segunda-feira, 5 de outubro de 2009

A elite destrutiva


Entrevista com Mike Davis


"A riqueza moderna e o consumo de luxo estão mais murados e enclavados socialmente do que em qualquer momento desde 1890. De fato, a lógica territorial do neoliberalismo retoma os padrões mais extremos de segregação residencial e consumo zoneado". A afirmação é do urbanista e historiador estadunidense Mike Davis em entrevista a Luis Brasiliano do jornal Brasil de Fato, 24-09-2009. Mike Davis é autor, entre outros, dos livros Cidade de Quartzo (1990) e Planeta Favela (2006), ambos publicados pela Boitempo.

Eis a entrevista.

Existe uma relação entre o modelo recente de urbanização nos Estados Unidos e o fato da crise econômica ter começado com a falência do mercado hipotecário? Quais mudanças ocorreram nas cidades desde o início do colapso financeiro?

A crise atual nos Estados Unidos combina a imprudência do ciclo de negócios orientado pela política oficial (ou seja, decisões dos republicanos, a partir de 2001, para superaquecer a economia) com déficits insustentáveis na balança comercial, investimento público insuficiente e especulação destrutiva da terra nas áreas de subúrbio.

Após ter mais ou menos roubado de Al Gore as eleições de 2000, a administração George W. Bush, com a conivência do chefe do Federal Reserve [banco central estadunidense], Alan Greenspan, alimentou uma bolha imobiliária com baixas taxas de juros, frágil regulamentação e empréstimos indiretos maciços de credores asiáticos. A elevação dos valores de ações e propriedades disfarçou, temporariamente, a erosão do emprego e da segurança das famílias nos Estados Unidos. Tendo a teoria econômica tradicional em mente, a nação mais rica do mundo financiou uma série de gastos sem precedentes com dinheiro emprestado de um país em desenvolvimento e, ainda em grande medida, pobre, a China.

Como isso foi possível? Como as exportações de bens e serviços dos Estados Unidos perderam terreno na pauta de importações da Ásia, o déficit resultante foi equilibrado por massivas compras asiáticas de papéis do governo e de dívida privada estadunidenses. Os chineses, especialmente, toleraram o excesso de consumo e o desequilíbrio comercial dos Estados Unidos em troca de aumentar a sua fatia no mercado estadunidense e de um yuan artificialmente sub-valorizado. Enquanto isso, os bancos e as instituições de crédito hipotecário nacionais, que reciclaram dívida externa como crédito interno, perderam de vista as contradições estruturais subjacentes enquanto abraçavam a mágica fraudulenta de evitar riscos por meio de derivativos [contrato financeiro cujo valor deriva de um outro ativo].

A bolha poderia ter tido um lado positivo se o déficit comercial tivesse sido investido em infraestrutura urbana ou em habitações a preços acessíveis. Mas, ao invés disso, o boom hipotecário simplesmente subsidiou a construção excessiva de grandes casas e shopping centers a distâncias absurdas (100 quilômetros ou mais) dos locais de trabalho. Essa curta explosão nos valores imobiliários, ademais, foi usada como garantia para pagar os custos em elevação com transporte, mensalidades escolares e atendimento médico. Agora, a bolha estourou como uma bomba de nêutrons, deixando para trás uma cratera de 10 trilhões de dólares na riqueza nacional.

O epicentro geográfico do derretimento do valor dos imóveis tem sido o sudoeste dos Estados Unidos, ou seja, as periferias recentemente “suburbanizadas” de San Francisco, Los Angeles, San Diego, Las Vegas e Phoenix. O valor das casas nessas áreas caiu 50% e o desemprego, em alguns subúrbios, é maior que em Detroit [cidade recordista em desemprego nos Estados Unidos que, em julho, atingiu o índice de 28,9%]. De fato, a paisagem ícone da Nova Depressão é a um bairro de casas abandonadas em um deserto próximo a um shopping center fantasmagórico, vazio.

Qual a sua opinião sobre este início de governo Obama e o comportamento da esquerda estadunidense nesse período?

As celebrações acabaram. A euforia com a eleição de Obama está se transformando em desencanto com os democratas no poder. Em cada uma das quatro áreas nas quais a campanha de Obama prometeu reformas radicais – saúde, legislação trabalhista, política de imigração e aquecimento global –, a Casa Branca já cedeu terreno. De fato, o elemento chave da reforma em cada caso (seguro-saúde público e universal, um procedimento mais rápido e simples para saber se um sindicato representa a maioria dos trabalhadores que necessária para a sua criação, anistia para imigrantes sem documentos e uma taxa de carbono sobre indústrias e prestadoras de serviços públicos) foi ou abandonado pela administração ou neutralizado no Congresso.

Por enquanto, o governo Obama tem atuado decisivamente em apenas duas áreas: salvando Wall Street e promovendo uma escalada da guerra no Afeganistão/Paquistão. No fim do verão [no hemisfério norte], bilhões de dólares do fundo de ajuda do governo federal foram usados no pagamento de bônus para executivos do mercado financeiro ou em fusões e aquisições. Existe uma imensa irritação pública com relação ao fato de que os arquitetos da crise parecem ter sido recompensados, enquanto estadunidenses comuns continuam a perder seus empregos e casas. Há também uma apreensão com relação ao fato do candidato “anti-guerra” ter, aparentemente, decidido deixar milhares de soldados no Iraque, enquanto expande dramaticamente a guerra no entorno do Passo Khyber [na fronteira entre Afeganistão e Paquistão].

As ações e compromissos da administração, em outras palavras, estão desorganizando sua própria base social. A inesperada dificuldade de Obama em aprovar sua reforma da saúde (dificuldade inesperada exceto em seu ponto crucial, o atendimento público universal) parte tanto da desmoralização dos democratas quanto da gigantesca campanha publicitária de seus opositores corporativos. Enquanto isso, a direita do Partido Republicano, agonizante há alguns meses, está retomando terreno. Um presidente moderado que confessa que vai sempre se inclinar em direção ao vento predominante, agora, enfrenta um vendaval da direita com nada além de uma brisa em seu flanco esquerdo. Liberais e progressistas estão em um recuo tático, com elementos cruciais de seu programa já irremediavelmente diluídos ou indefinidamente adiados.

Além da crise econômica, o mundo enfrenta outras duas: a climática e a da gripe suína. Como o senhor avalia a forma com os organismos internacionais competentes (Nações Unidas, FMI, OMC e OMS) estão reagindo a elas?

Se a história se repete como farsa, então sob qual forma a farsa se repete? A questão necessariamente surge quando consideramos o processo de Kyoto e o seu sucessor, o novo tratado climático que supostamente irá ser elaborado em Copenhague (Dinamarca), em dezembro.

Em retrospectiva, Kyoto fez pouco mais do que bombear mais ar quente na alta troposfera. Infinitos estudos e debates apontam para resultados negativos: de fato, as emissões de carbono na última década aumentaram muito mais rápido do que previam alguns cenários para “o pior possível”. Copenhague, mesmo com a assinatura de estadunidenses e chineses, irá somente produzir uma outra rodada de promessas heróicas (80% de redução até 2050 e daí em diante) sem nenhum plano sério de implementação.

A crise econômica – que alguns esperam possa levar a um “keynesianismo verde” – apenas oferece inúmeras desculpas para aprovar ações ou continuações de práticas ruins. Assim, a legislação para comercialização de emissões de gases do efeito estufa de Obama está repleta de exceções para produtores de carvão e prestadoras de serviços públicos. Na Alemanha, supostamente a vitrine da redução de carbono, companhias públicas que são gigantescas queimadoras de carbono estão sendo autorizadas a recolher bilhões de dólares em aumento de taxas dos consumidores sem reduzir emissões em contrapartida. Não admira que tantos pesquisadores e ativistas estejam se tornando cínicos.

A ameaça de pandemia de gripe mobiliza a mesma combinação de retórica humanista e ação egoísta. Em poucas palavras, a Organização Mundial de Saúde abdicou da luta pela cobertura de vacina universal. Doze países ricos entesouraram quase a totalidade do estoque de antivirais existente e da produção potencial de vacina. E a Big Pharma [grupo de grandes farmacêuticas, com faturamento anual superior a 3 bilhões de dólares] conserva seu monopólio sobre medicamentos vitais cuja disponibilidade deveria ser um direito humano universal.

Resumindo, os países ricos não estão fazendo absolutamente nada para ajudar o mundo em desenvolvimento a se adaptar às mudanças climáticas ou construir defesas contra novas pragas. Pessoalmente, dou mais crédito para certos spans (“Você ganhou 10 milhões de dólares...”) do que para declarações solenes do G-8 ou do G-20.

Em São Paulo estão se multiplicando empreendimentos imobiliários com grandes investimentos em segurança destinados às classes alta e média-alta. Para onde apontam as cidades do futuro?

Nesta última geração, nós temos testemunhado uma extraordinária divisão moral e territorial entre os ricos e quase ricos do resto da humanidade. A riqueza moderna e o consumo de luxo estão mais murados e enclavados socialmente do que em qualquer momento desde 1890. De fato, a lógica territorial do neoliberalismo retoma os padrões mais extremos de segregação residencial e consumo zoneado. Por toda a parte, as elites estão recuando para santuários condominiais, arranha-céus fortaleza, cidades de lazer e réplicas muradas de subúrbios californianos imaginários.

O que pode ser dito além de que esses mundos de sonhos alimentam desejos – de consumo infinito, total exclusão social e arquitetura monumental – que são claramente incompatíveis com a sobrevivência ecológica e moral da humanidade?

Como o senhor descreveria o processo de criminalização da pobreza? Como responder a isso?

Culpar os pobres pela pobreza é a jogada mais velha do mundo. O princípio mais importante do liberalismo vitoriano [1837-1901], por exemplo, era que os moradores de favelas criavam seu próprio inferno através de seus vários vícios e da pura libertinagem. Demorou quase um século para os reformistas de classe média reconhecerem as causas estruturais do subemprego urbano e da habitação inadequada. A criminologia, no entanto, continua sendo eminentemente vitoriana. Policiais e funcionários do Estado, apenas com raras exceções, se recusam a reconhecer a lógica econômica e a inevitabilidade do que poderia ser chamado “crime de subsistência”.

Ainda assim, todo policial de rua, do Brooklyn [em Nova York] ao Rio de Janeiro, entende que o crime organizado faz seu recrutamento a partir da crise global da dignidade da classe trabalhadora masculina, na esteira da desindustrialização e do aumento da informalidade. Eles também sabem que as “guerras” contra as drogas e gangues se auto-perpetuam e nunca poderão ser vencidas. Sociedades urbanas, como o Brasil e a Califórnia, que optaram pelo super-encarceramento – construção de prisões ao invés de escolas –, escolheram um suicídio em câmera lenta. O enorme sistema prisional californiano (quase 200 mil detentos) levou o estado à falência e forçou drásticos cortes no ensino superior.

Nem que seja só para nos salvar, é hora de substituir o Velho Testamento pelo Novo. Precisamos de soluções radicais para a criminalidade de massa: efetiva descriminalização de narcóticos, um “processo de paz” urbano que inclua negociações com grupos de fora da lei, revisão civil das ações policiais, serviço comunitário em substituição a sentenças de prisão para criminosos não-violentos, programas educacionais e emprego para a juventude dentro da vizinhança, voto aos 16 anos e assim por diante.


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