segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Metano sob o Ártico comecou a vazar. Isso é um sério perigo.



Por: Alexandre Mansur

Existe um fenômeno pouco divulgado, que começou a ser identificado pelos pesquisadores. Os gigantescos depósitos de metano, localizados embaixo da camada de solo congelado (permafrost) sob o oceano Ártico, começaram a vazar. E eles podem fazer o aquecimento global mergulhar em um processo de aceleração irreversível. É o que relatam pesquisadores da Universidade do Alasca.

Um grupo coordenado pelo cientista Igor Semiletov descobriu que o metano está borbulhando no mar cada vez mais quente do Pólo Norte. O gás escapa em bolhas de buracos na camada de gelo no leito do oceano. Mais de mil medições feitas para avaliar o metano dissolvido na água na costa da Sibéria, feitas durante o verão, revelaram que os níveis do gás estão altos como nunca.

"As concentrações de metano são as mais altas já medidas no verão no Oceano Ártico", diz Semiletov. Esse vazamento de metano é preocupante por vários motivos.

Primeiro, muitos pesquisadores temem que um grande vazamento de metano do Ártico esteve ligado às transformações climáticas que provocaram uma das maiores ondas de extinção da Terra, há 250 milhões de anos, entre os períodos Permiano e Triássico. Na ocasião, 96% das espécies marinhas desapareceram e 70% dos vertebrados terrestres também sumiram. Um vazamento como esse também é associado a um período extremamente quente há 55 milhões de anos, chamado Termal Máximo do Paleoceno-Eoceno. Foi uma onda de extinções também grande, que abriu caminho para o desenvolvimento dos mamíferos atuais.

A segunda razão para preocupação é que os depósitos de metano sob o oceano são tão grandes e esse gás tem um poder tão alto para aquecer a atmosfera. Segundo alguns pesquisadores, basta soltar uma pequena fração desses depósitos para que qualquer esforço para estabilizar as emissões em níveis não catastróficos fique impossível.

A terceira causa para preocupação é que a agência americana responsável por oceanos e atmosfera, a NOAA, revelou que os níveis de metano na atmosfera da Terra subiram acentuadamente pela primeira vez desde 1998, quando esse acompanhamento começou. Isso indicaria que o vazamento de metano provocado pelo derretimento do Ártico já estaria alterando a química da atmosfera rapidamente.

Esse metano foi gerado pela decomposição de matéria orgânica – plantas e animais – há milhões de anos, em períodos em que a Terra esteve mais quente. E esteve aprisionado sob a camada de gelo embaixo do mar durante todo esse tempo.

Semiletov mede os níveis de metano na costa da Sibéria desde 1994. Nunca havia detectado elevações nos níveis de metano na década de 90. Mas desde 2003 ele diz que vem observando pontos de concentração excessiva do gás no oceano. Segundo ele, o derretimento do permafrost submarine pode ser consequência do crescente volume de água mais quente que vem dos rios siberianos. O volume deles têm aumentado devido ao derretimento do permafrost em terra firme.

A linha vermelha do gráfico abaixo mostra como a descarga de metano do Ártico pode estar provocando uma elevação dos níveis de metano na atmosfera da Terra. A linha vermelha mostra o nível de metano na atmosfera desde 2004. Além da oscilação sazonal de cada ano, há uma clara elevação no último ano medido.

A tradição vence o deserto



Burkina Fasso combate a desertificação e a mudança climática com técnicas tradicionais

Por: Gaëlle Dupont
Enviada especial a Gourcy, Burkina Fasso


Fonte: Le Monde Diplomatique

Um cavalo está amarrado na entrada do quintal de Ali Ouedraogo, no povoado de Gourcy, a 150 km ao norte de Ouagadougou, a capital de Burkina Fasso, em pleno Sael [faixa de campos áridos ao sul do deserto do Saara]. Não é uma coisa banal: um animal é um sinal de sucesso, a prova de que aos 78 anos Ali Ouedraogo vive melhor que seus vizinhos, agricultores como ele. No meio de seu quintal, três paióis circulares estão cheios de sorgo até o topo. Eles contêm o suficiente para alimentar toda a família até a próxima colheita, em setembro, talvez até mais. Quarenta pessoas, entre elas uma fieira de crianças, vivem disso, enquanto outras famílias já enfrentam escassez. Elas terão de sobreviver com babenda, um mingau com gosto de espinafre velho, feito de um punhado de cereais e muitas folhas.

Os campos de Ouedraogo não se parecem com os de seus vizinhos. Aqui o hábito é desmatar, plantar e colher até esgotar o solo, depois recomeçar um pouco mais longe. Os agricultores deixam para trás uma terra estéril, nua como um piso de cerâmica. Com o aumento da população cresce a necessidade de terras e mais se esgota o solo. É a engrenagem da desertificação, agravada pelos fatores climáticos.

Para Ali Ouedraogo tudo mudou em 1983. "Naquele momento a situação era muito dura", ele conta. "Não havia chuva, as colheitas eram ruins, eu pensava em deixar a região." Muitos emigraram. Ele decidiu ficar e cuidar das terras degradadas, que ninguém queria na época. Com a ajuda de uma organização não-governamental dedicada ao combate à desertificação, ele pouco a pouco bateu recordes de produtividade. Hoje colhe em média 1.500 quilos de sorgo por hectare, contra 800 quilos nas melhores terras das redondezas.

Para isso não houve necessidade de máquinas agrícolas, adubos químicos ou sementes milagrosas. Os agricultores não poderiam pagá-los. Nem de represas, pois o relevo não se presta. São necessárias pedras, picaretas, pás, um nível para calcular o sentido do escoamento da água e muita mão-de-obra. O objetivo é impedir a erosão e reter o máximo de água no solo.

"Trata-se de técnicas rurais tradicionais, aperfeiçoadas por agrônomos", explica Matthieu Ouedraogo, que forma os agricultores. Nos campos, fileiras de pedras, batizadas de cordões pedregosos, são feitas ao longo das curvas de nível, desenhando pequenos terraços. Árvores são plantadas aí. Barreiras em forma de meia-lua retêm a água em microbacias. Os "zai", buracos com 20 cm de profundidade onde as sementes são plantadas em esterco, permitem uma infiltração mais profunda da água.

"Todas essas técnicas contêm o escoamento da água", continua Matthieu Ouedraogo. "Pouco a pouco a terra se regenera." E as árvores que crescem nos terrenos fornecerão lenha que não será mais retirada da mata...

"Com essas técnicas podemos deixar o Sael verde de novo", afirma Souleymane Ouedraogo, pesquisador do Instituto do Meio Ambiente e Pesquisas Agrícolas (Inera). "Contivemos a desertificação, aumentou a fertilidade das terras, e, portanto a produção de cereais e de ração para os animais, a biodiversidade se recupera." Bastam quatro ou cinco anos para obter bons resultados nas terras degradadas.



Por que então todo o Sael não é transformado? Em Burkina Fasso, cerca de 300 mil hectares estariam preparados, ou seja, menos de 9% da superfície cultivável do país. "Essas técnicas não são muito caras, mas é preciso um investimento inicial", explica Bertrand Reysset, engenheiro agrônomo do Comitê Inter-Estados de Combate à Seca no Sael (Cilss), que reúne nove países da região.

O investimento chega em média a 130 euros por hectare. É preciso alugar um caminhão e pagar o combustível para buscar as pedras, comprar um mínimo de material, pagar a mão-de-obra durante os trabalhos. Uma formação e um acompanhamento são necessários. Tudo isso está fora do alcance dos agricultores que trabalham com foice, dobrados em dois nos campos. Os bancos não lhes dão crédito. Os projetos implementados tiveram o financiamento de ONGs.

Essas técnicas, experimentadas desde os anos 1980 no âmbito do combate à desertificação, seriam muito úteis para adaptar-se à mudança climática. "Os modelos climáticos prevêem um aumento da freqüência de acontecimentos extremos, um prolongamento da estação seca, precipitações mais concentradas e torrenciais", explica Edwige Botoni, especialista em gestão de recursos naturais do Cilss. "Isso terá um impacto negativo na produtividade do solo."

A estação de chuvas de 2007 foi um exemplo perfeito disso. Ela começou atrasada e toda a água caiu ao mesmo tempo, em agosto, provocando inundações. "A luta contra a desertificação e a adaptação à mudança climática coincidem em 90%", afirma Reysset.

Todos esperam que a crise alimentar mundial faça mudar as coisas. Eles ouviram o discurso do presidente francês, Nicolas Sarkozy, que apelou para "aplicar esforços na agricultura de sobrevivência subsaariana" em 3 de junho em Roma, durante a cúpula sobre a alimentação. A agricultura é um parente pobre há 30 anos. Ela representa apenas 5% da ajuda pública ao desenvolvimento, e são raros os países que lhe dão prioridade. Ela vem depois dos ambulatórios, escolas, estradas...

Na aldeia de Guiè, ainda no norte de Burkina, a ONG Terra Verde obteve resultados especialmente espetaculares, criando um "bosque saeliano", segundo a expressão de seu fundador, Henri Girard, um engenheiro agrônomo francês. Cercas vivas protegem o solo da erosão. Com uma mecanização mínima, uma pequena dose de fertilizantes químicos, variedades selecionadas e rotações culturais bem escolhidas, a região reverdeceu e a produção é quatro vezes superior à média.

"É a prova de que não há fatalidade, que mesmo com nossos solos e nossos climas tudo é possível", comenta Hamado Sawadogo, agrônomo do Inera. O investimento inicial foi de 400 euros por hectare. Mas a evolução das práticas também exige uma mudança de mentalidade. "As pessoas aqui são fatalistas: se eu sou pobre, se perdi minha colheita, foi Deus quem quis", explica Girard. "Mas alguns se levantam. A cada 50 km há alguém disposto a se mexer."

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Fonte: Le Monde Diplomatique

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

O filósofo das HQs




Edgar Franco

Entrevista com Edgar Franco



(Extraído de: http://www.alanmooresenhordocaos.hpg.ig.com.br/entrevistas69.htm)

Prolífico colaborador de fanzines e alternativos, Edgar Franco é o artista de quadrinhos herméticos, prenhos de reflexoes filosóficas, numa linguagem poética bem particular, mas que se destaca também por desenhos bem caracteristicos, humanóides de ambos os sexos e/ou hermafroditas, seres mitológicos, paisagens oníricas biomecanóides, que lembram a arte de Moebius, Caza, Bilal, Giger e outros mais.

- Idade, onde nasceu e cresceu, estado civil, filhos, formação acadêmica e profissional.

Estou atualmente com 31 anos, nasci na cidade de Ituiutaba no Triângulo Mineiro (sou extremamente telúrico, tenho que ir para minha cidade natal pelo menos duas vezes ao ano para repor minha energias...), sou casado com Rose já há 4 anos e estamos juntos a 12 (ela é minha conterrânea-alma gêmea), ainda não temos filhos. Sou graduado em arquitetura e urbanismo pela Universidade de Brasília(UnB), em 2001 conclui o mestrado em multimeios na Unicamp , onde estudei a linguagem das HQs na Internet, o que resultou na dissertação "HQtrônicas (Histórias em Quadrinhos Eletrônicas) – Do Suporte Papel à Rede Internet,- ver artigo - e atualmente faço doutorado em artes na Escola de Comunicações e Artes da USP. Além de criar HQs para revistas & zines, trabalho com ilustração (capas de CDs & Livros), web arte e sou professor dos cursos de arquitetura e urbanismo & ciência da computação da PUC - MG, na unidade de Poços de Caldas, cidade onde resido atualmente.



-O quê e quando iniciou seu interesse pela Literatura, Quadrinhos e Cultura Pop em geral? Na infância você lia muito, tanto HQ quanto Literatura mainstream? Pode citar autores e obras que o influenciou?

Meu pai é um leitor inveterado, tem atualmente uma biblioteca com mais de 5.000 volumes, envolvendo todos os gêneros e assuntos, desde tenra idade eu cresci no meio dos livros, e foi muito natural o meu descobrimento do universo das letras. Meu pai sempre me deixou livre para escolher o que ler e inicialmente tive o meu interesse despertado por contistas como Edgar Allan Poe (meu nome é uma homenagem de meu pai a Poe e Edgar Wallace, dois autores que admirava na época), Guy de Maupassant, O. Henry, Ray Bradbury, isto por volta dos 10-11 anos. Mas desde tenra idade meu pai já comprava gibis pra eu ler, Disney, Brotoeja, Mortadelo e Salaminho, Mônica, durante uma fase li poucos gibis e me concentrei mais na literatura, foi por volta dos 13 anos que comecei a retomar gradativamente o interesse por quadrinhos, isso veio junto com a paixão pelo desenho, e na época um certo apreço pelas temáticas mórbidas, pelo horror. Eu assisti meu primeiro filme de horror aos 4 anos de idade, foi a versão clássica (p&b) de "O Fantasma da Ópera" que passou numa sessão noturna de TV em 1976, meu pai iria assistir ao filme, eu pedi a ele se podia ver também e ele deixou, até hoje ele se lembra bem de meu interesse e atenção, assisti tudo até o fim e nem precisei dormir na cama dos meus pais, he,he. Eu não gostava de super-heróis, não lia mesmo, achava um saco principalmente porque quando tentei ler parece que o gênero vivia uma fase horrível, só tinha herói dando porrada em herói, fui ter interesse novamente em super-heróis na década de oitenta, quando surgiram as obras clássicas de Frank Miller, Alan Moore, Grant Morisson; a única exceção foi o Conan, eu gostava de muitas HQs, principalmente as arte finalizadas pelo Alfredo Alcala. Mas o que eu lia mesmo era terror nacional, colecionava as revistas da D-Arte (que traziam trabalhos maravilhosos de Mozart Couto, Rodval Matias, Colin, Cortez, Ofeliano) e também garimpava nos sebos as antigas Kripta (com quadrinhistas clássicos dos EUA) e as Spektro & Pesadelo da Editora Vecchi. Foi também na década de 80 que vim a tomar contato com a HQ européia, conheci através da revista Animal e me deslumbrei, a partir dali vi que o que eu começava a criar tinha mais semelhanças com aquelas propostas do que com tudo que eu já tinha visto de quadrinhos. Só mais tarde fui conhecer autores como CAZA e DRUILLET dos quais sou grande admirador, mas considero que eles me influenciaram pouco, o meu trabalho já seguia o caminho atual quando me deparei com as obras deles, foi mais um lance de identificação do que uma influência propriamente dita. Eu sou mais influenciado pela literatura, artes plásticas e música do que pelos quadrinhos, gosto de citar como influência sempre o que estou lendo/vivenciando no momento, por isso agora estou sobre a influência do pensamento de Ken Wilber (Escritor e ensaísta americano, um dos criadores da psicologia transpessoal autor de " O Espectro da Consciência"), Rupert Sheldrake (polêmico biólogo que concebeu a "Teoria dos Campos Morfogenéticos"-veja Entrevista), Peter G. Bentley (autor de "Biologia Digital", livro onde eles questiona as noções vigentes do que é real e o que é virtual), Hans Moravec (cientista norte americano, estudioso de robótica e I.A. e autor de "Robot – Mere Machines to Transcendent Mind"), Stelarc (artista australiano que defende a tese de que "O Corpo Humano Está Obsoleto"), Eduardo Kac (que faz experimentos com "arte transgênica") e Stanislav Grof (criador da teoria da "mente holotrópica").



Ken Wilber



Na música tenho experimentado as vibraçoes de bandas como Negura Bunget (da Transilvânia), Rakoth (da Russia), Thee Maldoror Kollective, Napalmed, Recalcitrant, Dismal, Brighter Death Now, Daniele Brusaschetto, entre outros, inclusive tenho um site chamado KREPUSKULUM, onde faço resenhas e entrevistas com bandas underground do mundo inteiro, já está na décima edição, com mais de 700 resenhas de CDs e 90 entrevistas, quem quiser conhecer visite: http://www.geocities.com/krepuskulum/ .

-Como se iniciou profissionalmente no gênero e qual foi sua primeira atividade?

Bem, eu já publiquei HQs esporadicamente em diversas revistas, algumas que tiveram distribuição nacional, como a Metal Pesado e a Quark, mas também tive HQs publicadas em revistas como Quadreca (Eca/USP), Fêmea Feroz, Ervilha e no álbum Brazilian Heavy Metal, além de outras diversas HQs publicadas em revistas underground e alternativas do Brasil e Europa (Alemanha, Romênia, Portugal, Espanha, França e Inglaterra). Mas minha maior produção está concentrada nos fanzines, já publiquei em mais de 400 títulos, incluindo várias edições solo, e já ultrapassei a marca das mil páginas. Comecei a publicar em zines com 13-14 anos, quando criei minha primeira HQ, o nome do zine era Odisséia; o trabalho trazia um horror meio visceral, tinha o título de "O Filho de Lúcifer", mas já dava pra perceber a veia poética contaminando a narrativa.
Falar em "profissionalmente" para artistas dos quadrinhos no Brasil é piada, praticamente ninguém trabalha "profissionalmente" na atualidade...é complicado. Mas meu trabalho também sempre foi motivo de resistência por parte dos editores, é tido como hermético, pretencioso, ou não é considerado como quadrinhos por alguns, ou é tachado de setentista, hippie, ultrapassado, pornográfico, ou vanguardista demais...tenho colecionado dezenas de adjetivos que tentam denegrir minha proposta artística, mas apesar deles vou dando continuidade à obra, pois faço por prazer, por paixão. Se o Brazil tivesse um mercado de quadrinhos, artistas como eu, Gazy Andraus & Antônio Amaral seríamos os últimos da fila a sermos procurados pelos editores, já que não temos esse mercado, temos que nos contentar com a auto-publicação e com as oportunidades esporádicas e com o maravilhoso universo dos zines.




-Quando foi seu primeiro contato com o trabalho de Alan Moore e qual obra lhe causou algum impacto especial?

Comecei com "A Piada Mortal" e depois li o "Monstro do Pântano", fiquei fascinado com a densidade do texto, com as sutilezas do roteiro e a forte veia literária de Moore, são dois trabalhos impactantes, assim como a clássica "Watchmen", que desconstrói os famigerados Super-heróis e trabalha com propriedade os conceitos definidos pela Teoria do Caos (Gian Danton fez sua dissertação de mestrado analisando este aspecto da obra!). Tem um álbum que me foi emprestado pelo amigo Gazy Andraus, "A Small Killing", que é muito pungente, poderoso, um dos mergulhos de Moore na psicanálise Freudiana, implodindo-a em certos aspectos, é um trabalho que me impressionou muito, ainda mais depois que li um artigo de Andraus que desvela todo o subtexto desta obra.

-Preciso ver isto com o Gazy, urgente. Qual trabalho do mago bardo de Northampton que você considera sua obra-prima e porquê?

Como disse, gosto de diversos trabalhos e de maneiras diferentes, "V de Vingança", por exemplo, é muito interessante, mas muito diferente de "A Piada Mortal", ou de "Watchmen", não tenho predileção, são todos obras de uma mente genial, obrigatórios para aqueles que querem conhecer a fundo a importância das HQs enquanto gênero narrativo e artístico.

-Ao seu ver, quais foram as inovações mais importantes do autor? Especificamente sobre Watchmen e sua instigante forma narrativa – já apelidada de O Cidadaõ Kane da Nona Arte – o que tem a nos dizer?

O que mais me impressiona é que Moore parece não ter essa pretensão de ser genial, ele quer só escrever boas histórias, eu não me considero em nada inspirado pelo seu trabalho (pois como disse, ele esbarra muitas vezes no literário, eu gosto disso, mas minha proposta artística caminha em outra direção) que encontra eco no Brasil principalmente na obra de Gian Danton,- veja Entrevista - um fã confesso de Moore. Moore é sempre genial, mas esbarra no problema dos desenhistas, nem sempre eles são tão capazes quanto ele, Dave Gibbons é uma exceção maravilhosa!

-Voce acha que ainda existe espaço para seres musculosos e com super-poderes, metidos em colantes, na verdadeira Cultura Pop, mais madura? Pergunto porque muitos fãs dos super-heróis, ao mesmo tempo que admiram Alan Moore, o detestam por considerar que ele praticamente destruiu o gênero com Watchmen. E você?

Como já disse, nunca gostei do gênero Super-Heróis, se ele acabasse, para mim a cultura humana perderia muito pouco, a cultura pop talvez sofresse um abalo momentâneo...Os Super-Heróis são um produto Norte Americano, é claro que foram influenciados pelos herós clássicos gregos, mas eles são produtos do narcisismo e nacionalismo dos EUA, a megalomania de Tio Sam está refletida nestes tais seres de colante, eles são sua principal metáfora, seu arquétipo pós-moderno, o nacionalismo é um dos últimos bastiões dos idiotas, dos alienados. Mas eles já se infiltraram no inconsciente coletivo do ocidente, são onipresentes, mesmo que as novas gerações não estejam lendo quadrinhos como as anteriores, eles estão renascendo nos blockbusters de Hollywood, nos games para computador, veja estes novos produtos cinematográficos: Hulk, Demolidor, Homem Aranha, X-Men, etc.
Mas como um defensor da pluralidade, não faço uma cruzada contra os super-heróis, quem gosta e quer gastar seu dinheiro com eles, eu respeito, sem neurose nenhuma, só fico preocupado quando vejo os moleques idolatrando esses serviçais que trabalham como operários do traço para os americanos como se fossem "Deuses"...os caras nem sequer podem assinar o próprio nome, isso é se vender sim, não é só se adaptar, é cooptar com a condição de alienado, de operário nos moldes da revolução Industrial...Se fosse assim, uma adaptação apenas, os americanos iriam mudar também o nome dos diretores de cinema estrangeiro que fazem sucesso por lá, assim o Pedro Almodóvar poderia virar "Peter All Mod Over", o que você acha!!!
Mas agora tem também a proliferação virótica dos tais mangás, e dá-lhe lixo descartável no mundo da cultura Pop, é claro que existem bons trabalhos, mas no geral é tudo muito ruim, um negócio de misturar mitologia grega de boutique, com moleques dando voadora & karatê em todo mundo, virando robôs transformers e soltando raio (urghhhhh!), nem os super-herós conseguiram a façanha de serem tão ruins, e têm também aquelas centenas de milhares de páginas que não dizem porra nenhuma, umas sagas que possuem dez mil páginas, para contar histórias que dá pra narrar em 40 (um dos novos álbuns do mestre Shimamoto, conta em 48 páginas a saga de um dos míticos samurais do Japão, já uma série japonesa leva dezenas e dezenas de números de 100 páginas para contar a mesma história...revistas mensais que custam mais de 5 reais cada!!!!). Eu desenvolvi meu processo narrativo sempre em espaços exiguos (os fanzines), normalmente você tem de 3 a 5 páginas para contar uma história, tem que ser breve, ter poder de síntese, o exemplo mais radical desse narrativa enxuta é uma saga chamada Elegia que editei há alguns anos, são 3 volumes de 6 páginas cada, e contam a tragetória de vida de um personagem (vou relançá-la em volume único em breve).

-Tambem tenho o album do mestre Shima sobre o lendario Musashi. E a "vagabond" ja´ parei de comprar,por falta de grana tambem...E From Hell, você acha que Moore conseguiu atingir plenamente seu intento de forjar em uma HQ o caldeirão que nos preparou o Século XX, com toda sua paranóia, conspirações, contradições, horror e beleza?

Eu não li From Hell, ainda não tive grana pra comprar a série, está muito cara, dei uma olhada nos volumes e li muitos bons comentários a respeito, preciso guardar uma grana e comprar essa série, pois sei de sua importância e pungência...

-E a versão para o cinema agradou? Porque? O que espera da de Liga dos Cavalheiros Extraordinários?

Eu vi o filme e gostei sim, sei que ele não tem praticamente nada a ver com os quadrinhos, mas é um bom filme, tem clima, boa narrativa e personagens bem construidos (nesse sentido ele lembra a proposta de Moore, talvez seja por esse motivo que ele manteve seu nome nos créditos!).
Também não li "A Liga dos Cavaleiros Extraordinários"...

-Sei que você tem uma formação eclética, se podemos definir assim.O que pensa da Magia?

Eu penso que a magia permeia tudo, a vida é uma forma de magia, o estudo dos processos físicos e químicos que ocorrem em nosso corpo material não é suficiente para explicar o milagre da consciência; a ciência acadêmica, racional, é realmente digna de pena quando tenta explicar fenômenos naturais como os processos da vida e da consciência, o surgimento do Universo, a Eternidade, o Nada. Eu acredito que de certa forma somos imagens holográficas do Universo, nós contemos o todo e o todo nos contém (teoria holográfica de Stanislav Grof), dessa forma temos uma conexão muito profunda com todas as forças que regem a natureza (o Universo), estamos conectados a tudo e a todos, muitos estudiosos de "magia" e pesquisa da consciência, estudam na verdade canais que nos permitem uma conexão direta com essas forças da natureza, intrínsecas & extrínsecas à existência. Eu me interesso por esses estudos, pela manifestação dessas forças e pelas metáforas que elas envolvem.

-Outra obra interessante sobre isto e´”O Paradigma Holográfico” (Pensamento).E da obra Big Numbers a inacabada magnus-opus de Alan Moore, que através da Teoria do Caos e seus Fractais, a vida de uma comunidade representando o macrocosmo, tentaria explicar o próprio Universo?

Eu me interesso muito pela teoria do caos, e por todas essas novas teorias científicas que abalam a estrutura da física Newtoniana, mostrando que o fluxo dos acontecimentos não pode ser contabilizado em termos de ações e reações de intensidade semelhante, elas exemplificam bem a falência completa da ciência (até o momento) em tentar explicar os fenômenos...O princípio da causa e efeito adquire outras proporções, um simples piscar de olhos pode provocar um deslocamento de elétrons que desencadeará um processo que finalmente culminará em um maremoto na outra extremidade da Terra, ou porque não irmos mais longe, esse piscar de olhos pode provocar o surgimento de uma nova estrela daqui a milhões de anos, nenhum ato, por insubstancial que pareça pode ser desconsiderado. No início dos anos oitenta li uma HQ de Steve Ditko (acho que foi na Kripta), que era pura teoria do Caos, narrava a história de um cientista que desenvolve uma máquina do tempo e vai para o passado, para a pré-história, antes do surgimento do homem, ele desce da máquina para ver melhor o ambiente e sem que perceba pisa em um pequeno lagarto, quando ele retorna para o tempo presente fica assustado, todos os seres humanos tem feições e corpo de lagarto!!!! É simples e muito impactante, a morte de um único lagarto desviou todo o processo de evolução da espécie humana, antes de Moore, Ditko já falava de Teoria do Caos (antes mesmo das bases da teoria terem se solidificado). Mas eu gostaria imensamente de conhecer os volumes publicados de Big Numbers!!! Por acaso você têm??? Se tiver gostaria de piratear uma cópia....

- Eu conheço essa estoria, que e´ um conto clássico da Ficção Cientifica escrita por nada mais nada menos que Ray Bradbury, o poeta do gênero. E se nao me falha a memória, o desenhista (dessa versao da saudosa Kripta) foi o filipino Alex Nino, compatriota do Alfredo Alcala. Você acha que uma HQ tem a capacidade de abarcar tamanha complexidade e ser compreendida?

Eu acredito que as HQs como qualquer outra forma de linguagem têm um potencial ilimitado, elas se prestam a qualquer assunto, gênero, tendência, têm as particularidades que a tornam um meio de expressão único, tão poderoso quanto qualquer outro. O hermetismo de uma obra depende muito do referencial do leitor, acho que o autor deve ter consciência do público com o qual ele quer dialogar, deve ter consciência das pessoas que quer alcançar, se eu faço HQ infantil, tenho que ter em mente o público para o qual o trabalho se destina. No caso específico dos meus quadrinhos, eu tenho consciência de que o meu público leitor será sempre pequeno, eu faço HQs poéticas e filosóficas que exigem uma certa espontaneidade, disposição para o novo, interesse por assuntos que vão da metafísica à biotecnologia, para aqueles que são abertos à trabalhos menos literários e mais poéticos, menos literais e mais sutis, é claro que a compreensão da mensagem dependerá do discernimento desse leitor, de seu referencial, assim existem infinitos níveis de interpretação, mas quando faço uma HQ tenho uma idéia em mente, uma mensagem, uma reflexão a passar, a compreensão ou não dessa mensagem dependerá do leitor, mas eu não acho que o artista deva "esquartejar" o seu ideário ou mastigar a mensagem para que ela fique insonsa e fácil, a não ser que esse seja o seu desejo (normalmente é o desejo dos editores, he, he!). Eu não faço HQ pra vender, eu não me vendo, sou autêntico, tenho consciência do preço a pagar por fazer essa opção. Penso que autores como Moore também têm plena consciência disso e quando criam obras como BIG NUMBERS sabem que o público para elas será exiguo, seleto (é por isso que a série parou de ser publicada...não vendeu, os editores cortam mesmo, se eu fosse o Mooore publicava esse negócio em Fanzine, he,he!!!).

- Mais um esclarecimento: BN nao parou por falta de venda e a editora era do proprio Moore, a Mad Love. Parou porque ele se desentendeu com o artista Bill Sienkiewicz (Bill achou na época o roteiro de Moore muito ditatorial, nao dando margem para o artista fazer nada que o autor não quisesse), seu sucessor Al Columbia simplesmente “endoidou” ao fazer o 4ª numero, tanto que destruiu os originais e desapareceu) e, finalmente, mais por boicote das grandes editoras e distribuidores, o famigerado establishment, a Mad Love quebrou. Mas, ainda nesta direção metafísica, qual é a sua concepção do Tempo? Considera-o a Quarta Dimensão do Espaço, como teorizou Einstein ou tem outra visão?

Uma das últimas concepções sobre o tempo que mais me fascinaram foi a de Ken Wilber, na verdade o tempo não existe, não é outra dimensão, o que existe é um eterno agora, infinito, e nossa existência é infinita pois estamos sempre nesse eterno agora, gravado na essência do Universo, o passado/presente e futuro são prognósticos falsos criados por uma das válvulas de nossa percepção para que possamos compreender o mundo; veja como os nossos processos de pensamento não são lineares (são hipertextuais, damos saltos quânticos a todo momento), mas a nossa concepção de nossa existência é linear, pois ela é baseada nessa noção de tempo linear que corre do passado para o futuro. Eu tenho uma HQ chamada ATEMPORAL (publicado no fanzine Bifa de Marcelo Garcia) que metaforiza isso, o ser coexiste em todos os seus pseudo tempos : infância –maturidade e velhice, mas não existe linearidade/processo, é tudo coexistente, um eterno agora, como no Retroagir da cultura Indu, dos Vedas





-Realmente.Também tenho algumas obras do Wilber,”o careca”, alem de muitos ensaios e lectures baixados da web. E veja você que ate´ a Ciência parece abraçar também essa teoria: o físico britânico Stephen Hawking também considera o tempo como um sólido, onde tudo esta´se passando simultaneamente, portanto, se pudéssemos “se examinados” por um ser “fora do tempo”, ele nos veria como uma gigantesca centopéia, com milhares de pernas e braços e cabeças, se esticando desde de um bebe ate´ um velhinho, por todos os lugares – e tempos – por onde já passamos – mais ou menos como Kubrik tentou visualizar no antológico final de seu “2001”.Como você imagina um ser ou objeto (como o Tesserato) da Quarta Dimensão? (se pudesse aparecer a nos, pobres materializações tridimensionais que somos ?

Este é um grande paradoxo, o paradoxo de nossa limitação perceptiva, é impossível para nós concebermos algo que foge de nosso paradigma perceptivo, H. P. Lovrecaft tinha uma palavra muito certeira e poderosa para descrever as criaturas de seus mitos terroríficos, ele dizia "o inominável", "o indizível", é brilhante. Stanislaw Lem faz a mesma coisa em Solaris, para mim um dos maiores livros de "filosofia" (embalada num pacote de FC)de todos os tempos, ele nos mostra que sempre que falamos em outras vidas, extra terrestres, estamos falando sobre o nosso paradigma, estamos procurando espelhos, será que se essa outra forma de vida aparecesse teriamos percepção para compreendê-la? Será que ela já não existe??...veja a teoria de Gaia (a Terra é um organismo vivo, um ovo em gestação) de Lovelock, é muito interessante, mas para a ciência e para a maioria das pessoas é inconcebível!!! Esses dias vi um filme B que trata dessa questão da quarta dimensão, chama-se "O Cubo 2", vale a pena ser visto, pois apresenta uma visão curiosa para o conceito da quadridimensionalidade.


Ken Wilber




-Me interessei muito! Sou apaixonado por esse instigante tema. Inclusive, num nº de sua “1963”, Alan Moore tenta mostrar justamente como seria essa quarta dimensão se a pudéssemos “exergar”, e e´ muito interessante.Ele brinca inclusive visualmente, com o “mundo bidimensional” que e´ a pagina dos Quadrinhos, mostrando figuras geométricas impossíveis, ilusões de ótica,etc.Já li em algum lugar que você se interessa pela imberbe Teoria do Caos, com seus Fractais e o popular "efeito borboleta". Quais suas considerações a respeito e como acha que esta teoria pode ser aproveitada por exemplo em algum enredo – HQ ou literário?

Tenho pelo menos uma meia dúzia de HQs curtas que tratam da Teoria do Caos, tenho muitas idéias envolvendo esse tópico...

-Dos meus entrevistados ate´ agora, você e´ um dos poucos que leu as obras do matemático-filósofo soviético P.D. Ouspenski, do qual sou estudioso. Qual o seu entendimento para as teorias dele sobre o Tempo e a 4ª Dimensão – ver final do meu artigo Holismo e Caos em Big Numbers – em suas obras – ao meu ver – mais expressivas, Tertium Organum e Um Novo Modelo de Universo (Editora Pensamento)?

Eu li alguns trabalhos de Ouspenski, gosto da forma densa com que desenvolve suas teorias, partindo de uma certa aura acadêmica proveniente de sua formação racionalista de matemático, acho que ele é brilhante em algumas de suas visões, mas peca em outras, discordo em partes em seu entendimento das dimensões, sobretudo pela classificação evolutiva que dá a elas, colocando alguns animais em segundo plano, como menos perceptivos (só com percepção bidimensional), acho que é meio reducionista (ranço racionalista), mas é brilhante na concepção dessa quarta dimensão, e tem solidez matemática para criar a conceituação. O seu mestre Gurdjieff é mais leve, brincalhão, jocoso, vivo, é um verdadeiro mago, no sentido mais profundo que essa palavra engendra, por isso sempre foi tido como charlatão, mas é mais profundo e contundente. Uma das teorias que Ouspenski resgata, a da Lua como organismo que apreende energia da Terra, é assustadora e muito intrigante.

-E a teoria dele de que a reencarnaçao seria na verdade um circulo vicioso, como a serpente mordendo a cauda – ou seja, que na verdade nos sempre nos reencarnaríamos em nos proprios, vivendo a mesma vida eternamente e somente pequeninas modificações e´que, aos poucos, iria nos libertando desta vida material compulsória? (em Tertium Organum).

Pois é, de certa forma essa teoria é muito semelhante à da inexistência do tempo de Ken Wilber, ao "eterno agora", mas o equívoco de Ouspenski está nessa necessidade de acreditar que há uma "evolução", mais uma vez é um ranço da racionalidade cartesiana, onde tudo tem que ter um motivo, um resultado, neste ponto prefiro a visão de Wilber: o "Ouroboros Eterno", pura e simplesmente...

-Alan Moore e´adepto fervoroso da Cabala – inclusive toda a serie Promethea gira em torno dessa “escola”. Como você encara a Cabala? Vê utilização pratica de seus conceitos?

Como muitos outros tratados herméticos de evolução e transcendência a Cabala é um instrumento legítimo para a busca dessa quintessência transcendente, mas existem infinitos caminhos para essa elevação, alguns são pré-estabelecidos, outros são criados pelo navegante, William Blake fez de sua arte o seu "processo alquímico", eu tenho trabalhado neste sentido!

-Verdade? Precismaos falar sobre isto mais.Voltando aos seus escritos, o que você fez que considera o melhor até agora?

O melhor sempre é o que está sendo feito, eu valorizo muito a fluência do momento em que estou concebendo, criando, esse ato criativo (taoísta) é mais importante que o produto acabado, por isso sempre prefiro os trabalhos que estão em gestação. Mas se você me perguntar dos meus trabalhos quais mais gosto, eu destacaria o álbum AGARTHA (que está na sua segunda edição pela editora "Marca de Fantasia"), e as HQtrônicas "Ariadne e o Labirinto Pós-Humano" (ainda Inédita) e "NeoMaso Prometeu" (Menção honrosa no 13º VIDEOBRASIL –Festival Internacional de Arte Eletrônica) , tem também algumas HQs curtas que selecionei para o meu novo álbum que será publicado pela Marca de Fantasia, e algumas capas de CD que curto bastante, como as do Medicine Death e do projeto Noise for Deaf.

-Por ter se interessado por Historias em Quadrinhos em nível profissional e ser um acadêmico, você sofreu – ou sofre ate´ hoje – alguma especie de preconceito ou discriminação? Como lida com isto?

Faço a minha parte, tenho trabalhado para desmistificar as HQs como coisa de criança, apresentando artigos em congressos, ministrando palestras em Universidades e cursos de HQ de Autor. Mas o preconceito é forte, apesar de que nos últimos anos ele está diminuindo, o número de dissertações e teses sobre quadrinhos defendidas em Universidades do mundo todo é impressionante, talvez esse seja um sintoma do amadurecimento completo da linguagem.

-E atualmente, o que tem escrito?

Tenho diversos projetos em andamento, um álbum só com HQs inéditas & coloridas, uma HQ de 28 páginas para um número especial da coleção Corisco da Marca de Fantasia, um projeto artístico envolvendo Vida Artificial, e uma nova narrativa hipermidiática nos moldes de "Ariadne e o Labirinto Pós-Humano", além de alguns roteiros para outros artistas...

-Alguma produção em Quadrinhos?

Estou com alguns trabalhos no prelo, o álbum "Transessência" (60 páginas de HQs curtas) que está para ser lançado pela Marca de Fantasia, o álbum "Biocyberdrama" (64 pgs) – parceria com o lendário Mozart Couto (que quadrinizou meu roteiro de forma belíssima) já concluido e que será lançado pela Opera Graphica, além do álbum "Duetos Essenciais" que também já está pronto mais ainda demorará um pouco para ser editado.

-Voce sempre batalhou arduamente por um autêntico Quadrinho nacional. Ele existe?

Acho que o Brasil tem muitos talentos individuais, e chego a acreditar que temos um gênero de HQs que frutificou no Brasil de uma forma muito autêntica e contundente, o gênero que foi batizado pelo crítico espanhol Henrique Torrero de "Fantasia Filosófica" e que inclui artistas como eu, Gazy Andraus, Flávio Calazans(Entrevista) Antônio Amaral, Henry Jaepelt, Al Greco, entre outros, eu estou preparando um artigo sobre esse gênero que praticamente passou despercebido pela HQ maistream pois quase toda a produção desses autores foi publicada nos fanzines, a exceção é a revista MANDALA da editora Marca de Fantasia que é dedicada a esse gênero de HQs e publicou mais de 10 números com trabalhos dos autores referidos. Também gosto muito do ciclo de HQs das revistas de terror da Vechi que abriu espaço para que artistas como Mano (ele era autêntico, divertido, despretensioso), Shimamoto & Colin falassem de elementos e assuntos de nossa cultura.
Mas não sou apegado a esse discurso de que HQ nacional deve falar de assuntos da cultura brasileira, isso é pseudo-culturalismo xiita, eu estou de saco cheio de ler/ouvir/ver histórias sobre o regime militar (parece que existe um saudosismo desse período, todo mundo quer posar de coitadinho - reprimido pelo regime militar), também ficar plagiando os romances de Guimarães Rosa & congêneres e achar que está escrevendo grandes roteiros é babaquice, isso é pastiche, tem muita gente por aí plagiando e dizendo que é homenagem... isso vem acontecendo no cinema, nas artes visuais em geral e também nos quadrinhos.
O bom quadrinho deve ser regional & universal ao mesmo tempo, dialogar com todos os povos e eras.

-Voce citou o Mano (o cariocaElmano), do qual tambem sou fan e procuro ha algm tempo contata-lo. O que você acha que dificulta para o quadrinista brasileiro sobreviver de sua arte? Falta de talento ou de mercado?

Como acontece com o cinema nacional, nos não temos mercado, o produto importado já vem com o marketing incorporado e custa mais barato, por isso há um desinteresse completo de editores pela HQ feita no Brasil, isso é ruim pois a HQ acaba tornando-se um trabalho residual dos artistas, eles têm que conseguir outros meios pra sobreviver e a HQ vira um hobby, o tempo dedicado a ela é menor, o processo de evolução mais lento. Penso também que nós praticamente não temos editores de quadrinhos no Brasil, dá pra contar nos dedos de uma mão os verdadeiros editores, o resto é oportunista, crápula e safado...

-Como nacionalista ferrenho que é , também considera que o nosso artista “se vende” quando passa a publicar no Exterior, nos EUA principalmente, adequando-se ao estilo e mudando até mesmo de nome?

Ops!!! Não sou nacionalista ferrenho de forma alguma, sou cidadão do mundo, holista, esse negócio de pátria e fronteira é coisa de políticos e suas linhas imaginárias, sou sim, telúrico, tenho respeito e amor pela terra onde fui gerado. Como diz minha esposa "cada um, cada um", os caras conseguiram uma forma de ganhar dinheiro desenhando, uma forma de sustento, mas achar que são quadrinistas, isso é hilário, são operários do traço, mão de obra barata do terceiro mundo que não tem nem o parco direito de assinar o nome verdadeiro, se isso é o modelo de "quadrinista" que todos devemos seguir eu passarei longe por toda a vida, isso não me interessa, os trabalhos que vi não valem nada, são muito ruins, cópias de cópias, padronizações industriais, produto descartável para pré-adolescentes ...é realmente lastimável.

-Sobre Telematica e extrapolação cientifica, tenho lido muito dos seus artigos nestas areas, abordando tantas teorias que chega a fervilhar-nos o pensamento – biomidiologia, efeitos subliminares da propaganda e outras mídias, psicologia, psiquiatria, enfim, você demonstra um vasto conhecimento que precisa ser mais explorado, em nosso – seus leitores – beneficio – ver artigo “Quadrinhos e as Novas Tecnologias” Quais autores e obras recomenda para nos dar uma visão mais abrangentes destas areas?

Não tenho um vasto conhecimento, ainda estou engatinhando nesses tópicos e assuntos, mas sou muito interessado e empolgado sempre buscando novas informações, para aquele que está iniciando nessas áreas indico alguns trabalhos que considero seminais (em língua portuguesa):

- "A Mente Holotrópica" de Stanislav Grof (Editora Rocco).

- "A Consciência sem Fronteiras" de Ken Wilber (Editora Cultrix)

- "O Renascimento da Natureza" de Rupert Sheldrake (Editora Cultrix)

- "Criação e Interatividade na Ciberarte" de Diana Domingues (Editora Experimento)

- "Cibercultura – Tecnologia e Vida Social na Cultura Contemporânea" de André Lemos (Editora Sulina).

- "Teleantropos – A desmaterialização da cultura material, arquitectura enquanto inteligência, a metamorfose planetária" de Emanuel Dimas de Melo Pimenta (Lisboa – editorial Estampa).

- "Biologia Digital" de Peter G. Bentley (Editora Berkeley Brasil).
A relação é enorme, e muitos livros ainda não tem edição em português, mas acho que estes 7 que indiquei são um bom começo.

- E especificamente a Literatura de FC tupiniquim, atualmente capengando sem um “mercado “mas por outro lado bem mais amadurecida, a julgar por recentes contos publicados pelos fanzines, o que você acha que “está faltando “?

É o mesmo problema das HQs, mas nesse caso a coisa é mais grave pois a literatura não tem nem o apelo visual, as novas gerações não conseguem ler, seu processo perceptivo não condiz mais com os procedimentos necessários para a leitura que exige muito tempo de concentração sobre um mesmo assunto/tópico, as mídias interativas têm contribuido gradativamente para essa mudança de perfil cognitivo, a literatura, a longo prazo necessitará cada vez mais da imagem para sustentá-la. Por isso temos escritores de talento que não têm quem os lê. Me diz se o adolescente prefere ir para a Lan House e jogar um game realista 3D de Guerra nas Estrelas, ou ler um livro com a história da saga? O apelo da hipermídia é muito grande, os autores têm que começar a usar dessas mídias para difundir os seus trabalhos, tornarem-se escritores multimídia, ou estarão cada vez mais fadados ao ostracismo. E olha que eu sou apaixonado por literatura de FC, inclusive leio alguns brasileiros, entre os quais destaco o brilhante André Carneiro (Entrevista) com um dos trabalhos mais pessoais e interessantes da FC mundial, uma densidade pouco vista, se escrevesse em inglês já teria pelo menos meia dúzia de filmes baseados em seus escritos. Há anos recebo o zine "Notícias do Fim do Nada" com o qual tenho colaborado periodicamente com ilustrações, gosto muito to trabalho cuidadoso e apaixonado de Ruby Felisbino Medeiros, uma verdadeira enciclopédia humana da FC mundial!!! Também colaboro esporadicamente com capas e ilustrações para o ótimo Megalon, e colaborei com a extinta Quark, tenho lido excelentes contos e novelas de autores nacionais nessas publicações...

-Quais dos nossos autores você julga mais em condições de produzir uma obra de fôlego?

Temos dezenas e dezenas de autores de talento, só faltam as chances para que eles brilhem!!!

-Especificamente sobre desenho Edgar, como começou o seu interesse, quais as influências do início e os artistas que admira atualmente? E nos Quadrinhos?

Quando comecei a desenhar tinha uma aversão à copiar desenhos, nunca copiava nada, sempre tentava desenhar de memória ou recorria a fotos e modelos do real, devido a isso a evolução de meu desenho foi lenta, mas ao mesmo tempo já muito cedo já me "acusavam" de ter um estilo, este estilo frutificou-se mais rapidamente devido à minha insistência em não copiar, eu gosto do meu desenho, apesar de conhecer suas limitações, sempre trabalhei com fantasia e metáforas, por isso não me interesso por criar trabalhos "realistas", minhas referências visuais são sempre simbólicas e fantásticas, ao contrário de muitos desenhistas que com o tempo conseguem ser mais sintéticos no traço, meu desenho fica cada vez mais rebuscado (enquanto o argumento cada vez está mais enxuto), é uma tendência natural que não consigo evitar, com o passar do tempo ao inves de gastar menos tempo em uma página tenho gastado cada vez mais. Sobre influencias, posso dizer que gosto de Bosch & Bruegel, de Doré e Goya, de Giger & Caza, e dos brasileiros Jaime Cortez, Shimamoto, Gazy Andraus, Antônio Amaral e Mozart Couto, considero o Mozart um dos desenhistas mais completos do mundo, é impressionante a capacidade cênica deste artista, o domínio da sombra e da luz, da anatomia, da perspectiva e do movimento, Mozart é um gênio do traço, um monstro sagrado do desenho, tenho certeza que será motivo de estudo por gerações e gerações, mas apesar dessa grande admiração não posso dizer que meu desenho é influenciado pelo dele.

Desenho de Mozart


-Endoso em gênero, numero e grau: Mozart e´ o melhor desenhista do Brasil, o nosso Michelangelo das HQs.E´´ meu amigo de longa-data e sua entrevista uma das mais aguardadas aqui. Como o leitor interessado pode adquirir seus Quadrinhos e livros, quais os que estão disponíveis?

Recentemente foi feita uma segunta tiragem do meu álbum AGARTHA, que pode ser adquirido diretamente com a editora Marca de Fantasia (site: http://www.mdefantasia.hpg.com.br/), também existem vários números disponíveis da revista Mandala (todos contém algum trabalho meu) que podem ser encomendados através do site da Marca de Fantasia, assim como o meu novo álbum TRANSESSÊNCIA que deve estar sendo lançado em breve. Tenho alguns fanzines solo que distribuo, principalmente os da minha série de HQs baseadas no I-Ching, basta que me mandem 2 selos de segundo porte que remeterei dois números para os interessados, meu endereço postal é: Av. Melvin Jones, 265 – Bairro Santa Ângela, Poços de Caldas – MG – 37701-274. Tem HQs minhas em dois números da revista on-line Pixel (que podem ser baixados gratuitamente no site da editora Nona Arte- www.nonaarte.com.br ) , além disso o leitor poderá encontrar HQs, ilustrações e poemas no meu site pessoal (que em breve será totalmente reformulado) Ritualart: http://www.geocities.com/ritualart.geo/, e finalizando o trabalho de História em Quadrinho Eletrônica (HQtrônica) "NeoMaso Prometeu" que pode ser baixado no url: http://wawrwt.iar.unicamp.br/HQtronicas/index.html

-Voce acha que a “sede” do nosso “espírito” – ou essência, ou anima, o nome que se dê - se encontra na mente? Ou tudo não passa de um aperfeiçoamento fantástico de uma verdadeira “maquina orgânica” com seus ilimitados neurônios e suas ligações sinápticas?

Eu tenho dúvidas sobre tudo, não cheguei a uma conclusão sobre esses tópicos, gosto da teoria dos campos morfogenéticos de Sheldrake que propõe que nosso cérebro nada mais é do que um instrumento de captação, uma antena que capta de um outro "logos" nossa consciência, tanto a individual quanto a coletiva, céticos defendem que o humano é só uma máquina natural...eu discuto isso no meu álbum Biocyberdrama (em parceria com Mozart Couto), no fundo a questão central da história é essa, espero que ele seja lançado em breve, e que pessoas que têm esse questionamento legítimo e importante (como você) possam lê-lo para continuarmos o papo...

-O que você acha que é a consciência em si?

É a morada do mistério, a esfinge mais cruel e maravilhosa que emudece a ciência e turva a religião. É nossa condição "Luciferiana", de questionarmos o poder e a razão daquilo que nos gerou!

-Com esta você fechou com chave de ouro, amigo! Militando há tanto tempo “no ramo” você pode dizer que valeu – ou vale – a pena?

Viver vale a pena, é maravilhoso poder ter a percepção do mundo e das coisas, sentir. Eu aconselho a todas as pessoas a tentarem fazer de sua vida um passeio, leve e gracioso, como o vôo da borboleta, levar tudo menos a sério, sorrir muito e principalmente criar. Se eu tivesse somente aberto os olhos, visto o sol e desfalecesse já teria valido a pena, o que dizer então de tantas dádivas que tenho tido nestes anos? Viva a vida!

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Processo Criativo da HQ "Lord Unikorn".


Por: Edgar Franco


A idéia de falar sobre o processo de criação dessa HQ surgiu devido à série de procedimentos intuitivos, aleatórios e racionais que envolveram o seu desenvolvimento, mesmo para mim que há muito venho tentando trabalhar com novas formas para o já desgastado conceito tradicional de histórias quadrinhos, ela funcionou como quebra de alguns paradigmas. Meu processo usual é partir de um argumento inicial, o conteúdo chave da história, e deixar as imagens fluírem a partir desse argumento, assim ele acaba sendo modificado e acrescido, mas sempre será de certa forma uma chave para desvendar o "Big Bang" deflagrador do processo.
Em LORD UNIKORN as coisas foram bem diferentes, para início de conversa, não existia uma intenção inicial de criar uma HQ. Fui convidado por uma amiga artista plástica para participar de uma exposição de "Livros de Autor", um conceito muito amplo envolve essa tal categoria artística (mais uma dentre tantas criadas pelo racionalismo acadêmico), no final das contas optei por uma espécie de caderno de rascunhos como sendo meu "Livro de Autor", comprei um livro de notas daqueles antigos, com 500folhas brancas e capa dura e resolvi tratá-lo como um "Grimoire Intuitivo de Autor", passei então a criar imagens livres para preencher as páginas desse álbum e adotei total liberdade para desenvolvê-las, usei para a confecção das mesmas um pincel japonês muito macio deixando o traço inicial direcionar a imagem sem censurá-la, muitas delas foram sendo feitas diretamente a tinta, outras tiveram um rascunho feito com lápis 6B, mas sem nunca usar borracha, pois o ato de apagar acaba tirando a espontaneidade cósmica-arquetípica da imagem e trazendo-a para os processamentos racionais do lado esquerdo do cérebro. Para desenhar sempre colocava um fundo musical que podia variar muito dependendo do meu estado de espírito do momento, podendo ir do rock progressivo ao doom metal . Em pouco tempo tinha já prontas cerca de 50 imagens, mas devido aos compromissos da vida "mundana" tive que parar. Como tinha como meta conseguir fechar o livro, isto é, completá-lo com imagens, decidi não apresentá-lo na primeira exposição de minha amiga, e prometi incluí-lo numa próxima.
Guardei o "Grimoire" e fiquei sem olhar para suas imagens por quase 3 meses, voltando a ele, descobri imagens realmente muito fortes de sentido, um certo lirismo que transcende em força boa parte da minha produção de HQs, resolvi então fotocopiá-las para utilizá-las como capas ou contracapas de fanzines de amigos, selecionei dentre todas umas 20 que me pareceram mais simbólicas, considero essa seleção uma ação mútua entre o lado direito (intuitivo) e o esquerdo (racional) do cérebro. Depois disso aconteceu um fato interessante, fui convidado por um editor de zines para fazer a capa de sua nova produção, quando vi a proposta de seu zine decidi enviar uma das imagens que tinha fotocopiado para a capa e aconteceu um fato raro de se ver no universo zinístico, tive o desenho censurado pelo editor, que de forma amena tentou me dizer que aquela imagem era "um pouco agressiva demais" para figurar na capa de seu zine. Já estou calejado de receber recusas de editores de revistas que usam milhões de argumentos e subterfúgios para não publicar o meu trabalho ("é datado", "é setentista", "é meio Metal Hurlant, né?", "mas isso não é HQ!", "até que é bonito, mas é poesia ilustrada", "mas cadê os quadrinhos e os balões?", "tem muita mulher pelada!" etcetera e tal), mas no meio zineiro foi uma novidade ser censurado, ainda mais sendo o editor em questão um cara de mente aberta com quem
já tinha feito várias parcerias, detalhe importante: a imagem censurada é aquela que posteriormente tornou-se a página sete da HQ estudada neste artigo.
Esse acontecimento fez-me reavaliar o valor dessas imagens e passei a mostrá-las para alguns amigos que sempre se assustavam ou gargalhavam com algumas. Arrisco dizer então que algumas delas funcionam como Koans, para usar um conceito detalhado na dissertação de mestrado "Existe o quadrinho no vazio entre dois quadrinhos?(ou: O Koan nas Histórias em Quadrinhos Autorais Adultas)",
desenvolvida pelo quadrinhista e pesquisador Gazy Andraus, onde ele esclarece-nos o que é um Koan: "O koan, é uma forma de pergunta, em forma de enigma indecifrável pelos padrões lógicos racionais vigentes. Uma forma de pergunta, para a qual não possui resposta imediata racional, que busca derrubar toda a estrutura condicionada da mente racional. Na verdade o koan seria apenas um desafio aos arraigados hábitos de nossa mente, ao seu modo de pensar e então agir.(1)" Na dissertação Gazy demonstra-nos que os Koans podem surgir na forma de questionamentos filosóficos, poemas, problemas da física quântica e é claro em HQs. Na minha opinião algumas dessas imagens criadas para o meu "Livro de Autor" têm esse potencial de provocar certos deslocamentos em nossa lógica
racional.
Diante dessa conclusão decidi fazer mais uma seleção escolhendo as imagens que ao meu ver fossem mais "Koânicas"(2), para a partir delas criar uma HQ, chegando finalmente a 9 imagens, entretanto uma delas já havia sido utilizada para outro fim, como capa para a demo-tape de uma banda de Death Metal de uns amigos meus, o mais interessante desse fato é que além de ser convidado para desenvolver o desenho da capa, também fui incumbido de escolher um nome para a banda, chegando a LORD UNIKORN quando lia alguns verbetes de um dicionário de ciências ocultas, o nome me chamou a atenção por sua sonoridade e curiosamente por remeter-me a uma das imagens de meu "Grimoire" (e menos por seu significado: trata-se de um demônio que chefia 29 legiões), imediatamente procurei a minha imagem e desenhei o logotipo que criei para a banda sobre ela, o trabalho agradou muito aos músicos. Como a capa da demo-tape fazia parte das 9 imagens selecionadas, optei por usá-la como primeira página da HQ, adotando como título para a mesma o nome LORD UNIKORN (com a concessão de meus amigos da banda homônima). Para impedir que o lado racional criasse critérios para ordenação lógica das demais páginas, entreguei-as a minha esposa e pedi para que as embaralhasse e me devolvesse, essa "ordem aleatória" foi a utilizada na HQ. E ela veio repleta de
sincronicidades, uma ordem gerada no caos do processo criativo.
O texto/roteiro da HQ surgiu em poucos minutos e foi escrito diretamente sobre as páginas, na primeira ele é apenas uma frase descritiva, mas nas seguintes ele fluiu liricamente fundindo-se às imagens e redobrando seus significados, tendo como foco central questionamentos sobre eternidade, ego e vazio e certas alusões aos Koans, ao Taoísmo, ao Zen e ao oráculo milenar chinês I-Ching. Aquilo que parecia não deflagrar uma seqüência de ligações lógicas, acabou gerando seqüências aleatórias interessantes, reparem nas 3 primeiras páginas, os personagens estão de perfil e olhando para o lado direito da folha, além disso todos têm um objeto nas mãos (crânio, relógio e espada), já a penúltima e a última página apresentam relações simbólicas com a sexualidade e os genitais.
Todas essas sincronicidades, coincidências e convergências intuitivas levam-me a refletir sobre o conceito do artista como veículo de forças transcendentais, o artista talvez seja o pincel do Universo e a arte a forma mais profunda de ciência, envolvendo a inexpugnável e maravilhosa intuição. O ato criativo um orgasmo cósmico puro e eterno!


Notas:

(1) In ANDRAUS, Gazy - Existe o quadrinho no vazio entre dois quadrinhos? (ou: O Koan nas Histórias em Quadrinhos Autorais Adultas), Dissertação de Mestrado defendida em dezembro de 1999 no Instituto de Artes da UNESP- Universidade Estadual Paulista, São Paulo.
(2) Koânico - Neologismo criado pelo pesquisador Gazy Andraus para designar os gêneros narrativos e obras de arte que contém Koans.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Cúpula da Polônia teve fim triste




O embaixador extraordinário do clima do Brasil, Sérgio Serra, avaliou que a 14ª Conferência do Clima, em Poznan, terminou num "tom ruim", de forma "triste e decepcionante".

A reportagem é de Afra Balazina e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 14-12-2008.

A declaração melancólica, diz, se deve ao fato de os países industrializados, notadamente a Rússia, barrarem mecanismos que poderiam aumentar os recursos para o fundo de adaptação às mudanças climáticas.

Esse é o instrumento financeiro para apoiar projetos em países vulneráveis ao aquecimento global. Hoje, o fundo é alimentado com 2% dos créditos gerados para projetos de melhorias do chamado MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), programa pelo qual países ricos ajudam os pobres a cortarem emissões em troca do direito de emitir mais.

Uma das idéias barradas foi a da obtenção de mais recursos com o comércio de créditos de emissões entre países ricos.

Atualmente, os recursos são mínimos, de US$ 80 milhões ao ano -e chegarão no máximo US$ 300 milhões em 2012. A aprovação de novos mecanismos representaria um valor de US$ 20 bilhões para o fundo.

"Foi um episódio lamentável", disse Serra, ressaltando que a idéia acabou "enterrada" e não voltará à pauta de negociações no próximo ano.

Clima de enterro

Nem o otimista inveterado Yvo de Boer, secretário da Convenção do Clima da ONU, disfarçou o clima triste ao fim do encontro de Poznan, em meio à briga de países em desenvolvimento contra desenvolvidos.

Visivelmente exausto após concluir os trabalhos às 3h de anteontem, ele disse que a atmosfera era "boa" na conferência do ano passado, em Bali - diferentemente da deste ano em Poznan. Boer alegou que a mudança ocorreu porque agora, de fato, começaram as negociações para o próximo acordo de metas de redução de emissões de gases-estufa, que deve entrar em vigor após 2012.

Para Boer, os países ricos avaliaram que não era o momento de oferecer mais recursos aos países pobres, pois isso os enfraqueceria nas negociações de 2009. Isso porque o objetivo das nações ricas é fazer com que os emergentes se comprometam também com as reduções de emissões de gases.
"Vamos ser honestos", disse, explicando que conter recursos é uma maneira de países desenvolvidos forçarem a mobilização dos em desenvolvimento.

Anfitrião do encontro, o sorridente Maciej Nowicki, ministro polonês do Meio Ambiente, tentou colocar panos quentes. "Não tivemos consenso aqui, mas vamos trabalhar para conseguir isso em 2009", disse.

Aparentemente não percebeu o clima de enterro. "Poznan é o lugar em que a parceria entre o mundo em desenvolvimento e o desenvolvido para lutar contra a mudança climática avançou para além da retórica e se transformou em ação real", disse. Acredite quem quiser.


terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A massa



Por: Luiz Felipe Pondé

"Imaginem celulares e internet nas mãos nazistas! Seria esta uma contradição insuperável da modernidade? Sua eficácia técnica e burocrática repetiria a maldição atávica de Prometeu?", escreve Luiz Felipe Pondé, professor da PUC-SP, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 15-12-2008. E continua perguntando: "Uma vez que fetos não são mais humanos, por que não usá-los em pesquisas de cosméticos ou remédios? Quem teria um argumento contra isso que não fosse miseravelmente metafísico, uma vez que a decisão legal tiver definido o que é humano e o que não é "na matéria da lei"? A tentativa de definir questões desse tipo como "problemas de saúde pública" é mera retórica que visa transparecer um halo de objetividade pré-moral. No fundo, é simples questão de dinheiro associada ao desejo de aniquilar o senso moral pra "baratear" o aborto".

Eis o artigo.

Leitores apressados identificam em mim um culto da escuridão. Pensam que me faltaria luz. Daí meu "pessimismo". Não, isso é um engano. Suspeito, sim, que levar as "luzes" a sério demais é sinal de pouca luz.

Confesso, não sou muito moderno. "Seria este colunista um retrógrado?", indaga-se o leitor apressado. Respondo: não se deve ter medo de ser anacrônico. Muitas vezes ser extemporâneo pode ser uma forma de consciência. Hoje, em meio à pressa do cotidiano, gostaria de partilhar com o leitor um desconforto. Há uma relação perigosa entre políticas de saúde e a estupidez das massas: chantagem emocional, humilhação moral, procedimento estatístico, opressão burocrática, constrangimento legal. O leitor apressado, movido por seus vícios, pensará que sou "contra" a saúde, mas não se pode fazer muito contra os vícios. Sei disso porque os tenho aos montes.

Enfrentaremos nos próximos anos novas formas de eugenia que a saúde de massa assumirá ao atingir o formato legal. A violência é invisível quando é legal. Recentemente li nesta Folha uma pequena nota que falava de um projeto da Organização Mundial da Saúde propondo políticas mais agressivas contra a Aids. Ironicamente diria que aí está um alerta para jantares inteligentes: jamais questione políticas como essa; melhor contar, entre dois goles de vinho, sua vida sexual com um pastor alemão.

Cientistas cogitam uma lei que obrigaria toda pessoa acima de 15 anos a fazer todo ano exame de HIV. Já vejo o documento do "HIV zero" com validade de um ano sem o qual você não tira passaporte, não saca dinheiro, não faz seguro de saúde, não casa, não herda. Por que não fazer o mesmo com doenças genéticas e diabetes? As empresas adorariam "administrar" a qualidade da saúde de seus funcionários.

Como nos diz Zygmunt Bauman em seu livro "Modernidade e Holocausto", o mal-estar é um traço da consciência moral moderna. Diante do constrangimento causado pela burocracia da saúde de massa, seriam os incompetentes uma esperança? Sabemos que, num campo de concentração, um soldado bêbado ou corrupto salvaria vidas. Imaginem celulares e internet nas mãos nazistas! Seria esta uma contradição insuperável da modernidade? Sua eficácia técnica e burocrática repetiria a maldição atávica de Prometeu?

Nunca foi possível abortar e depois ir ao cinema. O avanço da ciência nos impõe impasses éticos antes impensáveis. Avanços dramáticos são aqueles que demandam definições do tipo "o que é o humano?". Novas formas de barbárie invisível podem surgir da relação entre avanços científicos e definições jurídicas. Chama-me a atenção a fúria como as campanhas pró-aborto repetem o movimento de desumanização, agora, do feto: "Feto não é gente, pode jogá-lo fora". Campanhas assim (de definição do "humano") já foram realizadas em outros momentos da história e aplicadas com sucesso a outras vítimas.

Só tolos crêem que juízes possam evitar essa forma de violência invisível. Ao contrário, eles podem ser os agentes dela porque são submetidos ao próprio processo de acomodação que o imaginário cultural produz ao longo do tempo. Um juiz não tem autonomia em relação ao seu momento histórico.

Uma vez que fetos não são mais humanos, por que não usá-los em pesquisas de cosméticos ou remédios? Quem teria um argumento contra isso que não fosse miseravelmente metafísico, uma vez que a decisão legal tiver definido o que é humano e o que não é "na matéria da lei"? A tentativa de definir questões desse tipo como "problemas de saúde pública" é mera retórica que visa transparecer um halo de objetividade pré-moral. No fundo, é simples questão de dinheiro associada ao desejo de aniquilar o senso moral pra "baratear" o aborto.

Antes de tudo, é necessário desumanizar o feto para atingir o afeto vazio que caracteriza o aborto sem culpa. Sem a agonia moral não existe moral. O leitor apressado, agora também irritado, suporá que nego a possibilidade de uma pessoa ter vida moral sem sofrimento. Confesso, nisso ele está certíssimo. O coração da vida moral é o sentimento de culpa.

Temo que dentro de cem anos essa discussão se acabe. A própria identificação entre sexualidade e reprodução estará extinta. A reprodução será, como tudo mais, mediada pelo mercado, aquele das tecnologias da reprodução. A sexualidade será, por sua vez, algo assim como ir ao cinema.




Tompkins, o ambientalista latifundiário e antiliberal

Por:Humberto Saccomandi, de Rincón del Socorro, Argentina

24/11/2008

Em Rincón del Socorro, uma estância na Província argentina de Corrientes, a paisagem é absolutamente plana e o horizonte parece não ter fim. A longa e poeirenta estrada de terra converge para o infinito. Apesar dessa amplitude, até onde a vista alcança a terra pertence a uma pessoa, o americano Douglas Tompkins. Mas lá não há plantações e quase não há gado, como nas estâncias vizinhas. Sobram pássaros, capivaras e jacarés, comuns nessa região, os Esteros del Iberá, uma versão argentina do pantanal brasileiro.

Tompkins, de 65 anos, é um dos maiores proprietários de terras do mundo. Empresas e fundações dele e de sua mulher, Kristine, possuem cerca de 830 mil hectares na Argentina e no Chile (o número é uma estimativa). Mas seu objetivo é diametralmente oposto ao de grandes latifundiários, como os reis da soja brasileiros. Ex-empresário do setor de moda, Tompkins vendeu sua empresa nos EUA para se tornar um ícone do ambientalismo, comprando terras para promover a conservação da paisagem e da biodiversidade.

Para isso, ele disse já ter gasto US$ 370 milhões de sua fortuna. E espera gastar outro tanto até o fim da vida. "Mas isso vai depender de quanto eu vou viver", brincou Tompkins em entrevista ao Valor em sua casa, em Rincón del Socorro, parte dos 135 mil hectares que possui nos Esteros del Iberá.

A maior parte de suas terras é área de conservação natural, onde não há nenhum tipo de atividade econômica, a não ser visitação turística. É o caso do imenso Parque Pumalín, com seus quase 300 mil hectares no sul do Chile. Ele divide o país ao meio, pois ocupa uma área que vai da costa do Pacífico até a fronteira com a Argentina (veja mapa). Mas Tompkins tem também fazendas com criação de gado e plantações, cujos objetivos são, segundo ele, dar dinheiro e fornecer um modelo de produção ambientalmente sustentável. "Somos bons fazendeiros."

Olhando pelo seu ponto de vista atual, o da conservação quase sem concessões, Tompkins passou por uma espécie de conversão, já que hoje renega a atividade com a qual fez fortuna. Ele fundou nos anos 60 duas grifes de muito sucesso nos EUA: a The North Face, que logo vendeu para criar a Esprit.

"Comecei a me dar conta do negócio em que atuava, que era produzir coisas de que ninguém necessitava. Na verdade, o que fazíamos era produzir o desejo nas pessoas de comprá-las, por meio de propaganda, construção de imagem e marketing. E constantemente fornecer algo novo", disse.

Essa crise existencial coincidiu com um interesse maior pelo ambiente. "Eu retornava a lugares e via vários tipos de desenvolvimento, como projetos florestais, estradas, prédios, represas. Projetos humanos tinham avançado sobre a paisagem, deformando-a. Tentei entender, de modo sistemático, quais eram as forças que estavam por trás dessa marcha implacável do progresso e do desenvolvimento, como chegamos ao ponto de achar que é bom derrubar florestas e eliminar biomas, alterando seriamente paisagens e ecossistemas." Sua conclusão foi que "isso era uma crise de civilização".

Essa conversão foi um processo longo, explica. O ativismo ambiental conviveu anos com a atividade empresarial, até 1990. "Então simplesmente me livrei dos meus negócios. E usei a receita aferida para criar fundações sem fins lucrativos, cujo objetivo é parar a demolição da paisagem por essa civilização perturbada. Coloquei-me do lado de Davi contra Golias."

Sua primeira fundação foi a Deep Ecology Foundation, inspirada no conceito de ecologia profunda, do filósofo norueguês Arne Naess, que coloca o ser humano em pé de igualdade com outras espécies como parte integrante (e não acima) do ambiente e que se opõe a um uso utilitarista da natureza pelo homem. Essa fundação financia estudos e publica livros. Em seguida, Tompkins criou a The Conservation Land Trust, por meio da qual passou a comprar terras para conservação, inicialmente no Chile e depois na Argentina. A Conservacion Patagonica foi criada em 2000, por Kristine, para projetos específicos de conservação na Patagônia argentina.

Hoje, o casal mora parte do ano na Argentina e parte no Chile. Nos dois lugares, Tompkins comprou brigas pelo ativismo conservacionista. No Chile, ele se opõe à construção de hidrelétricas, que ajudariam a minimizar o problema da escassez de energia no país, e de estradas na região de seu parque. Na Argentina, denunciou à Justiça fazendas vizinhas que retiravam, sem autorização, água do pantanal para irrigar plantações. Isso levantou suspeitas e críticas. Ele foi acusado, entre outras coisas, de ser agente da CIA e de querer se apoderar do aqüífero Guarani. Na estrada que leva à sua estância, há pichações "Tompkins pirata".

"Há oposição em todo lugar, não há dúvida. O mundo da produção e o da conservação são antagonistas, por natureza. É assim no mundo inteiro, pois o uso da terra é uma questão política."

A estância Rincón del Socorro, onde ele mora, foi quase totalmente convertida de rancho de gado para a conservação (há também uma pequena pousada). Parte das terras fica dentro da reserva natural do Iberá. O vilarejo mais próximo, que antes dependia da produção, agora vive de turismo e das atividades de conservação, como o monitoramento ambiental da área, em boa parte financiadas por Tompkins. "A conservação da biodiversidade sempre foi uma questão central na minha visão de mundo. Ao final, é a saúde do ecossistema que sustenta tudo", disse.

Para ele, a visão utilitarista segundo a qual o homem pode fazer o que bem entender com a natureza, é uma característica do que ele chama de sociedade tecnológico-industrial, que se desenvolveu no Ocidente rico e se alastrou. "Essa obsessão pela produção e pelo consumo é, na realidade, uma conversão da natureza em produtos humanos. Isso é claramente uma coisa errada, é a grande ilusão da modernidade", diz. "Essa sociedade acha que pode ignorar a natureza, que seria apenas um vasto armazém de recursos à nossa disposição, e que podemos mudar a paisagem do modo que quisermos e não haverá conseqüências."

Nessa hora lhe vem em mente o Brasil. "Você vê aquelas imensas plantações de soja no Brasil e se pergunta: que tipo de vida selvagem vai sobreviver lá? Nenhuma. Mas isso nem é percebido como um problema." Mas os produtores brasileiros podem respirar aliviados. Tompkins diz que nunca cogitou comprar terras no Brasil e que não tem planos para isso. "Vocês no Brasil têm um imenso reservatório de espécies, e provavelmente estamos extinguindo espécies que ainda não foram descobertas. Deveríamos nos envergonhar."


O Chile o atraiu por conta da paisagem, com montanhas, neve, vales e o mar, tudo muito perto, além da segurança jurídica oferecida pelo país no início dos anos 90. Já a maior parte das terras na Argentina foi comprada durante a crise econômica no país, no início desta década. Nesse caso, Tompkins se disse atraído por um ecossistema muito particular, os Esteros del Iberá, que estavam em situação ruim de degradação. "Gosto de comprar as coisas em mal estado e recuperá-las."

Tompkins esclarece alguns princípios de sua atuação. Ele não compra pequenas propriedades para juntá-las, pois nesse caso teria de remover muita gente, em geral gente pobre. Ele mantém seu dinheiro em fundos em euro, mas não permite investimentos numa série de empresas, como de armas, biotecnologia e combustíveis (inclusive etanol). Ele e suas fundações não financiam partidos nem políticos. "Queremos estar bem com todos, o que não é fácil." Ele cita a boa colaboração com o governo do ex-presidente socialista Ricardo Lagos, no Chile, e com o ex-presidente argentino Néstor Kirchner, nesse caso para a criação de um parque nacional na Província natal de Kirchner.

Milionário, ele diz que não tem ambições patrimonialistas e que seu modelo preferido é, sempre que possível, recuperar o ecossistema e devolver a terra ao país, por meio da criação de parques nacionais. Nesse caso, ele faz uma doação ao governo, condicionada à manutenção do parque. "Se tentarem dar um outro uso, retomamos a terra." Essas doações já foram feitas na Argentina e no Chile.


O ponto central da atuação de Tompkins é que a paisagem deve ser o principal "marcador", sinalizador, da economia, e não a produção. Assim, um modelo que estimula, por exemplo, uma agricultura intensiva baseada na monocultura, que resulta em profundas modificações na paisagem e no seu ecossistema, não é um modelo saudável, ainda que em termos de produção seja mais eficiente. "Isso significa passar de um mundo antropocêntrico para um mundo ecocêntrico. Essas duas visões de mundo estão em disputa, e uma delas é muito perigosa."

"Obviamente isso é muito diferente do que dizem os economistas e políticos 'integrados', cuja visão e gestão nos levaram à crise das extinção [de espécies], da redução da biodiversidade e, é claro, da mudança climática, que é a expressão pura do modelo econômico neoliberal." Modelo, ele alfineta, que é promovido pelos jornais econômicos. "Todas as pessoas que têm poder, prestígio e privilégio são ligadas a esse modelo, se beneficiam dele, e não querem ver nada diferente." E, no que ele qualifica de realidade única, "o desenvolvimento, o progresso e o crescimento econômico são dogmas".

Tompkins é cético quanto à maioria dos programas de sustentabilidade promovido por empresas. "Isso em geral é bobagem, é só marketing. O máximo que podemos falar é de menos insustentabilidade." Também é crítico de boa parte do movimento ambientalista pelas excessivas concessões.

Para ele, não é possível conciliar sustentabilidade com transformações profundas na natureza, inerentes ao padrão de produção e consumo atual, e que geram efeitos imprevisíveis. "Temos de pensar no sistema como um todo. É um sistema muito complexo e não deveríamos ter a arrogância da ciência ocidental que crê que tudo é compreensível. Em última análise, não é. E não é bom pensar que vamos entender, pois isso é um modo de nos isolarmos da enorme complexidade do mundo. Há esferas que não conhecemos. Toda vez que se lança no ambiente uma nova tecnologia, como os telefones celulares, abre-se um vasto buraco negro de ignorância. Não sabemos quais os efeitos de todas essas microondas. Suspeita-se agora que elas estão confundindo os sinais de reprodução dos sapos. E se os sapos não se reproduzem, estamos perdendo sapos por toda a parte. Bem, um financista em Nova York ou Paris pode dizer: ´Para que precisamos de sapos?´. Isso só demonstra o quão estúpido ele é. Os sapos são peças-chave para ciclos que são importantes para outras coisas, pois tudo está interconectado. As variáveis são tantas que nenhum modelo de computador pode predizer quais são as implicações. Só podemos saber que haverá problemas não previstos em cascata nos ecossistemas."

Pergunto a Tompkins: como fazer para vencer o incentivo econômico que é o fato de que as pessoas, a sociedade, o país ficam mais ricos no curto prazo derrubando florestas para plantar soja? "Sua questão é típica, pois vai direto para a estratégia. Sabemos que as pessoas ficam mais ricas no curto prazo, que essa é a força motora. Como se muda isso? Não sei, prefiro deixar para o futuro. Mas sei que, se mais pessoas pensarem como eu penso, políticas diferentes começarão a ser elaboradas. Haverá uma preocupação com o futuro. Não pensamos no curto, mas no longo prazo, bem além das nossas vidas. É uma posição religiosa, moral, se você quiser. Vai além do você ganha ou perde hoje. Você precisa acordar pela manhã preocupado com o futuro do mundo. Se você assume essa posição, então pode liberar a sua mente para poder ver o que estamos de fato fazendo."

Tompkins admite que as desigualdades no mundo constituem um obstáculo, mas não justificam continuar a marcha de destruição da natureza. "Vamos olhar pelo outro lado: se não for possível [reduzir a degradação ambiental], podemos dar adeus ao mundo." Observo que quem não tem o que comer dará adeus ao mundo antes. "Se partirmos da idéia de que não há futuro, então tanto faz dar adeus mais cedo ou mais tarde." E argumenta que o modelo de produção intensiva, além de degradar o ambiente, não favorece a distribuição de renda, pelo contrário.

Tompkins não fornece uma estratégia clara de saída, mas a sua atuação indica para onde ele gostaria de ir. A sua produção agrícola sustentável implica pequena escala, com variedade de culturas e pouco ou nenhum uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos. Isso reduziria a produção e elevaria o preço dos alimentos. Haveria assim menos excedente para gastar com consumo de outros bens e serviços, o que, por sua vez, diminuiria a pressão sobre outros recursos e sobre o ambiente. O mundo seria materialmente mais pobre.

Ele diz que que as pessoas nos países ricos gastam de 5% a 10% de sua renda, em média, com alimentação. "Deveria ser muito mais, algo como 25% a 30%." Essa redução, para que as pessoas tivessem um excedente para gastar com carros, viagens e universidades caras, só foi conseguida por meio da produção agrícola intensiva, com forte dano ambiental. Ele vê nisso um antagonismo entre o campo e a cidade. "A população urbana vive de sugar os recursos do campo, mas não tem a menor idéia do que se passa lá, do tsunami ambiental que está chegando."

A entrevista está acabando e pergunto a Tompkins se ele não se sente às vezes vivendo numa ilha da fantasia, tanto pela paisagem que se vê de sua janela como pelas suas idéias. "Toda revolução começa com um primeiro passo. Não sabemos onde estamos na história. Vamos descobrir isso depois. Ao final, todos buscam fazer o melhor que podem, sob as condições e as perspectivas que têm. O que mais você pode fazer? Sabemos que estamos lutando contra as tremendas forças motoras da economia e seus fatores políticos. Mas qual é a alternativa? Aderir a isso? Isso está arruinando o futuro. Você tem de trabalhar no que acredita, e acredito que o que fazemos é melhor para o presente e para o futuro. É por isso que acordamos todas as manhãs, mesmo sem ilusões e sem grandes esperanças diante das tremendas forças da sociedade tecnológico-industrial. Sem encontrar um sentido no trabalho diário, a vida não vale a pena."


Fonte: VALOR ONLINE

O mundo não agüenta essa pantomima

"Encarregados de produzir um plano para cortar emissões de carbono, os governos produziram muito pouco além de bravatas", escreve Kevin Watkins, pesquisador sênior do Programa de Governança Econômica Global da Universidade de Oxford (Inglaterra), comentando a reunião de Poznan, em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 16-12-2008. Segundo ele, "nos últimos meses, os governos dos países ricos moveram montanhas financeiras para proteger a integridade de seus sistemas bancários. Qual é o preço da integridade ecológica do planeta, do bem-estar das gerações futuras e do compromisso com os pobres do mundo?"

Eis o artigo.

As negociações cruciais sobre mudança climática em Poznan, Polônia, caminharam para lugar nenhum. Encarregados de produzir um plano para cortar emissões de carbono, os governos produziram muito pouco além de bravatas, com ministros reciclando promessas vagas de ação futura. Sem dúvida, eles se deitam à noite recitando uma variação da oração de Santo Agostinho: "Ó Senhor, torna-me casto - mas não ainda, e certamente não em Poznan".

Infelizmente, este é um momento do tipo "agora ou nunca". A Conferência de Poznan marcou a metade da trajetória de negociação de uma nova convenção climática das Nações Unidas. Esperava-se que prepararia o terreno para um grande pacto global para enfrentar o maior desafio que a humanidade já viu.

Falando claramente, o desafio em Poznan era estabelecer as coordenadas para evitar uma colisão entre os sistemas de energia que alimentam nossas economias e a biosfera da Terra. Metas ambiciosas devem estar no cerne de qualquer acordo para enfrentar o desafio. Mas também necessitamos de uma nova arquitetura institucional de cooperação entre países ricos e pobres.

Se a tendência no aumento da temperatura continuar, conduzirá a reversões no desenvolvimento humano sem precedentes ainda em nosso tempo de vida, seguidas rapidamente de uma catástrofe ecológica para as gerações futuras. As economias podem se recuperar de uma crise financeira. Mas não há antídoto ou tecla de replay para o aquecimento global.

Em Poznan, os países ricos deveriam ter estabelecido uma intenção séria. Era preciso sinalizar um compromisso obrigatório de reduzir sua pegada de carbono pelo menos em 80% (relativo aos níveis de 1990). Acima de tudo, era e é preciso aproximar as metas de mudança climática e as políticas energéticas.
Os países ricos têm os recursos financeiros e a capacidade tecnológica para fazer uma transição rápida para baixo carbono. Com um aumento do preço da emissão de carbono, por meio de impostos, cotas e normas regulatórias mais duras, podem transmitir um sinal claro para os investidores e estimular a inovação.

As parcerias público-privadas em pesquisa têm um papel-chave no desenvolvimento e na comercialização de novas tecnologias. A captura e o armazenamento de carbono são uma prioridade porque têm o potencial de reduzir as emissões das usinas de energia movidas a carvão, a forma predominante de geração elétrica, a zero. Contudo, nem os EUA nem a UE foram além de investimentos de pequena escala em projetos piloto.

Os países ricos também precisam construir as bases para um novo pacto global com os países em desenvolvimento. Não se trata apenas do fato de esses países abrigarem as populações mais vulneráveis à mudança climática, incluindo 1,6 bilhão de pessoas vivendo com menos de US$ 1 por dia. Eles também respondem por grande parte do aumento projetado de emissões de CO2 até 2030: o crescimento econômico movido a carvão na China e na Índia será responsável por bem mais que a metade do aumento. E o desmatamento em países em desenvolvimento é responsável por cerca de um quinto das emissões.

Em Poznan, os governos tinham a oportunidade de estabelecer três dos pilares para um acordo global. Primeiro, precisamos de um plano de ação para adaptação. Como indicado por Oxfam, para milhões das pessoas mais pobres do mundo, a mudança climática perigosa não é uma ameaça futura: está acontecendo agora.

O Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas estima o custo de combater essa ameaça em US$ 86 bilhões de ajuda adicional, quase um nono do que foi oferecido pelo governo nos EUA para o resgate dos bancos americanos.

Em segundo lugar, os países ricos têm que parar de falar e começar a agir com relação ao desmatamento, um dos caminhos mais custo-efetivos para cortar emissões de gás de efeito estufa.

Em terceiro lugar, o mundo precisa de um Plano Marshall para financiamento de baixo carbono e transferência de tecnologia. Um elemento desse plano deverá ser a expansão de oportunidades de comercialização de emissões para países em desenvolvimento. Mas os países ricos também têm que implementar mecanismos multilaterais mais amplos para sistemas de descarbonização da energia.

O mundo não agüenta o tipo de exibição desorganizada que foi encenada em Poznan. Nos últimos meses, os governos dos países ricos moveram montanhas financeiras para proteger a integridade de seus sistemas bancários. Qual é o preço da integridade ecológica do planeta, do bem-estar das gerações futuras e do compromisso com os pobres do mundo?

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A terceira revolução industrial e a crise ambiental



Entrevista com Jeremy Rifkin

Na semana decisiva para o futuro do pacote sobre o clima europeu, o professor Jeremy Rifkin está em Bruxelas. Nesta terça-feira, 09, o guru da Terceira Revolução Industrial, já consultor de Merkel e de Zapatero, acompanhado de uma dezena de administradores delegados de grandes sociedades, encontrou o vice-presidente da Comissão, Gunther Verheugen, para estabelecer um plano de ação em vista ao próximo salto qualitativo em matéria de clima e de energia, que está previsto para 2050. “Estamos prontos para colaborar também com a administração Obama – explica Rifkin – mas a Europa é o carro-chefe da terceira revolução industrial. E esta semana será crucial se ela quiser continuar a sê-lo”.
A reportagem é de Andrea Bonanni, publicada no jornal La Repubblica, 09-12-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Por que crucial, professor?
Porque, sobre a mesa dos chefes de governo europeus, cruzam-se três crises de época estreitamente ligadas umas a outras: a crise do clima por causa do efeito estufa, a crise energética e a crise econômico-financeira.

De que modo elas estão conectadas?
Porque todas as três são produto do declínio da segunda revolução industrial, baseada sobre a exploração da energia fóssil e nuclear. Essa era chegou à linha final quando o petróleo alcançou os 147 dólares por barril e o sistema foi contra o muro. E, com a segunda revolução industrial, a globalização também declina.

Não lhe parece ser um pouco drástico?
Não. Não acho. Esse modelo de relações econômicas e produtivas não pode ser retomado: faltam os recursos energéticos e faltam os capitais. O ingresso da China e da Índia na era da globalização levou ao colapso.

Mas e o plano de restauração americano? E o europeu?
São migalhas. O crescimento dos últimos anos que a globalização produziu foi alimentado pelo forte consumo dos americanos. Agora, este acabou. Sabe a quanto chega o endividamento das famílias americanas? Treze bilhões e quinhentos milhões de dólares! Não se resolve um buraco dessas dimensões injetando umas poucas centenas de milhões. Os quatro furacões que atingiram as costas americanas neste ano custaram, sozinhos, a metade do pacote de financiamento da Casa Branca. Entre energia, clima e finanças, combinaram-se os elementos de uma “perfect storm”, uma tempestade perfeita. Estamos frente a uma mudança de época. E são precisos anos para sairmos dela.

E então o que se faz?
É preciso um plano estratégico de longo prazo. É certo manter o corpo exânime do velho sistema vivo artificialmente, pelo menos até que sejamos capazes de dar a luz ao filho da terceira revolução industrial. Mas para obter esse resultado, também é preciso investir muito dinheiro nos quatro pilares dessa revolução: energias renováveis, construção e alta eficiência energética, hidrogênio, sistemas de transporte elétricos baseados em pilha combustível. Segundo os nossos cálculos, para iniciar esse processo, é necessário ao menos um trilhão de dólares para os EUA, assim como para a Europa.

Estamos longe também dos objetivos mais ambiciosos da próxima cúpula?
Sim. Mas a União Européia hoje é a única que tem um projeto que compreenda todos os três mecanismos necessários para dar o salto. Há um pacote energético para reduzir 20% das emissões, para aumentar em 20% a eficiência energética e, sobretudo, para aumentar em 20% as energias renováveis, que é um primeiro esboço da terceira revolução industrial. Além disso, há uma estratégia de longo prazo baseada no corte de 50% até 2050. Enfim, há um programa de restauração da economia.

Mas a Itália ameaça vetar?
Sim. Nesse quadro, a Itália está dando o pior exemplo. E francamente isso me deixa atônito. Porque Berlusconi é um homem de negócios capaz, e não entendo como ele não vê as enormes oportunidades de negócios que esse programa comporta.

Será que não ameaçamos o veto porque estamos atrás há pelo menos dez anos com relação a países como a Espanha e a Alemanha e tememos não conseguir superar isso?
Sim, é verdade. A Itália está atrasada. Mas permanece sempre como a sexta potência econômica. Se a Espanha conseguiu, vocês [italianos] também podem conseguir. E depois não há alternativas. Se a Itália não se mexe agora para recuperar o tempo perdido, dentro de dez anos, onde ela estará? E as crianças italianas de hoje, que futuro terão?