o Grupo de Trabalho em Dialética da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), através de cujas atividades foi possível divulgar as suas idéias entre outros pesquisadores interessados, gerando um debate frutífero entre eles. Em terceiro lugar, pela formação de discípulos talentosos e motivados, como Eduardo Luft, que nele se inspiraram para dar prosseguimento ao projeto de reforma da dialética hegeliana.

IHU On-Line - Levando em consideração seu contato pessoal com o professor, como o senhor descreveria o educador Cirne-Lima? De que maneira ele ajudou a difundir a Filosofia entre os alunos?

Paulo Roberto Margutti Pinto -
A primeira vez que tive contato com Cirne-Lima foi quando fazia meu curso de mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e assisti a uma conferência dele, que, na época, já era professor renomado, sobre a contradição dialética e a lógica modal. Fiquei fascinado com a clareza da exposição e com a paixão que ele revelava ao apresentar suas idéias. Pessoas assim conseguem despertar e estimular nos outros o interesse pela Filosofia. Penso que as qualidades mencionadas fazem dele um professor excepcional, daqueles que possuem o raro dom de fazer escola. Aqui no Brasil são poucos os que conseguem essa façanha. No momento, só consigo me lembrar do nome de Oswaldo Porchat, que também foi um criador de escola e formador de discípulos. O merecido título de professor emérito que ele recebeu da Unisinos é o reconhecimento mais eloqüente dado a uma pessoa que dedicou a vida à formação filosófica autêntica de seus discípulos.

IHU On-Line - Que aspectos você destacaria na convivência pessoal e intelectual com Cirne-Lima?

Paulo Roberto Margutti Pinto -
Nos seus relacionamentos, Cirne-Lima se revela uma pessoa extremamente gentil e generosa. Lidar com ele é um prazer, pois essas qualidades vêm acompanhadas de uma agilidade intelectual e uma erudição filosófica capazes de fazer inveja a qualquer um. As conversas que tive com ele sempre foram animadas, diversificadas, surpreendentes e ricas em ensinamentos. Cirne-Lima é capaz de tornar o assunto menos interessante numa verdadeira aventura intelectual.

IHU On-Line - Cirne-Lima costuma dizer que os filósofos estão mais habituados a fazer História da Filosofia e da Ciência do que propriamente Filosofia. Ao contrário, ele se destaca justamente por essa posição diferenciada e de ter presente as discussões filosóficas como tema central em sua vida. Como o senhor percebe, assim, o filósofo Cirne-Lima e sua preocupação em explicar os dilemas da contemporaneidade?

Paulo Roberto Margutti Pinto -
Penso que ele tem razão ao dizer que os filósofos estão mais habituados a fazer História da Filosofia e da Ciência, mas acrescentaria que isso acontece principalmente no Brasil. Como já disse antes, a nossa pós-graduação em Filosofia está mais interessada no comentário exegético do que na criatividade pessoal. Até mesmo nossos cursos de graduação em Filosofia padecem desse mal, estimulando explicitamente a leitura dos clássicos, entendida como prática rigorosa da Filosofia, e desestimulando implicitamente as iniciativas de elaboração pessoal, entendidas como formas de “achismo”. Ainda estamos presos de algum modo à velha tendência portuguesa de manter a fidelidade ao comentário exegético de Aristóteles em plena era moderna, quando o cartesianismo se espalhava pelo resto da Europa. Nessa perspectiva, trabalhos como o de Cirne-Lima constituem honrosas exceções numa constelação de pesquisas predominantemente escolásticas. E seu trabalho é não apenas original, mas também ligado à problemática contemporânea, uma vez que ele foi capaz de mostrar diversas analogias e semelhanças entre o hegelianismo de raízes neoplatônicas e a atual abordagem sistêmica de caráter transdisciplinar.

IHU On-Line - Depois de Hegel pode ser considerado a coroação da produção intelectual de Cirne-Lima? Nesta obra encontramos a melhor formulação do seu modo de ver e perceber a Filosofia?

Paulo Roberto Margutti Pinto -
Certamente. Depois de Hegel constitui a formulação mais completa e mais pessoal de Cirne-Lima. Ali vemos como ele foi capaz de remontar a abordagem sistêmica atual, inspirada nos estudos de von Bertalanffy, a suas raízes neoplatônicas, as quais, na opinião dele, estão presentes na dialética hegeliana criticamente reconstruída. Com isso, ele pretende estabelecer uma dialética que não é determinista, que não deduz os fatos, mas explica a partir dos fatos, admitindo a presença da contingência no sistema. Na sua paixão de pensador incansável, Cirne-Lima explica até mesmo os argumentos pró e contra ele como manifestações de uma dialética através da qual as inverdades serão desmascaradas para que possamos continuar avançando assintoticamente em direção à verdade plena.


Nota

Quem é Cirne Lima:

Filósofo brasileiro nascido em Porto Alegre no ano 1931, Cirne-Lima desempenhou uma atividade profissional intensa. Depois de concluir o ensino básico no Colégio Anchieta, na capital gaúcha, o fascínio pela Filosofia e o interesse pelo conhecimento o levaram, ainda jovem, a ingressar nos cursos de grego e latim, do Colégio Santo Inácio, em Salvador do Sul, e do Instituto São José, em Pareci Novo, ambos no Rio Grande do Sul. Nesta mesma época, Cirne-Lima iniciou suas atividades no magistério, onde se destacou por ensinar esses dois idiomas.

Filho de D. Maria Velho Cirne-Lima e do eminente jurista Ruy Cirne-Lima, ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Cirne-Lima ingressou no seminário jesuíta, aos 16 anos. Nas duas décadas em que pertenceu à Companhia de Jesus, ele dedicou-se aos estudos de Filosofia e Teologia, ingressando em 1949 no grande centro alemão, Berchmannskolleg Pullach Bei München. A partir de 1953, o filósofo cursou Teologia em Frankfurt e Innsbruck, Áustria, onde conheceu os professores Karl Rahner e E. Coreth. Na Europa, participou de diversos debates filosóficos, especializando-se em “Tiefenpsychologie”, pelo Institut für Tiefenpsychologie Innsbruck, Áustria, em 1959. Doutorou-se, ainda neste mesmo ano, em Filosofia, pela Universität Innsbruck, Áustria, com o trabalho “Der personale Glaube. Eine erkenntnismetaphysische Studie”. No início da década de 1960, retornou ao Brasil, e em seguida voltou para a Europa, onde lecionou na Universidade de Viena, iniciando, então, sua segunda etapa de formação filosófica. Nesse período, iniciou seus estudos sobre Leibniz, Kant, Schelling e Hegel. Dessas pesquisas, resultou seu trabalho “Analogie und Dialektik”.

De volta ao Brasil, em 26 de julho de 1968, Cirne-Lima faz sua livre-docência na Faculdade de Filosofia da UFRGS. A situação política da época fez com que sua permanência na faculdade fosse abreviada com a imposição de aposentadoria compulsória, decretada pelo Regime Militar de 1969. Proibido de lecionar, ele dedicou-se às atividades empresariais, retornando ao magistério em 1979, após a anistia, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS. Na Universidade Federal, foi coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, entre 1985 e 1986. Após se aposentar na UFRGS, em 1991, tornou-se professor titular na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde permaneceu até 1999. Nesta universidade, fundou o grupo de pesquisas Integradas Dialética – Diretórios de Grupos de Pesquisa do CNPq. Em 2000, Cirne-Lima iniciou sua carreira na Unisinos, onde aposentou-se neste semestre, recebendo na última sexta-feira, 06-06-2008, o título de professor emérito.

No decorrer da docência, o filósofo organizou congressos, coordenou pesquisas e publicou várias obras. Em 2006, ele inovou ao editar o CD-Rom Dialética para todos, no qual apresenta, com uma linguagem didática, suas teorias sobre dialética e sistema filosófico. Entre outros livros, Cirne-Lima publicou Realismo e Dialética. A Analogia como dialética do realismo. (Porto Alegre: Globo, 1967), Sobre a contradição (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993), Dialética para principiantes (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996), Nós e o Absoluto (São Paulo: Loyola, 2001) e Depois de Hegel. Uma reconstrução crítica do sistema neoplatônico (Caxias do Sul: Educs, 2006).










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