quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Desmatamento na Amazônia extingue 26 espécies e ameaça 644, diz ONU


O desmatamento da Amazônia provocou a extinção de 26 espécies de animais e plantas até 2006, segundo um relatório divulgado nesta quarta-feira (18) pelo Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente).

No mesmo período, outras 644 espécies entraram na lista de animais e plantas ameaçados de extinção. Das 26 espécies extintas, dez estão na parte brasileira da floresta amazônica. Entre as espécies ameaçadas estão o macaco-aranha (Ateles belzebuth), o urso-de-óculos (Tremarctos ornatus) e a lontra.


O relatório do Pnuma afirma que até 2005 a Amazônia acumulou uma perda de 17% da sua vegetação total nos nove países que possuem trechos da floresta tropical. A área total desmatada foi de 857.666 quilômetros quadrados.

Cenários pessimistas

O relatório afirma que três fatores vão influenciar na forma como a Amazônia vai se desenvolver no futuro: as políticas públicas, o funcionamento do mercado e o desenvolvimento de novas tecnologias.

Baseado nesses três fatores, o relatório traça quatro cenários diferentes para o futuro da Amazônia no longo prazo, e nenhuma das hipóteses apresenta uma situação ideal.

"Isso significa que os protagonistas amazônicos não conseguiram imaginar um futuro no qual as políticas públicas, o mercado, a ciência e a tecnologia se desenvolvam, simultaneamente, de uma maneira suficientemente positiva de forma a promover o desenvolvimento sustentável da Amazônia", diz o documento.

Os quatro cenários traçados pelo Pnuma são:


-Amazônia emergente: um cenário em que o governo e as forças do mercado geram benefícios à região, mas a ciência e a tecnologia não avançam o suficiente para melhorar o aproveitamento de recursos naturais.


-À beira do precipício: o governo agiria para combater o desmatamento, mas a demanda do mercado por recursos e a falta de tecnologia apropriada seriam mais fortes do que o esforço público.


-Luz e sombra: ação pública e investimentos em tecnologias colaborariam contra o desmatamento, mas as forças do mercado exigiriam cada vez mais recursos naturais.


-Inferno ex-verde: um cenário em que a floresta ficaria submetida às demandas do mercado, sem ação governamental ou avanço tecnológico favorável ao desenvolvimento sustentável.

Savanização

Segundo o relatório, fatores internos e externos em cada um dos países estão provocando o desmatamento.

Entre os fatores internos está o crescimento da urbanização da região e a exploração de recursos naturais. O Pnuma destaca que em quatro dos países da região, mais de 50% da população amazônica é urbana.

Externamente, o aquecimento global continua afetando o ciclo de chuvas e afetando o equilíbrio do ecossistema. O relatório cita previsões feitas em outros estudos de que 60% da Amazônia pode se tornar em savana ainda neste século, devido ao aumento da temperatura média global - uma afirmação questionada por um novo estudo publicado na Grã-Bretanha na semana passada.

O relatório também afirma que a articulação de grupos e instituições que atuam na Amazônia ainda está apenas no começo.

"Na maioria dos países da região, a Amazônia ainda não faz parte do 'espaço ativo' nacional, no entanto eles estão lentamente começando a articular a Amazônia no sistema político-administrativo, na sociedade e na economia nacional", diz o relatório do programa da ONU.

"O Brasil é o país que mais mostrou progresso nesta área. Por outro lado, o processo contínuo de descentralização, com diferentes níveis de progresso, visa a melhorar a governança ambiental por governos regionais e locais", afirma o documento.


Fonte: http://noticias.uol.com.br/bbc/reporter/2009/02/18/ult4902u185.jhtm


terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O Brasil acelera em marcha à ré




"O Brasil adota posição reacionária, alegando que sua matriz energética já é limpa, devido à hidroeletricidade e ao bioetanol de primeira geração. Um sofisma que evaporará no exato instante em que for divulgado o segundo inventário nacional de emissões de gases estufa", escreve José Eli da Veiga, professor titular do Departamento de Economia da FEA-USP, em artigo publicado no jornal Valor, 17-02-2009. Segundo ele, "justamente por ter tido a sorte de contar no passado com uma das mais limpas matrizes, o Brasil é agora o único grande emissor que faz caminho de volta ao passado: aumenta a intensidade de gases estufa de sua economia. Mazela que só poderá piorar se forem levados a sério os perdulários planos do Ministério das Minas e Energia".

José Eli da Veiga é autor de diversos livros sobre desenvolvimento sustentável.
A sua página web é http://www.zeeli.pro.br/.

Eis o artigo.

Iniciativas em direção a uma economia de baixo-carbono já revelam as dez mais promissoras inovações tecnológicas dessa inevitável transição:

a) isolamento térmico de novas construções conforme o padrão Passivehaus e reformas com o mesmo fim;

b) veículos movidos a baterias elétricas;

c) biocombustíveis de segunda geração (material lignocelulósico);

d) cogeração de energia;

e) energia solar, principalmente fotovoltaica (PV) e concentrada (CSP);

f) energia eólica;

g) energia dos oceanos, principalmente de marés, ondas e correntes marítimas;

h) captura de carbono: carvão limpo, algas e limpeza do ar;

i) "biochar": carbono sequestrado em carvão vegetal;

j) solos e florestas: melhoria dos naturais sumidouros de carbono.

A energia nuclear não entra na lista por razão bem mais prosaica do que os conhecidos riscos que ela envolve: a construção de novas usinas tem ficado muitas vezes mais cara que se supõe. Ultimamente o custo de capital por kilowatt/hora tem se aproximado dos US$ 10 mil, quatro ou cinco vezes mais do que as previsões orçamentárias. Ao contrário do que ocorre com as dez soluções listadas, ela não segue a chamada curva de aprendizagem.




Ora, nada será mais decisivo para a transição do que preços que possam tornar mais competitivas as alternativas à velha troika fóssil. O processo de descarbonização deslanchará para valer quando os preços relativos viabilizarem a obtenção dos imensos ganhos de eficiência energética oferecidos por várias das dez tecnologias relacionadas acima. O que simultaneamente alavancará as descobertas científicas que, mais adiante, farão com que as fontes fósseis sejam condenadas à obsolescência econômica.

A principal dificuldade está, portanto, na mudança institucional necessária à alteração dos preços relativos. Seus mais ferrenhos inimigos são os atuais beneficiários dos negócios vinculados à produção e à distribuição de eletricidade, petróleo, carvão, gás e derivados. E o acanhamento dos defensores decorre da inevitabilidade de que fique bem mais salgado quitar a conta mensal de luz ou encher o tanque do carro, sem que haja qualquer melhoria imediata de qualidade de vida. Nada parecido com a telefonia celular, por exemplo, absorvida quando ainda era caríssima porque revolucionava a vida de seus primeiros usuários.

Ocorre que essa aversão à carestia energética poderá ser neutralizada se cada domicílio receber de volta um dividendo mensal resultante da repartição igualitária do decorrente aumento de arrecadação fiscal. As famílias com menor consumo de energia sairão ganhando, e as outras passarão a ter um forte incentivo para elevarem a eficiência energética de suas residências e veículos. Esta é a lógica da proposta intitulada "cap-and-dividend", que surgiu nos EUA para superar as desvantagens das anteriores. Basicamente três: imposto sobre as emissões ("carbon tax"), mercado de direitos de emitir ("cap-and-trade"), e cotas de renováveis na geração de eletricidade ("renewabe energy mandate"). Em 2009 o Congresso certamente aprovará leis que gerem um híbrido dessas quatro opções. O que levará os EUA a disputar a liderança da próxima indústria global: a das energias limpas. Vanguarda que por enquanto está na Europa, como mostrou a criação da IRENA: International Renewable Energy Agency.

Nesse contexto, o Brasil adota posição reacionária, alegando que sua matriz energética já é limpa, devido à hidroeletricidade e ao bioetanol de primeira geração. Um sofisma que evaporará no exato instante em que for divulgado o segundo inventário nacional de emissões de gases estufa. O primeiro já havia revelado que as jurássicas emissões causadas por desmatamentos e queimadas aumentaram 2% entre 1990 e 1994, enquanto as demais davam um salto de 16%. Disparidade que se aprofundou, pois os cálculos da organização "Economia & Energia" para o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) mostraram que as emissões atribuíveis à produção e uso de energias tiveram uma escalada de 45% entre 1994 e 2005, período em que o incremento do PIB foi de 32%. Pior: dobraram no setor energético, enquanto aumentavam 45% no de transportes e 41% no industrial.



Justamente por ter tido a sorte de contar no passado com uma das mais limpas matrizes, o Brasil é agora o único grande emissor que faz caminho de volta ao passado: aumenta a intensidade de gases estufa de sua economia. Mazela que só poderá piorar se forem levados a sério os perdulários planos do Ministério das Minas e Energia (MME): o PDEE-2015, o PNE-2030 e o recém lançado PDE-2017. Três excentricidades que, se postas em prática, sepultariam o PNMC (Plano Nacional sobre Mudança do Clima), aplaudido há três meses pela comunidade internacional na reunião de Poznan.

Mas estão longe de se limitar aos desvarios do MME as evidências de que o Brasil acelera em marcha à ré. Por exemplo, enquanto nos EUA um pacote de estímulo econômico aloca novos US$ 3 bilhões ao sistema de ciência e tecnologia, aqui o titular do MCT precisa apaziguar representantes da comunidade científica que reagem a corte orçamentário feito pelo Congresso. Simultaneamente, o Ministério dos Transportes faz das tripas coração para tornar prioritária a pavimentação da BR-319. Uma obra que em vez de acelerar o crescimento - a tosca finalidade do PAC - só multiplicará desmatamentos e queimadas de florestas amazônicas, lançando a última pá de cal sobre os nobres compromissos que o governo brasileiro anunciou em Poznan. E sem esquecer a mesopotâmica campanha do Ministério da Agricultura contra o Código Florestal, mais a Medida Provisória 458 sobre a regularização fundiária da Amazônia, que favorecerão novo ciclo de expansão da fronteira predatória.

Em suma, nada de estranho quando se lembra que a nata das elites dirigentes - tanto pró-governo quanto de oposição - comunga a crença de que desenvolvimento seja sinônimo de aceleração do crescimento, além de não dar a mínima importância à qualidade de vida que estará ao alcance das futuras gerações.





Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=20057

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

A Doutrina do Choque

12/2/2009

‘A Doutrina do Choque’ disseca o capitalismo de desastre


Depois de levar o Urso de Ouro em 2006 por O Caminho para Guantánamo, a dupla de diretores formada por Michael Winterbottom e Mat Whitecross, volta ao Festival de Berlim com um novo e controverso projeto – A doutrina do choque –, que articula a história recente através da implantação do neoliberalismo no mundo. Baseado no best seller da ativista Naomi Klein A doutrina do choque. A ascensão do capitalismo de desastre [Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008], este work in progress projetado fora de concurso na seção Panorama, nesta segunda-feira, analisa a implementação das teorias do livre mercado formuladas pelo Prêmio Nobel Milton Friedman.

O filme mostra como as crises sociais facilitam a entrada em vigor de medidas econômicas impopulares, ao tirar proveito da anulação da vontade dos cidadãos. Chile e Argentina, as ditaduras de Pinochet e Varela aparecem num filme que também examina a Inglaterra grevista de Thatcher ou a Rússia neoliberal. O epílogo retoma o 11-S e a reconstrução do Iraque, e finaliza com certa esperança: a posse de Obama e uma chamada de Klein à mobilização.

Michael Winterbottom



O diretor britânico Michael Winterbottom concedeu a Begoña Donat uma entrevista publicada no jornal Público, 11-02-2009.

Eis a entrevista.

Não teme que o filme seja desqualificado como pura teoria da conspiração?

Não, A doutrina do choque traz informações para que cada qual decida se este é o mundo em que quer viver, dado que a ideologia dominante se converteu no estado natural das coisas. O livre mercado se assumiu como idôneo e, por isso, as corporações privadas administram os recursos do Estado. A crença é que democracia e liberalismo caminham de mãos dadas; mas, se analisas os exemplos, não é assim.

Você estabelece uma relação causal entre as declarações de Donald Rumsfeld contra os burocratas contrários às ideias da Escola de Chicago e a morte de alguns deles no Pentágono durante os atentados do 11-S.

Obviamente, estes fatos são certos, mas não estamos afirmando que Rumsfeld assassinou as vozes dissidentes. Faz parte de uma forma dinâmica de relatar os fatos e, ao mesmo tempo, de ser provocativo para que as pessoas reflitam.

Milton Friedman


Era sua intenção satanizar Milton Friedman?

Ele teve a ideia de que em momentos de crise era mais simples aplicar suas políticas neoliberais. A questão é que, se pensava que era uma forma de melhorar a vida de toda a população, fracassou. Se era a justificativa para que os endinheirados se enriquecessem mais e as multinacionais se tornassem mais fortes, acertou. O documentário explicita quais são as consequências de sua tese, já que a informação é uma arma de resistência.

Por que pensa que não ocorreu a ninguém antes analisar a história a partir deste ponto de vista?

O livro de Klein demonstrou ser visionário. Esta crise é tão devastadora e está tão vinculada à desregulamentação do mercado e à falta de controle estatal que vai abrir um debate. Mas o que vai acontecer vai depender da capacidade de mobilização das pessoas e da participação na discussão mundial.

Pensou em derivar a sua carreira para o documentário?

Não, estou exausto. Agora preparo um projeto de ficção, O assassino dentro de mim, adaptação do livro de Jim Thompson, em que Cassey Affleck interpreta um xerife que assassina as pessoas que ele ama.

***
Entrevista com Naomi Klein

(15/05/2008)

‘É a minha contribuição para a memória’.


Seu livro busca – A doutrina do choque, que está sendo lançado em espanhol e ainda não tem tradução para o português – demonstrar como o capitalismo emprega a violência e o terror contra o indivíduo e a sociedade. Naomi Klein esteve em Buenos Aires para palestras e também para gravações do documentário sobre o livro, junto com Avi Lewis e Michael Winterbottom. Segue a íntegra da entrevista concedida a Silvana Friera e que está publicada no Página/12, 25-04-2008. A tradução é do Cepat.

Naomi Klein



A musa da antiglobalização, que vendeu mais de um milhão de exemplares em todo o mundo com Sem Logo (Rio de Janeiro: Record, 2002), chama a atenção dos homens. No hotel do centro onde se hospeda, não é uma turista qualquer; caminha com a familiaridade de quem conhece o terreno em que pisa, se sente “como em casa” nesta cidade em que viveu em 2002. Elegante e cuidadosa com a sua imagem – para seus encontros com a imprensa contou com a ajuda de maquiadora e cabeleireiro – Naomi Klein toma com humor sua volta ao país.

Quando chegou, no sábado passado, a densa nuvem de fumaça que cobria a cidade impediu que o avião aterrissasse imediatamente em Ezeiza. “Prefiro a outra Argentina, naquela em que havia fogo por conta da política, e não esta, que me sufoca com tanta fumaça”, brinca a jornalista canadense, que hoje apresenta na Feira o seu último livro, La doctrina del shock [A doutrina do choque] (Paidós), que bem poderia ser definido como “a história oficial do livre mercado”. Neste trabalho de pesquisa de mais de 600 páginas, Klein demonstra como o capitalismo emprega constantemente a violência e o terror contra o indivíduo e a sociedade.

Neta de um sindicalista da empresa Disney e filha de um casal formado por uma artista feminista e um objetor da guerra do Vietnã que fugiu para o Canadá, entusiasta seguidora de Eduardo Galeano, John Berger e Susan Sontag, Klein não veio sozinha à Argentina. Além do seu marido, Avi Lewis, com quem realizou o documentário La Toma, sobre os operários da Bruckman e Zanon, está acompanhada do cineasta britânico Michael Winterbottom, com quem filmará o documentário sobre A doutrina do choque em Buenos Aires, onde encontrou a matéria-prima para seu último livro.

“Aqui tomei as lições da história simplesmente caminhando e falando com amigos pelas ruas. Foi o período em que mais aprendi em pouco tempo, foi uma experiência muito intensa, porque mudaram a forma como via o mundo”, lembra a jornalista na entrevista com Página/12. Esses amigos – Marta Dillon, Claudia Acuña, Silvia Delfino e Sergio Ciancaglini, entre outros – lhe contaram das sangrentas raízes do projeto da Escola de Chicago, comandada por Milton Friedman, “o homem da liberdade”, segundo The Wall Street, e compartilharam suas próprias lembranças e tragédias pessoais com Klein.

Grande guru do movimento pelo capitalismo de livre mercado, Friedman foi o responsável pela criação do “roteiro da economia global, contemporânea e hipermóvel em que vivemos”, diz Klein. Durante mais de três décadas, o economista de Chicago e seus poderosos seguidores esperaram que se produzisse uma crise de primeira ordem ou um estado de choque para vender a quem oferecer o melhor preço os pedaços da rede estatal aos agentes privados. “Algumas pessoas armazenam latas e água para em caso de algum desastre ou terremotos; os discípulos de Friedman armazenam um monte de idéias de livre mercado”, ironiza a autora. Friedman aprendeu a importância de aproveitar uma crise ou estado de choque em grande escala durante a década de setenta, quando foi assessor do ditador chileno Augusto Pinochet.




Se as privatizações, a desregulamentação e os cortes no gasto social costumavam ser impopulares entre nós, “mas com o estabelecimento de acordos assinados e uma parafernália, oficial, ao menos se sustentava o pretexto do consentimento mútuo entre os governos que negociavam, assim como uma ilusão de consenso entre os supostos especialistas”, agora, o próprio programa ideológico “é imposto mediante as piores condições coercitivas possíveis: a ocupação militar de uma potência estrangeira depois de uma invasão ou imediatamente depois de uma catástrofe natural de grande magnitude”.

Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, “já não tinham que perguntar ao resto do mundo se desejavam a versão norte-americana do ‘livre mercado e da democracia’; podiam impô-la mediante o poder militar e sua doutrina do choque e comoção”, afirma Klein. “A administração Bush aproveitou a oportunidade gerada pelo medo aos ataques para lançar a guerra contra o terror, mas também para garantir o desenvolvimento de uma indústria exclusivamente dedicada aos lucros, um novo setor em crescimento que insuflou renovadas forças na fragilizada economia norte-americana”.

Mesmo que Friedman tenha declarado que sua proposta era libertar o mercado das garras do Estado, Klein adverte que as elites políticas e empresariais simplesmente se fusionaram, “trocando favores para garantir seu direito de se apropriar, desde os campos petrolíferos da Rússia, passando pelas terras coletivas chinesas, até os contratos de reconstrução outorgados para o Iraque”.

A jornalista canadense repassa, nesta exaustiva pesquisa, como no Chile, Iraque, África do Sul, Argentina e China a tortura foi o sócio silencioso da cruzada pela liberdade de mercado global.

Por que não é comum que se relacione, como você o faz no livro, o neoliberalismo com a violência e as torturas?

Creio que por muitas razões, mas a principal delas é que a história é contada pelos vencedores e, como toda história de vencedores, é narrada de uma maneira “muito limpa” e triunfante. Se pensamos no Chile, tínhamos os Chicago Boys, que eram financiados pela Fundação Ford. Quando eram questionados pelas violações aos direitos humanos perpetradas por Pinochet, eles diziam que eram técnicos, que não tinham a nada a ver com essa situação. O principal patrocinador dos grupos de direitos humanos no Chile também era a Fundação Ford, e estes grupos diziam que só lhes interessava que se respeitasse a lei, que não lhes interessava nem a política nem a economia. A Fundação Ford tratava de garantir que a política e a economia nunca se entrelaçassem. O neoliberalismo e a tortura não se relacionavam graças à tirania da especialização; advogados por um lado e economistas pelo outro e que só se ocupavam de suas respectivas disciplinas. Mas, quando lemos Rodolfo Walsh ou Eduardo Galeano, nos encontramos com uma análise completa e integral da situação.

O material do livro, sobretudo a parte em que recorda os experimentos de choques elétricos em pacientes psiquiátricos financiados pela CIA na década de 50, resulta bastante desesperançador. Encontra alternativas?

Entendo porque o material do livro é um tanto deprimente quando é lido, inclusive eu mesma me deprimi um pouco em alguns momentos (risos). Mas o livro expressa um ato prometedor. Justamente a partir da minha experiência na Argentina me dei conta da importância da memória histórica para poder resistir e de alguma maneira vejo o livro como uma contribuição para a memória coletiva. Há uma luz de esperança porque quando o neoliberalismo falha surge um novo espírito que nos revela uma alternativa. Uma das coisas que me faz ter esperanças é que vejo uma mudança política nos Estados Unidos; cada vez observo como mais pessoas estão resistindo e se levantando contra o corporativismo. E isto é muito novo, porque durante muito tempo só se falava de Bush e de sua incompetência.

O contexto eleitoral norte-americano está vinculado a esta mudança que percebe?

Na realidade, a única coisa que a situação eleitoral faz é nos empurrar para trás. De alguma maneira, os movimentos antiglobalização, os protestos de Seattle, que surgiram no final dos anos 90, marcaram uma mudança na hora de falar do neoliberalismo e do corporativismo. A era Bush e a era do 11-S com a guerra do terror eclipsaram todas as outras questões políticas, o que gerou uma grande perda de consciência da situação. Mas depois se viveu uma espécie de ricochete contra Bush, não tanto contra a sua agenda política ou econômica, mas mais em relação à sua pessoa.

Mas, por sorte, estamos uma vez mais enfocados na própria mecânica do poder. Há dois milhões de pessoas que estão perdendo seus lares enquanto o governo está preocupado em resgatar Wall Street. Se alguém prestar atenção em quem está financiando as campanhas de Hillary Clinton e Obama, verá que são o Citibank e o JP Morgan. É a primeira vez em 14 anos que os democratas obtêm mais dinheiro dos fabricantes de armas que os republicanos. Hillary Clinton obteve mais financiamentos das companhias de defesa que John McCain. Nem Clinton nem Obama estão aproveitando este grande momento de radicalização que se está vivendo na sociedade, nenhum tem planos concretos para a retirada do Iraque. Ao contrário, querem manter a zona verde, que de alguma maneira é uma ocupação. Obama disse, na semana passada, que o povo norte-americano era amargo, que não tinha muito senso de humor, e na realidade tem razão, porque as pessoas estão cansadas e furiosas.

No livro se percebe uma importante defesa de Keynes. Uma alternativa seria recuperar a figura de um Estado mais forte que regule a economia?

Não vejo o livro só como defesa do keynesianismo. Creio que é importante entender que o keynesianismo era uma conciliação: o New Deal só foi possível graças a um massivo movimento dos socialistas e dos sindicatos, mas não foi suficiente, não foi mais além. Não me parece que proponha que a alternativa seja voltar ao keynesianismo. Sou favorável à descentralização, ao cooperativismo; não estou dizendo que voltar ao modelo keynesiano seja a grande solução.

Você assinala que os autênticos inimigos da teoria de Friedman não eram os marxistas, mas os keynesianos norte-americanos, os social-democratas europeus e os desenvolvimentistas, como eram chamados no Terceiro Mundo. Quais seriam hoje os inimigos do neoliberalismo?

O socialismo democrático sempre foi o maior perigo para o neoliberalismo. A atração que a democracia produz com a combinação de uma rede de contenção social sempre foi “a grande ameaça”. Depois que Allende fora eleito, Kissinger disse a Nixon que temia que o modelo chileno se propagasse pelo mundo afora. Creio que as táticas de ontem e de hoje são as mesmas, por exemplo, a forma como se demoniza Hugo Chávez e Evo Morales. A melhor coisa que aconteceu a Chávez foi ter perdido o referendo porque agora é muito mais difícil apresentá-lo como autoritário, uma vez que aceitou e respeitou o resultado.

Quando vemos que com a única figura com quem não se pode tratar no Iraque é com Al Sadr, começamos a compreender claramente qual é a ameaça do Iraque. Al Sadr é um nacionalista fundamentalista, os outros líderes são tão fundamentalistas quanto ele em questões de religião, mas a diferença é que Al Sadr quer ter o controle da economia do Iraque. Enfrentamos a mesma luta e a mesma batalha que tivemos nos últimos 30 anos e as mesmas ameaças. As figuras que não têm respeito pela democracia são um dom para os neoliberais.


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Milho transgênico invade campo brasileiro




Das 261 novas cultivares de milho registradas no Ministério da Agricultura desde 2008, mais da metade são transgênicas. Gabriel Fernandes, da AS-PTA, avalia que maioria das cultivares deve ser comercializada até a próxima safra. Contaminação genética e dependência às multinacionais serão sentidas pelo agricultor.

A reportagem é de Raquel Casiraghi e publicada pela Agência de Notícias Chasque, 10-02-2009.

Levantamento da Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), com base em dados do Ministério da Agricultura (MAPA), mostra um cenário nebuloso para o campo brasileiro já na próxima safra. Das 261 novas cultivares de milho registradas no MAPA entre 2008 e janeiro deste ano, 146 são transgênicas. Ou seja, 56% das novas sementes que estão entrando no mercado são geneticamente modificadas.

O assessor técnico da AS-PTA, Gabriel Fernandes, estima que boa parte das cultivares já esteja à venda na próxima safra. Ele prevê que as empresas do setor forcem a substituição do milho convencional pelo transgênico mais rápido do que ocorreu com a soja.

"A informação que mais chama a atenção é que, como existe uma concentração muito forte no mercado de sementes, são quatro, cinco empresas que controlam o setor, o que achamos é que em pouco tempo essas empresas irão tirar do mercado as variedades não-trangsênicas. E vão deixar somente as transgênicas. Acho que este é o grande sinal de alerta", diz.

Fernandes analisa que a principal disputa deve se dar na fase da comercialização, já que muitos países, principalmente europeus, têm resistência ao milho transgênico. No Brasil, como as indústrias que usarem o geneticamente modificado deverão rotular os seus produtos, a população poderá rejeitar a semente.

Para os agricultores, a situação é mais grave do que no plantio de soja transgênica. Como o milho tem polinização cruzada, o perigo da contaminação é bem maior. O milho transgênico também deverá ser suscetível às estiagens e à criação de resistência a pragas, como já ocorre com a soja.

"O grande problema agora é a contaminação que vai ocorrer. Esse milho, uma vez plantado, vai se espalhar seja pelo pólen, seja pela mistura dos grãos, e vai contaminar qualquer tipo de milho que não seja transgênico. O grande desafio hoje é saber como vai ser possível manter o cultivo convencional ou agroecológico sem a contaminação", diz.

A comercialização do milho transgênico foi liberada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) em 2008.



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13/2/2009

Nova tentativa de reabilitação do milho transgênico na França


Estariam os OGM sendo reabilitados? A Diretora-geral da Agência Francesa de Segurança Sanitária dos Alimentos (AFSSA), Pascale Briand, teria, segundo o Le Figaro desta quinta-feira, 12 de fevereiro, assinado um parecer relativo ao milho geneticamente modificado, o Monsanto 810. A reportagem é de Hervé Kempf e publicada no jornal francês Le Monde, 13-02-2009. A tradução é do Cepat.

O parecer, datado em 23 de janeiro e que era “mantido em segredo” até agora, retoma na essência as conclusões da Autoridade Europeia de Segurança Alimentar de 31 de outubro de 2008 e que dizia que “não foi fornecida nenhuma prova científica, em termos de riscos para a saúde humana ou animal ou ambiental para justificar a invocação de uma cláusula de salvaguarda”.

O parecer da AFSSA faz menção ao relatório redigido pelo professor Yvon Le Maho cujas conclusões, contrárias às da EFSA, levaram a direção geral da Saúde a frear a Agência Francesa. O governo francês tomou o relatório Le Maho para justificar a sua decisão de proibir o plantio do milho transgênico invocando a cláusula de salvaguarda junto à Comissão Europeia.

A questão, pois, é saber se o governo manterá a sua posição apesar desta contundente advertência. Ao saber que o Ministério da Ecologia também fundamentou seu argumento sobre critérios não apenas sanitários, mas também ambientais, está em condições de solicitar o prolongamento da cláusula de salvaguarda.

Desaceleração no mundo

É neste contexto que novamente vem à tona a questão da área real que as culturas transgênicas ocupam no mundo. O organismo que anualmente publica a avaliação desta estatística, o ISAAA (International Service for the Acquisition of Agro-Biotech Applications), vê seus resultados fortemente contestados pela rede internacional dos Amigos da Terra. E a França está justamente no centro desta polêmica.

O ISAAA é um organismo sediado na Universidade de Cornell, de Nova York, e é financiado por organizações como a Fundação Rockefeller ou empresas como a Monsanto e a Syngenta, que produzem os OGM. Ele publica anualmente, desde 1997, um relatório sobre a difusão dos OGM mundo afora. Em seu estudo da situação para 2008, publicado nesta quarta-feira nos Estados Unidos, o ISAAA dá a entender que a área cultivada na Europa cresceu 21%. Errado, calcula a ONG Amigos da Terra, que observa que o ISAAA excluiu a França da sua contagem. A moratória adotada pela França metropolitana em 2008 sobre o milho MON 810 fez a área cultivada dos OGM na Europa diminuir em cerca de 50.000 hectares.

Como aumento, o ISAAA conta a Romênia para 2007 e 2008, ao passo que a excluía em 2006. Entretanto, a Romênia cultivava OGM em 2006. A explicação desta manipulação, segundo Amigos da Terra: a Romênia diminuiu fortemente a sua cultura de OGM quando ela passou a fazer parte da Europa, em 2007. O “esquecimento” de 2006 permite inchar a aparente progressão.

No total, segundo Amigos da Terra, a área cultivada de OGM na União Europeia não aumentou 21% em 2008, mas, ao contrário, diminuiu 2%. Esta crítica enfraqueceu drasticamente a confiança que se pode ter nos dados apresentados pelo ISAAA. Em 2008, Amigos da Terra também havia mostrado que o Instituto supervalorizou o número de hectares cultivados com OGM na Índia em mais de 400.000 hectares.

Apesar do que aparece como uma propensão à supervalorização, os números do ISAAA mostram uma diminuição da progressão dos OGM no mundo. Em seu relatório para 2008, o Instituto calcula que a área cultivada em 2008 aumentou em 9,4%, atingindo 125 milhões de hectares. Essa taxa é bem menor que aquela de 2007 (-12%), quando era avaliada em 12%. A desaceleração é contínua visto que, em 2006, a progressão era calculada em 13%, em 2005 em 11%, em 2004 em 20%, em 2003 em 15%, em 2002 em 12% e em 2001 em 19%.

Amigos da Terra, por sua vez, publica um relatório (intitulado Who benefits from GM crops?) no qual a associação ecológica destaca que 80% dos OGM cultivados no mundo são produzidos em apenas três países: Estados Unidos, Argentina e Brasil. Por outro lado, o ISAAA observa que a cultura dos OGM começou em 2008 em Burkina Fasso, Egito e Bolívia, mesmo que em áreas pequenas. Em outro ponto de fricção, Amigos da Terra estima que na maioria dos casos os OGM não trazem benefícios para os agricultores, mas para os grandes exploradores agrícolas.






Fontes:

http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=19917



e

http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=19956

A dieta do clima. Coma menos carne e combata o aquecimento



Das centenas de dietas criadas nos últimos anos esta, certamente, é a mais politicamente correta de todas: siga seus preceitos e ajude a salvar o planeta do aquecimento global. De quebra, ganhe uma vida mais saudável e, quem sabe, alguns quilos a menos.

É a dieta com baixos teores de carne vermelha, no máximo 400 gramas por semana.

A reportagem é do jornal O Globo, 11-02-2009.

Se for adotada no mundo todo, calculam especialistas, a redução de emissões de gases-estufa seria da ordem de 10%, uma economia de nada menos que US$ 20 trilhões nos custos do combate às mudanças climáticas — cerca da metade do valor total necessário para tal tarefa em 2050.

A diminuição da criação de animais seria uma forma natural de diminuir as emissões e reduzir os investimentos em outras formas mais caras de combate aos poluentes.

O estudo realizado por especialistas da Agência de Impacto Ambiental da Holanda concluiu que os hábitos alimentares modernos — calcados numa dieta muito rica em carne vermelha — têm um impacto significativo no aquecimento do planeta.

E a redução do consumo de carne bovina, de porco, de frango e ovos criaria um novo sorvedouro de dióxido de carbono.

Pode não parecer óbvio de imediato, mas a criação extensiva de animais tem um grande impacto no clima. Em primeiro lugar, porque quanto mais a dieta global for baseada no consumo de carne, maior terá que ser a criação e, portanto, a área que deixaria de ser ocupada por vegetação — que, naturalmente, absorve carbono.

A flatulência dos bois e o metano

Além disso, para alimentar os animais, há uma ampliação no cultivo de grãos, o que geralmente demanda o uso de energia geradora de emissões poluentes. Para se ter uma ideia, a produção de um único quilo de carne bovina demanda o gasto de 15 quilos de grãos e 30 quilos de forragem.

Por último, mas não menos importante, há a questão da flatulência.

O principal gás expelido pelos extensos rebanhos mundiais é o metano — um dos principais responsáveis pelo efeito estufa.

O grupo responsável pelo novo estudo, coordenado por Elke Stehfest, calculou o impacto do consumo de carne no custo da estabilização dos níveis de CO2 na atmosfera em 450 partes por milhão — um padrão que, segundo muitos cientistas, é necessário para prevenir graves alterações climáticas, como secas frequentes e elevação do nível dos mares.

Se os hábitos alimentares não se alterarem, em 2050, para alcançar esse nível de dióxido de carbono, as emissões teriam que ser reduzidas em dois terços , o que custaria aproximadamente US$ 40 trilhões.

Mas, se a população mundial passar a seguir uma dieta pobre em carne vermelha — definida como 70 gramas de carne bovina e 325 gramas de frango e ovos por semana — cerca de 15 milhões de quilômetros quadrados de área ocupada pela criação de animais seria liberada para vegetação.

As emissões de gases do efeito estufa seriam reduzidas em 10% com a queda do número de animais. Juntos, esses impactos reduziriam em 50% os custos do combate às mudanças climáticas em 2050.

Os cientistas sugerem que, para ajudar os consumidores, o custo ambiental da carne — ou o volume de emissões de CO2 e metano por porção — seja incluído nos rótulos.


terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

O FIB (FELICIDADE INTERNA BRUTA) É MAIS IMPORTANTE QUE O PIB


COMO EXPORTAR FELICIDADE

Texto e fotos: Haroldo Castro

Um pequeno reino no Himalaia ensina
ao mundo como ser feliz

"A Felicidade Interna Bruta é mais importante do que o PIB. Em nosso processo de desenvolvimento, a felicidade precede a prosperidade econômica." Jigme Singye, rei do Butão, em entrevista ao Financial Times


Uma nação encravada na Cordilheira do Himalaia está revolucionando alguns conceitos básicos da vida humana. Ao criar um novo índice para medir a qualidade de vida de seus habitantes, o Butão oferece uma receita inovadora para nosso mun­do de hoje, demasiadamente ancora­do em aspectos materiais.

Tudo começou com Jigme Singye Wangchuck, que substituiu seu pai como o rei do Butão, em 1972. Ele ti­nha apenas 17 anos de idade. Sua co­roação, dois anos mais tarde, marcou o fim do isolamento do pequeno pais (menor que o Estado do Rio de Janei­ro), escondido nas montanhas. De fato, até então, nenhum es­trangeiro tinha autori­zação para entrar no reino, a não ser quan­do convidado pela fa­mília real. A partir de 1974, o paraíso proi­bido começou a abrir as portas ao mundo.

Nos 34 anos de rei­nado, o desafio do rei Jigme Singye Wang­chuck foi o de equili­brar o desenvolvimen­to econômico com os valores culturais e espirituais da nação. Em 1987, respondendo a um repórter do jornal britânico Financial Times sobre a razão de o desenvolvimento no Butão caminhar a passos tão lentos, o rei teria respondido que "a Felicidade
Interna Bruta é mais importante do que o Produto Interno Bruto". E teria arrematado: "Em nosso processo de desenvolvimento, a felicidade precede a prosperidade econômica."

0 conceito de o bem-estar do indivíduo não estar obrigatoriamente relacionado com bens materiais passou a percorrer o mundo e chamou a atenção de estudiosos. Afinal, o índice Produto Interno Bruto (PIB), usado por todas as nações do planeta, sempre foi considerado limitado. 0 PIB é apenas uma fórmula que determina a quantidade total da produção e do consumo de serviços e bens por meio de transações econômicas. Pouco importa se a riqueza foi originada de guerras, prostituição e devastação da natureza ou é o resultado de um trabalho honesto e uma atividade sustentável.

Se algum bem é conservado e não é consumido, essa operação não é registrada no PIB, pois esta não gera um valor específico. Por exemplo, uma floresta mantida in­tacta não entra no cálculo do índice, enquanto o conserto de um veículo aci­dentado (que pode até ter provocado vítimas fatais) é contabilizado. O PIB não consegue medir o trabalho volun­tário e chega a ampliar a discrimina­ção contra as atividades não-remune­radas, cujas motivações estejam acima do ganho financeiro.

"As medidas do PIB não medem a degradação do meio ambiente, o esgotamento dos recursos naturais nem o agudo declínio na qualidade de vida dos cidadãos. Acho que, em todos os espectros políticos, existe o reconhe­cimento dessas deficiências e a con­vicção que é importante desenvolver medidas mais adequadas", afirma jo­seph Stiglitz, economista reconhecido com o Prêmio Nobel 2001 de Econo­mia. Stiglitz foi convidado pelo presi­dente francês, Nicolas Sarkozy, para desenvolver um novo sistema de cál­culo econômico que possa incluir fa­tores de qualidade de vida.

As palavras de um rei (adorado por seus súditos) sobre a importância da felicidade foram levadas a sério pelos butaneses. Era preciso colocar em prá­tica o desejo real e o índice Felicida­de Interna Bruta (FIB) devia ser sis­tematizado. Em 1998, o conselho de ministros estabeleceu o Centro de Es­tudos do Butão, o qual passou a orga­nizar as informações sobre a FIB. O conceito também foi incluído nos Pla­nos Qüinqüenais e foi definido que a FIB deveria se apoiar em quatro pila­res: desenvolvimento socioeconômico sustentável e eqüitativo, conservação ambiental, promoção do patrimônio cultural e boa governança.

Enquanto isso, ao redor do mundo, um número crescente de economis­tas, cientistas sociais e empresários buscava outras medidas e indicadores que levassem em consideração não apenas o fluxo de dinheiro (como no caso do PIB), mas também a saúde, a cultura, o tempo livre dos indivíduos, a conservação da natureza e outros fatores não-econômicos.

Vários índices começaram a apare­cer na década de 90. O primeiro pas­so foi dado com o estabelecimento do índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Utilizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimen­to (PNUD), o IDH, além de incluir a renda per capita de um país, dá desta­que à expectativa de vida dos habitan­tes, ao grau de alfabetização e às rea­lizações educacionais.

Já o Indicador de Progresso Genuí­no (IPG) introduz em seus cálculos os fatores negativos criados pela socie­dade, os quais não são contabilizados pelo PIB. Por exemplo, a implantação de uma fábrica representa — indiscuti­velmente — um aumento no PIB de uma região. Mas se os benefícios tra­zidos pela nova empresa também vie­rem acompanhados por uma degrada­ção da saúde, da cultura e do bem-estar da comunidade, o resultado fi­nal pode ser zerado, anulando os be­nefícios econômicos trazidos. Segun­do os seguidores do IPG, existem vá­rios custos não-econômicos que de­vem ser incluídos, como o de uso dos recursos naturais, de perda dos ecos-sistemas, de poluição (sonora, do ar e da água), de criminalidade e, até mes­mo, de dissolução de famílias.

Outra tentativa de medir o bem-es­tar da sociedade, ainda menos ortodoxa, é o índice do Planeta Feliz (IPF), criado pela Fundação New Economics, um think-tank (usina de idéias) britâ­nico. Um dos componentes mais im­portantes do IPF é a eficiência ecoló­gica de uma nação e de seus indiví­duos. A idéia não é identificar o país "mais feliz" do planeta, mas sublinhar que é possível atingir altos índices de bem-estar e viver plenamente sem con­sumir excessivamente ou desgastar os recursos naturais.

Medir valores subjetivos, como a fe­licidade, é uma tarefa complicada, pois cada pessoa a compreende de forma distinta. Para alguns cientistas, a men­te funciona apenas como um aparelho que responde a estímulos externos. A felicidade, nesse caso, é percebida como uma conseqüência direta dos prazeres sensoriais registrados pela mente. Como estes são passageiros, a ênfase na busca de estímulos mate­riais é cada vez maior.
Já a filosofia budista aponta para ou­tra fonte de felicidade, aquela que tem origem em estímulos internos. E o es­tado em que o indivíduo vivencia o "ser", ao contrário de reagir apenas aos estímulos externos. A ciência compor­tamental comprovou que, de fato, a mente pode ser treinada por meio de práticas específicas (como a meditação) para promover estados duradouros de serenidade e contentamento. Quando a felicidade é compreendida dessa ma­neira, a busca desenfreada pelas sen­sações externas e o conseqüente con­sumo insustentável dos recursos natu­rais podem ser reduzidos consideravel­mente, promovendo uma economia mais saudável.

Segundo Karma Ura, presidente do Centro de Estudos do Butão, uma auto­ridade na pesquisa da FIB em seu país, a felicidade deve ser "um bem público, já que todos os seres humanos alme­jam alcançá-la". Ele acrescenta que "a busca da felicidade não pode ser deixada exclusivamente a cargo de esforços privados. Se o planejamento do governo e as condições macroeconômicas da nação forem adversos à felicidade, esse planejamento fracassará como meta co­letiva. Os governos precisam criar con­dições que conduzam à felicidade".

O primeiro-ministro do Butão, Jigmi Thinley, em discurso na Assembléia Ge­ral da ONU em setembro, explicou por que seu país instituiu a FIB. “É respon­sabilidade do Estado criar um ambiente que permita aos cidadãos buscar a feli­cidade." Ele considera que o ser huma­no deve ser visto de uma forma holísti­ca. "O bem-estar material é apenas um componente e este não assegura que os cidadãos estejam em paz com o am­biente e em harmonia entre eles."

Contando com o apoio incondicio­nal do monarca, a FIB passou a ser um elemento estratégico da política de planejamento do Butão e criou-se uma coleção de novos indicadores socioam­bientais. Um questionário com 1.300 perguntas foi elaborado e uma amos­tra da população respondeu ao teste. A pesquisa incluía as mais variadas perguntas, como quantas horas o in­divíduo dormia à noite ou quanto tem­po passava com amigos e parentes.

A convite do PNUD, Michael Pen­nock, diretor do Observatório para Saúde Pública em Vancouver, Canadá, passou três meses no Butão em 2006 para desenvolver um questionário mais "internacional" sobre a busca da felicidade. "O questionário butanês era muito longo, eram necessárias seis horas para ser respondido. Fui ao Bu­tão para criar uma versão menor, mais concisa, que pudesse ser respondida em 20 ou 30 minutos. Usamos apenas 100 variáveis para indicar os níveis de satisfação de um indivíduo no seu co­tidiano", diz Penncock.

Os pilares da FIB no Butão foram "ocidentalizados" e passaram a ter nove dimensões. Além das quatro ini­ciais — bom padrão de vida, boa governança, proteção ambiental e pro­moção da cultura — foram adicionados outros cinco itens: educação de quali­dade, boa saúde, vitalidade comunitá­ria, gestão equilibrada do tempo e bem-estar psicológico.

-Foi preciso dar pesos diferentes para cada área, em cada país. Para
países mais pobres, enfatizamos as ne­cessidades materiais. No Butão, um peso maior foi conferido ao aspecto cultural — o que não acontece no Canadá, uma nação multicultural por na­tureza", explica Penncock.
O conceito da FIB já chegou ao Bra­sil. No final de outubro, o butanês Kar­ma Ura se reuniu em São Paulo com empresários interessados em susten­tabilidade, deu palestras na Unicamp e na USP e participou da I Conferên­cia Brasileira sobre a FIB. Apesar de ter estranhado o clima quente e úmi­do, Ura adorou o calor humano brasi­leiro. "Tenho certeza de que o concei­to da Felicidade Interna Bruta vai ser bem aceito no Brasil. Vocês sabem o que é ser feliz."

Haroldo Castro viaja como jornalista, fotógrafo e conservacionista.
Ele é o fundador do Clube de Viajologia e já documentou 138 países.


haroldo@viajologia.com.br

www.viajologia.com.br


Revista Planeta JANEIRO 2009




Extraído do Blog HolosGaia


Viveiros de Castro fala sobre Lévi-Strauss

Claude Lévi-Strauss


Leia entrevista com Eduardo Viveiros de Castro sobre Lévi-Strauss


CAIO LIUDVIK

colaboração para a Folha de S.Paulo




Um dos principais antropólogos brasileiros, Eduardo Viveiros de Castro se notabilizou também pela retomada criativa, em livros como "A Inconstância da Alma Selvagem" (ed. Cosac Naify), dos métodos e do projeto teórico de Claude Lévi-Strauss.
E tal dívida intelectual fica patente pelo entusiasmo com que, na entrevista a seguir, saúda o centenário do pai da antropologia estrutural. Professor no Museu Nacional (RJ), Viveiros de Castro também comenta o percurso de Lévi-Strauss, sua recepção pela antropologia brasileira e sua atualidade como paradigma científico e forma de compreensão crítica dos impasses do mundo global.


Folha - Como sintetizaria a importância de Lévi-Strauss para a antropologia e o pensamento ocidentais?


Eduardo Viveiros de Castro -
Lévi-Strauss reinventou a antropologia, ao desmontar os fundamentos metafísicos do colonialismo ocidental, e ao mesmo tempo revolucionou a filosofia, ao abrir um dos principais caminhos do século [20] para que outros pudessem desmontar os fundamentos colonialistas da metafísica ocidental.


Quais de suas obras o sr. destacaria? Por quê?


Viveiros de Castro -
Todas. "As Estruturas Elementares do Parentesco" (1949) é um dos grandes clássicos do pensamento sociológico, um livro de mesma estatura que "Economia e Sociedade", de Max Weber, ou que "As Formas Elementares da Vida Religiosa", de Durkheim.


"Tristes Trópicos" (1955) suscitou uma modificação dramática na sensibilidade européia em relação ao lugar da civilização ocidental na história humana.


"O Pensamento Selvagem" (1962) colocou os mundos intelectuais que estavam fora da órbita das chamadas "grandes tradições" (as culturas estatais, antigas ou modernas) ao alcance do horizonte filosófico euro-americano.


Isso tudo dito, penso, porém, que os estudos mais tardios sobre as mitologias ameríndias, a saber, a tetralogia "Mitológicas" (1964-71) e as três monografias posteriores ("A Via das Máscaras", 1979, "A Oleira Ciumenta", 1985, e "História de Lince", 1991) são o ponto alto da trajetória intelectual de Lévi-Strauss.


Com esses livros, Lévi-Strauss tirou o pensamento ameríndio do gueto em que jazia desde o século 16 e lhe deu carta de cidadania para ingressar com a cabeça erguida no futuro intelectual da espécie.


A partir das "Mitológicas", a obra de Lévi-Strauss se torna o momento em que o pensamento ameríndio faz seu lance de dados, ultrapassando seu próprio "contexto" cultural e se mostrando capaz de dar a pensar a outrem, isto é, a todo aquele que, persa ou francês, se disponha a pensar --sem mais.


Meu livro favorito de Lévi-Strauss são dois: "As Origens dos Modos à Mesa", o terceiro volume das "Mitológicas", maravilhosamente bem pensado, e "História de Lince", livro curto e grandioso, sombrio e genial, onde se acha exposta a teoria indígena da "descoberta" da América pelos europeus.

Eduardo Viveiros de Castro

Folha - Em que circunstâncias o sr. entrou em contato pela primeira vez com a obra lévi-straussiana? Que impacto esse "encontro" teve para o seu próprio modo de conceber e praticar a antropologia? Poderia exemplificar com alguma de suas obras?


Viveiros de Castro -
Os dois primeiros livros de antropologia que li foram "As Estruturas Elementares" e "O Cru e o Cozido", em 1970-71, em cursos que [o crítico] Luiz Costa Lima dava na PUC-RJ na época.


Note-se que, se foram os patronos da USP que trouxeram Lévi-Strauss ao Brasil nos anos 1930, não foi a USP quem trouxe o estruturalismo para essas plagas, a partir do final dos anos 1960. A antropologia estrutural custou um bocado a pegar no ambiente paulistano, por razões muito características, que não cabe adentrar aqui. A exceção que confirma a regra, para o caso de São Paulo, foi o grande Bento Prado Jr., que sempre esteve um passo ou dois à frente de seus congêneres.


A experiência de leitura de "O Cru e o Cozido" (volume 1 das "Mitológicas"), em particular, foi decisiva para mim.


Mergulhado como me achava, aos vinte e bem poucos anos, na efervescência cultural da época, a época da tropicália e da antropofagia (uma teoria política da bricolagem cultural), dos experimentos radicais da arte conceitual brasileira, da ascese barroca da poesia concreta, da querela do formalismo versus conteudismo em arte, do nacional-popular, das raízes, e tendo tomado fervorosamente o partido tropical-concreto, a leitura daquela série de mitos picarescos analisados por Lévi-Strauss, pornográficos às vezes, surrealistas sempre, tropicalistas literalmente, mitos tratados de modo impavidamente algébrico em "O Cru e o Cozido", me ofereceu à imaginação esse objeto perfeito: uma matemática rabelaisiana. Lévi-Strauss é a síntese, muito gálica, de Rabelais e Descartes.


Folha - Hoje é possível considerar a antropologia estrutural, em algum sentido, ultrapassada?


Viveiros de Castro -
Essa questão faria mais sentido se aplicada à coleção de verão de 2007 de algum costureiro ou a alguma droga ou ritmo da moda nas discotecas (ainda se chamam assim?) de Londres, Mikonos ou Recife.


Mas, se é para a respondermos: bem, sim, a antropologia estrutural está, em alguns sentidos, ultrapassada, como a filosofia de Kant está em alguns sentidos ultrapassada, ou a poesia de Dante.


Mas, como sabemos, isso não impede que ninguém se possa chamar filósofo se não leu e meditou profundamente sobre Kant, nem poeta se não leu nem se maravilhou com Dante.


Em outros sentidos, a antropologia estrutural nem sequer começou a ser explorada em toda a sua complexidade.



O estruturalismo está muito longe de ter tido todas as suas potencialidades analíticas esgotadas, e a fase das leituras brutalmente simplificadoras da obra lévi-straussiana --simplificação dialeticamente necessária, sem dúvida, para o prodigioso florescimento de novos temas e problemas na antropologia dos últimos 30 anos (e para a ressurreição de alguns temas bem velhos; já ia dizer, ultrapassados) --aproxima-se de seu fim.


Após a recauchutagem do evolucionismo pela psicoantropologia cognitiva, essa ciência perpetuamente promissora; após a ressurgência do difusionismo com a sociologia crítica da "invenção da tradição"; depois da volta do funcionalismo (mas ele alguma vez foi mesmo embora?) com a economia política da globalização; bem, talvez tenha chegado a hora de desesquecer e recomplicar --como dizia Leach, de "repensar"-- o estruturalismo.


Lévi-Strauss, que completou 100 anos em 2008,
em foto de 2005

Folha - Em "As Idéias de Lévi-Strauss" (ed. Cultrix), Edmund Leach mostra que a antropologia anglo-americana é herdeira de Malinowski na ênfase em aspectos como observação participante, menos generalizações e foco nas diferenças --mais do que nas semelhanças-- entre as culturas. E por isso tais antropólogos tenderiam a criticar o viés de Lévi-Strauss, que seria mais comparável ao de Frazer: erudição monumental, mas pouco trabalho de campo e uma vontade de elucidar os traços universais da "mente humana", negligenciando as particularidades culturais. Como vê tais críticas?


Viveiros de Castro -
Leach era um piadista, um caso curioso de enfant terrible vitalício da antropologia britânica. Pois suas críticas a Lévi-Strauss devem ser lidas tendo-se em mente que Leach foi justamente o principal difusor do estruturalismo nas terras malinowskianas da antropologia britânica.


(A antropologia norte-americana tem pouco a ver com Malinowski: não misturemos as estações).

Foi aliás graças ao ensino de Leach que, hoje, se pode dizer que o verdadeiro espirito do estruturalismo está mais vivo na antropologia britânica, graças à liderança intelectual de uma ex-estudante de Leach em Cambridge, a antropóloga Marilyn Strathern (o maior nome surgido na disciplina desde Lévi-Strauss), do que na França, onde o pensamento lévi-straussiano foi submetido, por alguns antropólogos eminentes no plano local, a uma empresa sistemática de sabotagem intelectual.


Quanto a isso de erudição monumental (não consigo imaginar essa expressão como significando uma crítica) versus particularidades culturais --tal coisa não existe.


A distinção entre antropologias francesa e britânica não se reduz a --nem sequer passa por-- um contraste entre generalizações e busca de semelhanças versus estudos monográficos particularizantes.


Aliás, nada mais particularizante e minuciosamente etnográfico que a etnologia francesa de hoje. E Lévi-Strauss nunca se interessou pelas semelhanças, mas pelas diferenças. Ou melhor, pelos sistemas formados pelas diferenças entre as diversas culturas particulares.


A oposição entre universal e particular é uma roubada epistemológica. Isso não existe.


Folha - Outro grande nome da antropologia contemporânea, Clifford Geertz, teceu críticas duras a "Tristes Trópicos", dizendo tratar-se de um livro a ser lido sobretudo como ficção, literatura, mais do que como etnologia. O sr. concorda? Como o sr. avalia essa obra de Lévi-Strauss?


Viveiros de Castro -
As críticas de Geertz (aliás, já morto há algum tempo) não são tão recentes assim. As primeiras delas datam do começo dos anos 1970, se não me falha a memória. De qualquer modo, elas são irrelevantes.


Geertz se distinguiu por criticar logo os dois estilistas máximos, no sentido literário tanto como conceitual, que a antropologia jamais conheceu: o britânico Evans-Pritchard e o francês Lévi-Strauss.


Parece coisa de inveja da excelência alheia.


"Tristes Trópicos" não é um livro de ficção. É um livro que redefiniu as fronteiras e as funções intelectuais da ficção e da etnologia. Eu troco a obra inteira de Geertz --que não é nada má, diga-se de passagem-- por um único capítulo de "Tristes Trópicos".

Geertz



Folha - Em que medida as fortes denúncias de Lévi-Strauss contra o etnocentrismo do Ocidente ajudam hoje a pensar os rumos da civilização globalizada?


Viveiros de Castro -
As denúncias de Lévi-Strauss simplesmente anteciparam o que hoje está cada vez mais evidente: que a espécie entrou em um apertadíssimo beco sem saída.


E que, se alguma esperança há, esta reside em nossa capacidade de prestar a mais humilde, séria e solícita das atenções à tradição intelectual dos povos que não tiveram a pretensão inacreditavelmente estúpida e arrogante de se colocar como maiores do que o mundo em que vivem.


(Entrevista publicada na Folha de S. Paulo em 25/11/2008)

Extraído do Blog Epifenomenologia

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Fortaleza Europa


Planos para a detenção de imigrantes africanos ilegais provocam indignação em ilha italiana


Por: Clemens Höges

Em Lampedusa (Itália)
Da Der Spiegel


Moradores da ilha italiana de Lampedusa estão se rebelando contra Roma. Milhares de refugiados que chegaram lá de barco poderão ser em breve colocados em um centro de detenção na pequena ilha, para impedir que entrem na União Europeia e desapareçam.

Quando os dramas tornam-se comuns, até mesmo os idealistas podem às vezes parecer insensíveis. Antonino Maggiore diz que deseja construir "um mundo melhor" - para os italianos, ainda mais para os estrangeiros perseguidos e, na verdade, para todo mundo. Maggiore tem 25 anos, uma idade na qual é de se esperar pronunciamentos idealistas desse tipo. Ele dirige uma organização chamada Juventude Alternativa e trabalha para a emissora Rádio Delta, na ilha de Lampedusa, ao largo da costa do norte da África, um posto avançado da fortaleza Europa.

Os amigos dele na Rádio Delta transmitem músicas alegres que promovem um mundo melhor, enquanto Maggiore relata as notícias do mundo real. No entanto, só há um tipo de notícia que ele nunca lê: a de que as duas embarcações cinzentas da alfândega de Lampedusa rebocaram mais um barco a remo caindo aos pedaços até o porto da ilha. Alguns dos passageiros - homens, mulheres e crianças da África - estão invariavelmente mortos ou semi-mortos quando chegam a Lampedusa. "Se eu tivesse que falar sobre essas histórias todas às vezes que elas ocorrem, estaria noticiando a mesma notícia todos os dias", diz Maggiore.

No ano passado, 36.952 refugiados chegaram de barco às costas italianas. Cerca de 31 mil deles desembarcaram em Lampedusa. Ninguém sabe quantos morreram na tentativa de chegar à Europa. As organizações de auxílio humanitário calculam que para cada três refugiados que chegam vivos, um morre no mar.

O próprio continente africano é, de certa forma, como o mar que os migrantes atravessam. Ele envia ondas sucessivas de refugiados que vão quebrar-se todos os anos nas escarpadas costas europeias. É impossível deter as ondas, e a única forma de controlá-la é construindo novos quebra-mares. Os espanhóis deram início ao processo, primeiro selando o Estreito de Gibraltar e, depois, os seus enclaves norte-africanos de Ceuta e Melilla. Atualmente a rota de 130 quilômetros da Tunísia a Lampedusa, uma viagem de dez horas em barcos de pesca, é a mais fácil para os refugiados oriundos da África.

E, conforme argumenta o primeiro-ministro Silvio Berlusconi, é precisamente por isso que a ilha turística mediterrânea precisa transformar-se no quebra-mar mais eficiente da Europa. A sua coalizão de centro-direita deseja construir um novo centro de detenção de grande porte na ilha. Durante as eleições de abril do ano passado, os partidos de direita do país prometeram expulsar os imigrantes ilegais o mais rapidamente possível. E agora eles estão a ponto de cumprir a promessa - em Lampedusa.




Segundo a nova política proposta por Roma, os migrantes não serão mais transportados diretamente para o continente, mas sim para campos de refugiados na ilha. Lampedusa é ideal para isso. Não é possível sair de lá sem um barco, e um forasteiro teria dificuldades para se esconder por mais do que alguns minutos na única cidade da ilha. Algum dia os africanos serão deportados para algum outro país - mas isso será difícil e demorado.

Os 6.000 italianos que moram em Lampedusa passaram as duas últimas semanas fazendo rebeliões e greves para protestar contra os planos do governo para a ilha. Eles temem que o centro de detenção possa prejudicar o turismo, uma das bases da economia local. Afinal, quem vai passar férias em Guantánamo? Alguns temem que milhares de refugiados venham para Lampedusa, e que toda essa operação seja maior do que aquela referente ao famoso campo de detenção norte-americano.

Apesar de tais temores, não existe aqui nenhum graffiti racista ou xenófobo. Os moradores não entoam slogans hostis, e os italianos chegaram até a construir um memorial em homenagem aos refugiados que se afogaram. Muitos desejam aos africanos uma vida boa - mas não na ilha. Quanto a isso, eles concordam com os cerca de 1.300 refugiados que encontram-se atualmente trancados no velho campo provisório, que foi construído para acomodar 380 pessoas.

Os moradores de Lampedusa dirigem a sua raiva contra Berlusconi e o ministro do Interior, Roberto Maroni, da direitista Liga do Norte. Eles estão especialmente revoltados com a recente declaração de Berlusconi, que afirmou desconhecer qualquer situação precária em Lampedusa, e acreditar que os refugiados têm liberdade "para sair quando quiserem e tomar uma cerveja". Agora os moradores da ilha temem que os turistas achem que encontrarão africanos bebendo na ilha. Já os refugiados sabem por experiência própria que as palavras do primeiro-ministro não fazem sentido.

Dois dias atrás, os italianos, liderados pelo prefeito de Lampedusa, fizeram uma passeata até o campo de detenção. Ao vê-los, os refugiados pularam as cercas, gritaram "liberdade, liberdade" e juntaram-se à marcha de protesto.

A seguir os moradores da ilha fizeram uma greve geral, praticamente paralisando Lampedusa. A atividade na ilha durante o inverno já é bem pequena, mas, de qualquer maneira, eles mandaram uma mensagem à Roma.

"Nós ainda desejamos um futuro", diz Antonino Maggiore. Mas ele não quer passar esse futuro trabalhando como guarda carcerário. "Os africanos que chegam de barco querem ir para a Europa, e não para Lampedusa. Por que então esta pequena ilha teria que resolver um problema que aflige toda a Europa?".

Nenhum refugiado jamais permaneceu em Lampedusa. Muitos partem para a Europa e mergulham na clandestinidade, colhendo laranjas na Espanha, limpando vasos sanitários na França ou lavando pratos nos restaurantes de Hamburgo e Munique - como trabalhadores ilegais ou "clandestini", como são chamados em Lampedusa. Eles não desejam retornar à Etiópia ou a Mali, onde pagaram a traficantes de seres humanos uma quantia de US$ 2.000 a US$ 4.000 por uma viagem só de ida. Os destinos dessas pessoas, seja a morte ou a sobrevivência, frequentemente é decidido no último passo rumo à Europa, a viagem de barco rumo a Lampedusa.

Os traficantes ancoram as embarcações em vilas costeiras da Tunísia ou da Líbia. Apontando para o norte com os dedos, eles dizem aos refugiados que, assim que avistarem terra, devem destruir os lemes ou motores precários dos seus barcos. Depois disso, só resta aos refugiados esperar.





Se um barco à deriva não for descoberto, as pessoas a bordo morrerão. Mas, se forem avistados pelos aviões de patrulha operados pela agência europeia de controle da fronteira europeia Frontex, por exemplo, os refugiados estarão protegidos pelo Artigo 98 da Convenção das Nações Unidas sobre a Lei do Mar, que estipula o dever de prestar assistência a embarcações em perigo. Quando isso ocorre, as lanchas rápidas de Lampedusa dirigem-se infalivelmente ao barco dos refugiados e rebocam os imigrantes ilegais até o porto.

Os moradores acostumaram-se a esses hóspedes temporários. Isso não é difícil, porque ninguém os vê. Lampedusa tem nove quilômetros de comprimento por três de largura, e só há uma pequena cidade na ilha. Há alguns anos o governo construiu o velho campo de refugiados em uma colina. As cercas e os guardas que ficam em torno do campo garantem que os refugiados fiquem fora da cidade. É como se eles ainda estivessem na África.

Mauro Buccarello teme que tudo isto mude quando o novo campo for construído. A prática de virar as costas para o fato, cultivada no decorrer dos anos, poderá terminar. "O problema é a psicologia dos turistas", diz Buccarello. Ele tem 32 anos e está muito bem vestido. Buccarello usa grossos anéis de pratas nos dedos polegares e mínimos, veste roupas caras e tem muito a perder com a construção do campo de refugiados. Ele ganha bem transportando no seu barco turistas que praticam scuba diving nos locais mais belos espalhados pela costa.

Mas os turistas podem ser criaturas sensíveis. Eles não querem ver pessoas esquálidas nem sentirem-se ansiosos. Muitos turistas manterão distância da ilha caso saibam que milhares de africanos sem nenhuma perspectiva estão detidos em Lampedusa. O fato de o governo na distante Roma planejar construir o campo na extremidade da ilha, no terreno de um ex-quartel militar, não ajuda.






Em outras palavras, nada mudará para os turistas, e no entanto tudo será diferente, teme Bernardino de Rubeis, o prefeito. Todos na ilha o chamam pelo apelido, "Dino". Ele tem mais de dois metros de altura. "Se as pessoas acharem que isto será uma prisão ao ar livre para 5.000 imigrantes, o turismo em Lampedusa entrará em colapso".

Rubeis diz que os assessores de Berlusconi não serão capazes de deportar os refugiados com rapidez suficiente, se é que algum dia os deportarão. Ele observa que a Itália só possui um acordo em vigor com o Egito, mas que pouca gente vem daquele país. Ninguém se dispõe a aceitar os imigrantes que vem de outras nações.
"Se quisermos que tudo permaneça como está, tudo terá que mudar", disse Alain Delon para Burt Lancaster no filme "O Leopardo". Giuseppe Tomasi é o autor do livro no qual o filme se baseia. "Quando uma onda grande chega, é impossível nadar contra ela", escreveu ele. Na época ninguém falava em refugiados africanos.

Mas muitos na ilha estão familiarizados com o livro dele, que foi publicado em 1958. Tomasi tinha os títulos de Duque de Palma, Barão de Montechiaro e Príncipe de Lampedusa.