segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Os cybermanos e a periferia globalizada


Por: Vladimir Cunha



Apropriar-se da cultura periférica, simplificá-la e revendê-la no menor espaço de tempo para o maior número de pessoas possível. Durante quase cem anos, essa foi uma das estratégias de sobrevivência da indústria do entretenimento. Ainda que não seja visível a olho nu, como nas embalagens de extrato de tomate, existe um prazo de validade que determina a duração de seus produtos. A indústria do entretenimento não é dinâmica. É estática, monocultural e de curta duração. Daí recorrer à periferia quando lhe faltam idéias, reciclando estéticas e movimentos espontâneos, transformando-os em divertimento limpo e seguro para as massas.

O spiritual do final do século XIX resultou no blues. E o blues, ao misturar-se com o country, deu ao mundo o rock'n'roll, que, bem mais tarde, permitiu aos Beatles fragmentarem-se em discos, pôsteres, lancheiras, bottons e desenhos animados, o primeiro produto de massas da música jovem. A literatura beat forneceu a base teórica/comportamental da contracultura norte-americana dos anos 60, posteriormente transformada no movimento hippie e diluída para ser aproveitada pela indústria na moda, no cinema e na televisão. A morte de Jack Kerouac, a prisão de Timothy Leary e Abbie Hoffman na clandestinidade são o contraponto ao desbunde capitalista de Woodstock e a "psicodelia" como tendência de mercado, um filão lucrativo explorado em forma de pastiche em seriados como The Banana Splits e filmes como A Fantástica Fábrica de Chocolate e, mais tarde, de forma ingênua e equivocada pela Jovem Guarda brasileira.

Não que, vez ou outra, manifestações autênticas de rebeldia e inconformismo artístico escapem ao controle dos mass media. O "fuck" dos Sex Pistols na televisão inglesa é um bom exemplo disso. No entanto, a indústria do entretenimento é, sobretudo, baseada no consenso. Ela pode até usar, em maior ou menor grau, conceitos gerados por movimentos periféricos. Ainda assim, tenderá sempre a reduzi-los ao mínimo denominador comum, aproveitando a novidade apenas como forma de edulcorar formatos anteriores já testados à exaustão.

Em conceito, Christina Aguilera é uma atriz de música negra: usa bases de funk e hip-hop, recorre a inflexões vocais características do R&B e renega a assepsia visual dos ídolos adolescentes da classe média WASP norte-americana. Como as cantoras de rap e de R&B, Christina rebola, usa roupas apertadas e simula ter uma sensualidade que a América branca e conservadora condenaria em outras circunstâncias. Mas Christina é, acima de tudo, um produto da indústria do entretenimento, vendida como passatempo seguro, que desperta em seus fãs tanto fantasias de transgressão social e sexual quanto estimula o conformismo ao estabelecer limites para a sua própria "rebeldia". Da cultura negra, ela utiliza apenas uma estética estilizada e branda, que lhe permite um certo verniz transgressor mas não compromete sua aceitação por parte do grande público.

Partido deste princípio, é possível traçar um paralelo entre o método de apropriação utilizado pela indústria do entretenimento e o desenvolvimento das culturas alternativas no Brasil. Ao contrário dos países onde elas se desenvolvem, certas tendências chegam ao nosso país como um produto destinado ao consumo de uma pequena parcela da sociedade, justamente aquela que possui melhores condições financeiras. O conhecimento e o acesso a determinado produto passam a ser não uma bandeira social e cultural e sim um símbolo de status para ser exibido entre um número restrito de iniciados.
Tomemos o exemplo da música eletrônica no Brasil e a cultura dos VIPs, das microcelebridades, do exclusivismo e dos códigos estéticos. Erroneamente, parte dos consumidores da música eletrônica no Brasil associa o estilo à manutenção de um conceito equivocado de modernidade, fechando-se em grupos e subculturas incipientes. É o que possibilita o surgimento dos clubes com política de porta e a tentativas, às vezes bem-sucedidas, de se estabelecer códigos sociais e estéticos.

Porém, o esnobismo exagerado de parte da cultura eletrônica brasileira acaba por eclipsar a verdadeira modernidade. Em sua essência, a palavra "moderno" está ligada ao modo de fazer as coisas. Ser moderno não é ter acesso a fontes de informação antes de todo mundo ou ter a capacidade de seguir tendências. Ser moderno é criar um fazer diferente, é confrontar aquilo que está estabelecido através de caminhos alternativos. Assim, a modernidade não está nas roupas de griffe "feitas para se usar na rave", nos modismos importados e muito menos no name dropping (mania elitista de citar rótulos e nomes na tentativa de impressionar alguém). A modernidade está, por exemplo, na periferia, que numa tentativa de driblar suas próprias deficiências culturais e financeiras acaba se tornando a fonte das mais interessantes e originais manifestações culturais. Do reggae criado em precários estúdios de dois canais nas favelas de Kingston ao rap saído das festinhas barra-pesada do Bronx, da zoeira musical dos punks londrinos as belas melodias que Cartola criou nos morros cariocas.

Isso só reafirma ainda mais a distorção de valores que regem alguns setores da cena eletrônica brasileira. Aqui é negado às classes mais baixas o acesso a uma cultura que, em seu país de origem, saiu exatamente das zonas mais pobres. As raves começaram como festas ilegais nos subúrbios de Londres, feitas por gente que não tolerava a política dos clubes, e o drum’n’bass nasceu nas quebradas de Brixton com influências diretas do reggae e do rap. E mesmo o DJ-artista, incluindo aí a negação ao star system da indústria cultural, tem raízes fincadas nos bairros negros jamaicanos e norte-americanos, especialmente no caso dos primeiros bailes de rap do final dos anos 70.

No Brasil, ao contrário, essa distorção da cultura eletrônica se estabeleceu em dois pontos distintos: no gueto-chic e na simplificação da e-music, exatamente o modelo de apropriação padrão da indústria do entretenimento. Nos dois casos, o que vemos são atitudes equivocadas. A primeira por transferir para eletrônica todos os vícios das elites brasileiras (através de preços altos, política de porta, preconceito e dress code). A segunda por diluir um estilo musical com propósitos exclusivamente comerciais (qualquer eletrônica passa a ser "techno", qualquer roupa extravagante passa a ser "moderna" ou "clubber", toda a festa se transforma em "rave").

Por outro lado, a descoberta de que a eletrônica, antes de ser um estilo musical, é uma ferramenta que possibilita um fazer artístico diferente, permite a periferia recombinar suas referencias sonoras criando assim música barata e, sobretudo, moderna. Dos subúrbios cariocas sai o funk, o amálgama bastardo surgido da semente plantada por Afrikaa Bambaataa e outros mestres da black music e (dizem) de um sonho revelador no qual o DJ Marlboro aprendeu a programar uma drum machine (“O que acontecerá se a cena electro de NY descobrir o Marlboro?”, alguém já perguntou por aí). Na periferia de São Paulo, legiões de cybermanos adaptam o drum`n`bass a realidade brasileira num processo que gerou artistas como Marky e Patife. E em Belém do Pará, o reggae, o raggamufim` e o drum`n`bass misturam-se a ecos de Kraftwerk em nome do tecnobrega, a meta-música das aparelhagens de som e das turmas de dançarinos de rua.

Obviamente, o maior desafio está em aceitar que a modernidade se faz presente também nos subúrbios, que bairros pobres podem produzir uma cultura de rua original e vibrante. Os rígidos códigos de postura e a vontade de se integrar a uma suposta vanguarda impedem que gêneros como o tecnobrega, o funk carioca e o drum`n`bass dos cybermanos recebam o mesmo grau de importância que a musica eletrônica feita na Europa e nos Estados Unidos. E enquanto periferia aprende que computadores podem fazer arte, o gueto chic deslumbra-se com a sua própria alienação, fingindo que ao seu redor nada acontece. Pelo menos até o próximo modismo.


Fonte: http://kfl.blogspot.com/