quinta-feira, 13 de março de 2008

É proibido viajar


Por: CONTARDO CALLIGARIS




(Extraído de: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1303200826.htm)


A modernidade, que começou com a livre circulação, acaba proibindo a viagem

NO EPISÓDIO dos jovens pesquisadores brasileiros barrados em Madri, as autoridades espanholas agiram como se o cônsul-geral do Brasil contasse lorotas para facilitar o trânsito de imigrantes ilegais. O desrespeito justifica a "retaliação" brasileira.
No mais, a cada dia, as fronteiras do mundo (não só do primeiro) barram alguém que tenta viajar, sobretudo se for jovem, solteiro e sem as aparências de uma "vida feita".
Ao atravessar uma fronteira, o passaporte prova que estamos em paz com a Justiça de nosso país. As outras nações devem decidir se somos hóspedes desejáveis. Nas últimas décadas, as "condições" para ser desejável se multiplicaram. Hoje, no caso da Espanha: 1) 70 por dia de permanência planejada; 2) passagem de volta marcada; 3) reserva de hotel, já pago; 4) para quem se hospedar com parentes, formulário preenchido pelos mesmos; 5) quem se desloca para trabalhar deve dispor de um contrato assinado. Normas muito parecidas valem na maioria dos países.
O escândalo é que essas condições podem nos parecer "aceitáveis". Afinal, qualquer Estado quer proteger o emprego de seus cidadãos impedindo a chegada de imigrantes não-autorizados, não é? Pois é, Michel Foucault é mesmo o pensador para os nossos tempos: o sistema social e produtivo dominante ordena nossas vidas furtivamente, convencendo-nos de que não há opressão, mas apenas necessidades "racionais". Se achamos essas regras "aceitáveis", é porque já adotamos a idéia de que, no nosso mundo, só é legítimo ter moradia fixa e profissão estável.
As pessoas com moradia fixa podem, quando elas dispõem dos meios necessários, adquirir uma passagem de ida e volta e sair de seu lar seguindo um programa pré-estabelecido -ou seja, podem ser, ocasionalmente, turistas.
Escárnio: prefere-se que os turistas sejam otários, pagando de antemão. Há uma pousada melhor da que estava prevista? Você quer encurtar a viagem? Pena, você já pagou. Mas isso é o de menos. Importa o seguinte. A modernidade, que começou com a circulação (livre ou forçada) de todos os agentes econômicos, acaba parindo, nem mais nem menos, a proibição da viagem. Como assim? Pois é, viajar não tem nada a ver com férias num resort ou com ser transportado de cidade em cidade para que os cicerones nos mostrem as coisas "memoráveis".
Para começar, viajar é usar uma passagem só de ida.
- Quanto tempo você vai ficar?
- Não faço a menor idéia. Um dia? Três meses? Um ano?
- E você vai para onde?
- Não sei. Talvez eu curta uma pequena enseada, alugue um quarto numa casa de pescadores e fique comendo caranguejos com os pés na areia. Talvez, já no avião ou pelas ruas de Barcelona, eu me apaixone por uma holandesa, um russo ou uma argelina e os siga até o país deles, por uma semana ou um mês.
Se a paixão durar, ficarei por lá.
- E o dinheiro?
- Não sei, meu amigo. Toco violão, posso ganhar um trocado numa esquina ou no metrô. Também posso lavar pratos, ajudar na colheita, cortar lenha, lavar carros e vender pulôveres. E, se a coisa apertar, tenho endereços de parentes e conhecidos que nem sabem que estou viajando, mas não me recusarão uma sopa e um banho quente. Além disso, em Paris, quando fecha o mercado da rua Saint Antoine, sobram na calçada as frutas e as saladas que não foram vendidas; em São Paulo, Londres e Nova York, conheço dezenas de igrejas que oferecem um pão com manteiga; em Varanasi, ao meio dia, distribuem riso com curry e carne aos peregrinos.
Cem anos depois da invenção do passaporte com fotografia, chegamos nisto: uma ordem que só permite se movimentar para consumir férias ou para se relocar segundo os imperativos da produção.
As regras que barram o viajante expressam nossa própria miséria coletiva: perdemos de vez o sentimento de que a vida é uma aventura. Preferimos a vida feita à vida para fazer.
Para quem quiser ler sobre a história da documentação de viagem, uma sugestão: "Invention of the Passport: Surveillance, Citizenship and the State" (invenção do passaporte: vigilância, cidadania e o Estado), de Torpey, Chanuk e Arup (Cambridge University Press).
Para quem quiser viajar, outra sugestão: a mentira, num mundo opressivo, é uma forma aceitável de resistência.

"Passagens são casas ou corredores que não tem lado exterior - como o sonhos"; Walter Benjamin e o sonho

Walter Benjamin, vocês já sabem, escreveu uma série de reflexões inspiradas nas chamadas passagens parisienses. Para ele essas peculiares "peças" arquitetônicas tinham um caráter intrigante: de serem internas-externas. Ou seja, as passagens parisienses refletem pelo menso dois aspectos da vida moderna: o processo de publicização da vida privada e a apresentação da contradição e o desvelamento da incapacidade da lógica hegemônica na filosofia ocidental de lidar com isso.
Mas o que quero destacar neste post são as associações que Walter Benjaimin faz com os sonhos. Desejo assim tentar instigar os colegas imersos nesse mundo, o onírico, a manifestar-se; tecendo comentários, críticas, ou reflexões resultantes no corpo deste texto.

Seguem alguns excertos:

"O tédio é um tecido cinzento e quente, forrado por dentro com a seda das cores mais variadas e vibrantes. Nele nós nos enrolamos quando sonhamos. Estamos então em casa nos arabescos de seu forro. Porém, sob essa coberta, o homem que dorme parece cinzento e entediado. E quando então desperta e quer relatar o que sonhou, na maioria das vezes ele nada comunica além desse tédio. Pois quem conseguiria com um só gesto virar o forro do tempo do avesso? E, todavia, relatar sonhos não é mais do que isso." [D, "O tédio, Eterno retorno", 2a, 1].

"O despertar como um processo gradual que se impõe na vida tanto do indivíduo quanto das gerações. O sono é seu estágio primário. A experiência da juventude de uma geração tem muito em comum com a experiência do sonho. Sua configuração histórica é configuração onírica. Cada época tem um lado voltado para os sonhos, o lado infantil. Para o século passado, isto aparece claramente nas passagens. Porém, enquanto a educação de gerações anteriores interpretava esses sonhos segundo a tradição, no ensino religioso, a educação atual volta-se simplismente à distração das crianças. Proust pôde surgir como um fenômeno sem precedentes apenas em uma geração que perdera todos os recursos corpóreos-naturais da rememoração e que, mais pobre do que as gerações anteriores, estivera abandonada à própria sorte, e, por isso, conseguira apoderar-se dos mundo infantis apenas de maneira solitária, dispersa e patológica. O que é apresentado a seguir é um ensaio sobre a técnica do despertar. Uma tentativa de compreender a revolução dialética, copernicana, da rememoração". [K, "Cidade dos sonhos e Morada dos sonhos, Sonhos e futuro, Niilismo Antropológico, Jung", 1, 1]

"A revolução copernicana na visão histórica é a seguinte: considerava-se como ponto fixo 'o ocorrido' e conferia-se ao presente o esforço de se aproximar, tateante, do conhecimento desse ponto fixo. Agora esta relação deve ser invertida, e o ocorrido, tornar-se a reviravolta dialética, irromper da consciência desperta. Atribui-se à política o primado sobre a história. os fatos tornam-se algo que acaba de nos tocar, e fixá-los é tarefa da recordação. E, de fato, o despertar é o caso exemplar da recordação: o caso no qual conseguimos recordar aquilo que é mais próximo, mais banal, mais ao nosso alcance. O que Proust quer dizer com a mudança experimental dos móveis no estado de semidormência matinal, o que Bloch percebe como a obscuridade do instante vivido, nada mais é do que aquilo que se estabelecerá aqui no plano da história, e coletivamente. Existe um saber ainda-não-consciente do ocorrido, cuja promoção tem a estrutura do despertar". [K, 1, 2]

"Existe uma experiência da dialética totalemente singular. A experiência compulsória drástica, que desemente toda 'progressividade' do devir e comprova toda aparente 'evolução' como reviravolta dialética eminente e cuidadosametne composta, é o despertar do sonho. (...) O método novo, dialético, de escrever a história apresenta-se como a arte de experienciar o presente como o mundo da vigília ao qual se refere o sonho que chamamos de o ocorrido. Elaborar o ocorrido na recordação do sonho! - Quer dizer: recordação e despertar estão intimamente relacionados. O despertar é, com efeito, a revolução copernicana e dialética da rememoração". [K, 1, 3]

"(...) assim como aquele que dorme - e que nisto se assemelha ao louco - dá início à viagem macrocósmica através de seu corpo, e assim como os ruídos e sensações de suas próprias entranhas, como a pressão arterial, os movimentos peristálticos, os batimentos cardíacos e as sensações musculares - que no homem sadio e desperto se confundem no murmúrio geral do corpo saudável - produzem, grças à inaudita acuidade de sua sensibilidade interna, imagens delirantes ou oníricas que traduzem e explicam tais sensações, assim também ocorre com o coletivo que sonha e que, nas passagens, mergulha em seu próprio interior. É a ele que devemos seguir...". [K, 1, 4]

"É um dos pressupostos da psicanálise que a oposição categórica entre sono e vigília não tem valor algum para determinar a forma de consciência empírica do ser humano, mas cede lugar a um infinita variedade de estados de consciência concretos, cada um deles determinado pelo grau de vigília de todos os centros possíveis. Basta, agora, transpor o estado da consciência, tal como aparece desenhado e seccionado pelo sonho e pela vigília, do indivíduo para o coletivo. Para este, são naturalmente interiores muitas coisas que são exteriores para o indivíduo. A arquitetura, a moda, até mesmo o tempo atmosférico, são, no interior do coletivo, o que processos orgânicos, o sentimento de estar doente ou saudável são no interior do indivíduo. E, enquanto mantêm sua forma onírica, inconsciente e indistinta, são processos tão naturais quanto a digestão, a respiração etc. Permanecem no ciclo da eterna repetição até que o coletivo se apodere deles na política e qando se trasnformam, então, em história". [K, 1, 5]