quinta-feira, 24 de abril de 2008

Marxismo idealista? II

Vamos por partes.


O Fazer.
Por que começar com o fazer? Porque ele é que importa, porque a vida é Cotidiano, porque a vida somos nós em relação com o mundo. E isso é Fazer.
Eduardo Coutinho faz, Dalai Lama faz, Ghandi fez, Martin Luther King fez, Lennon fez, cada um do seu jeito, cada um com seu talento. Minha mãe fez, e não a nada dela impresso, gravado, filmado, fotografado. Alguém, agora mesmo, em alguma cozinha faz. Fazem o que? Fizeram o que? Com seus talentos? Coutinho com seu talento pra fazer filmes, Lennon de fazer música/poesia, Martin Luther King de falar, minha mãe de amar? Transformaram a vida, que é Cotidiano, que é fazer, deles e de outros. Essa não é uma responsabilidade só deles é de todos.
Mas meu talento não é amar como minha mãe, não é cozinhar como meu pai ou minha sogra, não é fazer filmes, não é escrever, não e cantar nem dançar (embora sonhasse desde pequena em ser bailarina, não sonham isso todas as meninas?). O que eu sei fazer? Sei indignar-me, sentir raiva, polemizar. O que é um incomodo, um tormento, uma caco de vidro no pé, que me impede de seguir em frente. Mas, posso transformar isso em algo produtivo, será que não? Será que não posso transformar isso em algum fazer que resulte numa transformação?
Não sou budista, não sou Iogue, não nasci na Índia. Todas as tentativas de me aproximar desse “outro” (se é que existe um outro?) foram inúteis. Nasci no Ocidente, na periferia do mundo, é certo, mas no Ocidente. Na juventude li V de Vingança, Watchman, Asilo Arkham. Ouvi Rage Against the Machine, O Rappa. Filmes que gosto: Matrix, Clube da luta, V de Vingança. Essas são minhas referências culturais.
Admiro a sensibilidade poética de Walter Benjamim, mas a ironia azeda de Marx é o que me seduz. Admiro a paciência e a paz de Dalai Lama, mas é a força de Fidel que me seduz. Admiro a retórica séria e comprometida de Said e Barenboim, mas é a raiva do Hamas que me seduz. Essa sou eu. E não posso apenas sentar em casa cheia desse veneno e não colocá-lo em ação. Não é a violência uma forma de amor represada? Não pode ela também fazer? Lenin não fez o mundo, Fidel não fez o mundo?

A Teoria
Por que só agora a teoria? Porque aquilo que sou define os instrumentos que uso, assim como aquilo que sou dá o tom do meu Fazer. Se é o veneno de Marx que me seduz, com ele fico. Mas para me fazer entender melhor, e para mostrar que com “tudo que é sólido desmancha no ar” Marx descreveu a lógica desse grande Leviathã, vou usar Jameson. Vale lembrar que o texto de onde tirei o excerto está cheio de pontos polêmicos e não diz respeito à teoria marxista, mas a possibilidade de uma teoria do vídeo e o vídeo experimental como forma ideal de expressão num mundo onde “tudo que é sólido desmancha no ar”.

“Era uma vez uma coisa chamada signo que, quando apareceu, na madrugada do capitalismo e da sociedade afluente, parecia relacionar-se, sem nenhum problema, com o seu referente. Esse apogeu inicial do signo – momento da linguagem referencial, ou literal, ou das asserções não-problemáticas do assim chamado discurso científico – deu-se por causa da dissolução corrosiva das formas mais antigas da linguagem mágica por uma força que chamaria de reificação, uma força cuja lógica é a da separação violenta e da disjunção, da especialização e da racionalização, de uma divisão do trabalho taylorista em todos os domínios. Infelizmente, essa força – que fez surgir a referencialidade tradicional- segue adiante, sem se deter por nada, já que é a própria lógica do capital. Então, esse primeiro momento de decodificação ou de realismo não pôde durar muito tempo; por uma inversão dialética, ele mesmo se tornou, por sua vez, objeto da força corrosiva da reificação, que entra no domínio da linguagem para separar o signo do referente. Essa disjunção não abole completamente o referente, ou o mundo objetivo ou realidade, que ainda tem uma existência esmaecida no horizonte, como uma estrela diminuída ou um aviãozinho vermelho. Mas sua grande distância do signo permite que este viva o momento de autonomia, de uma existência relativamente livre e utópica, se comparado com seus antigos objetos. Essa autonomia da cultura, essa semi-autonomia da linguagem, é o momento do modernismo e do domínio do espírito que reduplica o mundo sem ser totalmente parte dele, desse modo adquirindo certo poder negativo ou crítico, mas também uma certa futilidade de outro mundo. Mas a força da reificação que fora responsável por esse novo momento tampouco para aí: em outro estágio, potencializada, em uma espécie de reversão da quantidade pela qualidade, a reificação penetra o próprio signo e separa o significante do significado. Agora a referência e a realidade desaparecem de vez, e o próprio conteúdo – o significado – é problematizado. Resta-nos o puro jogo aleatório dos significantes que nós chamamos de pós-modernismo...”[1]

Gosto de pensar esse excerto não exatamente como o próprio autor coloca, como momentos distintos, sendo o último a característica do “capitalismo tardio”. Gosto de pensá-lo como imagem da “Máquina do mundo”. Vamos citar jholland:

“Enquanto isso, como você bem disse, a história segue, pessoas nascem, são felizes, infelizes, amam, odeiam, assumem o poder, perdem o poder, fazem guerras, morrem etc etc., enfim, infinitas coisas ‘DE N FORMAS DIFERENTES’ acontecem, transmutam-se, modificam-se. A história segue, mas a teoria não acompanha isso. Perde a singularidade. As pessoas estão vivendo, nascendo, amando, se relacionando e morrendo de "n" formas diferentes, porém tudo é uma manifestação do mesmo fetichismo da mercadoria, nada de essencial mudou etc etc”.
[2]

De fato, a “história segue”, inclusive de forma mais rápida. Nesse sentido podemos dizer que o capitalismo livrou o homem dos “grilhões da tradição” e, assim, possibilitou a criação constante do novo. Vejamos: a reificação, ou a perda de referências – no pré-capitalismo eram os mitos criadores, no capitalismo nascente o cientificismo e o positivismo -, o”tudo que é sólido desmancha no ar” é o que possibilita a criação do novo! Essa é o grande paradoxo do capitalismo, ai reside sua fraqueza (aposta de Marx), mas também sua força. Por que também sua força? Porque se ele abre o sistema para a criação do novo, aliás, melhor seria dizer que ele depende da criação do novo, ele também, justamente por conta dessa dependência, o engloba, volta a reificá-lo. Assim a teoria não ignora isso, como afirma jholland, pelo contrário admite que a “história segue”. O problema e o que sistema, com sua força reificadora , também “ segue adiante, sem se deter por nada, já que é a própria lógica do capital”. Ignorar isso é perigoso: Che virou camiseta, Ghandi virou filme de Hollywood, o Situacionismo virou espetáculo. Essa é a grande força do capitalismo e precisamos estar vigilantes. Estar vigilantes não é ser fascista.
No entanto podemos voltar a pensar com Marx e inverter a equação:, se a reificação é a grande força do capitalismo, é também seu carrasco, pois tudo pode sempre ser novo! Por isso afirmei que a mudança pode vir sim, como um vírus, como uma doença, do seio do capitalismo, por que ele é aberto por natureza, ele exige essa abertura.
Daí decorrerá inúmeras questões interessantes, que podem vir da fusão de teorias que são completamente dispares e que já foram discutidas aqui nesse blog – como a liminaridade de Victor Turner, a deriva de Debord e Lefebvre, a sociologia das emoções etc. -, mas que prefiro deixar para uma discussão em outro post.

“Pensar contra si mesmo”
Por que pensar contra si mesmo? Porque se sou aquela descrita na primeira parte do texto, é claro que dentro de mim borbulham contradições. E se, como a raiva, isso é um incomodo, um caco de vidro que não me deixa seguir adiante, pode também ser bom se aprender a “pensar contra mim”.
Não só para deleitar opositores, mas também pra deixar claro que quem escreve nunca está cheio de certezas, deixo aqui uma provocação.Penso – inspirada por Rancière[3] – que se as teorias (o autor fala na verdade em vanguardas estéticas) não só criam uma ficção do real (ficção necessária, não no sentido de simulacro), criam também o que ele chama de “hetero-topias”, que voltam ao “real” (que seria interessante encarar aqui como a vida cotidiana) transformando-o.Enfim, se as teorias voltam ao real, então, de fato, devemos assumir a responsabilidade quando colocamos no papel a força reificadora do capital, porque podemos com isso ajudar a construí-la... será?

[1] JAMESON, FREDERIC. “Surrealismo sem inconsciente”. In: Pós-modernismo: a lógica do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996, p. 117-118.
[2] http://diacrianos.blogspot.com/2008/04/marxismo-idealista.html - comentário postado em 22 de abril de 2008, às 16:05.
[3] RANCIÉRE, JACQUES. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34.
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Comentários de jholland:
Um belo texto, sem dúvida !
Antes de fazer minha observação, recomendo, para quem se interessar pelo tema, a leitura dos diversos comentários à postagem "Marxismo Idealista ?", postados aqui mesmo neste Blog. Creio que uma compreensão maior do assunto aqui abordado requer a leitura desses comentários, quanto ao mais, porque não pretendemos nos repetir em demasia !
Em relação a esse belo texto, tenho poucas observações a fazer. Se é verdade que divergimos, também é igualmente verdade que há muitos pontos de convergência.
Creio mesmo que a questão toda se prende aos "diversos níveis" da análise, pois, como a linguagem é sempre traiçoeira, também somos desatentos, e, por vezes, oscilamos, ora em um nível mais profundo, ora menos profundo de análise.
Explico.
Não há dúvida que o Capitalismo se transformou, sendo exatamente esse o ponto inicial da discussão toda. Para quem ler o texto acima, poderia ficar a impressão que defendo a tese oposta. Justamente o contrário. Havia inicialmente proposto - em tom provocativo, é certo - que abandonássemos o termo "Capitalismo", tal seria a diferença entre o "padrão" sócio-cultural hoje dominante e aquele existente até a II Guerra Mundial, mais ou menos. Esse foi o início da discussão, se me lembro bem.
Entretanto, a discussão evoluiu - e evoluiu bem ! - e nos aprofundamos mutuamente nas análise e opiniões. Se para mim, o materialismo histórico poderia ser (provocativamente) chamado de idealista, não é porque eu tenho algo contra as concepções idealistas, mas sim porque me parece bastante irônico que uma concepção que se diz "histórica" proponha a imutabilidade de sua "visão".
Ora, se há algum mérito em Marx, este é sem dúvida, de propor um retorno à fusão prática-teoria, ou seja, ter visto que a separação pensamento-ação é, na verdade, fruto de uma cisão superável. Não é por outra razão que Lacan disse ser "Marx o inventor do sintoma". Portanto, creio que se vivo fosse, Marx não seria marxista, pois certamente teria recepcionado as diversas contribuições teóricas que se sucederam desde sua morte além, é claro, de verificar a mudança na "dinâmica do sistema". Fico com Cornelius Castoriadis nesse ponto: para sermos fiéis à "essência" de Marx (a fusão prática-teoria), não podemos ser complacentes com uma teoria que fracassou na prática. Abandonêmo-la e fiquemos com sua essência, aprofundando, o máximo que pudermos, o nosso processo de lucidez.
Chegamos, então ao texto de Lyotard, assunto já bastante debatido e ilustrado por inúmeras postagens neste mesmo Blog. Não é assunto tão novo esse da autonomização dos signos etc. É a Sociedade do Espetáculo, também brilhantemente analisada por Deleuze, Baudrillard (A Sociedade de Consumo, entre outros) entre outros autores (inclusive Simmel e Weber).
Quero ressaltar que se marx não foi pioneiro em encontrar a alienação, encontrou se movimento específico, num mundo específico, o seu. Assim como Debord, seguido de Baudrillard, Deleuze e Lyotard não "descobriram" a autonominazação dos signos, em Marx já estava dito "tudo que é sólido desmancha no ar". Então não sei porque esses autores estariam de fato "mudando o paradigma". Seu diagnóstico está amplamente amparado naquele de Marx. E não entendo porque pós-alguma coisa (pós-estruturalistas, pós-modernistas, pós-muro-de-Berlim, pós-trololó) têm tanto medo assim de Marx. Não entendo porque é preciso o tempo inteiro negá-lo quando estão a falar o que o velho barbudo já disse.
Mas eis que, nesse nível (a alienação e suas origens; o dominio do conceito, do simulacro; a cisão pensamento-ação etc etc), o que havia dito é que, em absoluto, essa constatação não é nova, tendo sido já examinada pelos antigos gregos, (e até por índios que tomaram contato com brancos) e, bem antes deles, pela filosofia indiana, há mais de 2.500 anos atrás ! Uma questão antiga e objeto de inúmeras, profundas e essenciais reflexões e, sobretudo, vivências.
Então, ficamos assim: como fenômeno, a alienação não é nova, nem particular ao Capitalismo.
Se alienação não é coisa nova, não há como negar que ganhou outras cores. Se algum tipo de cisão sempre intrigou outras sociedades e filosofias - cisão entre corpor e alma, entre agir e pensar, entre sentir e falar, o que seja - a cisão aqui ganha função institucionalizante. Mudanças sempre houveram, talvez movidas por essas inquietantes cisões, o fato que essas mudanças trouxeram também mudanças nas formas de viver, nas formas cotidianas e nas mentalidades. Sempre houve história, nesse sentido. Mas quando essa alienação passa a ser engrenagem do sistema, bem como suas contestações, quero dizer, quando o sistema faz das mudanças suas engrenagens, ora essa é uma forma peculiar de alienação, posta para funcionar de diferntes formas e de diferentes intensidades. Repito, não assumir essa peculiaridade é perigoso.
E, portanto, é facilmente verificável que sua superação nada tem a ver (ou muito pouco a ver) com o combate a manifestações específicas do Capitalismo.
A sim, ela tem a ver com as formas específicas que alienação ganhou no capitalismo pois é ela que nos escraviza e ela que vem cada vez mais paralizando nossas vidas, nos tornando engrenagens numa "máquina do mundo". O consumo, a paranóia, a anorexia, a depressão, são sintomas típicos dessa nossa alienação, desse nosso tempo. Negar isso é negar que somos históricos.
Se é verdade que hoje a forma-mercadoria exerce uma importante influência sobre o modo ou forma de manifestação da alienação atual, isso não significa que a alienação em si seja essa forma. Uma coisa é o modo como a madeira pode ser trabalhada; outra é a madeira em si (para ficarmos em um exemplo do gosto dos marxistas). Há singularidades no Capitalismo, sem dúvida e, como disse acima, já havia proposto isso com muita ênfase. Porém, se a discussão for: Como acabar com a alienação ?
A resposta não está diretamente implicada nas manifestações típicas do Capitalismo. A alienação se manifestou de diversas formas ao longo da história, mas nem por isso deixou de ser "alienante". E continua a se manifestar e a operar até os dias de hoje.
Em suma, poderia dizer, embora um tanto grosseiramente, que o Capitalismo é uma "espécie", um subproduto, uma manifestação de um fenômeno mais amplo, que é a alienação. Se conseguíssemos desalienarmos a todos, o Capitalismo ruiria no mesmo instante. Porém, o inverso não é verdadeiro: o combate a instituições típicas do Capitalismo daria ensejo apenas a uma nova forma histórica, também alienada. Espero que isso fique mais claro até o fim deste comentário.
Quando disse que a vida segue e que a teoria não alcançava isso, quis simplesmente colocar as coisas nesse nível de profundidade: a teoria (ou melhor, o pensamento) pode, quando muito propor, constatar, imaginar, supor que algo se move, as singularidades existem e as generalizações são falaciosas. E que a alienação existe.
Engraçado, você fala que o marxismo é a-histórico, mas propõe uam teoria da ailenação que mais universalizante. Isso eu não entendo, por favor, explique se estiver errada.
Porém, esse pensamento não tem o poder de alcançar essa vida que, como bem observou Shaka, deve ser sentida, apreendida de uma outra forma, não analítica. E, assim, esse pensamento - e qualquer ação, inclusive política ou mesmo artística, que derive apenas do PENSAR - não tem o poder de superar a alienação.
Somente quando conseguimos nos desvencilhar desses condicionamentos - inerentes ao PENSAR - é que superamos a alienação, em seu sentido mais profundo.
O pensamento gera pensamentos. Esse é o produto normal dessa atividade mental. Pensamentos, conceitos, emoções (reativas a pensamentos gerados por outros pensamentos), novos pensamentos etc etc. Isso não é a vida. Isso não é o existir. Isso não é nem mesmo a mente.
Quando nos identificamos com o pensar e seus produtos, alienamo-nos.
Essa identificação é que produz o fenômeno, não a forma-mercadoria, que é uma manifestação daquela.
Para finalizar pergunto, o que é o pensar, o agir, o existir, o sentir, e o viver. Se não são TUDO a vida, são esferas autonômas que não se conversam?
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Novo comentário de jholland acerca das observações de Shaka (em vermelho):
1) Acerca do seguinte comentário de Shaka:
"Quero ressaltar que se marx não foi pioneiro em encontrar a alienação, encontrou se movimento específico, num mundo específico, o seu. Assim como Debord, seguido de Baudrillard, Deleuze e Lyotard não "descobriram" a autonominazação dos signos, em Marx já estava dito "tudo que é sólido desmancha no ar". Então não sei porque esses autores estariam de fato "mudando o paradigma". Seu diagnóstico está amplamente amparado naquele de Marx. E não entendo porque pós-alguma coisa (pós-estruturalistas, pós-modernistas, pós-muro-de-Berlim, pós-trololó) têm tanto medo assim de Marx. Não entendo porque é preciso o tempo inteiro negá-lo quando estão a falar o que o velho barbudo já disse."
Para mim não se trata de desqualificar Marx, mas de "desfetichizá-lo" para aqueles que, tendo-o como uma personagem mítica, deu origem a muitos imaginários sangrentos. Porém não quero me alongar nessa questão. Em relação ao "tudo que é sólido..." - igualmente, trata-se de abordagem antiquíssima, inclusive no Ocidente. Lembremo-nos, para ficar apenas em um exemplo, de Heráclito. E na India, o Budismo tem como um dos temas centrais a IMPERMANÊNCIA. Para ficarmos apenas em um aspecto, a impermanência adquire caráter de ilusão justamente quando "reificamos" (estou tendo traduzir os termos, embora de maneira um pouco grosseira): apegamo-nos a tudo aquilo que é impermanente, que são ilusões etc. Tal viés re-entrou no Ocidente por meio do Greco-Budismo etc.
Ora, quando uma cultura se torna mais conceitual, mais escrava do pensamento (e das teorias), tende a ficar mais impermanente, mais fluida, menos alicerçada, mais dependente, mais separada, mais alienada. Para o Budismo - e algumas concepções antigas - não há nada de surpreendente nisso.
Mas não creio que seja este o tema da discussão...
2)"Se alienação não é coisa nova, não há como negar que ganhou outras cores. Se algum tipo de cisão sempre intrigou outras sociedades e filosofias - cisão entre corpor e alma, entre agir e pensar, entre sentir e falar, o que seja - a cisão aqui ganha função institucionalizante. Mudanças sempre houveram, talvez movidas por essas inquietantes cisões, o fato que essas mudanças trouxeram também mudanças nas formas de viver, nas formas cotidianas e nas mentalidades. Sempre houve história, nesse sentido. Mas quando essa alienação passa a ser engrenagem do sistema, bem como suas contestações, quero dizer, quando o sistema faz das mudanças suas engrenagens, ora essa é uma forma peculiar de alienação, posta para funcionar de diferntes formas e de diferentes intensidades. Repito, não assumir essa peculiaridade é perigoso."
Nenhum problema em relação a isso. Encontro-me de acordo quanto ao fato de nossa cultura ser singular em tudo ("tudo" aqui no sentido das "manifestações"), conforme já disse acima.
3)"A sim, ela tem a ver com as formas específicas que alienação ganhou no capitalismo pois é ela que nos escraviza e ela que vem cada vez mais paralizando nossas vidas, nos tornando engrenagens numa "máquina do mundo". O consumo, a paranóia, a anorexia, a depressão, são sintomas típicos dessa nossa alienação, desse nosso tempo. Negar isso é negar que somos históricos."
Igualmente, encontro-me de acordo, conforme disse acima. São aspectos da alienação que adquire, em nosso mundo, manifestações singulares e "históricas" - se voce preferir esse termo. Vou até além, pois acho o termo "histórico" algo generalizante. Podemos descer até a um nível mais singular, "biográfico", "individual" etc. Mas o que é importante salientar é que o combate às manifestações do Capitalismo (as instituições etc) não têm o poder de eliminar a alienação, mas, quando muito (se a ação for muitíssimo poderosa, por ex, uma grande Guerra, uma grande alteração técnica, uma grande crise sistêmica etc), alterar suas formas, configurações, podendo até mesmo reforçar a alienação, como parece estar ocorrendo no presente momento histórico. Nãoi creio que devamos, portanto, reduzir a História tão somente a uma escolha: elienação x não-alienação. As diferentes formações históricas, as diferentes biografias dos indivíduos, são um fluxo inesgotável e riquíssimo, embora "alienadas", em sua maioria. Daí voltamos àquilo que estávamos discutindo (a partir da minha provocação): podemos até imaginar que já estamos em outra cultura, muito embora até mais alienada...Não podemos perder as singularidades de vista, muito pelo contrário: o aumento da lucidez e da percepção nos abre para o fluxo inesgotável, realçando sua infinita diversidade.
4)"Engraçado, você fala que o marxismo é a-histórico, mas propõe uam teoria da ailenação que mais universalizante. Isso eu não entendo, por favor, explique se estiver errada."
Como já disse, não tenho problema algum com concepções a-históricas, nos termos que coloquei acima. Entendo que somos um eterno devir e, nesse sentido, somos impermanentes. Porém, a mente - como um todo, luminosidade essencial, fonte de todas as manifestações - não é impermanente. No Ocidente - pelo menos modernamente e até onde eu sei - creio que quem chegou um pouco (um pouco hein !) próximo disso foi Deleuze (mas posso estar enganado, pois não õu especialista).
5)"Para finalizar pergunto, o que é o pensar, o agir, o existir, o sentir, e o viver. Se não são TUDO a vida, são esferas autonômas que não se conversam?"
O "existir, o sentir e o viver" são por sua conta. Falei em "pensar" e seus subprodutos. O existir, o viver não são produtos do pensamento. Esse é o ponto principal. O problema surge, como disse, na identificação do PENSAR com o Ser, com a vida, o existir. Talvez possa resumir assim: "a vida (a percepção, o existir e, portanto, o agir) está colonizada pelo pensamento." Essa é a origem da fetichização, do simulacro, da conceitualização, do eterno jogo etc.
O que quero ressaltar é o seguinte: enquanto estivermos colonizados pelo pensamento, enquanto nossas ações, nosso existir surgirem, forem elaborados dentro dessa esfera, estaremos presos no jogo de condicionamentos. E nesse sentido, a "alienação" persiste. Voce pode mudá-la de forma, da mesma forma que os pensamentos se alteram, são fluidos. No conceito cabe tudo. Por isso, o Sistema Capitalista - conceitual por excelência - é um "código aberto". Enquanto sua oposição for meramente "pensada" - no sentido de nascer do pensamento-, estará simplesmente reforçando o sistema alienante.
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shaka diz:
Excelente debate! Excelente resposta!
Mas... hehehe ;)
1) Vou concordar com você, "tudo que é sólido" etcetc é velha conhecida da humanidade. Isso implicará dizer que é uma condição humana "universal", certo? Entretanto, sua fusão profunda com uma lógica específica de produção da vida também material é característica dos tempos modernos, ou não? E, acredito que isso dá um tom ainda mais sombrio para nossos tempos, nisso você concordou, certo? Assim, pode me chamar de "marxista fascista" (embora eu fique muito chateada de ser aproximada de figuras como Hitler, Mussolini, Franco etc. Se for pra me aproxima de algum "fascista" que seja um "marxista", Fidel.). Voltando: pode me chamar de "marxista fascista", mas pra mim a teoria não está morta, e a urgência de engajamento - com tamanha injustiça MATERIAL mesmo, com um círculo de poder inclemente, incapaz de compaixão e cujo o único interesse é ECONÔMICO - em busca de justiça, igualdade material de oportunidades etc., prefiro estar ao lado de uma teoria ainda alienada mas que busque mudanças , mesmo que seja para outro modo de alienação (acho que um dia você mesmo me falou isso). A crueldade com que caracteriza nosso mundo merece ser trocada por outra ordem de coisas. Não podemos desistir porque outras tentativas falharam. Concordo com você que temos que ver onde essas tentativas falharam. Mas gostaria de arriscar uma primeira observação: nenhuma delas conseguiu de fato mudar essa as característica que alienação assumiu no mundo moderno, nem que fosse por outro tipo de alienação.
2) De novo sobre viver e pensar: pensar não faz parte da vida? é alienante? As implicações disso são estranhas... Se aceitar tal toda a tarefa que njos propomos aqui é inútil e minha biblioteca é inútil (talvez não, talvez sirva pelomenos como gozo). O gozo, pelo menos, faz parte da vida. Ou o gozo como o conhecemos também é alienante?



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Novos comentários de jholland:
Primeiro, abro um parênteses:
(Novamente, vejo uma confusão de "níveis": há um nível mais profundo, que diz respeito à eliminação da alienação como um todo; outro nível, diz respeito às transformações econômicas, políticas - as manifestações no mundo "históricas" etc. Essa confusão foi provocada, no mundo moderno (não como origem dessa idéia, mas como propagação ideológica dominante),pelo iluminismo, incluindo aqui alguns de seus filhos, tais como o hegelianismo e o marxismo. Hegel tentou refundar uma cosmologia, um sistema holístico (recuperação do sentido da existência, uma totalização), por meio da razão (tomada aqui no sentido mais estrito, racionalidade, formulada no âmbito do pensamento). Marx degradou ainda mais esse equívoco, tentando formular uma cosmologia por meio da transformação material (portanto a partir de uma interpretação PENSADA - e uma vivência a partir dela - do mundo). Diria que o paradigma Ocidental repousa grandemente nessa identificação que, internamente, (no nível psíquico, se voce preferir) diz respeito à identificação do pensamento com o existir (note bem: IDENTIFICAÇÃO); e do Ego como instância privilegiada onde esse existir é "formulado" (vontades egóicas, deSejos egóicos, identificações egóicas, identidades egóicos etc). Portanto, nesse nível de indagação ("Como acabarmos como a alienação?" - tomada como um todo), há um equívoco fundamental na abordagem. Podemos, como disse, modificar os modos e formas de hierarquia, de relações de poder, de desigualdade etc. Porém, enquanto essa cisão mais fundamental persistir, não há "liberação" profunda, apenas modificações de forma - de poder, de hierarquia etc - como disse acima.)
Fecho parênteses.
Respondendo à sua pergunta:
1) a sua pergunta (se a impermanência, se o "tudo que é sólido..." teria assumido uma forma preponderante somente no Capitalismo) é complicada, pois, novamente, poderá redundar numa confusão de linguagem. Sim, porque se eu afirmar - como vc - que de fato, o sistema está mais egóico, mais conceitual e mais fluido - como de fato penso, embora possa estar equivocado - isso não significa, em absoluto que as outras formações sócio-históricas também não repousavam nessa mesma impermanência, alienação e cisão. Há especificidades e singularidades que não dizem respeito apenas a essa dinâmica e que moldam a cultura - e até mesmo cada indivíduo. Voltamos ao meu parênteses acima. Se vc está interessada nas especifidades do Capitalismo, dentre outras coisas, tudo bem. Mas se vc está interessada somente na eliminação da alienação,sendo essa sua preocupação central, não será no combate às especificidades do Capitalismo que vc encontrará a resposta (mas quando muito informações úteis sobre como essa alienação opera, se materializa, como ela se manifesta - como aliás fizeram, em outros tempos, inúmeros filósofos e principalmente sábios não-filósofos).
Ainda em relação a esse tópico, tenho mais algumas observações: a) em primeiro lugar, naquele nível, digamos, mais histórico, creio que o sistema já está mudando sua forma de alienação. Aqui voltamos para o início da discussão e remeto aos comentários da postagem "Marxismo Idealista ?". Embrora a alienação persista, ela mudou de forma. Quando vc diz que nenhuma teoria ou prática tocou na forma da alienação capitalista, vejo um equívoco, pois novas formas de criação de identidades, de relações de poder, de relações com o corpo, com a natureza etc estão se formando bem a nossa frente - sem que isso signifique, claro, o fim da alienação, como já disse. Penso que há um equívoco mítico na sua formulações, pois ela parece pressupor que se alienação persiste, nada de significativo mudou etc etc. Voltamos ao inicio do debate, acerca das singularidades e vitalidades da vida (alenada), das sociedades (alienadas), das biografias (alienadas), dos amores (alienados) etc.
b)em segundo lugar, buscar uma teoria (alienada)que mexa com nossa cultura (aienada) pode ser ainda mais perigoso, como a ideologia marxista e fascista provou. Um pensamento que busque a totalização a partir de um ponto limitado da existência (o próprio pensamento) redundará em aumento do recalque e vasto derramamento de sangue. Já escrevi sobre isso, lembro-me, quando estudamos Hegel. Tentarei explicar melhor: um pensamento (alienado, cindido, formulado por alguém recalcado, como a maioria de nós) é legítimo desde que não se pretenda totalizador da VIDA. Como disse acima, Hegel tentou refundar uma totalidade a partir de um ponto limitado. O resultado disso é totalitarismo, necessariamente (repito: NECESSARIAMENTE). O ponto de partida, a "perspectiva" o "ponto de vista", já se encontra "alienado" e não é capaz de formular uma liberação. Tudo bem, todas as teoria fazem isso. O proble, enfatizo,´surge quando essa teoria SE PRETENDE TOTALIZADORA DA VIDA, refundadora de uma cosmologia. O pensamento aqui, TENTA COLONIZAR TODAS AS DEMAIS ESFERAS.
2) em relação à segunda indagação, como disse várias vezes, o problema não é PENSAR, mas na IDENTIFICAÇÃO desse pensar (e seus subprodutos) com o existir. É a velha questão do Ego etc. A bilbioteca é inútil, se voce deseja que ela resolva todos os seus problemas (por exemplo, o da alienação, como um todo). Não será nela que voce encontrará a felicidade. A biblioteca não tem o poder de refundar a cosmologia, um sentido à vida.

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dummy diz:

Acho que aqui podemos parar, porque como afirmei antes, os argumentos ficarão circulares. Você deixou claro seu ponto, e se eu não deixei o meu claro, também não tenho mais como tentar.

Resumindo, eu fico com minha teoria alienante e fascista e você com sua busca. Eu não posso acompanhá-lo, mesmo porque seu caminho pressupõe transformações de ordem pessoal, e você não pode acompanhar o meu, visto que é o contrário do que pretende.

Acho que nossa conversa servirá bastante àqueles que a acompanharem. Me colocou questões, é claro, mas eu continuo no meu caminho, alienado e fascista.... fazer o que. Como disse no começo da postagem, essa sou eu e não posso negar o que sou, alienada e fascista...

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Respota de jholland:

O debate foi muito bom e espero que seja proveitoso para todos aqueles que se interessam por temas tão importantes. Voce é uma debatedora "dura" e consistente e me exigiu bastante. Não há nenhum problema em mantermos nossas diferenças, ao contrário, para mim é um prazer ser colocado "a prova". Nenhuma verdade é absoluta e somos todos "impermanentes". De um jeito ou de outro, querendo ou não, estamos todos em um caminho, ainda que (muitos) não tenham consciência disso (não é o seu caso). Ultimamente, ando às voltas com um desdobramento dessas concepções e que me parece se impor de um modo ainda mais contundente e luminoso: trata-se do poder do "NADA".

Vamos nos falando !!!

Bjs

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dummy diz:

Eu uma debatadora dura!? hehehe

Acho você implacável!

Mas e esse assunto novo, o poder do NADA? Coloque uns post pra nós!