sexta-feira, 4 de setembro de 2009

As últimas palavras de Paul Feyerabend



Também comecei minha autobiografia, principalmente para lembrar meu período no exército alemão e como vivenciei o nacional socialismo. Esta, porém, demonstrou ser uma boa maneira de explicar como minhas "idéias" estavam entrelaçadas ao resto de minha vida.


Prometi para Grazia um livro sobre a "realidade", que está tomando forma muito lentamente e cujo título provisório é A conquista da abundância. O livro deverá mostrar como especialistas e pessoas comuns reduzem a abundância que os cerca o os confunde, e as conseqüências de suas ações.

Ele é principalmente um estudo do papel das abstrações, noções matemáticas e físicas especialmente, e da estabilidade e "objetividade" que parecem trazer consigo. Discute como emergem tais abstrações, como são apoiadas pelos modos comuns de falar e viver, e a mudança como resultado de argumentação e/ou pressão prática.

Procuro também enfatizar a ambigüidade essencial de todos os conceitos, imagens e noções que pressupõem mudança.

Sem ambigüidade não há mudança, nunca. A teoria quântica - como interpretada por Niels Bohr - é um perfeito exemplo disto.


"A conquista da abundância" deveria ser um livro simples, de leitura agradável e fácil compreensão. Entre meus motivos para escrever Contra o Método estava o de libertar as pessoas da tirania dos ofuscadores filosóficos e de conceitos abstratos como "verdade", "realidade" ou "objetividade", que estreitam a visão e as maneiras de ser das pessoas no mundo.

Ao formular o que eu acreditava ser minha própria postura e convicções, infelizmente acabei introduzindo conceitos igualmente rígidos, tais como "democracia", "tradição" ou "verdade relativa". Agora que estou consciente disto, me pergunto como pode ter acontecido.

O anseio de explicar as próprias idéias, não de modo simples, não numa história, mas por meio de uma "explicação sistemática" é de fato muito forte.

De que outra maneira poder-se-ia explicar que um destacado produtor teatral como Herbert Blau - um artista capaz de tornar claras para atores e audiências peças opacas - tenha escrito um tratado sobre teatro com afirmações incompreensíveis e desprovidas de sentido? Não se trata de uma dificuldade inerente ao assunto em questão. Platão, Aristóteles, Brecht e Dürrenmatt escreveram sobre teatro de modo agradável e compreensível. É o desejo de ser grande, profundo e filosófico.

Mas o que é mais importante? Ser compreendido pelo público em geral ou ser considerado um "pensador profundo"?.

Escrever de maneira simples, de modo que pessoas sem preparo específico possam entender não significa ser superficial.

Eu exorto todos os autores que querem se comunicar com as pessoas a manter distância da filosofia, ou ao menos que evitem ser intimidados e influenciados por ofuscadores como Derrida, lendo, ao invés disto, os ensaios populares de Schopenhauer ou Kant.



No final de 1993, o título deste capítulo assumiu um novo significado. Estou parcialmente paralisado, num hospital, com um tumor cerebral inoperável.


Eu não gostaria de morrer logo agora que finalmente consegui me "sistematizar" - também em minha vida privada.

Gostaria de ficar com Grazia e apoiá-la e fortalecê-la quando houver problemas. Depois de passar a vida lutando pela solidão, eu queria viver em família, contribuindo com a minha parte, esperando-a, por exemplo, com o jantar e algumas piadas prontas em sua volta do trabalho. Poderíamos mesmo tentar os métodos mais avançados para ter filhos; mas temos que esperar para ver como se desenvolve minha doença, e esta não é uma posição agradável de se estar, justamente agora que Grazia esperava tanto de uma nova vida que teríamos juntos.

Escrever colunas para uma revista pode mesmo ter melhorado meu estilo de escrita, e o livro que prometi a ela poderia vir a ser simpes e luminoso, mostrando como a razão e emoção podem coexistir em uma produção “acadêmica”.

Grazia está comigo no hospital, o que é uma grande alegria, e ela enche o quarto de luz. De certo modo, estou pronto para partir, malgrado todas as coisas que ainda gostaria de fazer; mas por outro lado, estou triste por ter de deixar este mundo esplêndido, e especialmente Grazia, a quem eu gostaria de acompanhar por mais alguns anos.

Estes devem ser os últimos dias. Nós os sorvemos um por um.

Minha última paralisia veio de algum sangramento dentro do cérebro. Eu queria que depois de minha partida ficassem algumas coisas minhas, não escritos, não declarações filosóficas finais, mas amor.

Espero que isto fique e não seja muito afetado pela maneira de minha partida final, que eu gostaria que fosse tranqüila, na forma de um coma, sem luta contra a morte e más lembranças deixadas atrás. O que quer que aconteça agora, nossa pequena família pode viver para sempre - Grazia, eu e nosso amor.

Isto é o que eu gostaria que acontecesse, a sobrevivência não intelectual, mas do amor.





***




Um par de semanas depois de Paul escrever estas palavras, o tumor comprometeu o centro de dor de seu cérebro e ele precisou de doses extremamente elevadas de morfina. Ele estava habituado a analgésicos, tendo sofrido dores lancinantes toda sua vida em conseqüência de seu ferimento de guerra (isto, bem como a prodigiosa quantidade e variedade de suas leituras são aspectos importantes da vida de Paul que ele mal menciona em sua autobiografia), mas os médicos ainda assim se surpreenderam que ele pudesse suportar tanto e por tantos dias. Era 11 de fevereiro de 1994 e Paul estava num tipo de coma induzido há mais de uma semana. O correio trouxe uma carta da editora italiana Laterza, dizendo que estavam entusiasmados com a autobiografia e dispostos a publicá-la em breve. Eu estava angustiada e exausta, mas fiquei feliz com as boas novas e contei-as a Paul com alegria em minha voz. Ele respirava lentamente e de certo modo tranqüilamente. Poucos segundos depois já não estava. Estávamos sozinhos, de mãos dadas, e era meio-dia.




(Paul Feyerabend, Matando o Tempo - Uma autobiografia - Ed Unesp)