sábado, 24 de novembro de 2007

As possibilidades da língua

Alguns textos de Deleuze em Crítica e Clínica que permitem refletir sobre a linguagem e a literatura.

"... o escritor, como diz Proust, inventa na língua uma nova língua, uma língua de algum modo estrangeira. Ele traz à luz novas potêcias gramaticais ou sintáticas. Arrasta a língua para fora de seus sulcos costumeiros, leva-a a delirar. (...) O limite não está fora da linguagem, ele é seu fora: é feito de visões e audições não-linguageiras, mas que só a linguagem torna possíveis. Por isso há uma pintura e uma música próprias da escrita, como efeitos de cores e de sonoridades que se elevam acima das palavras. Beckett falava em 'perfurar buracos' na linguagem para ver ou ouvir 'o que está escondido atrás'. De cada escritor é preciso dizer: é um vidente, um ouvidor, 'mal visto mal dito', é um colorista, um músico". Prólogo, p.09.

"Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento... Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir... Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas encontrar a zona de vizinhaça, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, tal que já não seja possível distinguir-se uma mulher, de um animal ou de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa população". p.11

"Escrever não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, sonhos e fantasmas. Pecar por excesso de realidade ou de imaginação é a mesma coisa: em ambos os casos é o eterno papai-mamãe, estrutura edipiana que se projeta no real ou se introjeta no imaginário. (...) Mas a literatura segue uma via inversa, e só se instala descobrindo sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau... a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu". p.12-13

"Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a psicose não são passagens de vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado. A doença não é processo, mas parada do processo, como no 'caso Nietzsche'. Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto de sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde...". p.13-14

"A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a origem ou a destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações. (...) Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por esse povo que falta... ('por' significa 'em intenção de' e não 'em lugar de')." p.14-15

"... a literatura produz... uma espécie de língua estrangeira, que não é uma outra língua, nem um dialeto regional redescoberto, mas um devir-outro da língua, uma minoração dessa língua maior, um delírio que a arrasta, uma linha de feitiçaria que foge ao sistema dominante. (...) não há criação de palavras, não há neologismos que valham fora dos efeitos de sintaxe nos quais se desenvolvem. Assim, a literatura apresenta já dois aspectos, quando opera uma decomposição ou uma destruição da língua materna, mas também quando opera a invençao de uma nova língua no interior da língua mediante a criação de sintaxe. 'A única maneira de defender a língua é atacá-la... Cada escritor é obrigado a fabricar para si sua língua...' [citando André Dhôtel]". p.15