sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Algumas reflexões sobre o ambientalismo atual


Por: Henrique Cortez

(coordenador do EcoDebate)



"Se realmente acreditamos no desenvolvimento sustentável, se apoiamos e defendemos um outro modelo de desenvolvimento, então devemos nos preparar em enfrentar restrições, limites e o condicionamento de nossos interesses individuais aos interesses de toda a sociedade, nacional e planetária.


Caso contrário, continuaremos meramente discursivos. Ou, dizendo de outra forma, seremos tão hipócritas quanto os políticos que elegemos
…"

(Henrique Cortez)



Já sabemos que o planeta passa por uma grave crise sócio-ambiental, mas nem sempre é claro que o ambientalismo também se debate com diversas questões conceituais, éticas e pragmáticas.

Desde a Conferencia de Estocolmo, em 1972 (leiam a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente Humano em http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/estoc72.htm ), inúmeras transformações sociais e econômicas, com destaque à globalização, também afetaram os militantes ambientais.

No Brasil atual, vivemos um momento estranho e, em certos momentos, esquizofrênico. Talvez porque existam muitas questões em aberto e com inúmeras respostas possíveis. Afinal, não existem soluções simples para temas complexos.

Não tenho a pretensão de ter as respostas e, pessoalmente, não creio que alguém tenha, mas acho que devo colocar em debate algumas destas questões, para que possamos refletir, discutir, questionar e, se possível, encontrar as melhores alternativas possíveis. Colocado o desafio, vamos lá…

• O ambientalismo é um movimento social? Se for, por que não consegue integrar-se na agenda comum dos demais movimentos sociais e populares?

É evidente que é um movimento social, mas creio que herdamos um equivoco de origem a partir do ambientalismo europeu, muito próximo dos movimentos pacifistas, mas sem ligação com as questões de cidadania.

A Europa já não precisa discutir os temas essenciais de cidadania, tão presentes nos paises em desenvolvimento. Precisamos nos preocupar com exclusão social e econômica; educação; saúde; emprego/renda; trabalho escravo/degradante; desenvolvimentismo predatório; direitos indígenas; quilombolas; populações tradicionais; reforma agrária, etc.

Raras ONGs ambientalistas conseguem traçar uma agenda comum com os agentes sociais e os movimentos populares como a CPT, o MST, o MAB, as organizações de defesa dos direitos humanos, dos indígenas, dos quilombolas.

Reafirmo que isto pode ter sentido na Europa, mas no caso do Brasil e demais paises em desenvolvimento isto é ilógico.

Felizmente a imensa maioria dos militantes ambientais já superou a fase inicial do movimento, baseado na defesa “das plantinhas e bichinhos”, mas acredito que precisamos dar um passo além de nossos companheiros europeus, que não precisam e não querem questionar o modelo de desenvolvimento de seus países.

No Brasil e nos demais países em desenvolvimento, adotamos um modelo de desenvolvimento socialmente injusto, economicamente excludente e ambientalmente irresponsável e este é o grande tema que nos aproxima de todos os demais movimentos sociais. Pelo menos deveria nos aproximar.

Se não questionarmos o modelo de desenvolvimento, ficaremos presos a temas meramente acessórios, em um ambientalismo de butique que não vai muito além de discutir as sacolinhas de supermercado ou fazer a separação do lixo reciclável.

Também não podemos deixar de lado o atual padrão de consumo, que é evidentemente insustentável. Consumo sustentável supõe grandes mudanças culturais, com significativos impactos sociais e econômicos.

Sugiro uma visita ao Relógio da Terra (http://blog.ecodebate.com.br/relogio-da-terra/ ) para uma compreensão do atual “andar da carruagem” do planeta.

Ainda sobre sustentabilidade de consumo, um exemplo simples, mas significativo, está na produção de automóveis. Uma agenda eficaz de combate ao aquecimento global exigiria que atual frota mundial de 800 milhões de automóveis fosse, no mínimo, reduzida à metade.

Mas isto traria um grande impacto econômico, com a redução da capacidade de produção da industria automotiva, e impactos sociais, com a redução de dezenas de milhares de empregos e uma grande redução na arrecadação de impostos.

Assim, evitamos o tema, simplesmente propondo automóveis mais eficientes, menos poluentes, com combustíveis “verdes” (se é que isto realmente existe). Enquanto isto, em 2007, serão produzidos mais de 25 milhões de automóveis.

Defendemos os agro-combustíveis de forma veemente, mas não questionamos o modelo oligarca de produção, a exploração de mão-de-obra e o aumento da fronteira agrícola. Em nenhuma hipótese os fins justificam os meios e com os agrocombustíveis não pode ser diferente.

Uma agenda ambiental, minimamente coerente, resultará em impactos sociais e econômicos em escala global. Se não compreendermos isto, continuaremos tratando câncer com aspirina. Ou pouco mais que isto.

Estas questões sem resposta são fortes argumentos para que nos aproximemos dos movimentos sociais e populares, que questionam e lutam contra estas seqüelas do modelo de desenvolvimento e de consumo.

A única diferença é que eles estão tratando dos temas e agindo em escala local e o ambientalismo deve agir em escala global porque a crise ambiental não reconhece fronteiras.

Reafirmo que não tenho as respostas, mas também reafirmo a minha convicção pessoal de que precisamos de uma ampla reflexão, de uma severa autocrítica no que fazemos ou propomos e de humildade para nos integrarmos aos demais movimentos sociais, companheiros de jornada por um outro mundo possível.

Ou, então, assumimos um mero e decorativo ambientalismo fashion, fazendo de conta que é o suficiente.


Ecologia do medo e epistemologia da catástrofe




Por: Henrique Carneiro

Os três últimos livros de um dos mais importantes marxistas norte-americanos, o urbanista e historiador Mike Davis, traduzidos recentemente no Brasil (Cidades mortas, Record, 2007; O monstro bate à nossa porta: A ameaça global da gripe aviária, Record, 2006; e Planeta favela, Boitempo, 2006), assim como a publicação de um novo, Apologia dos bárbaros: Ensaios contra o império, a sair neste ano também pela Boitempo (com apresentação de Paulo Daniel Farah), mais a reedição prometida para 2008, pela mesma editora, de Cidade de quartzo, são expressões de análises lúcidas e precisas das condições sociais e ambientais que nos esperam no futuro das próximas décadas.

Davis, membro da revista New Left Review, que lecionou planejamento urbano no Instituto de Arquitetura do Sul da Califórnia, e atualmente é professor de História na Universidade da Califórnia, em Irvine, vem tratando nessas notáveis obras de uma análise crítica das condições urbanas contemporâneas. Em Cidade de quartzo (Scritta, 1993), contou a história de Los Angeles, metrópole pósmoderna por excelência, nascida do nada, no deserto, para tornar-se uma cidade para automóveis, espalhada como a mais extensa mancha urbana do mundo. Em Holocaustos coloniais (Record, 2002), analisou as ondas de fome do século 19 e suas relações com o clima, o mercado mundial e as expansões dos impérios europeus na Ásia e África. Em O monstro bate à nossa porta (Record, 2006) e Planeta favela (Boitempo, 2006), se debruçou sobre dois dos mais terríveis cavaleiros do apocalipse: a pobreza e a peste.

É difícil não sentir um arrepio apocalíptico diante dos cenários catastróficos que se combinam: explosão de hiper-urbanização favelizada em megacidades, aquecimento global e pandemia. A fome, a doença, a guerra e a pobreza potencializam-se num complexo espantoso de desastres e tragédias anunciadas.

Ler Mike Davis é uma tarefa indispensável, mas extremamente sombria. O futuro que nos espera será terrível. Um “futuro exaurido”, em que bilhões de seres humanos vão viver amontoados nas maiores cidades que já existiram em um planeta no qual o aquecimento global, a poluição, o extermínio da biodiversidade e demais processos de decadência do século 21 serão anunciados na forma de ondas de calor, incêndios, inundações, pandemias, além, é claro, da violência e da guerra onipresentes.

Um profeta do apocalipse, dir-se-á. E não é para menos, pois como este crítico implacável do capitalismo e do imperialismo analisa em suas muitas obras, “tempos estranhos começam”.

Na turbulência do movimento juvenil dos anos 1960 na Califórnia, Mike Davis, nascido em 1946, tornou-se um jovem ativista da Students for a Democratic Society, a principal organização de política estudantil contestadora, e começou sua trajetória como um dos críticos mais radicais das condições da sociedade contemporânea. Mas, diferentemente da maioria dos jovens rebeldes brancos, que eram de classes médias e abastadas, Mike Davis foi aprendiz de açougueiro e caminhoneiro, antes de tornar-se um professor de planejamento urbano no Instituto de Arquitetura do Sul da Califórnia.

Sua obra já vasta começou com a análise de Los Angeles como a cidade síntese da civilização do automóvel, da especulação imobiliária, da mercantilização da água, da indústria armamentista, do entretenimento e da alta tecnologia, cujo presídio high tech em pleno centro da cidade num edifício de vidro e aço é um símbolo mais significativo que o letreiro de Hollywood. Mais tarde, abordou o fenômeno da cidade contemporânea, em que as megalópoles tornam-se pela primeira vez na história da humanidade o lugar de moradia da maioria da população e a área rural uma zona despovoada em todo o planeta. Essa expansão caótica é um sintoma mais profundo de uma ruptura da civilização humana com a sua interdependência da natureza.



O ponto de convergência da crítica de Davis é a noção de cidade, originalmente vista como um refúgio diante dos perigos da natureza selvagem e que se tornou hoje em dia o centro de todos os pavores e inquietações. A “ecologia do medo” visa compreender como a vida urbana tornou-se tão monstruosa. E não é para menos, já que diante do apocalipse anunciado é preciso cada vez mais pensar uma “epistemologia neocatastrofista para reinterpretar a história ocidental”.

Na tradição do pensamento marxista, a análise das condições habitacionais dos pobres das cidades inglesas foi o ponto de partida de Friedrich Engels, em A condição da classe trabalhadora na Inglaterra (1845). Nos dias de hoje, essa tradição crítica do marxismo em relação à crise urbana refloresce na obra de Mike Davis. Sua perspectiva ambiciosa aponta para a necessidade de uma “ciência urbana realmente unificada”, a qual ainda mal podemos vislumbrar, mas que deveria tentar compreender a dialética entre a “cidade e a natureza”.

A conexão da crítica ao crescente caos urbano com a denúncia da escala gigantesca do ecocídio que está em curso, aliada a uma arguta análise da política interna norte-americana, assim como das relações internacionais, leva Davis a mostrar como a catástrofe da natureza não se separa das condições da exploração capitalista e da dominação imperialista mundial, cujo fundamento é uma doutrina de terror militar.

Para isso, uma boa data a ser lembrada é 10 de março de 1945. O dia do maior morticínio que a humanidade já conheceu no “mais devastador ataque aéreo na história mundial”, quando duas mil toneladas de napalm e magnésio incineraram cerca de um milhão de habitantes de Tóquio.

Esse foi o coroamento (seguido, é claro, alguns meses depois, das bombas atômicas) de uma doutrina militar nascida na GrãBretanha, na década de 1920, quando Churchill era o secretário da guerra. Essa “doutrina Churchill” é a do “bombardeio moral”, ou seja, do terror aéreo contra populações civis. Ele começou a ser praticado no Iraque em 1920, quando a RAF (Royal Air Force) usou, além de bombas, gás mostarda. As populações coloniais foram as cobaias para o aperfeiçoamento do bombardeio terrorista contra civis, “a trajetória até Guernica, Varsóvia, Dresden e Hiroshima começou nas margens do Tigre e nas encostas do Atlas”.

O modelo da guerra pós-moderna, além da supremacia absoluta do poderio bélico e dos bombardeios com “armas inteligentes”, enfrentará a resistência na forma não de exércitos convencionais, mas de milícias travando “operações militares em territórios urbanos”. A insurgência do século 21 também terá como cenário as cidades. A “israelização” das táticas de combate “assimétrico” às milícias insurgentes se aplicará não só ao Iraque ou à Palestina, mas a qualquer rebelião potencial do futuro, com a visão panóptica dos satélites e aviões espiões, com armas eletromagnéticas e de microondas, além das já tradicionais armas nucleares, químicas e biológicas de destruição em massa. Esse cenário sombrio é definido por Mike Davis como “o estado de terror puro e simples: uma Assíria do século 21 com laptops e modems”.

Henrique Carneiro é professor do Departamento de História da USP.

Artigo enviado por Myron Régis, colaborador e articulista do EcoDebate e originalmente publicado pela Revista Cult