domingo, 13 de abril de 2008

Tudo que é sólido se desmancha em mil imagens espetaculares


Tudo que é sólido se desmancha em imagens espetaculares
Experiência intelectual do pensador francês Guy Debord revitalizou a discussão do marxismo ocidental
Vladimir Safatle (Estadão, domingo, 13 de abril de 2008)



Há 40 anos, enquanto revoltas explodiam pelos campi do mundo, um livro rapidamente se transformava em referência para a ala mais aguerrida do movimento estudantil francês. Tratava-se de A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord. Seu destino, assim como o destino geral das idéias de seu autor, aparece hoje como um dos legados mais sólidos de maio de 68, já que sua experiência intelectual contribuiu de forma decisiva para a maneira como compreendemos os desafios postos pelas sociedades capitalistas contemporâneas às nossas expectativas de emancipação.

Tal força vem do pensamento de Debord ter se colocado na confluência de duas experiências maiores do século 20: os desdobramentos das vanguardas modernistas e a tradição crítica forjada no interior do marxismo ocidental. Confluência evidenciada pela sua produção híbrida de teórico e cineasta.

Por um lado, fiel ao programa modernista de elevar a forma estética a setor avançado da crítica à inautenticidade da vida social, Debord desde cedo foi sensível à transformação da cultura em campo fundamental de batalha na sociedade capitalista. Foi tal espírito que o levou a fundar, juntamente com artistas vindos dos movimentos Cobra, letrismo e Bauhaus imagista, a Internacional Situacionista.

Por outro, Debord construiu, durante os anos 50 e 60, uma peculiar filiação ao marxismo ocidental do Georg Lukács de História e Consciência de Classe, com seus conceitos de crítica da reificação e de universalização da forma-mercadoria enquanto chave para a compreensão dos processos de racionalização social. Tal filiação foi responsável pela sua posição ímpar no interior do pensamento francês contemporâneo. Seu hegelianismo e sua insistência na noção de processo histórico o levara a criticar duramente o estruturalismo, corrente hegemônica na França de então. Já sua insistência em continuar operando com categorias aparentemente obsoletas como: consciência de classe, ideologia, reificação, negatividade e força revolucionária do proletariado o afastou da vaga pós-estruturalista que ganhou força após maio de 68, principalmente através de Deleuze e Foucault.


DA ECONOMIA À CULTURA

A influência do pensamento de Guy Debord não pode ser compreendida sem introduzir este que é seu conceito central: ''espetáculo''. Resultado do advento de uma era em que a produção econômica se submete à lógica que coloniza a cultura após o esgotamento da força diruptiva das vanguardas, a noção de espetáculo visa dar conta do núcleo das transformações contemporâneas nas técnicas de governo. Transformações que colocaram a produção do espetáculo no cerne dos dispositivos de colonização de nossas formas de vida.

Quando Debord fala em ''espetáculo'', ele tem em mente dois processos distintos porém convergentes. Primeiro, o espetáculo é ''uma relação social entre pessoas, mediada por imagens''. Neste ponto, o teórico francês compartilha esta tendência maior da modernidade em compreender o pensar por imagens como uma forma degradada de conhecimento.

A este respeito, lembremos como, principalmente a partir do século 19, a imagem será vista como a peça fundamental para a constituição de situações de alienação nas quais o potencial reflexivo ficaria bloqueado. Assim, por exemplo, no interior das relações de interação social, as massas alienadas teriam por característica maior deixar-se guiar por imagens. Psicólogos sociais do final do século 19, como Gabriel Tarde e Gustave Le Bon, não diziam outra coisa.

No interior deste pathos conservador há ao menos um pressuposto importante: entre algo e sua imagem, a relação pode ser de exclusão. A coisa não é necessariamente aquilo que se conforma à sua imagem. Por um lado, estar na imagem é necessariamente estar aprisionado ao olhar do Outro. Por outro, uma imagem congela, fixa, transforma o mundo em um conjunto de objetos submetidos à visibilidade integral do que só é por ter sua essência submetida ao modo do sujeito organizar o existente através da visão. Era nisto que pensava Bergson, com sua distinção entre imagem (domínio da estaticidade e da estereotipia) e duração (domínio da fluidez do que tem sua essência no tempo). Influência bergsoniana que aparece quando Debord fala do espetáculo como modo de passar do estado fluido ao estado coagulado, como ''organização social da paralisia do tempo''.

Mas a engenhosidade de Debord consistiu em vincular tal crítica da razão a uma crítica da economia política. Pois a segunda acepção de ''espetáculo'' consiste em afirmar que ele ''é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social''. Derivação da idéia de Lukács segundo a qual a forma-mercadoria transformou-se na forma geral da objetividade. Afirmação que pode ser compreendida se nos perguntarmos o que acontece quando um objeto é visto imediatamente como mercadoria. Digamos que suas qualidades singulares serão abstraídas para que ele se transforme em algo cujo valor será expresso no que Marx chamava de equivalente-geral (o dinheiro). Assim, todas as diferenças podem ser submetidas à forma geral da identidade. Mas isto implica também que todo objeto será sempre separado de si mesmo. Enquanto mercadoria ele será apenas momento de um processo de auto-valorização do capital.

Debord precisou apenas lembrar como esta abstração mercantil que transforma as diferenças em forma modular do mesmo não é apenas um processo econômico. Ele tende a colonizar todas as formas das relações sociais, inclusive as relações a si mesmo. Um processo de abstração que, por sua vez, é idêntico à força que faz de todo objeto uma imagem de si, uma aparência de si mesmo desprovida de substância. Processo cujo nome próprio é ''espetáculo''. O nome da força que parece tragar inexoravelmente nossa forma de vida e colonizar nossas pulsões. O nome desta forma astuta de controle que, segundo Debord, é o cerne do que deve ser destruído para a força revolucionária da mudança enfim se impor.


Vladimir Safatle é prof. do Departamento de Filosofia da USP e autor de A Paixão do Negativo: Lacan e a Dialética (Unesp, 2006 )