O lançamento de La Haine de la démocratie (O Ódio da Democracia), em 2005, foi um acontecimento. De início, porque o filósofo Jacques Rancière lança um ataque eloquente contra a oligarquia e contra as elites do poder. Em seguida, em função da tomada do partido delas pelas pulsões antidemocráticas dos intelectuais, seu desgosto pela plebe. Quer se trate de Alain Finkielkraut fustigando o caráter inculto dos consumidores contemporâneos, ou de Philipe Muray, debochando do homo festivus, de Jean-Claude Milner, condenando os pecados mortais da Europa democrática, do italiano Giorgio Agamben, comparando nossas democracias a regimes totalitários, os representantes da elite intelectual, lembrava Rancière, não estão dispostos a confiar no povo, nas massas que julgam ignorantes e perigosas.
A entrevista foi publicada pela revista Philosophie Magazine e reproduzida pelo portal Carta Maior, 13-02-2014. A tradução é de Louisa Antônia León.
Em 2007, quando em campanha presidencial, Ségolène Royal propôs a criação de juris populares e defendeu o conceito de “democracia participativa”. Para explicar a escolha ao Partido Socialista, reivindicava a influência do trabalho de Jacques Rancière (La Haine de la démocratie). Mas o principal interessado rapidamente cortou essa tentativa de apropriação. Sua posição com efeito estava muito distante do programa de Ségolène Royal, pois, para ele, a democracia não pode ser uma oferta eleitoral: trata-se, ao contrário, de um escândalo.
Em entrevista à revista Philosophie Magazine, Rancière fala sobre a democracia e os adversários que ela encontra para sua efetivação no mundo contemporâneo.
Eis a entrevista.
Temos a tendência de pensar que há democracia quando o governo é eleito por maioria dos votos. Você fornece uma definição completamente diferente da democracia, a qual é representada como um excesso. O que isso significa?
Os conceitos da política não nascem da classificação das diversas formas de governo. Eles nascem da própria política. Lembremos que, na origem, a palavra “democracia” é uma injúria. Na Grécia, tratava-se como “democrata” aquele que queria o poder do povo, quer dizer, da canalha. Não há uma definição, mas uma constelação de significações em torno da palavra democracia, que tem todas este ponto comum: o escândalo. O sorteio, e não o voto majoritário, tornou-se o símbolo dela. A ordem natural queria que o poder estivesse ao alcance dos indivíduos mais fortes, mais ricos, mais sábios ou mais capazes... Mas a democracia ou o “poder do povo” impõe esta verdade paradoxal: para que haja política, e não somente dominação, é preciso pressupor um poder que não se identifique a qualquer competência exercida sobre os outros, sejam quem for. Não se está numa democracia simplesmente porque o povo está representado por deputados, ou governado pelos presidentes eleitos, mas quando existem formas de afirmação desse poder das pessoas que são autônomas em relação às instituições do Estado.
Para você, o regime no qual vivemos hoje na França é um “Estado de direito oligárquico”. Qual o sentido dessa expressão?
Nosso sistema repousa sobre uma dupla legitimidade. De um lado, há um Estado de direito, com um certo número de constrangimentos jurídicos que limitam as prerrogativas do poder e protegem os cidadãos. Mas nossos governos são oligárquicos: abrigam os políticos profissionais, cada vez mais ligados ao mundo da finança. Eles se apoiam na visão dos experts que navegam pelo mundo dos negócios, dos governos e da universidade, cujo papel na desregulamentação liberal e na especulação financeira nos EUA o demonstrou, exemplarmente. O poder de todos é monopolizado por uma pequena minoria que se auto-reproduz. Esse sistema reduz a ação democrática ao processo eleitoral, quer dizer, às escolhas entre os políticos que são desde o início designados por essa minoria, em seu interior. A eleição é duas coisas em uma: ela é a forma de reprodução da oligarquia governante. E ela é a visibilidade do poder de todos, ainda presente, mas num sistema como o nosso, onde tudo repousa na eleição, todos os cinco anos de um chefe supremo. E sem dúvida é preferível ter soberanos eleitos pela minoria mais forte do que ter gente que está lá pela força armada ou sob o comando de um partido único. Além disso, o sufrágio universal às vezes burla os cálculos dos experts e dos estrategistas.
Como na época da rejeição, pelo referendo de 2005, do projeto da Constituição Europeia... Em O Ódio da Democracia, você diz que era edificante escutar as elites de então recriando o escândalo que representava, aos seus olhos, o “não” da população. Mas se se organizasse um referendo que resultasse na interdição da construção de mineradoras, ou da burca, ou no retorno da pena de morte, não estaria você, como representante da elite intelectual, entre os primeiros a se indignar?
Vamos distinguir as coisas. O problema da burca foi introduzido no debate pela elite; não se viu as pessoas na rua molestando as mulheres de burca. Muitos dos temas ditos populistas – a islamofobia, o racismo, a segurança – não vêm de baixo, mas do alto. A gestão da insegurança é uma forma de autolegitimação do poder oligárquico, e a islamofobia foi alimentada pelos intelectuais. No que concerne ao referendo sobre a Constituição europeia, nossos dirigentes cometeram um erro em relação à lógica governamental: eles deram aos eleitores o texto a ser lido. As pessoas votaram depois de terem discutido um texto que todos tiveram tempo de ler e de julgar; não se tratava de enunciar uma opinião, como os cidadãos suíços o fizeram, em relação às mineradoras... Em todo caso, a democracia é a ação comum em nome de um poder de pensamento que pertence a todos. Não se pode reduzi-la à escolha entre opiniões contrárias. O referendo não é, para mim, um modelo. Ele ganha sentido em situações em que há uma decisão a ser tomada sobre orientações coletivas claramente enunciadas. Em toda parte, onde se gera fantasma, pode-se chegar ao pior.
Quando o resultado de um referendo lhe agrada, é uma escolha esclarecida. Quando o desaponta, é o resultado de uma manipulação. Isso não é um pouco cômodo? O excesso democrático não pode, ele também, levar a uma exclusão das minorias, ao desencadeamento das pulsões?
A diferença não é apenas de resultados. Ela está no tipo de povo a que a questão se destina: trata-se do povo étnico, definido por uma identidade a preservar, ou de um povo político, que não existe senão sob a supressão de suas identidades? A democracia não afirma a bondade original do povo, mas diferença ela mesma entre duas ideias de povo. O excesso democrático não é portanto o contágio dos movimentos da massa. Ao longo do tempo, esses movimentos estão em regressão em nossas sociedades ocidentais. Não houve caça aos muçulmanos após o 11 de setembro. Nossos partidos da extrema direita dirigem opiniões de eleitores, não paixões populares de massa. E a História nos mostra que, mais do que grandes horrores, os piores massacres sempre foram planejados pelas oligarquias no poder, das dragonadas aos campos [de concentração] e aos genocídios. O partido-Estado Nazi, com a solução final, mostrou uma eficácia no crime que as manifestações populares e os pogroms espontâneos ao longo dos séculos precedentes jamais alcançaram.
Hoje, vários filósofos (Finkielkraut, Milner, Agamben…) criticam vivamente a democracia. Não é estranho ver se espalhar um forte sentimento antidemocrático dentre os filósofos ?
Eu não vejo paradoxo. Não existe um grupo de pessoas que seriam “os filósofos” e que teriam por missão defender a democracia. Atribui-se erradamente aos intelectuais uma vocação de resistência à opinião dominante. O desenvolvimento do antidemocratismo entre eles acompanha naturalmente o fortalecimento do poder das oligarquias e o crescimento das desigualdades. Desde que o sistema soviético afundou, aqueles que criticavam o totalitarismo em novem da democracia e os que criticavam a democracia como ilusão, que escondia a exploração capitalista, tendem a se pôr de acordo sobre uma visão sociológica da democracia. Esta chegou ao poder dos indivíduos consumidores da sociedade de massa, e opôs a essas massas ávidas e ignorantes a razão esclarecida das elites.
Sob o efeito da globalização econômica e da hegemonia crescente da China, a democracia poderia desaparecer?
A democracia como ideia do poder de todos pode desaparecer sob uma forma suave, dissolver-se nas oligarquias temperadas que conhecemos no ocidente. Muitos dos elementos estão reunidos para tanto: a pressão crescente do governo econômico mundial, a redução da cena política à disputa pela escolha do dirigente supremo, a tendência a criminalizar os movimentos sociais, a reduzir as greves e manifestações a rituais estritamente regulamentados, e a rejeitar a contestação das formas dominantes, como sabotagem ou terrorismo, o consenso antidemocrático crescente. Ao mesmo tempo, nossas oligarquias não precisam de um partido único, sob o modelo chinês, para fazer o sistema funcionar. Os meios de supressão suave podem chegar a resultados globalmente comparáveis aos que o comunismo da China “liberalizada”, por sua parte, obterá. O que pode se opor a isso é somente uma força de pensamento e de ação autônomas, em relação às agendas estatais.