segunda-feira, 16 de julho de 2007

O CINEMA, A LITERATURA, A EDUCAÇÃO E O MERCADO GLOBALIZADO NO INÍCIO DO SÉCULO XXI


(*) extraído de mnemocine.com.br/cinema/cinetxtapresent1.htm


Luiz Henrique da Costa



Luiz Henrique da Costa: Bacharel em Cinema, formado pelo Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense; Mestre e Doutorando em Ciência da Literatura, pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


De Arnold Hauser a André Bazin, de Georges Sadoul a Flora Süssekind é recorrente perceber o momento em que o cinema surge como algo que se descreve sobretudo a partir da dificuldade generalizada para compreendê-lo e conceituá-lo e do espanto que terá provocado— espanto esse que se estendeu de 1895, data oficial de sua invenção, até pelo menos 1911, quando David Wark Griffith, na americana Biograph, deslancharia o processo de consolidação, como gramática narrativa, das experiências dispersas de vários realizadores e escolas.[1]
Ponto culminante dos engenhos ópticos surgidos ao longo de todo o século XIX, o cinema, num primeiro momento, foi percebido como um filho legítimo da ciência, ora se afirmando como um instrumento de registro cuja “isenção” seria capaz de suplantar as imperfeições do olho humano, ora, em conseqüência mesmo de afirmar-se assim, favorecendo a evocação de miragens sobre “o espírito da modernidade” convenientes às aspirações das vanguardas. Na mesma medida, com a intervenção do ilusionista Georges Méliès, a partir de 1896, essa dupla percepção passaria a coincidir também com os acentos de “maravilha charlatã”, insinuando-se como uma atração a mais em meio à feira de elixires mágicos, sylphoramas[2] e ajeebs[3], e oferecendo-se, assim, como a nova obra com a qual reinventaríamos os dons de iludir que dão forma e substância à condição humana, de sorte a constituí-los como marcos iniciais da era midiática. E mais: não bastasse o trânsito entre a ciência, a celebração da irracionalidade e a ilusão dos espetáculos, era ainda convocado a servir de divisa com que se sublinhavam os afetos familiares dos lares mais abastados.
Vetores tão díspares, a família burguesa, os apelos modernizadores soprados desde a indústria e os cacoetes da tradição mundana, não erudita, dos cabarés, dos shows de variedades, dos cafés-concertos, antecederam em muito a nobre consolidação do cinema como “sétima arte”, o que só viria a acontecer na década de 1920. Até que se o aceitasse assim, contudo, o teatro, a pintura, a música e a literatura, em seus impasses e promessas de renovação, foram insistentemente buscados como referência tanto por realizadores quanto por aqueles que se aventuravam em esforços de crítica. Nomes como Ricciotto Canudo, Germaine Dulac, Louis Delluc, Léon Moussinac, Élie Faure, Abel Gance, Jean Epstein, René Clair, Fernand Léger tateavam no escuro em busca do paradigma mais perfeito para o objeto-não-identificado que manipulavam. Expressões como “drama visual”, “poema cinematográfico”, “sinfonia de luzes”, cunhadas por alguns deles, são emblemáticas dessa busca.
Mas, paradoxalmente, convocar o cinema aos domínios já consolidados e seguros das demais artes era também uma busca por reconhecer suas especificidades, por reconhecê-lo e afirmá-lo como linguagem autônoma, para o que vieram concorrer inovações técnicas capazes de ampliar suas possibilidades de expressão.
Os filmes sonoros, no final dos anos 1920, não constituíam mais uma novidade. Em 1889, Thomas Edison já conseguira produzir alguns balbucios rudimentares em laboratório. E, antes dele, os Lumière e Méliès já haviam obtido o mesmo efeito, camuflando a presença de atores atrás das telas no momento da projeção. Na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra e até na Escandinávia eram conhecidas formas de prestidigitar a sonoridade dos filmes. Mas, em todas essas experiências, a sincronia era difícil de se obter, e, constantemente, as vozes soavam estranhas, fanhosas ou simplesmente inapropriadas para os tipos que eram vistos na tela.
Eram dificuldades de ordem técnica, concretas, mas seu equacionamento já se anunciava, podemos ver agora, porquanto se o buscasse desde época tão remota. Havia, contudo, entraves econômicos, estes sim preponderantes, a retardar a sincronização efetiva e satisfatória de sons e imagens. Afinal, em que língua um filme produzido por Hollywood poderia ser assistido e entendido? Enquanto as produções permanecessem silenciosas, todo e qualquer filme se ofereceria como produto exportável, favorecendo as estratégias das distribuidoras estadunidenses que se espalhavam pelo mundo. No caso do Brasil, em particular, tais estratégias já tinham resultado numa profunda estagnação dos recursos técnicos e dos meios de produção, contrabalançada quase que exclusivamente pelo exercício de “cavadores”[4] que, espalhados pelo país, não descuidavam de praticar o cinema possível.
Quando, em 23 de outubro de 1927, The Jazz Singer [5] foi lançado, assinalou-se uma nova era na história do cinema, em que a falta de sincronia e a má qualidade das gravações puderam ser superadas. Em 1930, o cinema falado seria já uma tendência majoritária, senão única, em todo o mundo. O final da década de 1920 é um limiar definitivo da história do cinema; a passagem do cinema silencioso para o falado, como observa Jabor, é o instante em que prevalece a imperiosa necessidade de realizar
a narrativa fechada do idealismo romântico [...]. O cinema sem som poderia até evoluir para uma arte mais épica, evocativa, como esperavam tantos artistas visionários, como Eisenstein ou Carl Dreyer. Mas [...] sente-se que o cinema falado, além de ser uma necessidade de mercado, era também uma necessidade narrativa que a caretice do verismo internacional pedia.[6]
Conforme se queira, talvez se possa argumentar que, ao contrário do que afirma Jabor, o advento do cinema “coincide” com o fim de certa literatura romanesca, a da linhagem de Flaubert e de Stendhal; ou mesmo assinalar que o zoom e o flashback, nomeados e apropriados pelo cinema, são antes uma invenção daquela literatura que se encerra no século XIX, marcada pelos assomos de introspecção que o cinema faria subsumir aos encantos da imagem em movimento, da ação que se decompõe quadro a quadro, cujo norte é o deleite com a contemplação dos gestos e do comportamento alheio.
Mas é, por todo efeito, inegável que as expectativas com relação à narrativa, herança literária que nos legaram os olhos dos que pensavam o cinema naquele momento crucial, são hoje parte integrante e definitiva da linguagem cinematográfica; são causa e conseqüência de uma como que natural inclinação, por parte do leitor/espectador, a empreender a construção de nexos quaisquer com os elementos que se lhe ofereçam — os quais, por coesão meramente suposta que seja, permitem justificar ou reparar as lacunas ou incongruências de todo e qualquer relato. Nada, senão o reconhecimento dessa inclinação, explicaria, por exemplo, o impulso dos surrealistas de violentá-la com a superposição de signos própria daquele movimento; nada, senão a persistência dessa inclinação, justificaria seu esgotamento como proposta e como ação.
A experiência de montagem empreendida por Lev Kulechóv em 1919 é exemplar como ilustração dessa capacidade que tem o espectador de forjar narrativas por vezes alheias àquilo que contempla. Naquele ano, o cineasta soviético realizou um pequeno filme com apenas seis planos: prato de comida / rosto de um homem / criança brincando / rosto de um homem / um caixão / rosto de um homem. Tais planos foram projetados para espectadores desprevenidos, deixando-os extasiados com a sutileza alcançada por Iván Moszhúkhin, o ator cujo rosto era exibido, para exprimir sucessivamente a fome, o amor paternal e a tristeza. Só que, milagres da prestidigitação, os três planos em que o ator aparece são exatamente um mesmo e único plano, extraído de um filme antigo e, segundo Kulechóv, particularmente inexpressivo; os sentimentos lidos no rosto do ator foram uma criação dos espectadores, movidos que estavam pela aproximação das imagens.[7]
Tal percepção decerto se põe em franco desacordo com algumas considerações feitas pelo professor Ronaldo Lima Lins a respeito das relações entre cinema e literatura. Apreciando A Idade da Terra, diz o professor que o filme de Gláuber Rocha
criou-se como uma contrafação na indústria de bens culturais, só podendo ser entendido, à maneira de uma sinfonia atonal, pelas mentes abertas à não-coerência, à não-harmonia, à não-estética. Trouxe, talvez pela primeira vez no cinema, o augúrio apocalíptico das vanguardas, até então encontrado na literatura e nas velhas artes [...].
A contradição chegou, desta feita, a todos os recantos da arte, inclusive aos segmentos que, compromissados com a diversão, mantinham traços da narrativa do século XX.[8]
Ora, postas nestes termos, nem a não-coerência, a não-harmonia e a não-estética se bastam, sem senões, como determinantes da perturbação provocada pelo filme do cineasta baiano; nem, se bastassem, constituiriam ineditismo de qualquer espécie — pois que figurariam já desde o augúrio apocalíptico das vanguardas. Se há tensões – e elas são facilmente verificáveis – assinalando as distâncias entre as intenções do realizador e o repertório de possibilidades que o espectador constitui para operar com aquelas intenções e com o resultado que, por fim, tenham a oferecer, essas tensões não se dissolvem no endereço em que se refugiam as mentes abertas. Pelo contrário até: é mais provável que se agigantem na medida mesma em que se abram ao infinito as possibilidades de reconhecê-las — como referências meras (ou fatais), próprias de um qualquer discurso mínimo sobre alteridade, ou, no limite, como atalho para novas e insuspeitadas tensões.
Quer se lide com sua forma clássica ou com algum de seus duplos, o video game, o video clip, etc, são os procedimentos narrativos que os olhares do espectador, tal qual se pôde constituir, busca encontrar. Mesmo porque, como afirma Metz,
a negação da narrativa é uma projeção de fantasias do crítico do moderno, visto que o cinema, pela sua natureza de meio temporal, sempre deve depender de, e reverter a, estruturas de narratividade (embora estas não tenham de ser do mesmo tipo de narrativa realista de Hollywood).[9]
Sem esquecer, com Octavio Paz, que por vezes poesia e prosa negam-se mutuamente[10] (e, diga-se, tanto mais, talvez, do que cinema e literatura), mas estendendo ao infinito a afirmação de Metz, a arquitetura, o cinema, a literatura equivalem-se, nalguma medida, como narrativas; tal medida é talvez o próprio meio em que se realizam: o tempo, sempre presente. E já não nos tolhem, nesse sentido, os delírios de pureza greemberguianos, a promover como procedimentos incomunicáveis, ou quase isso, os misteres com que cada uma das diversas formas de expressão se realiza.
Contudo, se facilmente constatamos que nem sempre se constituíram como necessariamente danosas as relações entre cinema e literatura; se, ao contrário, tais relações são (ou já puderam ser) fonte de enriquecimento para ambas as linguagens, é igualmente incontestável que algo se vem afirmando pelo avesso do outrora otimista aforismo de Godard, para quem os escritores sempre tiveram a ambição de fazer cinema sobre a página em branco.[11]
Num corte abrupto, chegamos a 1995, e deparamos com o poeta estadunidense Douglas Messerli[12], que, entrevistado pelo também poeta Régis Bonvicino, resume como antitéticas as relações entre as possibilidades de invenção literária e as formas com que se estrutura o mercado editorial dos EUA. Segundo Messerli, se hoje é possível dizer que de algum modo a produção poética está fortalecida naquele país, isso se deve, justa e paradoxalmente, à sua alienação da indústria cultural:
Aqui, nos Estados Unidos, o teatro (não o de Andrew Lloyd Weber) e a poesia têm estado em tão longa quarentena de remuneração financeira que os escritores jovens se sentiram à vontade para se dedicar ao experimentalismo, para tentar novas linguagens — o que é essencial para a permanência da arte séria.[13]
Desprezando, neste momento, os sentidos que possam impregnar uma expressão como “arte séria”, é algo desconcertante perceber que o discípulo de Stein e Whitman dirige-se ao solidíssimo, libérrimo mercado estadunidense — margem última, fim primeiro da indústria cultural daquele país. Mas esse desconcerto faz ver também que, igualmente noutra margem, novos ensaístas, historiadores, filósofos e demais membros de certo estrato da comunidade acadêmica dos EUA encontram-se entalados dentro das universidades; talvez sem o perceber, há tempos não encontram outro canal para a divulgação e o debate de suas produções que não as editoras das próprias universidades em que atuam. E uns, outros e outros, conforme observa o também poeta Robert Creeley[14], constituem a substância de um ambiente que, por uma via, aglutina, sim, e dinamiza discussões literárias, mas, por outra, na mesma medida, não deixa de ser hostil à poesia[15] — para sempre margem terceira.
Mais recentemente, esse impasse multifacetado entre mercados, academias e literaturas encontrou nova significação, iluminado que está sendo pela sandice européia a respeito da reorientação dos parâmetros de formação escolar, de modo a adequar currículos e conteúdos, já desde o ciclo fundamental, aos interesses da indústria. A ERT, Mesa-Redonda Européia dos Industriais, estaria exercendo uma dupla pressão: no sentido de forçar que a educação se torne uma “prestação de serviços” voltada para o mundo econômico, seguindo a lógica de que é aquele “mundo” o responsável pela maior parte dos impostos recolhidos no continente, a um só tempo em que, sendo considerada como não mais que uma prestação de serviços, passe a ser assumida pela iniciativa privada como um bem de mercado qualquer, de modo a excluí-la do âmbito das preocupações e influências dos Estados. Obviamente, tal medida, se aceita, teria por efeito a redefinição dos parâmetros de formação escolar, já desde as primeiras séries, de forma a imaginá-los como um mero suporte das necessidades da indústria — o que implicaria em desprezar a História, a Geografia, a Biologia, a Literatura e tudo quanto não se preste a “ganhos de produtividade”. Os alunos, assim, passariam a remunerar aos diferentes conglomerados industriais pelo “direito” de assimilar os programas e conteúdos definidos por esses mesmos conglomerados — o que, num futuro próximo, os tornaria aptos a candidatar-se às vagas oferecidas por aquele mesmo segmento que os formou.[16]
Com tais engenhos, o Velho e o Novo Mundo apontam de mesmo para dois segmentos do gigante que é a indústria do audiovisual: se na Europa o que há de mais virtual na informática permite tramar a tal ponto o futuro da educação, nos EUA é o cinema a razão de tantas reviravoltas no mercado editorial.
Mas é importante notar que tomar o problema por europeu ou estadunidense é algo que sequer se aproxima do ponto central. Mesmo porque, desde os anos 1980, a indústria cinematográfica estadunidense, a exemplo dos demais segmentos da indústria daquele país, vem, progressivamente, deixando de ser... estadunidense. O caminho já havia sido aberto por empresas automobilísticas como Toyota, Honda e Mitsubishi: determinadas a entrar no mercado, logo deixariam para trás a concorrência nativa, incapaz de fazer frente aos índices de preços que se dispunham a praticar. A rapidez e a violência de sua inserção logo lhes valeria a acusação de, deliberadamente, pôr em curso uma estratégia que teria por fim minar o sonho americano em sua matriz mais óbvia e acarinhada: o consumo. E não de um bem qualquer, mas de um emblema distintivo de sua cultura: o automóvel, não por acaso um astro de nada menos que a totalidade das produções cinematográficas contemporâneas, ícone contíguo às imagens de James Dean, John Kennedy, serial killers ou pin-ups.
Alguns anos mais tarde, com a compra da Columbia Pictures, num negócio de cifras astronômicas, a Sony reavivava a comoção e os lamentos dos dirigentes de empresas tradicionais do ramo automobilístico, como a Ford, a GM, a Chrysler, mas deixava aberto o caminho para que, aos poucos, outras empresas japonesas se aproximassem, já então dando vez a comoções nacionalistas cada vez menos intensas. Passado o primeiro impacto, e reinventado o mercado, são raros, hoje, dentre os grandes estúdios de Hollywood, aqueles que não contem com a participação de capital japonês em sua estrutura acionária.
Em 1994, segundo dados oficiais, o filme Jurassic Park[17], de Steven Spielberg, já contabilizava uma bilheteria em torno de U$700.000.000.[18] Isso sem incluir os rendimentos referentes ao imenso mercado paralelo: bottoms, games, camisetas, etc, decerto equivalentes a um montante igual ou superior. Como o custo oficial do filme, que é de 1993, ficou em torno de U$100.000.000, mesmo se considerássemos apenas a bilheteria, isso já representaria um lucro líquido de 600% em apenas um ano. Não há nada, em nenhum lugar do mundo, capaz de render tanto e tão rapidamente assim. Mas ainda havia espaço para aumentar margem de lucro já tão extraordinária.
Uma parcela minoritária da produção cinematográfica hollywoodiana é baseada em roteiros originais. Tradicionalmente, a maior parte das produções é constituída de adaptações de romances, contos e novelas: alguém escreve coisa que interesse aos padrões da indústria, e logo aparece o representante de uma produtora, propondo a compra dos direitos da obra; daí, acertam quanto caberá a cada uma das partes (autor, diretor e agentes); em alguns casos, também definem o roteirista, se será o próprio autor ou não, o tanto que poderá ser alterado no filme com relação ao texto original, etc. Grosso modo, com ligeiras variações aqui e ali, é assim que funciona — ou melhor, funcionava: entrando em cena, rapidamente as companhias japonesas pressionaram o mercado de modo a alcançar um novo patamar; e os estúdios, às voltas com novas possibilidades de racionalização de custos, passaram a comprar editoras, de modo a só passar para as telas obras sobre as quais já tivessem o direito de edição.
O processo é exemplarmente ilustrado com a notícia abaixo, assinada por Sérgio Sá Leitão:
Nasceu na segunda-feira de Carnaval, nos Estados Unidos, um Gulliver das comunicações e do entretenimento capaz de rivalizar com a Time Warner e a Disney. A Viacom venceu a mais longa operação de takeover da década: cinco meses de disputa pelas ações da Paramount, sexta produtora de cinema em público em 93, nos EUA.
A empresa se associou à Blockbuster, a maior companhia de “home video” dos EUA, e conseguiu 75% das ações da Paramount, mais do que o suficiente para assumir seu controle. Enfrentou outra empresa interessada, a QVC Network. O governo e a Justiça dos EUA foram chamados para arbitrar o takeover. A Paramount custou US$ 9,5 bilhões e a Blockbuster está investindo US$ 8 bilhões na supercompanhia resultante.
A Viacom Blockbuster Paramount já é a maior proprietária de canais a cabo do mundo (tem 10, incluindo MTV e Showtime), de emissoras abertas de TV (12), o maior editor de livros — 26 dos 150 best-sellers de 93 nos EUA — e o maior locador de vídeos — com ganhos superiores aos dos 550 concorrentes reunidos. Possui 5% das salas de cinema dos EUA e um acervo de 3.790 filmes e seriados, além de lojas de discos, parques de diversões e duas equipes esportivas — New York Knicks, de basquete, e New York Rangers, de hóquei.
A Viacom tem 61% das ações e está de olho em um novo mercado. Para Summer Redstone, chairman da empresa, o objetivo é “criar uma megaempresa de mídia com alcance global e proporções jamais vistas”. Os alvos são a TV interativa e produtos que a “superestrada” de fibras óticas aprovada pelo governo dos EUA torna possíveis.
Aqui entra em cartaz um quarto parceiro, minoritário: a companhia de telefonia Nymex, de Nova York, que está injetando US$ 1,2 bilhão no Gulliver. Com ela, a megacompanhia fecha um ciclo completo de produção: uma das editoras lança um livro, a Paramount faz o filme, a Viacom exibe nos seus 1927 cinemas, a Blockbuster vende o vídeo nas suas 3500 lojas, o canal Showtime reexibe a fita e depois ela fica no banco de uma emissora interativa.
A cadeia pode ir além, segundo seqüência sugerida por especialistas em mídia ao jornal norte-americano “USA Today”: a trilha sonora é vendida nas lojas da Blockbuster, os clips passam na MTV, as músicas tocam nas rádios, os astros aparecem nos talk shows das emissoras de TV do Gulliver, e assim por diante.[19]
As leis de mercado, conforme praticadas atualmente, não encontram jurisprudência suficientemente consistente com que questionar a hegemonia totalitária de tal sistema de produção, coisa inédita na história do capitalismo. Contrariamente a isso, insinuar a contenção de um mercado que se quer auto-regulável exatamente pela manutenção da voracidade de tais táticas é suposição risível diante da necessidade de assegurar a bandeira do crescimento econômico de conglomerados desse porte, pespegados já, de modo inelutável, a qualquer idéia de promoção ou de manutenção do desenvolvimento dos países em que aportam.
Ainda há, obviamente (e possivelmente sempre existirá quem presuma que haja), arestas a aparar em cada uma das instâncias que compõem a linha de produção da indústria do audiovisual. Às editoras, por exemplo, ainda incomoda ter de negociar com turba tão numerosa de autores a tropeçar nos próprios egos, inflados pelo sucesso ocasional desta ou daquela adaptação, dentre as cerca de 400 novas adaptações que os estúdios estadunidenses oferecem a cada ano. Mas, a partir desse incômodo, já se oferece a inclusão de uma nova cláusula nos contratos, segundo a qual o candidato a autor abre mão de quaisquer outros agentes, aceitando como seu representante único e exclusivo a própria editora; além disso, por uma quantia estabelecida a partir de uma escala de importância em que o encaixem, o escritor passa a ceder previamente à editora todos e quaisquer direitos sobre a possível utilização futura da obra pelo mercado de cinema, vídeo e derivados. Em troca, claro, da possibilidade de ser contratado.
Há muito se percebeu quão inútil é publicar textos que não se prestem a serem adaptadas para o cinema. Poesia, por exemplo, nunca mais. Mesmo os que se candidatam a publicar obras de ficção por essas editoras são agora filtrados por roteiristas e produtores das companhias cinematográficas às quais as editoras são associadas; só têm vez aqueles que, além de se sujeitarem aos termos do contrato, abrem mão das possibilidades de invenção literária, fazendo de sua escrita um meio caminho andado ao encontro da forma do roteiro.
Claro que Shakespeare, Dickens, Updike, Roth e todos os demais índices canônicos, clássicos ou contemporâneos, continuam sendo publicados, e isso é coisa que dispensa explicações. Mas não é esse o problema. É fato que Messerli, em sua entrevista, tinha em mente sobretudo as preocupações com seu próprio ofício, o que não é pouco. Mas não é difícil perceber o quanto tais preocupações são, para dizer o mínimo, quase irrelevantes, diante das possíveis conseqüências de estratégias dessa natureza num futuro próximo. Nada garante que tenham terminado por ali. Pelo contrário, em vista do artigo publicado pelo Le Monde Diplomatique[20], não é absurdo supor que, neste exato momento, alguma nova cláusula esteja sendo adicionada aos contratos de edição, convocando os autores a se aliarem nesse grande projeto para a educação do futuro de um modo bastante singular: ausentando-se dele. Se é possível supor que a única finalidade da educação é servir aos propósitos da indústria, subtraindo-se a ela qualquer veleidade de pensamento crítico, nada impede que os escritores, já obrigados pelo mercado a adotar em seus livros um tipo de narrativa que facilite sua apropriação pelo cinema, passem a ser tolhidos também pela necessidade de contribuir com temas, idéias e posturas favoráveis à consolidação do novo mercado. Não seria coisa nova: a poesia romântica alemã, exaltando sentimentos patrióticos, serviu como palavra de ordem para a unificação do país em 1870; mais tarde, o Ministério da Propaganda do regime nazista fez o mesmo com todas as artes, tendo em vista a consolidação do mito ariano; o fascismo, o Estado Novo brasileiro, o português, o macartismo americano... Há exemplos de sobra. Mas nenhum que impeça pensar o mercado qual novíssima bandeira, qualquer que seja a nação de origem ou destino.



São Sebastião do Rio de Janeiro, em novembro de 2002.



[1] Cf. Sadoul, Georges. História do cinema mundial: das origens aos nossos dias, vol. I. Lisboa: Horizonte, 1983, p. 139.
[2] Sylphorama: do latim sylphu, “imagem vaporosa”, ou “o gênio do ar”, nas mitologias céltica e germânica medievais, e do grego hórama, “vista de”, “espetáculo”. Também chamada Inana, possivelmente graças às dificuldades com o idioma daqueles que anunciavam a atração, ficou assim conhecida a atração importada pelo tcheco Frederico Figner para a Rua do Ouvidor do final do século XIX. Matéria controversa há algumas décadas, é consensual hoje aceitar, como base mínima, que se tratasse de um engenho de espelhos que fazia ver uma mulher flutuando nos ares — o que torna a Sylphorama (ou Inana) uma espécie de ancestral das Kongas, as mulheres-gorilas que ainda se encontram nos circos e parques de diversões do interior do país.
[3] Ainda no século XVIII, em 1769, o húngaro Wolfgang von Kempelen (1734-1804) apresentou à Imperatriz Maria Tereza, da Áustria, sua fantástica criação: o Turco, que teria a extraordinária habilidade de derrotar qualquer adversário em partidas de xadrez. A engenhoca se caracterizava por um boneco vestido de turco, com uma mesa-tabuleiro à sua frente e várias gavetas dotadas de mecanismos e engrenagens que produziam ruídos estranhos. Era um engodo: na verdade, dentro do boneco escondia-se um jogador dos mais exímios; e o aspecto estranho, os ruídos, só faziam roubar a atenção dos eventuais oponentes, que se maravilhavam com a oportunidade de travar um embate com semelhante prodígio tecnológico. Morto seu criador, o Turco foi operado ainda pelo alemão Johan Nepomuk Maelzel (1772-1838), o inventor do metrônomo e do panharmonicum, orquestra mecânica que motivou Beethoven a compor A Vitória de Wellington. Mas perdeu-se para sempre, num incêndio em um museu da Filadélfia, em 1854. O Ajeeb foi uma tentativa de reviver os prodígios do Turco: criado pelo inglês Charles Hopper (1825-1900) em 1865, era anunciado por toda a parte como um magnífico autômato jogador de damas e de xadrez. Somente depois de sua fama ter corrido meio mundo, atraindo o interesse de adversários como Theodore Roosevelt, Houdini, Admiral Dewey e Sarah Bernhardt, descobriu-se que era na verdade uma armadura, na qual se escondiam enxadristas lendários como os estadunidenses Constant Ferdinand Burille (1866-1914) e Harry Nelson Pillsbury (1872-1906).
[4] “Cavadores”: realizadores do “cinema de cavação” — termo com que ficaram marcados muitos dos primeiros empreendedores da atividade cinematográfica no Brasil. Aventureiros, lançavam-se pelos interiores do país, seduzindo coronéis e fazendeiros com as maravilhas do cinematógrafo; por onde quer que passassem, casamentos iminentes, batizados, ou mesmo a possibilidade de fixar a magnitude de propriedades rurais, eram pretexto para a obtenção de somas, por vezes vultosas, com as quais viriam à capital federal e comprariam equipamentos de filmagem e de projeção para registrar o acontecimento. Como, na maior parte das vezes, o dinheiro era embolsado, o cinegrafista desaparecia da região para nunca mais ser visto, o que justificava a pecha de trambiqueiros que se acercava dos profissionais da área naqueles primórdios. Em muitas ocasiões, o equipamento era de fato comprado, mas sua destinação, longe de ser aquela esperada pelo comprador ludibriado, era a realização de projetos cinematográficos particulares dos “cavadores”, que não encontravam, senão por esse expediente, outra fonte de financiamento. A prática é exemplarmente ilustrada por Maria Rita Eliezer Galvão, em sua Crônica do cinema paulistano (São Paulo: Ática, 1975). E também por Lauro Escorel Filho, em Sonho sem fim (1986), filme com que retrata a vida do pioneiro cineasta gaúcho Eduardo Abelim: acrobata, automobilista, fundador da Gaúcha Filmes, “cavador” e diretor de A avançada das tropas gaúchas, documentário sobre os acontecimentos ligados à Revolução de 1930 em seu estado natal.
[5] Filme de Alan Crossland, exibido no Brasil com o título O Cantor de Jazz. É habitualmente tomado como marco do cinema falado — o que é discutível, uma vez que há outros exemplos que o precedem.
[6] Jabor, Arnaldo. “Garbo brilha em dois momentos”. Folha de São Paulo. São Paulo: 17 de novembro de 1994.
[7] Cf. Sadoul, Georges. História do Cinema Mundial: das origens aos nossos dias. Op. cit., e Bernadet, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980.
[8] Lins, Ronaldo Lima. “Literatura e cinema (ruína e construção no universo do impasse)”. In: Violência e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 149.
[9] Apud Connor, Steven. Cultura Pós-Moderna. Introdução às teorias do contemporâneo. São Paulo: Loyola, 1992, p. 143.
[10] Paz, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 19.
[11] Apud Borges, Jorge Luis & Cozarinsky, Edgardo. Do Cinema. Lisboa: Livros Horizonte, 1983, p. 9.
[12] Poeta e dramaturgo estadunidense, nascido em 1947, é um ex-ativista do Language Poetry, principal movimento da cena poética de seu país nos anos 1980.
[13] Bonvicino, Régis. “A experiência da linguagem”. Folha de São Paulo. São Paulo, 01 de outubro de 1995.
[14] Poeta estadunidense, nascido em 1926, é considerado por muitos críticos um dos principais sucessores de Ezra Pound e William Carlos Williams.
[15] Cf. Silva, Fernando de Barros e. “Creeley conta casos de poesia”. Folha de São Paulo. São Paulo, 15 de maio de 1996.
[16] Cf. Sélys, Gérard. “L’école, grand marché du XXIe siècle”. Le Monde Diplomatique. Paris, junho de 1998.
[17] Filme de Steven Spielberg, de 1993, exibido no Brasil com o título Parque dos Dinossauros.
[18] Cf. Couto, José Geraldo. “Cinema vira campo de guerra planetária”. Folha de São Paulo. São Paulo, 1º de janeiro de 1994.
[19] Leitão, Sérgio Sá. “Takeover cria gigante do entretenimento”. Folha de São Paulo. São Paulo, 6 de março de 1994.
[20] Sélys, Gérard. “L’école, grand marché du XXIe siècle”. Op. cit.