sábado, 27 de setembro de 2014

Thomas Piketty e a aposta em um capitalismo humanizado


 
 
"Marx sabia da força dos “grilhões de ouro”, mas considerava possível quebrá-los. O que aconteceria se chegássemos a isso? Impossível dizer", escreve Russell Jacoby, professor de História da Universidade da Califórnia em Los Angeles, autor de The last intellectuals[Os últimos intelectuais] (1987), The end of utopia [O fim da utopia] (1999) e, mais recentemente, Les ressorts de la violence. Peur de l’autre ou peur du semblable?[As molas da violência. Medo do outro ou medo do semelhante?], em artigo publicado pelo jornalLe Monde Diplomatique, 04-08-2014.
 
Eis o artigo.
 
A obra Le capital au XXIe siècle [O capital no século XXI], de Thomas Piketty, é um fenômeno tanto sociológico como intelectual. Ela cristaliza o espírito de nossa época, assim como, em seu tempo, The closing of the American mind [O fechamento da mente norte-americana], de Allan Bloom. [1] Este livro, que denunciava os estudos sobre as mulheres, os gêneros e as minorias nas universidades norte-americanas, opunha a “mediocridade” do relativismo cultural à “busca pela excelência”, associada, na mente de Bloom, aos clássicos gregos e romanos. Ainda que tenha tido poucos leitores (era particularmente pomposo), ele alimentou o sentimento de uma destruição do sistema educacional norte-americano, até da própria América, na falta dos progressistas e da esquerda. Esse sentimento não perdeu nada de sua força, e O capital no século XXI inscreve-se no mesmo campo de forças, exceto pelos fatos de que Piketty vem da esquerda e que o enfrentamento deslocou-se da educação para o campo econômico. Dentro do sistema educacional, porém, o debate centra-se agora, em grande parte, sobre questões econômicas e barreiras capazes de explicar adesigualdade.
A obra traduz um mal-estar palpável: a sociedade norte-americana, assim como as outras pelo mundo inteiro, é cada vez mais iníqua. As desigualdades agravam-se e pressagiam um futuro sombrio. O capital no século XXI deveria chamar A desigualdade no século XXI.
É inútil criticar Piketty por não cumprir objetivos que não eram os seus, mas também não podemos nos contentar em lhe render louros. Muitos comentaristas têm se concentrado em sua relação com Karl Marx, ao que ele lhe deve ao pensador alemão, a suas infidelidades; quando seria preciso, antes de mais nada, questionar de que modo o livro lança luz sobre nossa miséria atual. Ao mesmo tempo, no que diz respeito à preocupação com a igualdade, não é inútil voltar a Marx. Aproximando-se os dois autores, há de fato uma divergência: ambos contestam as disparidades econômicas, mas em direções opostas. Piketty inscreveu suas observações no campo dos salários, da renda e da riqueza: ele deseja erradicar as desigualdades extremas oferecendo – para pastichar o lema da funesta Primavera de Praga – um “capitalismo de rosto humano”. Já Marx se coloca no campo da mercadoria, do trabalho e da alienação: ele pretende abolir essas relações e transformar a sociedade.
Piketty tece uma acusação implacável contra a desigualdade: “Já é tempo”, escreve em sua introdução, “de recolocar a questão da desigualdade no centro da análise econômica” (p.38). Ele adota como epígrafe a segunda frase da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “As distinções sociais só podem fundar-se no bem comum”. (Poderíamos nos perguntar por que um livro tão prolixo deixa de lado a primeira frase: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.) Apoiando-se numa profusão de números e tabelas, ele demonstra que as desigualdades econômicas aumentam e que os mais afortunados concentram uma parte cada vez maior da riqueza. Houve quem tentasse contestar suas estatísticas, mas ele reduziu a pó as acusações. [2]
O autor bate forte e justo quando trata da exacerbação das desigualdades que desfiguram a sociedade, em particular a norte-americana. Ele observa, por exemplo, que a educação deveria ser igualmente acessível a todos e promover a mobilidade social. No entanto, “o rendimento médio dos pais de alunos de Harvard é de cerca de US$ 450 mil” ao ano, o que os coloca entre os 2% das famílias norte-americanas mais ricas. E conclui seu argumento com este eufemismo característico: “O contraste entre o discurso meritocrático oficial e a realidade parece aqui particularmente extremo” (p.778).
Para alguns, à esquerda, não há nada de novo. Para outros, cansados de ouvir o tempo todo que é impossível aumentar o salário mínimo, que não se devem taxar os “criadores de empregos” e que a sociedade norte-americana continua sendo a mais aberta do mundo,Piketty representa um aliado providencial. Segundo um relatório (não citado no livro), os 25 gestores de fundos de investimentos mais bem pagos ganharam, em 2013, US$ 21 bilhões, mais que o dobro da soma dos rendimentos de cerca de 150 mil professores primários nos Estados Unidos. Se a compensação financeira corresponde ao valor social, então um gestor de hedge funddeve valer bem uns 17 mil professores... Nem todos os pais (e professores) devem concordar com isso.
Contudo, a fixação exclusiva de Piketty na desigualdade apresenta limites teóricos e políticos. Da Revolução Francesa ao movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, passando pelo cartismo,[3] pela abolição da escravatura e pelo sufrágio universal, a aspiração à igualdade já suscitou inúmeros movimentos políticos. Em uma enciclopédia das contestações, o artigo dedicado a ela certamente ocuparia centenas de páginas, remetendo a todas as outras entradas. Ela teve, e continua tendo, um papel positivo essencial. Em tempos recentes, o movimento Occupy Wall Street e a mobilização pelo casamento gaysão prova disso. Longe de desaparecer, a reivindicação ganhou novo fôlego.
O igualitarismo, porém, também implica uma parte de resignação: ele aceita a sociedade tal como é, visando apenas a reequilibrar a distribuição de bens e privilégios. Os gays querem o direito de se casar assim como os heterossexuais. Muito bem, mas isso não afeta em nada a instituição imperfeita do matrimônio, que a sociedade não pode abandonar nem melhorar. Em 1931, o historiador britânico de esquerda Richard Henry Tawney já destacava esses limites, em um livro que, aliás, também defendia o igualitarismo. [4] O movimento operário, escreveu, acredita na possibilidade de uma sociedade que dá mais valor às pessoas e menos ao dinheiro, mas essa abordagem tem seus limites: “Ao mesmo tempo, ela não aspira a uma ordem social diferente, na qual o dinheiro e o poder econômico não sejam mais o critério do sucesso, mas a uma ordem social do mesmo tipo, na qual o dinheiro e o poder econômico sejam distribuídos de modo um pouco diferente”. Aí está o centro do problema. Dar a todos o direito de poluir é um avanço para a igualdade, mas não para o planeta.
Evitar que se pague muito aos universitários
Marx não dá nenhum espaço à igualdade. Não apenas ele jamais considerou que os salários dos trabalhadores pudessem aumentar de maneira significativa, mas também, ainda que isso acontecesse, em sua opinião, a questão não era essa. O capital impõe os parâmetros, o ritmo e a própria definição do trabalho, do que é rentável e do que não é. Mesmo em um sistema capitalista revestido por formas “confortáveis e liberais”, no qual o trabalhador possa viver melhor e consumir mais porque recebe um salário maior, a situação não é fundamentalmente diferente. O fato de o trabalhador ser mais bem remunerado não muda em nada sua dependência; “melhorar o vestuário, a alimentação, o tratamento e aumentar seu peculiumnão abole a relação de dependência e a exploração do escravo”. Um aumento de salário significa, no máximo, que “o tamanho e o peso dos grilhões de ouro que o empregado forjou para si permitem que eles o apertem um pouco menos”. [5]
Sempre se pode objetar que essas críticas datam do século XIX, mas Marx teve pelo menos o mérito de se concentrar na estrutura do trabalho, enquanto Piketty não disse uma palavra a esse respeito. Não se trata de saber qual deles está certo sobre o funcionamento do capitalismo, mas de apreender o vetor de suas respectivas análises: a distribuição paraPiketty, a produção para Marx. O primeiro quer redistribuir os frutos do capitalismo, a fim de reduzir o fosso entre os rendimentos mais altos e os mais baixos, enquanto o segundo quer transformar o capitalismo e colocar um fim em seu domínio.
Desde a juventude, Marx documentou a miséria dos trabalhadores; ele dedicou centenas de páginas de O capital à jornada de trabalho padrão e às críticas que ela despertou. Também sobre isso Piketty não tem nada a dizer, embora evoque uma greve no início de seu primeiro capítulo. No índice da edição inglesa, na entrada “Trabalho”, lemos: “Ver ‘divisão capital-trabalho’”. Isso é compreensível, já que o autor não está interessado no trabalho propriamente dito, mas nas desigualdades resultantes dessa divisão.
Em Piketty, o trabalho resume-se principalmente ao montante de rendimento. Os surtos de cólera que afloram de vez em quando sob sua pena concernem aos ricos. Ele observa, por exemplo, que a fortuna de Liliane Bettencourt, herdeira da L’Oréal, passou de US$ 4 bilhões para US$ 30 bilhões entre 1990 e 2010: “Liliane Bettencourt nunca trabalhou, mas isso não impediu que sua fortuna aumentasse exatamente com a mesma rapidez da de BillGates”. Esse enfoque sobre os mais ricos corresponde bem à sensibilidade do nosso tempo, enquanto Marx, com suas descrições do trabalho de padeiros, lavadeiras e tintureiros pagos por dia, pertence ao passado. A manufatura e a montagem desapareceram dos países capitalistas avançados e prosperam nos países em desenvolvimento, de Bangladesh à República Dominicana. Entretanto, não é porque um argumento é antigo que ele é obsoleto, e Marx, concentrando-se no trabalho, destacava uma dimensão quase ausente de O capital no século XXI.
Piketty documenta a “explosão” da desigualdade, especialmente nos Estados Unidos, e denuncia os economistas ortodoxos, que justificam as enormes diferenças de remuneração pelas forças racionais do mercado. Ele zomba de seus colegas norte-americanos, que “tendem frequentemente a considerar que a economia dos Estados Unidos funciona muito bem e, particularmente, que ela recompensa o talento e o mérito com justiça e precisão” (p.468). Isso, porém, não é de espantar, acrescenta, uma vez que tais economistas estão entre os 10% mais ricos. Como o mundo das finanças, ao qual lhes ocorre oferecer seus serviços, puxa seus salários para cima, eles manifestam uma “vergonhosa tendência a defender seus interesses particulares, dissimulando-os atrás de uma improvável defesa do interesse geral” (p.834).
Para dar um exemplo que não está no trabalho de Piketty, um artigo recente publicado na revista da Associação Americana de Economia [6] pretende demonstrar, apoiado em números, que as grandes desigualdades decorrem de realidades econômicas. “Os maiores rendimentos têm talentos raros e únicos que lhes permitem negociar a preço alto o valor crescente de seu talento”, conclui um dos autores, Steven N. Kaplan, professor de Empreendedorismo e Finanças da Escola de Negócios da Universidade de Chicago. Visivelmente, Kaplan tenta puxar a sardinha para seu lado: uma nota de rodapé nos informa que ele “participa do conselho de administração de diversos fundos comuns de investimento” e que foi “consultor de empresas de private equity e capital de risco”. Eis o ensino humanista do século XXI! Piketty explica no início de seu livro que perdeu as ilusões sobre os economistas norte-americanos do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e que os economistas das universidades francesas têm a “grande vantagem” de não serem nem altamente considerados nem muito bem pagos: o que lhes permite manter os pés no chão.
A contraexplicação que ele oferece, no entanto, é no mínimo banal: as enormes diferenças salariais decorrem de tecnologia, educação e costumes. As remunerações “extravagantes” dos “superexecutivos”, “poderoso mecanismo” de aumento da desigualdade econômica, particularmente nos Estados Unidos, não podem ser explicadas pela “lógica racional da produtividade” (p.530-531). Elas refletem as normas sociais atuais, que por sua vez revelam políticas conservadoras que reduziram a tributação sobre os mais ricos. Os chefes de grandes empresas concedem-se salários enormes porque têm a oportunidade e porque a sociedade julga essa prática aceitável, pelo menos nos Estados Unidos e no Reino Unido.
Marx oferece uma análise muito diferente. Ele se preocupa menos em provar as desigualdades econômicas abissais do que em descobrir as raízes da acumulação capitalista. Piketty explica que essas desigualdades devem-se à “contradição central docapitalismo”: a disjunção entre a taxa de rendimento do capital e a taxa de crescimento econômico. Como a primeira tem necessariamente precedência sobre a segunda, favorecendo a riqueza existente em detrimento do trabalho existente, isso conduz a “terríveis” desigualdades na distribuição da riqueza. Marx talvez concordasse sobre esse ponto, mas, novamente, ele está interessado no trabalho, que considera o local de origem e desenvolvimento da desigualdade. Segundo ele, a acumulação de capital produz, necessariamente, o desemprego, parcial, ocasional ou permanente. Todavia, essas questões, cuja importância dificilmente se poderia negar no mundo de hoje, estão ausentes do trabalho de Piketty.
Marx parte de uma proposta totalmente diferente: é o trabalho que cria riqueza. A ideia pode parecer fora de moda, no entanto, ela assinala uma tensão não resolvida do capitalismo: este precisa da força de trabalho e, ao mesmo tempo, tenta livrar-se dela. Quanto mais os trabalhadores são necessários à sua expansão, mais ele se livra deles a fim de reduzir os custos, por exemplo, automatizando a produção. Marx estudou longamente o modo como o capitalismo gera uma “população trabalhadora excedente relativa”. [7] Esse processo assume duas formas fundamentais: ou se demitem trabalhadores, ou se deixa de incorporar novos. Em consequência, o capitalismo fabrica trabalhadores “descartáveis” ou um exército de reserva de desempregados. Quanto mais o capital e a riqueza aumentam, mais osubemprego e o desemprego avançam.
Centenas de economistas tentaram corrigir ou refutar essas análises, mas a ideia de um aumento da força de trabalho excedente parece verdadeira: do Egito a El Salvador e da Europa aos Estados Unidos, a maioria dos países passa por níveis elevados ou críticos de subemprego ou desemprego. Em outras palavras, a produtividade capitalista eclipsa oconsumo capitalista. Não importa quão perdulários sejam, os 25 gestores de hedge fundsjamais poderão consumir seus US$ 21 bilhões de remuneração. O capitalismo sobrecarrega-se com aquilo que Marx chama de os “monstros” da “superprodução, superpopulação e superconsumo”. Sozinha, a China certamente é capaz de produzir mercadorias suficientes para abastecer os mercados da Europa, África e América. Mas o que será da força de trabalho no resto do mundo? As exportações chinesas de têxteis e móveis para a África subsaariana resultam numa redução no número de postos de trabalho para os africanos. [8] Do ponto de vista do capitalismo, temos um exército em expansão, composto por trabalhadores subempregados e desempregados permanentes, encarnações das desigualdades contemporâneas.
Como Marx e Piketty vão em direções diferentes, é lógico que proponham soluções diferentes. Piketty, ansioso em reduzir as desigualdades e melhorar a distribuição, propõe um imposto global e progressivo sobre o capital, a fim de “evitar uma divergência ilimitada da desigualdade patrimonial”. Embora, como reconhece, essa ideia seja “utópica”, ele a considera útil e necessária: “Muitos rejeitarão o imposto sobre o capital como uma perigosa ilusão, da mesma forma como o imposto sobre a renda foi rejeitado há pouco mais de um século” (p.840). Já Marx não propõe realmente nenhuma solução: o penúltimo capítulo de O capital refere-se às “forças” e “paixões” que nascem para transformar o capitalismo. A classe trabalhadora inauguraria uma nova era, na qual reinariam “a cooperação e a propriedade comum da terra e dos meios de produção”. [9] Em 2014, essa proposta também é utópica – ou até redibitória, dependendo de como se interpreta a experiência soviética.
Não é preciso escolher entre Piketty e Marx. Para falar como o primeiro, trata-se de esclarecer suas diferenças. O utopismo de Piketty – e esse é um de seus pontos fortes – consiste numa dimensão prática, na medida em que ele fala a linguagem familiar dos impostos e da regulação. Ele espera uma cooperação mundial, e até um governo mundial, para pôr em prática um imposto também mundial que evitaria uma “espiral infinita de desigualdade” (p.835). Ele propõe uma solução concreta: um capitalismo à sueca, que enfrentou seus desafios eliminando as disparidades econômicas extremas. Ele não trata da força de trabalho excedente, do trabalho alienado e da sociedade movida pelo dinheiro e pelo lucro; ao contrário, aceita-os e quer que façamos o mesmo. Em troca, dá-nos algo que já conhecemos: o capitalismo, com todas as suas vantagens e menos inconvenientes.
Os grilhões de ouro e as flores vivas
No fundo, Piketty é um economista muito mais convencional do que ele mesmo pensa. Seu elemento natural são as estatísticas sobre níveis de rendimentos, os projetos de tributação, as comissões encarregadas desses assuntos. Suas recomendações para reduzir as desigualdades resumem-se a políticas fiscais impostas de cima para baixo. Ele mostra-se perfeitamente indiferente aos movimentos sociais, que já foram capazes de questionar a desigualdade e poderiam voltar a fazê-lo. Ele parece, aliás, mais preocupado com o fracasso do Estado em reduzir a desigualdade do que com a desigualdade propriamente dita. E, embora convoque com frequência e com pertinência, romancistas do século XIX, comoHonoré de Balzac e Jane Austen, sua definição do capital permanece demasiado econômica e redutora. Ele não leva em conta o capital social, os recursos culturais e oknow-how acumulado com os quais podem contar os mais afortunados e que facilitam o sucesso de sua prole. Um capital social limitado condena tanto à exclusão como uma conta bancária vazia, mas sobre esse assunto Piketty também não tem nada a dizer.
Marx nos dá ao mesmo tempo mais e menos do que isso. Seu questionamento, embora mais profundo e amplo, não oferece nenhuma solução prática. Poderíamos qualificá-lo de utópico antiutópico. No posfácio à segunda edição alemã de O capital, ele zomba daqueles que tentam escrever “receitas para as cozinhas do futuro”. [10] E, ainda que uma certa visão a respeito possa ser apreendida de seus escritos econômicos, ela não tem grandes relações com o igualitarismo. Marx sempre combateu a igualdade primitivista, que decreta a pobreza para todos e a “mediocridade geral”. [11] Embora reconheça a capacidade do capitalismo para produzir riqueza, ele rejeita seu caráter antagônico, que subordina o conjunto do trabalho – e da sociedade – à busca pelo lucro. Mais igualitarismo só faria democratizar esse mal.
Marx sabia da força dos “grilhões de ouro”, mas considerava possível quebrá-los. O que aconteceria se chegássemos a isso? Impossível dizer. A melhor resposta que Marx nos ofereceu talvez esteja em um texto de juventude no qual ele ataca a religião e, já então, os grilhões cobertos por “flores imaginárias”: “A crítica destrói as flores imaginárias que adornam os grilhões não para que o homem carregue seus grilhões sem sonhos e sem consolo, mas para que se livre dos grilhões e colha as flores vivas”. [12]
Notas:
1. Allan Bloom, The closing of the American mind, Simon & Schuster, Nova York, 1987. Essa obsessão conservadora de uma decadência da educação foi sistematizada na França pelo ensaísta Alain Finkielkraut.
2. Chris Giles, “Data problems with Capital in the 21st century” [Problemas nos dados de O capital no século XXI], Financial Times, Londres, 23 maio 2014, e a resposta de Thomas Piketty, “Technical appendix of the book – Response to FT” [Apêndice técnico do livro – Resposta ao FT], 28 maio 2014.
3. Movimento político operário do meio do século XIX, no Reino Unido.
4. Richard Henry Tawney, Equality[Igualdade], Allen & Unwin, Londres, 1952.
5. Karl Marx, Le capital. Livre I [O capital. Livro I], tradução francesa dirigida por Jean-Pierre Lefebvre, Presses Universitaires de France, Paris, 1993, p.693.
6. Steven N. Kaplan e Joshua Rauh, “It’s the market: the broad-based rise in the return to top talent” [É o mercado: o crescimento de base ampla no retorno dos melhores talentos], Journal of Economic Perspectives, v.27, n.3, Nashville, 2013.
7. Ibidem.
8. Raphael Kaplinsky “What does the rise of China do for industrialization in Sub-Saharan Africa?” [O que o crescimento da China faz com a industrialização da África subsaariana?],Review of African Political Economy, v.35, n.115, Swine (Reino Unido), 2008.
9. Karl Marx, op. cit., p.855-857.
10. Ibidem, p.15.
11. Ibidem, p.854.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Colóquio “Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à idade da Terra”

Evento,que acontece a partir de segunda e até sexta-feira na Fundação Casa de Rui Barbosa, reúne diversos pensadores brasileiros e estrangeiros para debater novas maneiras de imaginar e ocupar o espaço do mundo, mesclando ciências exatas e humanas.




Gaia em debate


Terra, mundo, Pachamama... Há muitas maneiras de nomear nosso planeta, mas poucas causam mais controvérsia no momento do que o termo Gaia — uma divindade primordial que, no imaginário dos gregos antigos, regia os elementos da natureza. Resgatado nos anos 1970 para ilustrar a hipótese do ambientalista James Lovelock e da bióloga Lynn Margulisde que o planeta é como um ser vivo que se autorregula, o nome está no centro de uma reação intelectual à crise climática, à perda da biodiversidade e à probabilidade de um colapso global.
A reportagem é de Bolívar Torres, publicada pelo jornal O Globo, 13-09-2014.
Gaia ressurge agora como teoria científica e conceito filosófico, um ponto de partida privilegiado para se problematizar as relações entre homem, natureza e tecnologia. Algumas destas propostas estarão em pauta no colóquio “Os mil nomes de Gaia: do Antropoceno à idade da Terra”, que acontece a partir de segunda e até sexta-feira na Fundação Casa de Rui Barbosa. Idealizado pela filósofa Déborah Danowski, pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e pelo antropólogo e filósofo francês Bruno Latour, o evento reúne diversos pensadores brasileiros e estrangeiros para debater novas maneiras de imaginar e ocupar o espaço do mundo, mesclando ciências exatas e humanas.
Entre os 29 participantes, há visões divergentes. Para a filósofa belga Isabelle Stengers, que fará a conferência de encerramento do colóquio, Gaia é uma intrusa, que desafia nossas categorias de pensamento, e com a qual nem mesmo as grandes potências mundiais podem negociar. Já para a filósofa francesa Emilie Hache, que participará de uma mesa-redonda na sexta, Gaia coloca de ponta- cabeça o nosso antropocentrismo, alertando que a espécie humana nunca será mais forte do que o planeta, e que a coabitação é mais viável do que a dominação. Embora seja reconhecida pela comunidade científica, a teoria tem detratores — Bruno Latour, que abre o evento com a conferência “O que significa obedecer às ‘ Leis de Gaia’ ao tentar manter o antigo imperativo ‘só se vence a Natureza obedecendo-lhe?’”, já admitiu que foi diversas vezes “aconselhado a não utilizar o termo”, nem a confessar seu interesse pelas ideias de Lovelock.
— Gaia é um dos nomes que vêm sendo convocados em todos os cantos do mundo para se pensar ontológica e politicamente os modos possíveis de enfrentamento e de resistência à radical degradação atual das condições de existência não só dos humanos, mas de uma enorme quantidade de outros viventes sobre (e sob) a Terra — explica Déborah Danowski.
— A urgência de abordar a questão se dá porque simplesmente não podemos viver em um mundo 3 ou 4 graus mais quentes que o atual, não há registro de nada semelhante a isso na história da “civilização”. Entretanto, os governos mundiais, com os seus timidíssimos e até covardes acordos internacionais, têm se mostrado incapazes de fazer qualquer coisa a respeito.
Conexões falhas na universidade
Professor da Divisão de Ecologia Humana da Universidade de Lund (Suécia), o antropólogoAlf Hornborg, que falará terça-feira no evento, confessa ter um certo ceticismo em relação ao nome Gaia, embora acredite que ele possa ser usado em um sentido mais amplo e “menos antropomórfico” para nos lembrar que “o sistema Terra e sua biosfera têm lógicas próprias, indiferentes à espécie humana”. 
— Cabe a nós humanos escolher se respeitamos e nos conformamos a esse sistema ( por exemplo, minimizando o uso de combustíveis fósseis) ou se continuamos a gerar mudanças na biosfera que tornarão difícil a sobrevivência das nossas espécies — sugere o antropólogo, em entrevista por e-mail.
Decisiva para o nosso futuro, a escolha passa, segundo ele, pelo desenlaçamento das redes que fundem as dimensões materiais do ambiente e os processos culturais da sociedade. Para Hornborg, autor do livro “The power of the machine: global inequalities of economy, technology, and environment” (O poder da máquina: desigualdade global da economia, tecnologia e meio ambiente), já é “evidente” que o que acontece com a biosfera está estreitamente conectado com aspectos econômicos e culturais, como nosso padrão de consumo. Apesar de imagens de satélites mostrarem como a distribuição de infraestrutura tecnológica coincide com a distribuição de dinheiro no mundo, e apesar de o desenvolvimento ter comprovadas consequências ambientais, a ecologia, a economia e a engenharia continuam, na avaliação do antropólogo, separadas nas universidades.
— O ponto de vista do mundo dominante falha em ver essas conexões. Uma das razões é que temos tendência em distinguir objetos materiais, como as máquinas, com as relações sociais que os geraram, como a troca desigual de recursos no mercado mundial. Quando o capital se torna tecnologia, ele se torna moralmente neutro e inocente. Outro ponto é que não entendemos as relações entre economia e física. Assim como (o economista romeno)Nicholas Georgescu- Roegen demonstrou há mais de 40 anos, a produção de commodities é, na verdade, a destruição dos recursos. A criação do valor de consumo é, também, a criação de entropia. Ao contrário do que muitos pensam, isso não é inevitável. Isso é a consequência do uso generalizado do dinheiro, uma instituição que precisa ser fundamentalmente repensada.
Segundo Émilie Hache, mestre de conferência e professora do departamento de Filosofia na Universidade de Nanterre (Paris), a questão não é se perguntar “por que” as relações entre ciência, tecnologia e meio ambiente são ignoradas, mas sim “por quem”. Em seu livro “Ce à quoi nous tenons, propositions pour un écologie pragmatique” (Aquilo a que damos valor, propostas para uma ecologia pragmática), Emilie parte da crise ecológica nos anos 1980 para entender seu sentido científico e político. O que implica repensar a dimensão moral da ecologia, já que as ações humanas geraram novas responsabilidades sobre o que será deixado às gerações futuras.
— Não creio que o “mundo” tenha dificuldades de entender as questões ao mesmo tempo econômicas e sociais da nossa relação com o meio ambiente — diz ela. — Mas se aceitarmos esta formulação, diluindo as responsabilidades, então podemos esperar que a civilização desmorone e que daqui a um século, ou dois, historiadores se interroguem sobre a incapacidade do nosso mundo em tomar as medidas necessárias, mesmo tendo todos os dados científicos para isso.
Egoísmo da espécia humana
Uma visão comum entre a maior parte dos convidados do evento é a de que Gaia exige o fim da visão utilitarista que opõe homem e natureza. Bruno Latour defende que esta última não pode ser pensada de forma independente das relações entre os humanos e os não humanos. A natureza não seria um valor em si. Para Émilie, porém, o problema está menos na concepção moderna de natureza, a qual já se tem uma fácil relação crítica, e mais na “dificuldade de substituí-la, de mudar o imaginário”.
— A natureza está em todos os lugares, no direito, nas normas, na biologia, no social... — enumera Émilie. — Não é tanto um conceito, mas um operador, que serve a hierarquizar, desvalorizar e dominar tudo que ele ataca: as mulheres, as pessoas de cor, os outros seres vivos... A natureza não tem nada a ver com a ecologia. Precisamos de articulações que abracem as questões ecológicas em outros problemas: ecologia e feminismo; ecologia e desigualdades sociais; ecologia e racismo; ecologia e etologias...
Os pesquisadores ainda tentam entender por que a espécie humana não cria pontes de colaboração, mesmo diante de uma situação de emergência climática. Parte dessa dificuldade talvez possa ser atribuída à prevalência, no século XX, da ideia de que somente o egoísmo e a competição exerciam um papel na regulação do planeta. Cientista, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)Antonio Nobre acredita que a noção implícita de que o processo essencial da seleção natural embutia em si o “enobrecimento do egoísmo” foi um erro grave, que teria bloqueado a visão de outros processos essenciais para o funcionamento do conjunto. Hoje, porém, novas descobertas indicam que, em Gaia, quanto mais rico e complexo um sistema, menor o papel da competição e maior o da colaboração.
— A explicação da seleção natural para a variedade de organismos era sem dúvida melhor do que as explicações anteriores, mas ela não era idêntica em tudo o mais com explicações que viriam depois — explica Nobre, que falará na terça-feira sobre “Os fundamentos belíssimos da vida na regulação planetária”.
— Um vasto campo de complexidade, invisível antes do surgimento da biologia molecular, permaneceu ignorado no auge do desenvolvimento do darwinismo. E suspeita-se que parte maior da complexidade bioquímica na base do funcionamento dos sistemas vivos ainda permaneça oculta. Por exemplo, a explicação mais simples, como aquela na base da teoria da evolução baseada apenas nos mecanismos demonstrados da seleção natural, não dá conta de clarificar o papel da vida na regulação do ambiente planetário. Ademais, existem explicações simplíssimas ilustrando o papel central da colaboração na evolução de complexidade, que são rejeitadas apenas porque não batem com o que tornou-se um dogma excludente, o da competição e da sobrevivência do mais apto.

domingo, 14 de setembro de 2014

Lojas de livros não conseguirão sobreviver’


 
“As pessoas da Amazon não se importam realmente com o que você quer como consumidor.” A frase soa surpreendente ao sair da boca de Jason Merkoski, primeiro evangelista (responsável por disseminar novas tendências) da Amazon e um dos membros da equipe que desenvolveu o primeiro leitor de livros digitais Kindle, lançado em 2007.
A reportagem é de Ligia Aguilhar, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 18-08-2014.
Fundador da startup Bookgenie451, criadora de um software que identifica interesses de leitura de estudantes para recomendar livros didáticos, Merkoski mistura otimismo com alguma cautela quando o assunto são livros digitais.
Na quinta-feira, 21, ele vem ao Brasil participar do 5º Congresso Internacional CBL do Livro Digital, em São Paulo, no qual vai falar sobre a sua obra Burning the page: The eBook Revolution and the Future of Reading (ainda sem título em português), na qual decreta o fim do livro impresso.
Eis a entrevista.
Você decreta o fim dos livros impressos em sua obra, mas as vendas de tablets e leitores digitais começam a se estabilizar sem que isso tenha acontecido. O que falta para o livro digital se popularizar?
O que mais influencia a popularidade é a seleção de títulos. O que vimos acontecer nos EUAJapão é que, uma vez que as pessoas consigam encontrar 80% dos títulos que buscam no digital, a chance delas migrem para e-books é de 100%.
Quanto tempo demora para essa mudança acontecer?
Cerca de três anos depois que os livros digitais estão disponíveis em um país.
Serviços de streaming podem ajudar nessa popularização?
O problema de serviços de streaming como o da Amazon é que eles têm vários livros no catálogo que as pessoas não querem ler. Um dos desafios é definir um modelo de preços para e-books, que hoje não existe. Até isso ser feito será difícil tornar o streaming uma experiência satisfatória e o seu custo sustentável.
Você esperava esses impactos quando ajudou a criar o Kindle?
Como indústria, acho que revolucionamos o mercado editorial, o que é assustador e maravilhoso ao mesmo tempo. Como dono de uma empresa de livros digitais, digo que é muito difícil trabalhar com editoras hoje, porque o mundo delas está em colapso. É como se elas estivessem no Titanic após bater no iceberg, sem coletes salva vidas, com o barco pegando fogo e naves alienígenas atirando contra o barco. As editoras estão confusas e com medo.
Teremos problemas com a coleta e uso de dados sobre nossos hábitos de leitura?
Certamente. Não vai demorar para começarmos a ver propagandas dentro dos e-books. Mas não estou realmente preocupado com o que a Amazon e o Google vão saber sobre mim porque acho que já aceitei que, inevitavelmente, eles saberão das coisas de algum jeito.
Esses dados também geram recomendações de leitura. Essa facilidade pode ter um lado ruim, como afastar o leitor de clássicos em prol de best-sellers?
Algum conteúdo poderá ser negligenciado com toda certeza. O problema de livros clássicos é que eles não são sexy e não são promovidos na página de entrada da Amazon porque a empresa não vai ganhar dinheiro com eles. O que menos gosto da virada do livro para o digital é a cultura do momento. Recomendamos apenas coisas atuais. Ferramentas de recomendação precisam melhorar.
Você já declarou em entrevistas que é difícil amar a Amazon…
Acho que o papel das empresas maiores não é estar na minha cara enquanto eu estou lendo. Elas podem ser mais sutis e acredito que esse é um papel que a Amazon faz mal. Hoje os varejistas conseguem aprender quem você é. Seria interessante se essas informações fossem repassadas para as editoras criarem conteúdo. Mas os varejistas retêm todos os dados. É por isso que o sistema está quebrado.
O que acontecerá com a palavra escrita?
Eu realmente acho que o futuro da palavra escrita é ser falada, porque a escrita é devagar. Os livros do futuro serão falados porque tudo gira em torno da fala hoje em dia. Aparelhos como o iPhone, com a Siri, permitem que você fale ao telefone o que você quer fazer.
Acredita que bibliotecas e livrarias vão mesmo acabar?
Não acho que o futuro será bom. Meus estudos mostram que nos últimos três anos os alunos gastaram 70% menos tempo nas bibliotecas das universidades. Onde eles estão pegando informação? Na Wikipédia ou em sites. As lojas de livros não conseguirão sobreviver e vão desaparecer. Sobrarão apenas algumas, especializadas em livros impressos, como as que vendem discos de vinil.
Vão permanecer no mercado Google e Amazon, infelizmente. Conheço as pessoas daAmazon. E elas não se importam com o que você quer como consumidor. Elas se importam em como conseguir mais lucro. Uma maneira de fazer isso é empurrando livros populares, negligenciando outros. E infelizmente as pessoas vão aceitar. A curadoria de títulos está na mão dos varejistas

sábado, 6 de setembro de 2014

A NSA tem um programa secreto que funciona sem intervenção humana


 
De acordo com as últimas revelações de Edward Snowden, a Agência de Segurança Nacional estadunidense dispõe de um programa secreto chamado MonsterMind, ele é capaz de responder aos ataques cibernéticos sem intervenção humana.
A reportagem é publicada por Rt.com, 13-08-2014. A tradução é do Cepat.
Em sua última revelação, o ex-funcionário da CIA Edward Snowden disse a revista Wiredque a NSA conta com um programa secreto de funcionamento autônomo chamadoMonsterMind que, além de responder automaticamente a ciberataques, poderia causar um pesadelo diplomático internacional visto que os ataques lançados pelo próprio programa recorrentemente interferem nos computadores de terceiros, alojados em países estrangeiros.
E o mais grave: “Estes ataques podem ser falsificados”, assegurou Snowden. “Poderíamos ter alguém sentado na China, por exemplo, fazendo com que pareça que quem realizou o ataque originalmente esteja na Rússia. E então terminamos “disparando” contra um hospital russo. O que ocorreria depois?”.
Snowden também mencionou que os EUA poderiam ter estado por detrás do apagão massivo da Internet na Síria em 2012, quando o país estava em plena guerra civil. Os EUA teria tentado ter acesso ao trafego do país árabe, e uma falha durante o processo poderia ter causado a avaria.
José Luis Camacho, pesquisador de conspirações e blogueiro, questiona a legitimidade do funcionamento do programa MonsterMind já que – segundo ele -, poderia violar a constituição dos Estados Unidos. “Nos EUA a própria Quarta Emenda proíbe-os de fazer um monitoramento das comunicações particulares e este sistema está infringindo a Quarta emenda”, explica para a RT.
Na última quinta-feira o Serviço Federal de Migração da Rússia aprovou a petição deEdward Snowden de prolongar seu asilo temporal no país, como informa o advogado do ex-funcionário, Anatoli Kucherena. “É impossível à extradição de Snowden aos EUA”, assegurou o advogado.