sexta-feira, 30 de outubro de 2009

É preciso comer menos carne para salvar a Terra?






Fabrice Nicolino, autor de Bidoche, L’Industrie de la viande menace le monde (Éditions Les Liens que Libèrent), respondeu, dia 16 de outubro, às questões dos leitores do Monde.fr sobre os efeitos nocivos do aumento massivo do consumo mundial de carne sobre o meio ambiente e a saúde.

Os diálogos com Fabrice Nicolino estão publicados no Le Monde, 16-10-2009. A tradução é do Cepat.

ours: De que modo a produção de carne tem consequências sobre a mudança climática?

Fabrice Nicolino:
É uma questão complexa, mas dispomos de um documento oficial, institucional, um enorme relatório de 2006 da Organização para Alimentação e Agricultura (FAO), da ONU. De fato, trata-se de uma análise global de todo o ciclo da produção pecuária no mundo. Não somente dos animais, mas a sua alimentação, os meios de transporte utilizados [para levá-los aos frigoríficos]. Esse relatório estima que todo o gado mundial emite 18% de gás de efeito estufa de origem humana, e esse total é superior àquele que diz respeito aos transportes utilizados pelos seres humanos (carros, navios...).

Pharell_Arot: Bom-dia. Sendo um aficionado por carne, eu me pergunto sobre as condições a serem adotadas para conjugar os prazeres alimentares e o desenvolvimento sustentável. Quais são, para você, as precauções que um consumidor médio pode tomar imediatamente?

Fabrice Nicolino:
A primeira coisa é lembrar que o consumo de carne na França foi multiplicado aproximadamente por 4 desde a segunda Guerra Mundial. Nós comemos muita carne, por razões econômicas e políticas. Eu realmente não tenho conselho a dar. Minha opinião é que podemos comer muito menos carne, comer uma carne de melhor qualidade. Pessoalmente, eu como carne, mas cada vez menos, e é carne biológica, porque nesta maneira de produzir está proibido o uso em grande quantidade de produtos medicinais e químicos.

Pharrell-Arot: Há consumos de espécies menos perigosas que outras para o planeta? A de porco, por exemplo?

Fabrice Nicolino:
O pior transformador de energia é o boi. Quanto menos vegetais um animal consumir, menos o seu consumo é prejudicial para os equilíbrios do planeta. E desse ponto de vista, há uma certa hierarquia que vai do frango ao boi passando pelo suíno. O menos mal é o frango.

Herve_Naturopathe: Há um lobby francês dos frigoríficos/criadores tão importante quanto nos Estados Unidos?

Fabrice Nicolino:
Realmente creio que não. Existe um lobby da carne industrial na França, poderoso, mas que não tem nada a ver com a extraordinária importância que a “carne” tomou nos Estados Unidos. Nesse país, há uma história apaixonante por trás do lobby da carne. Um notável livro, La Jungle, publicado em 1906 por Upton Sinclair, descreve o universo dos matadouros de Chicago. É um livro belíssimo.

Nos Estados Unidos, o lobby é realmente muito poderoso; secretários de Estado da Agricultura, especialmente na presidência de Reagan, eram ex-industriais da carne. Sob as Administrações republicanas, mas não apenas, há uma espécie de consanguinidade entre políticos e o lobby da carne.

Voltando ao caso da França, sim, existe um lobby da carne, que é representado pelo Comitê de Informação das Carnes, que tem relações estreitas com a indústria da carne, seguramente, mas também com o aparelho do Estado, o Ministério da Agricultura e o maior sindicato patronal de agricultores, a FNSEA.

Romain: Que alimentos podemos utilizar para substituir a carne vermelha em matéria de contribuição nutricional e de sabor?

Fabrice Nicolino:
Não há resposta para esta questão... O sabor da carne vermelha é o sabor da carne vermelha. Eu não saberia dizer o que poderia substituir o seu sabor. No plano nutricional, por mais curioso que possa parecer, um grande número de estudos mostra que os regimes vegetarianos ou os regimes extremamente pouco carnívoros são os melhores para a saúde humana. Eu cito rapidamente um nome, conhecidíssimo nos meios da nutrição: é um norte-americano que se chama Colin Campbell. Ele conseguiu fazer um estudo comparativo da alimentação entre, de um lado, os cantões chineses e, do outro, os condados americanos. Um imenso estudo que durou vinte anos. Ele observa que o regime chinês, amplamente baseado numa dieta de vegetais, é infinitamente melhor para a saúde.

cocoparis: Você acha que é preciso reduzir também o nosso consumo de leite?

Fabrice Nicolino:
É um debate aberto e inclusive no plano científico. O que é certo é que o hiperconsumo de leite, que caminha paralelamente à industrialização da pecuária, é muito nefasto à saúde humana. Passamos de vacas bem alimentadas que produziam, em 1945-1946, em torno de 2.000 litros de leite por ano a vacas que dão 8.000, 10.000, inclusive 12.000 litros por ano.

Está claro que quando se produz estas quantidades de leite, é preciso que esse leite seja consumido na sequência. É preciso que as pessoas o bebam. Há nisso uma lógica de ferro muito constrangedora. Se é produzido, necessita de um mercado, necessita de saída. No campo da saúde, o leite não é um alimento tão bom quanto se acreditava ou se fazia crer durante muito tempo.

Apis88: Atualmente, está claramente demonstrado que os países que se enriquecem veem o consumo de carne por habitante aumentar. Esta constatação pode ser invertida?

Fabrice Nicolino
: É uma questão decisiva, uma questão chave. Existe um modelo de consumo de carne, o modelo ocidental, baseado sobre um consumo muito grande de carne. Ora, a produção de carne necessita de quantidades industriais de cereais. E as áreas agrícolas no mundo não podem ser ampliadas ao infinito. Muitos agrônomos de primeira linha se perguntam como se poderá, nos próximos anos, satisfazer este impressionante aumento da demanda de carne nos países chamados emergentes, no topo dos quais está a Índia, mas sobretudo a China, onde 200 milhões ou 300 milhões de chineses reclamam carne, porque pela primeira vez eles têm dinheiro para comprá-la e querem unir-se ao modelo ocidental.

O problema é que as terras agrícolas que permitiriam alimentar esse gado estão em falta, e parece extremamente difícil encontrar novas áreas sobre a Terra assim como está. O que eu quero dizer é que na minha opinião o modelo de consumo de carne praticado entre nós não é de maneira alguma generalizável a todo o planeta. Dito de outra maneira, me parece altamente provável que será preciso rapidamente se colocar a questão central, fundamental, do nosso modelo alimentar. Sem isso, poderemos sem dúvida passar do atual bilhão de esfomeados crônicos para talvez dois bilhões ou três bilhões em 2050.



br: Você acha que os políticos, em sua resposta à crise agrícola atual, vão levar em consideração esse fenômeno?

Fabrice Nicolino:
Claramente, não, não, não e não. Vou fazer um paralelo com a situação da França em 1965. O ministro da Agricultura do General de Gaulle chama-se Edgard Pisani. Em 1965, este fez uma turnê triunfal pela Bretanha, e declarou, sob aplausos: a Bretanha deve tornar-se uma fábrica de leite e de carne da França. É muito importante, porque vemos bem que os políticos seguem, evidentemente, objetivos, mas que por definição são objetivos políticos. Ora, nós estamos em vias de falar de questões de outra natureza, que reclamam decisões muito mais refletidas, muito mais pensadas, sobre um prazo muito maior que o tempo dos políticos. Eu acrescentaria que a ecologia, a crise ecológica e tudo o que a ela estiver associado vai impor visões, pontos de vista, decisões para as quais a classe política, de todos os espectros ideológicos, da extrema direita à extrema esquerda, não está preparada.

GrandGousier: De acordo, é preciso deter esta orgia de carne, por todas as razões inventariadas em seu livro. Mas, por onde começar? Na França, quais seriam as primeiras ações a serem tomadas, os primeiros objetivos a serem fixados?

Fabrice Nicolino:
Eu não estou aqui para dar lições a quem quer que seja. Mas como pessoa, eu penso que seria bom unir-se à construção de um movimento de consumidores como nunca se viu. Eu penso, na linha do que acabo de dizer sobre a classe política, que apesar do seu interesse e de sua valentia, os movimentos de consumidores que existem na França, por exemplo, a UFC-Que Choisir [União Federal de Consumidores, associação francesa de consumidores] ou 60 milhões de consumidores, exprimem em grande parte preocupações de outro tempo. Eu penso que seria útil e necessário para todos que nasça um movimento de consumidores que integre a crise ecológica, que é fundamentalmente uma crise dos limites físicos. E esse movimento, quando aparecer, provavelmente lançará ações coletivas contra a carne industrial. Para mim, este movimento passará necessariamente por formas de boicote.

Herve_Naturopathe: Ser “consommacteur” [consumidor comprometido] não seria a resposta? Consumir com reflexão e respeito...

Fabrice Nicolino:
Seguramente. Mas a questão é quando e como, porque já tivemos movimentos. Eu lembro do boicote dos hormônios para os terneiros em 1980, movimento lançado pelo UFC-Que Choisir. O consumo da carne de terneiro foi dividida por 6 ou 8, era muito impressionante. E o sistema se adaptou, pois se reforçou. Portanto, a questão é realmente saber como encontrar uma eficácia frente a uma indústria que está unida por fios a todos os poderes estabelecidos, quer sejam administrativos, políticos, industriais, sindicais. É uma questão que eu aplico a mim mesmo: como tornar-se “consumidor comprometido” realmente e não apenas nos propósitos.

hadadada: No futuro, deveremos parar totalmente de consumir carne?

Fabrice Nicolino:
Eu não vejo esse ponto no horizonte da minha vida. Em todo o caso, eu descobri, ao escrever o livro, que se pode viver sem comer carne. Eu realmente a ignorei. Eu creio que durante muito tempo fizemos chacota dos vegetarianos e que julgávamos, às vezes contra todas as evidências, que sua saúde era muito ruim. Alguns lobistas de que falo no meu livro lembram, para desqualificar os vegetarianos, que tanto Hitler como Jules Bonnot, o anarquista, foram vegetarianos. O que eu constatei é que se pode viver sem comer carne. Devido aos grandes equilíbrios e para enfrentar os grandes problemas que estão diante de nós, a começar pela fome, me parece vital que mudemos novamente de regime alimentar e que renunciemos a uma boa parte da carne que ingerimos a cada ano. Mas mais carne, eu não creio absolutamente nisso, eu penso que é uma questão antropológica, que leva a muitas outras. Não estou certo de que a humanidade seja realmente destinada a não mais comer carne.

cocoparis: E o que você tem a dizer aos criadores? Mudar de profissão? Tornar-se cerealistas?

Fabrice Nicolino:
É uma questão terrível. Eu gosto dos agricultores. É verdade que eu prefiro os agricultores do Sul àqueles saturados de subvenções do Norte, mas o mundo da pecuária é um mundo em que encontrei um monte de gente boa, mesmo na pecuária intensiva. Mas eu quero ser direto: eu penso que a pecuária industrial está condenada. Eu penso que a França, a sociedade francesa, contraiu uma dívida com os criadores, e uma vez que tudo foi organizado em vista da pecuária industrial, seria insuportável dizer repentinamente aos pecuaristas para que mudem de profissão. Eu penso que se deveria imaginar um plano de transição, um pouco sobre o modelo do plano de transição de saída da energia nuclear na Alemanha. Poderíamos imaginar um plano de transição de 15 anos para permitir uma aterrissagem suave, para permitir a um certo número de criadores uma retirada digna, e para incentivar os mais jovens a se lançar numa pecuária mais respeitosa dos animais, dos equilíbrios naturais, e dos seres humanos que estão no final da cadeia.

Scheatt: As transformações necessárias para um modo de vida mais sóbrio são compatíveis com a organização atual da distribuição e da pecuária?

Fabrice Nicolino:
Não, porque é preciso compreender que se trata de um sistema extremamente eficaz em seu registro, muito complexo, muito rodado, que exclui, por exemplo, todo direito dos animais a existir. Eu, com o risco de chocar alguns, sou muito sensível à sorte dos seres humanos, eu sou um humanista, mas considero que os animais têm direito à existência. Eu dediquei o meu livro aos animais mortos sem terem vivido. Num passado remoto, durante 8.000 a 9.000 anos, os seres humanos viveram um companheirismo com os animais, que era sem crueldade, sem violência e sem maus-tratos. Os animais davam sua carne, sua pele, sua força de trabalho, mas eles permaneciam seres vivos, sensíveis.

A indústria transformou totalmente os animais, a quem tanto devemos. Eu lembro que sem a existência dos animais domésticos, não teria havido civilização humana. Passamos a uma situação de industrialização em que o animal tornou-se uma coisa, uma mercadoria, um objeto de troca, de material. Eu creio que esta ruptura na história da nossa relação com os animais tira de nós uma parte considerável da nossa humanidade. Eu creio que esta maneira de tratar este “outro” que é o animal abre as portas para um caminho moral.



quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Especialista recomenda vegetarianismo contra a mudança climática


Da Efe

O mundo deveria se tornar vegetariano para combater com sucesso a mudança climática, já que o efeito estufa do gás metano liberado por vacas e porcos é 23 vezes mais potente que o do dióxido de carbono, segundo uma das maiores autoridades britânicas no assunto.



Em declarações ao jornal "The Times", lorde Stern, autor de um relatório sobre a economia da mudança climática encomendado pelo Governo do Reino Unido, disse que a pecuária destinada ao consumo de carne representa "um desperdício de água e contribui poderosamente para o efeito estufa".



Segundo números da ONU, a produção de carne é responsável por pelo menos 18% das emissões globais de CO2 no planeta. Para esta liberação, contribuem tanto a destruição de florestas para a pecuária extensiva como a produção de ração para animais.



A ONU também já disse que, caso a tendência atual se mantenha, o consumo mundial de carne poderá dobrar até 2050.



Com base nessas informações, Stern propõe que a cúpula sobre mudança climática de Copenhague (Dinamarca), marcada para dezembro, sobretaxe o preço da carne e de outros alimentos que, durante seu processo de produção, são responsáveis pela liberação de uma quantidade significativa de gases estufa.




O especialista britânico, que é vegetariano, prevê ainda que o hábito das pessoas em relação ao consumo de certos gêneros alimentícios mudará até que comer carne se tornará algo inaceitável.



"Acho que é importante as pessoas refletirem sobre suas ações, e isto também tem a ver com o que se come", diz lorde Stern, ex-economista do Banco Mundial e atual professor da London School of Economics.



Ainda segundo o especialista, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, deveria participar pessoalmente da cúpula de Copenhague, já que a liderança americana é extremamente necessária para alcance de um acordo significativo.



"Minha mensagem ao presidente Obama seria a seguinte: 'Vá a Copenhague, participe com um espírito de colaboração e leve essa mensagem ao povo americano'", declarou o cientista ao "The Times".

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Clima: a vez das comunidades locais ?


Copenhague: Uma convenção para além de ''boas intenções''?

Entrevista especial com Paulo Brack


A Convenção do Clima que acontece no início de dezembro em Copenhague, capital da Dinamarca, e as propostas de redução de metas de emissão de gases de efeito estufa representam muito mais uma “carta de ‘boas intenções’”.
A posição é defendida por Paulo Brack, na entrevista a seguir, concedida por e-mail, à IHU On-Line. Para o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, o setor ligado ao grande capital não aceita regras e por isso o encontro em Copenhague não deve promover avanços consideráveis.

Políticas de médio e longo prazo como as sugeridas para atingir metas de emissões não servem mais, assegura o pesquisador, que sugere prazos de reavaliação de acordos mais curtos: “Talvez convenções a cada cinco anos”.

Na entrevista que segue, Brack critica ainda a atuação dos movimentos ambientais e alerta que no debate climático, empresas podem ganhar destaque com propostas para solucionar as emissões de carbono. “Quem garante que essa falsa solução de empresas não ganhe espaço em Copenhague?”, questiona.

Para ele, os movimentos ambientais devem avançar nas discussões e considerar as questões climáticas também como um problema político. “Pedir simplesmente energias renováveis e clamar que Lula vá a Copenhague é deixar o problema na superficialidade. Essas propostas, quando adotadas, são muito mais analgésicos para um problema crônico de saúde ambiental e de uma pandemia do modelo econômico de esgotamento”, constata.

Paulo Brack é o convidado do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, e nesta quinta-feira, das 17h30min às 19h, proferirá a palestra O futuro em Copenhague? – mudanças e mudanças.

Paulo Brack é mestre em Botânica, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutor em Ecologia e Recursos Naturais, pela Universidade Federal de São Carlos. Entre 2006 e 2008, foi membro da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio e atualmente representa o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais – Ingá, no Conselho Estadual do Meio Ambiente do RS –Consema-RS.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são suas expectativas em relação à Convenção do Clima que ocorre em Copenhague?

Paulo Brack
- Creio que as expectativas ainda não são as melhores, em grande parte porque a questão está na mão dos governos. A sociedade deveria participar intensamente do processo de discussão. Mas, infelizmente está ainda muito afastada do tema. No que se refere aos principais países que coordenam estas negociações, pode-se verificar que as propostas reais, que deveriam ser ousadas ou mesmo minimamente consensuadas, não estão postas na mesa. Os governos estão distantes do real problema climático e da crise ecossistêmica que atinge a maior parte das nações e compromete nosso futuro. O quadro é muito grave, mas a doença econômica atingiu profundamente as mentes dos gerentes de nossas vidas. Ou o IPCC está mentindo, bem como os cientistas sérios da área ambiental, quando afirmam que a situação é muito grave, ou os governos estão loucos em, simplesmente, considerar somente soluções paliativas. A crise financeira, de setembro do ano passado, poderia ser uma das últimas chances para a mudança. Tudo indica que não adiantou muito. Os representantes dos governos responderam com falsas soluções, meramente econômicas de curto prazo, que acabaram incrementando o atual modelo industrial, altamente emissor de gases de efeito estufa (GEE). O governo brasileiro incrementou, por exemplo, a compra de automóveis individuais, fato que denota total insensibilidade e, ademais, vai na contramão da necessidade de se adotar as medidas mais básicas que diminuam esses gases. Então, o que esperar deles? Não dá para esperar. Vamos ter que pautar, se ainda há tempo, um processo verdadeiro e participativo para abarcar o problema.

IHU On-Line – Alguns países desenvolvidos como os EUA e emergentes como o Brasil ainda não manifestaram compromissos em assumir metas de redução das emissões de gases de efeito estufa. O que justifica e explica tal relutância? Isso tende a dificultar as negociações e a estabelecer metas concretas em Copenhague?

Paulo Brack -
O setor ligado ao grande capital, que dita os rumos econômicos dos países (desenvolvidos ou emergentes), não aceita, e nunca aceitou, regras. O Brasil, representado por seu governo, considera que as soluções para a redução dos GEE, como o CO2 e o metano, poderiam interferir no “desenvolvimento”. Assim, nossos representantes oficiais são agentes deste impasse. Ademais, perdura o tema da Amazônia, que nem de longe está bem encaminhado. E quando o governo levanta uma proposta é, justamente, para abrir caminho às “oportunidades”. Estas estão evidenciadas pelo incentivo aos agrocombustíveis, infelizmente, baseados em monoculturas, e às energias “renováveis”, ainda decorrentes da produção calcada em grandes hidrelétricas de alto impacto ambiental. O impasse brasileiro ficou manifesto quando no dia 16 de outubro, o negociador-chefe do Brasil para o assunto do acordo das emissões, Luiz Alberto Figueiredo Machado, representante do Itamaraty, afirmou que as negociações para a Conferência da ONU sobre mudanças climáticas estão em "uma fase muito difícil" e é possível que se chegue a Copenhague sem consenso e sem vontade de, realmente, mudar o quadro. Na verdade, o governo brasileiro joga a responsabilidade do problema para as nações desenvolvidas, podendo talvez assumir algum comprometimento com algumas metas de redução de emissões se houver financiamento dos países desenvolvidos para os emergentes.

IHU On-Line – Países que participam da Convenção do Clima em Copenhague falam em metas de redução de 40% até 2050. Quais são, na sua opinião, metas corajosas e de impacto para combater as mudanças climáticas?

Paulo Brack -
O secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, fez um apelo recente em favor de ações imediatas em relação à redução das emissões. Na prática, 2050 pode ser tarde. Vamos esperar 40 anos? Isso é sério. É mais fácil, para governantes de visão imediatista, jogar o problema para o futuro. Melhor dizendo: esta proposta seria uma forma de “tocar com a barriga” para os governos que virão. E – convenhamos - as políticas de cada administração têm validade de quatro a cinco anos. Alguém conhece planos governamentais que perpassem os mandatos destes prazos curtos de seus mandatos? Deveriam ser adotadas metas onde os prazos fossem mais curtos, atingindo etapas de um processo que poderia ser reavaliado a cada cinco anos, por exemplo. Políticas de médio e longo prazo, não parecem ser algo muito verossímil nos dias atuais. É muito mais uma carta de “boas intenções”, o que não serve mais, diante do quadro grave do atual quadro climático mundial.

IHU On-Line – Em que medida as mudanças climáticas deixam de representar apenas um problema climático e transcendem para um dilema social e econômico?

Paulo Brack -
A crise climática faz parte da crise ecossistêmica. A situação socioambiental está se tornando insuportável. Exagero? Os dados de assassinatos no Brasil falam por si só. Entre as dez cidades com maiores índices de homicídios, sete estão situadas justamente na região do Arco do Desmatamento, segundo dados da OIE (Organização dos Estados Ibero-Americanos). Coincidência? Estamos destruindo a floresta amazônica e o cerrado, emitimos GEE, derivados das queimadas e do desmatamento e esta realidade está longe da pauta dos governos. A situação das grandes cidades também é de uma violência extraordinária e uma exclusão galopante. Mas, a pauta agora é a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Temos que decifrar o que o Planeta está sinalizando. Entender isso é fundamental. Mas a circunferência da bola de futebol chama mais a atenção do que a outra, mais complexa, representada pelo planeta Terra.

IHU On-Line – Considerando a atual situação climática, econômica e social do planeta, que medidas precisam ser acordadas com urgência em Copenhague?

Paulo Brack -
Se partirmos de uma boa e sincera disposição dos governos para enfrentar o problema - o que parece não ser o caso - o acordo deveria prever uma avaliação das responsabilidades, principalmente daqueles que controlam o modelo atual de “desenvolvimento”. O Brasil, por exemplo, tem uma economia de exportação para os países mais desenvolvidos que o coloca, em parte, como refém de um setor agrícola e industrial, altamente demandante de fontes de energia que estão neste círculo vicioso da emissão do GEE. Esse é um tema que deveria fazer parte da pauta de discussão. Outra questão é que o prazo de reavaliação das metas e dos acordos deveria ser muitíssimo mais curto que os 40 anos previstos. Talvez, convenções a cada cinco anos. Porém, os acordos necessitariam incorporar a participação da sociedade. Mas isso não cai do céu. A demanda por acordos verdadeiros já está sendo apresentada, por exemplo, pelos Amigos da Terra Internacional, especialmente um grupo desta ONG no Chile, quando levantam a bandeira pela Justiça Climática e Ambiental. Creio que se poderia agregar Justiça Climática e Socioambiental. Mas isso seria viável neste sistema capitalista da globalização do “vale-tudo-econômico”? O tal MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo) já demonstrou que não é o caminho, pois, justamente, joga a questão para o Mercado Global, o grande vilão de tudo isso.

IHU On-Line – Como o senhor percebe a movimentação de grandes empresas e movimentos sociais e ambientais, por exemplo, em relação ao encontro e as propostas possíveis na Convenção do Clima?

Paulo Brack -
Bom, na minha avaliação, a situação ainda é de muita disputa. As empresas querem manter sua imagem, em parte maculada por sua responsabilização maior ou menor no assunto, e o modelo sem mudanças substanciais. Querem incrementar o MDL. E também jogam com as oportunidades de expandirem seus negócios, por exemplo, com a implantação de projetos com mega monoculturas arbóreas com fins industriais. Assim, não querem discutir a enorme contradição na implantação dos gigantescos desertos verdes de eucalipto e pinus, pois, de maneira cartesiana, mais uma vez, encontram uma “solução” para fixar carbono. Por sorte o Protocolo de Kyoto não considerou isso, mas a Bolsa do Clima de Chicago sim. Quem garante que essa falsa solução de empresas não ganhe espaço em Copenhague? Assim, as empresas estão longe de enfrentar o problema, principalmente as grandes, pois são geridas por uma lógica de acumulação ilimitada, que é inviável diante das premissas mais básicas da sustentabilidade ecossistêmica. Elas não aceitam limites, pois o capital nunca os aceitou. Por outro lado, o Greenpeace tem algumas propostas bem objetivas, muito mais técnicas. Essas, infelizmente, na minha opinião, tangenciam o real problema, que já é ecossistêmico. O problema central é político. De modelo. Não têm soluções meramente técnicas. Pedir simplesmente energias renováveis e clamar que Lula vá a Copenhague é deixar o problema na superficialidade. Essas propostas, quando adotadas, são muito mais analgésicos para um problema crônico de saúde ambiental e de uma pandemia do modelo econômico de esgotamento. Mas levantar esse problema incomoda ao sistema econômico que reina no mundo.

IHU On-Line – O REDD (Redução de Emissões para o Desmatamento e Degradação) é visto como uma alternativa importante no sentido de preservar as florestas e tem sido apontado com grande expectativa nas discussões pré-Copenhague. Essas medidas podem trazer resultados satisfatórios na redução de gases de efeito estufa?

Paulo Brack -
Diferentemente do MDL, que não considera as florestas naturais remanescentes, o mecanismo REDD propõe compensações financeiras aos proprietários que se comprometem a proteger suas florestas nativas por pelo menos meio século. Creio que o modelo de dar valor econômico para a floresta em pé, ou para o desmatamento evitado, tem que ser melhor avaliado. A proposta parece boa, mas se for realizada sem um conjunto de outras medidas que incluam, por exemplo, a proteção e o resgate da biodiversidade e a inclusão social no campo, em modelos sustentáveis, onde o latifúndio das monoculturas quimicodependentes não tenha mais espaço. Não existe um ou outro caminho isolado, ainda mais neste quadro em que o Estado está se afastando dos direitos da sociedade e tornando-se cada vez mais servil às soluções mágicas de mercado. Não existem soluções isoladas para problemas sistêmicos.

IHU On-Line – Como o senhor vislumbra a participação brasileira no encontro?

Paulo Brack -
O governo Lula já demonstrou, por inúmeras vezes, que somente atua nas demandas ambientais muito mais ambicionando uma visibilidade internacional, do que realmente representando um projeto de nação ecosoberana. Nosso diferencial, representado pela enorme biodiversidade e a sociodiversidade, inclui elementos que jazem nas pautas deste e dos governos que o antecederam. O alegado prejuízo econômico redunda de uma visão convencional e imediatista, em um “desenvolvimento”, onde o modelo é do gigantismo, ou dos EUA, ou da China. Creio que o núcleo duro do governo brasileiro, que comandará a posição do Brasil, representado pelos setores da área econômica e do desenvolvimento, está muito mais interessado nas “oportunidades” do tema, levando em conta nossa riqueza em potenciais ditos convecionalmente “renováveis” de energia (rios e biomassa), onde a biodiversidade não vale nada diante do paradigma da grande escala de produção.

IHU On-Line – Que novo modelo econômico de desenvolvimento é compatível com as mudanças climáticas?

Paulo Brack -
A pergunta é profunda demais para ser respondida por uma só pessoa e por poucas palavras. O novo modelo talvez deva ser o da compatibilidade do processo econômico da desacumulação, o que verdadeiramente é mais ecológico. O desapego a esta sociedade de consumo e acumulação é a postura mais justa e verdadeira para nos salvar desta situação. Isso faz bem à saúde mental e à saúde do planeta. Ocorre que o sistema econômico de acumulação está profundamente doente e nos arrasta para o abismo climático e socioambiental, ou ecossistêmico. Temos tempo para refletir sobre isso, pelo menos para vivermos um pouco mais felizes.

IHU On-Line – Qual é o risco para o planeta se ocorrer um atraso do acordo climático mundial em Copenhague?

Paulo Brack -
Se a questão for colocada da maneira com que é apresentada, realmente, as chances são grandes de não dar em nada, resultando em um pseudo-acordo, o que é mais provável. Talvez, as catástrofes que se avizinham, lamentavelmente, serão a oportuna mexida para acordos climáticos e sócio-ambientais mais verdadeiros.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algo que considera importante?

Paulo Brack -
Ocorreu uma situação inusitada que me foi relatada há umas poucas semanas. A população de Araranguá, SC – uma das cidades brasileiras que mais sofre de eventos climáticos - participou ativamente de um debate nacional sobre o tema das mudanças climáticas, neste mês de outubro, em um evento que ocorreu no próprio município. De acordo com ambientalistas que participaram do evento, o assunto foi encarado com enorme interesse por quase mil pessoas, inaugurando, talvez, uma das demandas locais que estão tocando de perto os brasileiros de todas as cidades. Se outras cidades brasileiras trouxerem o tema das mudanças climáticas e também fizerem a ligação com o problema profundo do abuso do modelo de vida, que cria tudo isso, talvez estejamos abrindo mais um espaço, genuíno, para a busca de um outro modo de vida, mais sustentável, justo e feliz, que não se confronte com a vida.

domingo, 25 de outubro de 2009

Apropriação da vida


Guerra de patentes no fundo do mar


Os cientistas se lançam no registro de organismos dos oceanos para desenvolver aplicações médicas ou energéticas. Mas a apropriação de elementos da natureza é vista como uma nova biopirataria.

A reportagem é de Mónica López Ferrado e publicada no jornal El País, 20-10-2009. A tradução é do Cepat.

Nos mares e oceanos, milhões e milhões de microorganismos diminutos, que não chegam a medir nem micra [plural de micron, milionésima parte de um milímetro], são responsáveis por mais de 80% de processos como o ciclo do CO2, a captação de energia ou a mudança climática. Isso sem perder de vista seu papel na cadeia alimentar. Um litro de água marinha pode conter ao menos 25.000 tipos de micróbios. Nos mares mais ricos até 100.000, alguns com propriedades fantásticas como a bioluminiscência ou toxinas para sobreviver. Entender sua complexidade não apenas pode dar respostas a questões tão importantes como a origem da Terra, sua grande biodiversidade ou a mudança climática. Também tem um grande potencial comercial para criar novos medicamentos ou biocombustíveis. As patentes sobre a vida produziram um grande debate em terra firme que agora se reproduzir mar adentro.

Atualmente, não é permitido patentear organismos vivos. Contudo, agora, as novas tecnologias se sequenciamento tornaram acessível a caixa preta destes bichos: seu DNA. O funcionamento de um gene, ou vários, pode converter-se na engrenagem de bactérias artificiais a serviço da humanidade, postas a trabalhar para criar energia ou tratar doenças. E isso é possível patentear.

Visto este potencial, cada vez são mais numerosas as expedições científicas e comerciais (ou ambas, às vezes) que se adentram nos ecossistemas aquáticos do planeta à pesca de novos genomas. De fato, nos últimos seis anos foram registradas mais da metade das patentes relacionadas com recursos genéticos marinhos. Diante disso, os países que contam com uma riqueza marinha pedem regras claras. Muitos já tiveram que lutar contra a biopirataria terrestre, como aconteceu com o México e a tentativa norte-americana de patentear o feijão. Ou no Equador, com uma variedade de ayahuasca. Se as bactérias que são descobertas nessas expedições forem encontradas em águas territoriais (200 milhas da costa), o Convênio para a Biodiversidade da ONU reconhece a soberania dos países sobre seus recursos genéticos. E sobre as sequências de seus genes?

Sem dúvida, a expedição com maior potencial neste campo é a do Sorcerer II, uma iniciativa de Craig Venter, pai do genoma humano, que começou em 2003 e que já rastreou as águas de meio continente. Seu objetivo científico, e sem fim comercial segundo insiste em seus aparecimentos, consiste em desentranhar o metagenoma dos mares (seus microorganismos, seus genes e como interagem). Ninguém está alheio a que entre suas atividades mais lucrativas está a de criar vida artificial com bactérias com poucos genes, mas funções bem concretas. Segundo o próprio Venter, sua expedição ambiciona ser tão revolucionária quanto o foram, na sua época, as descobertas de Charles Darwin. Já detectou seis milhões de novos genes. Na revista Science publicou o metagenoma de um mar inteiro, o Mar de Sargazos.

Atualmente, o Sorcerer II se encontra ancorado entre Valência e Barcelona, à espera das licenças estipuladas pela Convenção sobre Direito do Mar da ONU. No começo de novembro sua equipe científica também se reunirá com pesquisadores do CSIC [Conselho Superior de Pesquisas Científicas] na Espanha, da Itália e da Grécia. Robert Friedman, à frente da expedição do Instituto Venter, insiste em que “a intenção é avançar no conhecimento científico da biodiversidade microbiana”. Como garantia de que suas descobertas não serão monopolizadas pela empresa de Venter, Friedman explica que a sequência do DNA de todos os microorganismos descobertos se encontra à disposição pública e gratuita em uma base de dados, Camera. Além disso, com os países que o solicitaram foram assinados acordos explícitos regidos pelo Convênio da Biodiversidade da ONU e que garantem a sua soberania sobre os recursos genéticos. Isso sim, todos são diferentes. No caso da Costa Rica ou do México, supõe um mero reconhecimento de sua soberania sobre os recursos genéticos, mas não estipula nenhum direito de propriedade intelectual. Na Austrália, o acordo é mais específico: “Todos os direitos de propriedade intelectual em relação com os materiais ou qualquer derivado, incluindo a propriedade intelectual resultante (direta ou indiretamente) do uso destes materiais ou qualquer derivado, investimentos ou outros usos”, explica Friedman. “Se um país pede para assinar direitos de propriedade intelectual, o fazemos”, acrescenta.

Na prática, a expedição cumpre com as normas internacionais, mas o que representa tornar públicos todos os recursos genéticos para os países que não assinaram um acordo claro sobre sua exploração comercial? É certo que a lei de patentes não permite que os genes em si mesmos sejam patenteados. Mas seus usos e derivados. Em consequência, se não há um acordo explícito, o país em questão terá dificuldades para reclamar benefícios sobre a exploração de bactérias únicas encontradas em suas águas.

Para aqueles que criticam a expedição de Venter, colocar o sequenciamento genético à disposição de todos não significa estar em igualdade de condições. O genoma é apenas um mapa. É a tecnologia para interpretá-la que faz com que se possa tirar um proveito comercial. “Em outro mundo, estaria bem, mas a realidade é que para interpretar toda essa informação genética são necessárias ferramentas disponíveis apenas por alguns países ricos, ou seja, podem usar a informação apenas aqueles que tiverem meios para interpretá-la. Para nós, trata-se de uma estratégia, não de autêntica forma de democratizar: é melhor colocar a informação à disposição de todos para que assim ninguém me critique”, afirma Silvia Ribeiro, representante da organização não governamental ETC Group, uma das que lutou de forma mais ativa contra a biopirataria e, precisamente, a que mais desconfia da atividade de Venter.

Mas nem todos veem atrás de Venter a sombra ampliada da biopirataria. Também há pesquisadores que percebem a situação como uma oportunidade para a ciência autóctone de cada país, caso se estabeleça o marco adequado. Muitos cientistas buscam microorganismos no mar há muito tempo e com muitas dificuldades. Não perdem de vista que pouquíssimos no mundo têm o potencial de sequenciamento de Venter. Não é estranho que outra das estratégias que Venter aplicou para adentrar-se no mar seja envolver os cientistas da região a ser explorada.

Entretanto, nas primeiras expedições não foi assim. Na Costa Rica, por exemplo, foi assinado um acordo pelo qual se pactuou a participação dos pesquisadores autóctones. Algo que Giselle Tamayo, coordenadora de bioprospecção do InBio, o maior centro de pesquisa em biodiversidade do país, vê como uma oportunidade perdida. “O convênio de biodiversidade é um marco. Se não pedes nada, perdes tudo. Nesta negociação não se pediu mais do que o custo da permissão e não se tirou o proveito que se poderia ter tirado. Se nos tivessem consultado (seu Governo), teríamos dito ‘sim, vamos em frente’, mas com condições, com a nossa participação para assim poder aprender, e com a informação que já coletamos, que teria permitido recolher dados nas zonas onde sabemos que há maiores possibilidades de futuro”. Tamayo está consciente do potencial de suas águas: “Ninguém perde de vista que, mesmo que a expedição seja científica, também pode ter um interesse comercial, mas se colaborarmos ambas as partes podem se beneficiar”.

Para os pesquisadores espanhóis, colaborar com Venter representa uma injeção de recursos importantes. Os pesquisadores do Instituto de Ciências do Mar de Barcelona do CSIC ainda têm que negociar os termos da colaboração com o Sorcerer II pelo Mediterrâneo. Não será a primeira vez que trabalham com o Instituto de Venter que, para os pesquisadores espanhóis, também representa uma oportunidade. “Para mim, Craig Venter é um gênio, há pouquíssimas pessoas que têm essa visão excepcional. Estamos encantados com a quantidade de dados que colocou à disposição pública, sua influência vai ser determinante”, afirma Carles Pedrós-Alió, pesquisador do centro encarregado dos contatos com a expedição.

O Instituto Venter já se encarregou de sequenciar os genomas de duas bactérias heterotróficas descobertas pelo Instituto de Ciências do Mar na baía de Blanes. Para sobreviver, extraem a sua energia do consumo de matéria orgânica, mas também da luz. “Poderiam ser comparadas aos carros híbridos, que funcionam em parte com eletricidade e em parte com combustível. Interessa-nos o gene para utilizar a luz”, explica Pep Gasol, um dos pesquisadores do centro. Procedem da baía de Blanes. “O acordo com Venter era que contaríamos com a sequência das bactérias com exclusividade durante meio ano para poder publicar resultados”, explica Carles Pedrós-Alió, pesquisador principal do projeto. Os pesquisadores estão satisfeitos com o fato de terem publicado suas descobertas na revista Nature e na PNAS. “Por isso, acreditamos que Blanes é o primeiro ponto do Mediterrâneo que Venter deveria explorar”, afirma Gasol. Qual é o potencial comercial do genoma desta bactéria? Talvez poderia ser utilizado em processos energéticos. Patentes? Elas não existem. “Nosso interesse é conhecer os organismos do mar”, afirma Pedrós-Alió.

Esta posição contrasta com a de outros pesquisadores com uma visão mais protecionista: “Há muitos cientistas que pensam que todos os recursos genéticos pertencem à humanidade, que não estão limitados pelas fronteiras de um país. Aqui cremos que um país deve ter o direito de decidir o que fazer com seus recursos genéticos e a ser reconhecido”, afirma Tamayo. Seu centro trabalha com genes presentes nas bactérias do trato intestinal dos cupins, o que permitiria aproveitar melhor a energia. Neste caso, contam com um acordo com uma empresa norte-americana que Tamayo reconhece como “vantajoso para o nosso país e para eles”. Em última instância, todas estas descobertas, realizadas com fundos públicos, também podem impulsionar o I+D do país colaborador, e reverter no financiamento de novos projetos públicos.

Outra expedição europeia, o Projeto Mamba, com participação espanhola através do Instituto de Catálise e Petroquímica do CSIC, que busca explicitamente princípios ativos para aplicações médicas nos microorganismos marinhos. Mas enquanto Venter explora águas superficiais, o projeto se centra em fossas do Mediterrâneo que se encontram a mais de 3.500 metros de profundidade, localizadas no Golfo de Rosas, na Líbia e Sicília. Ali se concentram altos níveis de sal, acumulado ali há milhares de anos, quando o Mediterrâneo secou. Nestas zonas se acumula um quilo de sal por litro de água, explica o pesquisador do CSIC Manuel Ferrer. “Ali vivem microorganismos extremófilos, muito interessantes por seu metabolismo, já que são capazes de produzir enzimas interessantes para a biomedicina”, acrescenta.

Neste caso, oito centros públicos colaboram com três empresas privadas. Entre elas, a Pharmamar. “Uma expedição custa entre 30.000 e 40.000 euros por dia. Nossas expedições duram não mais de três semanas e custam meio milhão de euros”, explica. Nesse sentido, Ferrer reconhece o potencial de Venter, que para terminar seu projeto conta com o financiamento da Fundação John e Betty Moore (mais de quatro milhões de dólares) e do Departamento de Energia dos Estados Unidos (outros 12 milhões). As amostras recolhidas são enviadas aos laboratórios de Venter nos Estados Unidos, que têm potencial para produzir 240.000 sequências a cada 24 horas.

Além da relevância científica que, evidentemente, a descoberta de uma nova bactéria tem, dá-se um passo a mais na exploração do potencial comercial destas bactérias? Ferrer indica que aí está o interesse de colaborar com a indústria. No Projeto Mamba ainda não se acertou os termos da divisão dos direitos das possíveis patentes que surgirem entre o sistema público e as empresas privadas. Por suas outras experiências, Ferrer indica que “as empresas costumam querer levar entre 98% e mesmo 100% dos royalties. Este é um problema pelo qual se deve lutar, mas tivemos que passar por aí porque o pesquisador necessita desse dinheiro”.



sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Uma ilha sem estrangeiros, sem câmeras e sem problemas


A política xenófoba praticada pelo ministério do interior italiano, através do ministro Roberto Maroni, da Liga Norte, provoca abandono de centro de refugiados em Lampedusa (Itália).

A reportagem é de Stefan Troendle e publicada no sítio Deutsche Welle, 21-09-2009.

O lema do ministro italiano do Interior, Roberto Maroni, é evitar que refugiados cheguem a território italiano. Pequenas embarcações conseguem, apesar da política do governo, aportar na Itália, mas os passageiros estão sendo discretamente transportados para a Sicília, passando ao largo das observações da mídia.

As associações que o nome Lampedusa até agora desencadeavam se deviam ao superlotado campo de admissão de refugiados situado no centro da ilha. Um campo que, na verdade, já havia se tornado quase num pequeno povoado. Até há pouco, praticamente todo imigrante ilegal que chegava à Itália era levado para esse centro, onde permanecia pelo menos por alguns dias.

Às moscas

No ano passado, 31 mil refugiados passaram por ali. Hoje, o centro se encontra vazio. No início de junho último, os últimos habitantes do campo foram removidos, e agora não há mais nenhum imigrante ilegal em Lampedusa.

"É surreal. Não encontro outras palavras para descrever. Durante muito tempo, havia 1.500 pessoas aqui. E agora só nós. Parece completamente diferente", resume Paola Silvino, vice-diretora do centro. Silvino lembra, por exemplo, o mês de outubro de 2008, um momento em que o número de refugiados em Lampedusa atingiu seu ápice. "Outubro foi um mês recorde, com a chegada de incontáveis embarcações. Em alguns dias, tivemos aqui mais de duas mil pessoas. Foi um desses meses todos se acotovelavam por aqui", conta Silvino.

Apreensões em alto-mar

A vice-diretora do centro não cita oficialmente as razões pelas quais o campo se encontra agora vazio, embora elas sejam óbvias. O ministro Maroni, da Liga Norte, partido italiano de extrema direita, quer assim provar o sucesso de sua política xenófoba para refugiados.

Desde maio deste ano, ele ordena que as embarcações de refugiados sejam apreendidas em alto-mar e que dali sejam levadas à Líbia, antes que qualquer passageiro tenha posto os pés na Itália e adquira, assim, a possibilidade de requerer asilo.

A Itália, desta forma, transgride a Convenção para Refugiados de Genebra. Além disso, Lampedusa é um dos pontos nevrálgicos nessa questão. Se dali não saem imagens de refugiados para serem divulgadas pela mídia, isso significa, na lógica que Maroni vende como bem-sucedida, que não há mais refugiados no país.

Deportação imediata

Apesar disso, ainda há imigrantes que conseguem chegar ao país por via marítima, mesmo que em número bem menor do que no ano passado. Estes, no entanto, não estão mais sendo levados a Lampedusa, mas sim a Porto Empedocle, na Sicília, ou a outros lugares, quando não são deportados de imediato.

Os funcionários do campo de acolhimento em Lampedusa não têm alternativa exceto esperar. "Estamos sempre a postos, nossos funcionários estão aqui 24 horas por dia. Da administração até as assistentes sociais, passando pelos trabalhadores especializados, para nós nada mudou. Garantimos uma prestação de serviços em potencial, pois, no momento, não há nenhum imigrante ilegal aqui. Mas estamos prontos, caso chegue alguém", descreve uma funcionária.

Protestos veementes

Outra razão pela qual Lampedusa deixou de ser centro de admissão de refugiados foram os protestos furiosos na ilha. No início do ano, o governo italiano quis concentrar ali todos os refugiados que chegavam ao país por via marítima (chamados de boatpeople), até que estes fossem deportados, o que desencadeou um estado de emergência na ilha.

Os moradores de Lampedusa foram às ruas protestar e no campo superlotado houve uma revolta no dia 18 de fevereiro, quando refugiados queimaram colchões e provocaram um incêndio, destruindo o prédio principal.

Hoje, já está tudo consertado, conta Paola Silvino. "Está tudo reconstruído, do jeito como era antes. Os trabalhos estão quase encerrados e todas as instalações prontas para serem usadas de novo. O prédio tinha sido completamente queimado e teve, por isso, que ser construído de novo."

Embora tudo indique que as instalações irão permanecer vazias, pelo menos a médio prazo. Parecem ter sido completamente deixados de lado, mesmo que não oficialmente, os planos de ampliação para um segundo campo de deportação, a ser construído numa caserna da Marinha desativada na outra extremidade da ilha.

Fechado para sempre?

Os prédios, todos em decadência, ainda estão sendo vigiados por três soldados, com alguns cães de guarda ao redor, embora não haja mais nenhum sinal de uma reforma em andamento. No campo de admissão na ilha, há oficialmente lugar para 850 pessoas. A vice-diretora Paola Silvino não sabe dizer quanto tempo essas instalações ainda permanecerão vazias, se algum dia serão reocupadas ou se serão até mesmo fechadas para sempre.

Apenas de uma coisa ela se diz certa: da qualidade dos serviços prestados ali. Para os funcionários do campo de acolhimento, a postura xenófoba do ministro do Interior, que afirmou publicamente que o país deveria "ser mau" com os refugiados, não tem vez em Lampedusa, garante Silvino. "Aqui nunca ninguém foi maltratado. Sempre tentamos fazer o melhor que podíamos para tratar essas pessoas da forma mais digna possível", resume.






quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Uma Abordagem Ética à Proteção Ambiental



Ensinamentos: Uma Abordagem Ética à Proteção Ambiental

Por S.S. O Dalai Lama





A paz e a vida na Terra estão ameaçadas por atividades humanas não compromissadas com valores humanitários. A destruição da natureza e seus recursos é resultado da ignorância, da cobiça e da falta de respeito pelos seres vivos, incluindo nossos próprios descendentes. As gerações futuras herdarão um planeta extremamente degradado, caso a paz mundial não se efetive e a destruição da natureza continue nesse ritmo.

Nossos ancestrais viam a Terra como rica e generosa, o que ela realmente é. Muita gente no passado também via a natureza como inexaurivelmente sustentável. Está comprovado que caso cuidemos bem da Terra, ela pode ser efetivamente uma fonte inesgotável de recursos.

Não é difícil perdoar a destruição causada à Terra no passado, fruto da ignorância. Hoje, contudo, temos fácil acesso a todo o tipo de informação e é essencial que examinemos eticamente o que herdamos, quais são nossas responsabilidades e o que passaremos para as gerações vindouras. Muitas dessas gerações poderão não conhecer habitats, animais, plantas, insetos e microorganismos da Terra. Temos a capacidade e a obrigação de agir e devemos fazê-lo antes que seja tarde demais. O mesmo cuidado que temos em cultivar relações pacíficas com nossos semelhantes, deve ser estendido ao meio ambiente.

E não apenas por uma questão moral ou ética, mas pela nossa própria sobrevivência. Para a geração presente e para as futuras, o meio ambiente é fundamental. Se o explorarmos exaustivamente, podemos receber algum benefício hoje, mas, a longo prazo, sofreremos as conseqüências. Quando o meio ambiente se altera, as condições climáticas também se alteram e, por conseguinte, nossa saúde está sendo muito afetada. Repetindo, a conservação não é meramente uma questão moral, mas sim da nossa própria sobrevivência.

Portanto, para conseguirmos proteção e conservação ambiental mais eficazes, é essencial que o ser humano desenvolva um equilíbrio interno. O desconhecimento em relação à importância da preservação do meio ambiente causou graves danos à humanidade. Precisamos agora ajudar as pessoas a compreenderem a necessidade urgente da proteção ambiental para a nossa sobrevivência.

Se você quer ser egoísta, então seja sábio e não mesquinho em seu egoísmo. A chave está no nosso senso de responsabilidade universal. Essa é a verdadeira fonte de luz, a verdadeira fonte de felicidade. Se esgotarmos tudo o que estiver disponível na Natureza, como árvores, água e sais minerais, e não fizermos um planejamento adequado para as próximas gerações, para o futuro, certamente estaremos em falta. Entretanto, se tivermos um verdadeiro senso de responsabilidade universal como força motriz, nossa relação com o meio ambiente e com nossos vizinhos serão bem mais equilibradas.



Por último, a decisão de salvar o meio ambiente deve brotar do coração do homem. Clamemos a todos para que desenvolvam um senso de responsabilidade universal fundamentado no amor, na compaixão e na clareza de consciência.

(Texto extraído da obra A Policy of Kindness, Snow Lion Publications, 1990.)

O viver junto com o outro é uma das grandes questões do século XXI



Duas semanas depois de a França ter fechado a "selva" de Calais, refúgio de 800 imigrantes ilegais a caminho da Grã-Bretanha, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) divulgou uma verdadeira acusação contra as políticas anti-imigratórias. Apresentado nesta segunda-feira (5), o relatório anual do Pnud é inteiramente consagrado a este tema, sob o título explícito "Levantar as barreiras, migração e desenvolvimento humanos".

Catherine Wihtol de Wenden, diretora de pesquisa no Centro de Estudos e Pesquisas Internacionais, que acaba de publicar A Globalização Humana, depois do recente Atlas Mundial das Migrações (editora Autrement), também acredita que os governos estão no caminho inverso ao privilegiar a abordagem da segurança.

A pesquisadora concedeu entrevista à Grégoire Allix do Le Monde, 11-10-2009, reproduzida pelo Uol Notícias Internacional com tradução de Eloise De Vylder.

Eis a entrevista.

Por que podemos falar da globalização das migrações?

Quase todas as regiões do mundo estão agora preocupadas seja com saída, seja com a recepção, seja com o trânsito de migrantes. É uma revolução considerável. Em menos de vinte anos, o mundo entrou em movimento. Mas este período de mobilidade generalizada não traduz necessariamente uma migração de povoamento. Muitos migrantes desejam a mobilidade como modo de vida. A mobilidade é valorizada pelos mais qualificados, pelos mais ricos, mas os pobres também a aspiram. As pessoas não aceitam mais a fatalidade de nascer em um país pobre, mal governado, sujeito a riscos climáticos.

Em que isso obriga as sociedades a evoluir?

Esse fenômeno diz respeito a viver junto com o outro, ou seja, a própria definição de cidadania. Os países europeus vivem há pouco tempo a experiência desse multiculturalismo, que conduziu os Estados Unidos, o Canadá e a Autrália a redefinirem sua cidadania durante os anos 60. O viver junto com o outro é uma das grandes questões do século 21: todas as sociedades estarão envolvidas com a migração. Isso também é verdade no sul: o Marrocos, o México, a Turquia ainda são países de saída, mas também passaram a ser países de recepção e trânsito. Há uma confusão de status dos países, mas também das categorias de migrantes. Ao longo de sua vida, uma pessoa pode ser um imigrante ilegal, um trabalhador qualificado, um refugiado.

Por que essa evolução é tão dolorosa para a Europa?

A Europa tem dificuldades para aceitar que é um continente de imigração. Ela até hoje não integrou o fato de ter se tornado uma região de recepção, porque ela foi por muito tempo uma região de saída de emigrantes. De repente, ela se tornou uma terra não somente de imigração - depois da 2ª Guerra Mundial -, mas de povoamento. Os imigrantes passaram a fazer parte da população dos países europeus. Há um sentimento por parte de certos grupos de opinião de que a Europa está perdendo sua identidade. A imigração é vista de uma forma defensiva, daí a tensão quanto ao controle de fronteiras, os clandestinos, etc.

Portanto, o Pnud afirma que a imigração beneficia os Estados...

Sim, é o que todos os estudos mostram. Mas os países só ganham se os imigrantes tiverem seu status reconhecido, se pagarem as contribuições sociais, consumirem, enviarem dinheiro para seus parentes... E não se tiverem de se esconder o tempo todo. Ainda assim, na maior parte dos países desenvolvidos, os menos qualificados, aqueles que têm os trabalhos mais duros, são ilegais. É urgente desenvolver um estatuto do imigrante. Isso faz muita falta no mundo de hoje. As mobilidades não são acompanhadas, elas são impedidas. Em matéria de saúde, de meio ambiente, os governos escutam as recomendações dos especialistas. As migrações são o único domínio onde os Estados fazem sistematicamente o contrário daquilo que todos os especialistas preconizam.

É possível que haja um direito universal à mobilidade?

Isso está progredindo. É uma diplomacia paralela, proposta pelas Nações Unidas no fórum mundial sobre a migração e o desenvolvimento, que se reunirá pela terceira vez em Atenas em novembro. Colocaremos na mesma mesa não só os países de acolhimento, até agora os únicos que decidiram as políticas migratórias, mas também os países de saída, os empregadores, os sindicatos, as ONGs... A convenção das Nações Unidas sobre os direitos dos trabalhadores migrantes só foi assinada por quarenta Estados, todos do terceiro mundo. Os países de acolhimento têm muita dificuldade em aceitar que devem adotar uma posição em comum, como em matéria de clima.

Isso não acontece porque o direito à mobilidade coloca em questão o modelo de Estado-nação?

Sim, de fato. O grande perdedor com essa mobilidade é o Estado, em sua tentativa de impor sua soberania sobre o controle das fronteiras, sobre a definição da identidade nacional. Os governos resistem muito fortemente, confortados por suas opiniões públicas mais conservadoras. Durante o endurecimento recente das políticas migratórias, houve o efeito da crise econômica, é claro, mas também o fato de que consideramos as migrações, antes de mais nada, como uma questão de segurança. Nós criminalizamos a migração, em detrimento da abordagem econômica e social que prevalecia antes.


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segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Lester Brown: ''O que se necessita é de liderança''




Lester Brown diz que, às vezes, seus pontos de vista parecem extremos porque a grande maioria dos meios de comunicação dominantes não entende a urgência e os desafios que impõe o catastrófico fenômeno da mudança climática. “Não podemos nos dar ao luxo de deixar que o planeta esquente muito mais”, afirma. Após trabalhar como fazendeiro no Estado de Nova Jersey (EUA), na década de 60 entrou para o Serviço Civil, convertendo-se em um especialista em políticas agrícolas ates de fundar o Worldwatch Institute, em 1974.

A reportagem e a entrevista é de Stephen Leahy, da IPS, e publicada pela Agência Envolverde, 08-10-2009.

Ganhador de muitos prêmios e títulos honoríficos, Brown é autor de 50 livros. Em 2001 fundou o Earth Policy Institute, com sede em Washington, do qual é presidente, para traçar um mapa do caminho para uma economia ambientalmente sustentável. A IPS conversou com Brown sobre seu novo livro, “Plan B 4.0: Mobilizing to save civilization” (Plano B 4.0: mobilizar para salvar a civilização). Trata-se da quarta versão, e talvez a mais urgente, da série “Plano B”, que pode ser acessada no site do Instituto na Internet.

Eis a entrevista.

Em seu novo livro você reclama redução de 80% nas emissões de carbono até 2020. Isso é muito mais do que qualquer país propôs até agora.

Os líderes políticos se fixam na magnitude que deveria ter a redução das emissões para ser politicamente viável. No Earth Policy Institute, entretanto, avaliamos quanto é preciso para evitar os efeitos mais perigosos da mudança climática. As enormes plataformas geladas da Groenlândia e da Antártida ocidental já estão derretendo em ritmo acelerado. Se derreterem completamente, isso elevará em 12 metros o nível do mar. Os glaciais de montanha estão diminuindo em todo o mundo e correm risco de desaparecer, incluídos os das montanhas da Ásia, onde o derretimento dos gelos alimenta os principais rios do continente durante a estação seca. Para estabilizar o clima e manter o futuro aumento das temperaturas globais em um mínimo, precisamos manter a concentração de dióxido de carbono em 400 partes por milhão.

É possível semelhante redução das emissões?

Exigirá uma mobilização mundial própria de tempos de guerra. Primeiro, investir em eficiência energética nos permitirá impedir o aumento da demanda mundial por energia. Deixar de usar diodos emissores de luz e passar a sensores inteligentes como os detectores de movimento, o que pode reduzir em 90% a quantidade de eletricidade utilizada em iluminação. Depois, podemos reduzir em um terço as emissões substituindo os combustíveis fósseis por fontes de energia renovável na produção de eletricidade e calor. Em poucos anos, o Texas vai quadruplicar sua produção de energia eólica para oito mil megawatts. E pretende aumentar para 40 mil MW, o equivalente a 50 centrais alimentadas a carvão.

Reduções adicionais de 14% nas emissões seriam conseguidas reestruturando nossos sistemas de transporte e diminuindo o uso de carvão e petróleo na indústria. Acabar com o desmatamento em todo o mundo pode representar redução de mais 16%. Por último, plantar árvores e manejar solos para capturar carbono pode absorver outros 17%. Nenhuma dessas iniciativas depende das novas tecnologias. Sabemos o que é necessário fazer para reduzir em 80% as emissões de dióxido de carbono até 2020. e tudo o que se precisa agora é liderança,.

A maioria das pessoas, incluídos os líderes políticos, não parece ter nenhum senso de urgência ou perigo a respeito da mudança climática. O que motiva esta proposta de mobilização “de guerra”?

A mudança já está ocorrendo e se acelerando. As emissões de carbono nos Estados Unidos baixaram 9% este ano, e não apenas pela recessão. Duvido que no futuro se construa uma nova usina elétrica movida a carvão neste país: somente neste anos, 22 serão fechadas ou reconvertidas. Quando o aumento do nível do mar for mais evidente, as pessoas agirão. Isto é algo semelhante à queda do Muro de Berlim, em 1989. houve anos de descontentamento generalizado antes dessa queda, e depois, aparentemente da noite para o dia, se produziu uma revolução política que mudou tudo. Esmos nos movendo para esse tipo de ponto de inflexão.

Quais outros sinais de que o planeta está chegando a esse ponto de inflexão?

Vejo uma mudança nos padrões de socialização. Em uma época, obter a licença para dirigir ou possuir um automóvel era a chave para a interação social dos jovens. Isso está mudando. No Japão, a socialização agora acontece via Internet e as vendas de carros novos estão em queda. A frota automobilística diminui, inclusive nos Estados Unidos, e aumenta o uso de bicicletas.

Também vejo muito busca por valor: quais são os efeitos na saúde do uso de automóveis e do estilo de vida baseados no traslado contínuo? Como podemos construir ruas completas com passeios e ciclovias que sejam seguras para todos? A crise econômica também mudou o pensamento. Creio que surgiremos como uma sociedade muito menos materialista.

Isso será suficiente para reestruturas as economias mundiais?

Não sei. No final, a corrida para salvar a civilização é entre os pontos de inflexão sócio-econômicos e os naturais.

sábado, 17 de outubro de 2009

Dieta saudável pode ajudar a reduzir o consumo de energia e de alimentos nos EUA






Estudo constata que uma dieta saudável e um regresso à agricultura tradicional podem ajudar a reduzir o consumo de energia e de alimentos nos EUA.

A notícia é de Henrique Cortez e publicada por EcoDebate, 30-09-2009.

Estima-se que 19 por cento do total da energia utilizada nos EUA é consumida na produção e distribuição de alimentos. A energia norte-americana é, majoritariamente, de origem fóssil, cada vez mais cara e escassa, além de ser a principal fonte de emissão de carbono nos Estados Unidos.

No estudo “Reducing energy inputs in the US food system“, publicado na revista Human Ecology, David Pimentel e seus colegas da Universidade de Cornell, em Nova York, apresentam uma série de estratégias que poderiam cortar o consumo de energia fóssil utilização na produção e distribuição de alimentos em 50 por cento .

O primeiro argumento é que as pessoas comam menos, especialmente considerando que o americano médio consome um número estimado de 3747 calorias por dia, contra um consumo recomendado de 1200-1500 calorias. A alimentação do americano médio, é, tradicionalmente, baseada em dietas com quantidades elevadas de produtos de origem animal e de alimentos processados, que, pela sua natureza, utilizam mais energia do que a necessária para a produção de alimentos, como a batata, arroz, frutas e legumes.

Só pela redução de consumo de produtos de origem animal já teria um enorme impacto sobre o consumo de combustível, bem resultaria na melhora da sua saúde.

Outras economias são possíveis na produção de alimentos. Os autores sugerem que se produzam no sentido mais tradicional, a agricultura biológica ou agroecológica, métodos mais convencionais, que demandam menos energia. A seleção de culturas mais eficientes também reduziria a utilização de adubos e pesticidas, aumentando da utilização de estrume e observando as rotações de cultura, para a melhoria da eficiência energética.




Por último, as alterações dos métodos de processamento de alimentos, embalagem e distribuição também poderão ajudar a reduzir o consumo de combustível. Um produto processado, do campo ao consumo, percorre uma média de 2400 km antes de ser consumido.

Este estudo defende veementemente que o consumidor está na posição central para uma redução da utilização de energia. Como indivíduos, ao abraçar um estilo de vida “ecológico” , com a tomada de consciência das suas escolhas alimentares, podemos influenciar os recursos energéticos. Para isto basta comprar produtos locais e evitar alimentos processados, embalados e de qualidade nutricional inferior. Isto levaria a um ambiente mais limpo e a uma saúde melhor.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Sobre a transposição do Rio São Francisco



Manifestantes criticam as obras de revitalização do São Francisco e são barrados






Panfletos que foram apreendidos durante a manifestação


Cerca de 50 manifestantes, na cidade de Buritizeiros (MG), tiveram panfletos e faixas apreendidos, no momento em que se dirigiam para o palanque onde o presidente Lula e a comitiva que o acompanha discursavam a respeito das obras de esgotamento sanitário que tem sido feito na região. As obras fazem parte do programa de revitalização do São Francisco, projeto que tem sido executado pelo governo federal e que é alvo de várias críticas do Comitê da Bacia do São Francisco e da sociedade civil organizada.

A reportagem é de Ingrid Campos, da Articulação Popular do São Francisco, e publicada por EcoDebate, 15-10-2009

O Governo, com um forte aparato policial, tentou a todo custo impedir qualquer manifestação contrária ao seu discurso eleitoral. O grupo que dirigiu em marcha para o local, foi barrado por duas vezes pela polícia militar, que a todo o tempo afirmava que estava apenas organizando as ruas para receber a comitiva do governo.

No local, a polícia tentou impedir o acesso dos manifestantes, que insistentemente reivindicaram o direito de entrar. Todos foram revistados e tiveram os seus panfletos e faixas apreendidos. Afirmando que tal ato era para garantir a segurança pública, ficaram sem resposta para o alerta dos manifestantes sobre o bóton da presidência que estava sendo distribuído para todos na entrada. Preso com alfinete, a ponta do bóton oferecia perigo maior que o panfleto dos manifestantes. “Um grande esforço foi feito com o objetivo de banir, antidemocraticamente, toda reação contrária à pseudo-revitalização”, protesta a agente da CPT/MG e integrante da Articulação Popular pela Revitalização do São Francisco, Letícia Rocha.

Os manifestantes que conseguiram entrar, todo o tempo proclamavam: Lula, que traição povo não quer transposição! / O projeto da transposição reforça a indústria da seca. Conviver com o sem-árido é a solução!/ Lula, você mentiu a reforma agrária não saiu!

Irritado, o presidente retomou seu velho discurso de transposição para os pobres do nordeste e pediu a imprensa para anotar e dar ênfase aos números das obras do PAC, que começou a ler. Cada dado lido, no entanto, foi respondido pelos manifestantes com gritos de: Pinóquio!

Na comitiva eleitoreira estavam: Pe. João, Pe. Salvador, prefeito de Buritizeiro (MG), Ciro Gomes, Jaques Wagner, o governador da Bahia, Luiz Tadeu Leite, o prefeito de Montes Claros (MG), Geddel Vieira Lima, Ministro da Integração e a candidata do presidente para o Palácio do Planalto, Dilma Rousseff. A Ministra da Casa Civil não discursou, permaneceu calada durante todo o tempo. Apenas Geddel, Lula e o Pe. Salvador discursaram e tentaram conseguir, em vão, o grito de apoio à candidatura de Dilma das pessoas que assistiam. A tentativa não teve respaldo popular.

Esgotamento Sanitário não barra poluição

Os manifestantes afirmam que o problema do São Francisco não é só o esgotamento e que esse está sendo feito com muitas irregularidades. Em Buritizeiros, há apenas o início do encanamento em algumas ruas. Da propangada estação de tratamento, existe apenas a proposta de um local.

Em Pirapora, a situação é mais vergonhosa, a obra já concluída com recurso do PAC, encontra-se na Fazenda da Prata, às margens do rio. Do tratamento, o que está funcionando é apenas a separação de resíduos sólidos. A água é acumulada em uma grande bacia (cheia de cianobactérias) com uma canalização que a joga, esverdeada, direto no rio. “Talvez, seja essa uma das razões pela qual o presidente desistiu de visitar o município de Pirapora. Seus emissários certamente verificaram o mau uso do recurso público de R$ 4,5 milhões”, analisa Letícia.

Nas proximidades da Estação, foi possível verificar também a drenagem de uma lagoa marginal. Os moradores da cidade, críticos à obra, questionam se no EIA/RIMA da obra da estação consta a existência de tal lagoa, que foi drenada durante o processo de construção da estação.

“É por isso que cada vez mais o povo vai reconhecendo que a verdadeira revitalização só será possível com garantia dos territórios das populações tradicionais, que poderão conquistar um São Francisco Vivo: Terra, Água, Rio e Povo!”, defende Letícia Rocha.

Obra de transposição divide especialistas


O projeto de transposição do São Francisco dividiu não apenas os políticos de Estados que perderão ou ganharão água, mas também especialistas. Engenheiros, geólogos e ambientalistas estão longe de um consenso sobre o impacto da obra.

A reportagem é de Daniel Bramatti e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 15-10-2009.

Para o geólogo Pedro Ângelo Almeida Abreu, doutor em Ciências Naturais pela Universidade de Freiburg (Alemanha) e reitor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri , o projeto representa a "redenção" do semiárido nordestino.

Já o engenheiro João Abner Guimarães, professor do Laboratório de Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, vê a iniciativa como "uma fraude que não tem nada a ver com a seca".

A discordância não se limita aos aspectos técnicos, como a necessidade de água nas regiões que serão atingidas e os eventuais prejuízos ao rio e a seu entorno. Até as causas e efeitos políticos da obra são encaradas de forma divergente.

Para Guimarães, a obra é resultado de lobbies de setores beneficiados pela chamada "indústria da seca". Já Abreu afirma que vêm da mesma "indústria" os ataques ao projeto, pois ele teria potencial para acabar com a "hegemonia política de coronéis e oligarquias que sempre abocanharam os recursos para o combate à seca".

"A perenização de alguns rios e a manutenção de açudes cheios vai melhorar o abastecimento às pessoas e, ao mesmo tempo, viabilizar projetos de irrigação, fruticultura, criação de peixes", previu o reitor da UFVJM.

"A água vai escoar, na parte inicial, por áreas despovoadas, e depois irá para grandes barragens, onde não falta água. Nenhum carro-pipa deixará de ser contratado", disse o professor da UFRN.

INTERESSES

Debatida desde a época do Império, a transposição do São Francisco foi apresentada como prioridade já no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O projeto em andamento prevê a abertura de 720 quilômetros de canais para levar a água do maior rio do Nordeste para áreas de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. Estados que perderão água sempre protestaram contra a obra, mas a resistência diminuiu com a eleição de correligionários de Lula na Bahia e em Sergipe.

"É um grande lobby. Um vírus que se instalou no governo Itamar Franco, se replicou no governo Fernando Henrique Cardoso e ficou mais forte no governo Lula. São os interesses econômicos das empreiteiras que mandam neste País", afirmou João Abner Guimarães.

Para Almeida Abreu, as críticas à obra vêm de pessoas que a desconhecem ou que fazem "propaganda ostensiva" por temer que o vale do São Francisco - polo de produção de frutas e vinhos - perca investimentos para regiões mais ao norte.

"Fui testemunha de discussões com argumentos que beiram a ignorância. Vi gente dizendo que grande parte da água seria perdida com a evaporação. Los Angeles é abastecida por água que atravessa todo o deserto de Mojave, e as taxas de evaporação são insignificantes", afirmou o reitor.

Abner Guimarães afirma que o alto custo da água nas regiões atendidas vai inviabilizar a irrigação e o estabelecimento de novos polos de fruticultura, a não ser que os consumidores das cidades paguem a conta.

"Haverá um subsídio cruzado, semelhante ao que existe no setor de energia. As cidades do Nordeste setentrional vão acabar subsidiando a irrigação, mesmo as que não precisam da água do São Francisco."

O professor ataca ainda o discurso oficial de que a transposição beneficiará cerca de 12 milhões de habitantes dos Estados atingidos. "É mentira. Não há infraestrutura para levar água para essas pessoas."


Execução de transposição do São Francisco está em 15,3%


A execução média das obras de transposição de parte das águas do rio São Francisco está em 15,3%, segundo balanço apresentado ontem pelo Ministério da Integração Nacional ao presidente Lula. Isso indica que, para cumprir as metas estipuladas pelo governo para dezembro deste ano, a execução nesses 75 dias terá de superar o total realizado desde o início das obras, em agosto de 2007.

A reportagem é de Eduardo Scolese e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 15-10-2009.

No balanço de fevereiro do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), o governo estimava para abril a execução de ao menos 18% das obras do eixo norte (rumo ao Ceará) e de 20% do eixo leste (em direção ao centro de Pernambuco).

Não atingidas, essas metas foram modificadas há dois meses, quando Lula e a ministra Dilma Rousseff (Casa Civil), diante de um relatório que apontava o atraso nos dois eixos da obra, exigiram a ampliação do número de máquinas e de operários, além da adoção de três turnos de trabalho - o que, diz o governo, deu um carimbo "adequado" ao ritmo das obras.

Agora, a meta oficial aponta, para dezembro, a execução de pelo menos 32% das obras do eixo norte e de 40% no leste.

Além das empresas que venceram as licitações, o Exército é o responsável por uma parte da obra. Os militares, segundo o balanço do ministério mostrado ontem a Lula, já concluíram 51% dos trechos sob sua responsabilidade: canais de aproximação (entre o rio e as estações de bombeamento) e duas barragens, em ambos os eixos.

A média de execução dos 14 lotes, ou seja, sem a ação dos militares, é de 12,7% -de 21,6% no leste e de 7,8% no norte.

O secretário-executivo da pasta, João Reis Santana, disse que as "obras estão dentro do cronograma previsto". Em relação a mudanças nas estimativas do PAC, a informação é que houve uma "readequação dos cronogramas físico e financeiro", mas que a meta de finalização dos eixos foi mantida.

O término das obras do eixo norte está previsto para 2012, por isso o governo dá atenção especial ao trecho leste, com chances de ser inaugurado no ano eleitoral de 2010.

Ontem, Lula iniciou uma viagem de três dias aos canteiros de obras do projeto de revitalização e transposição, tendo ao lado a ministra Dilma, pré-candidata petista ao Planalto.

Hoje, de acordo com documento da Integração Nacional, dos 14 lotes da transposição, 9 estão em andamento. A paralisação física nos cinco restantes ocorre por diferentes fatores, como editais de licitação não publicados e embargos jurídicos.

O projeto (executivo e ambiental) e a obra de transposição, orçados em R$ 5,5 bilhões, já consumiram R$ 847,5 milhões. Há ainda R$ 1,5 bilhão para a revitalização do rio. Segundo o governo, cerca de 12 milhões de nordestinos serão beneficiados com o projeto, uma das vitrines do PAC.

Reportagem de ontem da Folha mostrou que, segundo a ANA (Agência Nacional de Águas), os Estados receptadores da transposição (Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte) ainda não têm pronta uma estrutura de gestão para receber essas águas.

Entre outros pontos, a agência reguladora exige que esses Estados tenham um órgão estadual equipado que cuide da qualidade da água e organize um sistema eficaz de cobrança aos consumidores - como habitantes da zona urbana e fazendeiros interessados na irrigação de suas propriedades.



Fontes: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=26609

e

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=26614

Socialismo em crise no novo milênio


Artigo de Anthony Giddens


Segundo o sociólogo britânico Anthony Giddens, "o declínio dos progressistas representa uma tendência ampla e prolongada". "Há muito a ser pensado, discutido e repensado, observando esse fenômeno", afirma o sociólogo, que foi diretor da London School of Economics e assessor do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 29-09-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A derrota do partido social-democrata na Alemanha foi pesada, até pior do que o previsto, confirmando uma fase de dificuldade para todos os partidos de centro-esquerda na Europa. Segundo previsões e pesquisas, o Labour também perderá o poder nas eleições previstas para a próxima primavera [europeia] na Grã-Bretanha: o declínio dos progressistas representa, portanto, uma tendência ampla e prolongada. Há muito a ser pensado, discutido e repensado, observando esse fenômeno.

Uma primeira consideração a ser feita é que, contrariamente ao que muitos esperavam, a crise do sistema financeiro, o colapso dos bancos e das bolsas, a recessão global que atravessou e em parte continua atravessando o mundo não produziram maiores consensos para os partidos de centro-esquerda europeus, ou seja, para aqueles movimentos que podiam mais facilmente distanciar-se de um capitalismo que a todos pareceu, de repente, como muito ávido, não muito regulado, não suficientemente útil ao desenvolvimento da sociedade.

Esse consenso que faltou à centro-esquerda, frente à crise do capitalismo, tem, a meu ver, duas explicações. Uma é que essa crise aumentou as divisões dentro da esquerda, reforçando o radicalismo daqueles que recusavam a reviravolta reformadora iniciada por Tony Blair e Gerard Schroeder no Reino Unido e na Alemanha nos anos 90. Em muitos países, essa divisão entre esquerda reformadora e esquerda radical se acentuou por causa da crise econômica e contribuiu para uma série de derrotas eleitorais.

A segunda razão é que os partidos de centro-direita, principalmente em alguns países, souberam dar uma resposta válida para a crise: Merkel na Alemanha e Sarkozy na França, por exemplo, estiveram entre os mais ativos a pedir uma nova reflexão sobre os mecanismos do mercado e uma contenção dos excessos dos banqueiros e dos bancos. Os progressistas diziam a mesma coisa, mas não eram os únicos a dizer.

A segunda consideração é que seria errado, ao julgar o equilíbrio político do planeta, concentrar-se exclusivamente no que está ocorrendo nos 27 países da União Europeia. Em nível global, com efeito, não se pode falar hoje de um retraimento das forças progressistas, mas, pelo contrário, é preciso reconhecer seu avanço. Isso é evidente a todos no mais poderoso e importante país do Ocidente, os Estados Unidos, onde a vitória de Barack Obama colocou em ação uma completa inversão das políticas seguidas pelo seu predecessor republicano. Na América e em outros lugares, alguns comentaristas estão desiludidos com Obama, mas a meu ver pareceria ridículo esperar que, em poucos meses, o novo presidente pudesse realizar resultados concretos em matérias delicadas e complexas: o que conta é que Obama está redesenhando a agenda global, não só dos EUA, mas também do mundo, das armas nucleares ao clima, das finanças ao bem-estar, até o diálogo com blocos aliados e adversários.

Partidos progressistas alcançaram ou conservaram o poder também na Índia e no Brasil, ou seja, em duas das três maiores nações emergentes, além da Austrália e do Japão, esta última uma conquista de significado histórico. E resultados análogos foram verificados em outros países da América Latina. Portanto, só a Europa, até agora, é o terreno onde a esquerda se encontra em dificuldades. Alguns comentaristas se perguntam como o efeito Obama ainda não se refletiu na Europa, assim como ocorreu depois da vitória de Bill Clinton. Mas a vitória de Clinton não causou imediatamente o seu efeito na Europa: o presidente democrata foi eleito à Casa Branca em 1992, Tony Blair assumiu o poder em Londres só em 1997. Por isso, é muito cedo para dizer que o efeito de Obama entre nós ainda não se fez sentir. Esperemos: é pos sível que iremos senti-lo em alguns anos.

Uma terceira consideração ajuda a compreender o que está ocorrendo no velho continente. A Europa se encontra novamente em confronto com novos problemas que a deixam em ansiedade: a imigração, o crime, a busca por uma identidade nacional diante da globalização. Para enfrentá-los, a centro-esquerda está procurando elaborar uma nova política liberal-reformadora: mas ainda não a definiu totalmente. Os progressistas entendem que hoje é necessário repensar a relação entre Estado e cidadão, entre Estado e mercado: mas ainda não decidiram completamente como. A crise financeira não é uma crise como as outras, assim como a ameaça posta pelas mudanças climáticas não é uma ameaça normal: tudo isso requer uma análise teórica aprofundada e o esforço de entender que, para certos problemas, não existem necessariamente soluções de direita ou de esquerda, mas sim a necessidade de encontrar alternativas verdad eiramente novas.

Em conclusão, a centro-esquerda tem necessidade hoje de dois elementos: a elaboração de um novo pensamento político para enfrentar os problemas postos por um mundo radicalmente mudado e a capacidade de unir todas as suas forças, pondo fim às divisões entre moderados e radicais. Dividida, enfraquece-se e perde, como ficou demonstrado, por exemplo, na Itália. Mas unir as forças de esquerda não é uma operação que pode ser feita só em nome do pragmatismo, formando uma coalizão heterogênea, capaz talvez de ganhar a maioria das urnas, mas incapaz depois de governar e de fazer as reformas necessárias: é preciso, pelo contrário, conseguir eliminar a suspeita de que a esquerda tradicional tem com relação à esquerda moderada e, ao mesmo tempo, conquistar os eleitores centristas, sem os quais seria difícil vencer nas urnas.

Se não conseguir fazer isso, a esquerda está em perigo. Mas as divisões, a meu ver, não são irrep aráveis. Melhor, a situação atual oferece um desafio para se criar um novo pensamento político. Não acho que um resultado semelhante seja impossível. Gostaria de poder contribuir para realizá-lo.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Robert Kurz: A esquerda e a dialética sujeito-objeto do fetichismo moderno




Por: Patricia Fachin e Márcia Junges

Tradução Benno Dischinger e Walter O. Schlupp, 30/03/2009


Robert Kurz não faz concessões ao aproximar o pensamento pós-moderno com a ideologia neoliberal. Agora, diz ele, “a esquerda pós-moderna se depara com os destroços das suas ilusões e é confrontada com a dura realidade de uma crise monumental, a qual desde o começo ela não quis admitir e para a qual ela, por isso, não está preparada”. Incapaz de captar a “dialética sujeito-objeto do fetichismo moderno”, a esquerda caiu num “objetivismo tosco ou num subjetivismo igualmente tosco”. As ideias foram desenvolvidas na entrevista concedida por Kurz, por e-mail, à IHU On-Line.

O rótulo de ‘pós-modernidade’ era fajuto, argumenta, “e, no caso de Negri, desembocou no conceito totalmente vazio de ‘multidão’, que significa tudo e nada. O esvaziamento do sujeito tem seu correlato numa virtualização das lutas sociais, que em grande parte somente ainda têm caráter simbólico, sendo cada vez menos capazes de intervenção real”. Dessa forma, continua Kurz, “a esperança pelo ‘renascimento da política’ é a maior de todas as bolhas. Os danos provocados pela limitação política dos prejuízos serão inclusive maiores que a crise atual. O Estado somente ainda consegue regulamentar a morte definitiva do seu capitalismo. Neste aspecto, a esquerda também está desorientada enquanto não conseguir questionar os próprios fundamentos do sistema”. Se a esquerda quiser aproveitar “o bonde da administração estatista da crise” para iniciar suas reformas sociais, ela “acabará descarrilando junto com ele”, vaticina. “Ela bem que merece esse destino”.

Robert Kurz estudou Filosofia, História e Pedagogia. É cofundador e redator da revista teórica EXIT! — Kritik und Krise der Warengesellschaft (EXIT! — Crítica e Crise da Sociedade da Mercadoria). A área dos seus trabalhos abrange a teoria da crise e da modernização, a análise crítica do sistema mundial capitalista, a crítica ao Iluminismo e a relação entre cultura e economia. Publica regularmente ensaios em jornais e revistas na Alemanha, Áustria, Suíça e Brasil. Entre seus livros publicados em português, citamos O colapso da modernização (São Paulo: Paz e Terra, 1991), O retorno de Potemkin (São Paulo: Paz e Terra, 1994) e Os últimos combates (Petrópolis: Vozes, 1998).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - As atuais crises financeira e ecológica estão relacionadas com o “colapso da modernização”?

Robert Kurz -
O termo colapso é um chavão provocativo, geralmente usado em sentido pejorativo, no intuito de desqualificar como “apocalípticos”, que não devem ser levados a sério, os representantes de uma teoria radical da crise. Não só as elites capitalistas, mas também os representantes da esquerda preferem acreditar que o capitalismo pode renovar-se eternamente. É claro que um sistema social global não desmorona de uma hora para outra como um indivíduo infartado. Mas a era do capitalismo passou. Afinal de contas, a modernização não foi outra coisa senão a implementação e o desenvolvimento desse sistema, não vindo ao caso se os mecanismos eram do capitalismo privado ou do capitalismo estatal.

Apesar de todas as diferenças exteriores, o fundamento comum consiste na “valorização do valor”, isto é, na transformação de “trabalho abstrato" em “valor agregado”. Entretanto, esta não é uma finalidade subjetiva, mas um fim em si mesmo que acabou ficando independente. Tanto os capitalistas quanto os assalariados, assim como os agentes estatais, não passam de funcionários desse fim em si mesmo que se soltou e está incontrolável, o qual Marx chamou de “sujeito automático”. No caso, a concorrência universal força a uma dinâmica cega do desenvolvimento da capacidade produtiva, a qual constantemente gera novas condições de valorização para finalmente encontrar uma barreira histórica absoluta.

A barreira econômica interior consiste no fato de o desenvolvimento da força produtiva levar a um ponto em que o “trabalho abstrato” enquanto “substância” do “valor agregado” é tão reduzido, mediante racionalização do processo produtivo, que fica impossível aumentar o valor real [reale Verwertung]. Essa “dessubstancialização do capital” ou “desvalorização do valor” significa que os produtos em si deixaram de ser mercadoria, podendo ser representados em forma monetária como forma genérica de valor, limitando-se a ser meros bens de consumo. A finalidade da produção capitalista, porém, não é a fabricação de bens de consumo para satisfazer necessidades, e sim o fim em si próprio que é a valorização. Por isso, segundo critérios capitalistas, ao se alcançar a barreira econômica interna é preciso fechar a produção e, portanto, o processo vital da sociedade, mesmo que todos os meios estejam disponíveis.

Capitalismo virtual

Em termos reais, essa situação já havia surgido em meados dos anos 80, com a terceira revolução industrial. O capitalismo prolongou sua vida em forma “virtualizada”, por um lado, mediante endividamento historicamente sem precedentes (antecipação de valor agregado futuro, que na realidade jamais poderá ser resgatado); por outro lado, pelo inchaço, igualmente nunca visto, das assim chamadas bolhas financeiras (ações e imóveis). Esse pseudoacúmulo de capital monetário “desprovido de substância” foi usado para alimentar também a produção real de mercadorias.

Resultou daí uma conjuntura deficitária global com fluxos de exportação de mão única principalmente para os Estados Unidos. As zonas de processamento de exportação da China e da Índia, porém, não representam uma expansão real do “trabalho abstrato”, porque seu ponto de partida não foi poder de compra real, e sim o capital monetário “desprovido de substância” representado no endividamento e nas bolhas financeiras. Por mais de duas décadas se nutriu a ilusão de que o “crescimento tocado exclusivamente pelas finanças” seria viável. De forma alguma, o fim dessa ilusão consiste exclusivamente numa crise financeira. A decantada “economia real”, na verdade, há muito que já não é mais real, e sim foi alimentada artificialmente com bolhas financeiras “desprovidas de substância”. Agora o capitalismo é reduzido a seus reais fundamentos de valorização. A consequência é uma nova crise da economia mundial, sem que se vislumbrem novos potenciais reais de valorização.

Ao mesmo tempo, o capitalismo esbarra em sua limitação externa natural. Na mesma medida em que ficou supérfluo o “trabalho abstrato” enquanto transformação de energia humana em “valor agregado”, acelerou-se a expansão da aplicação tecnológica das energias fósseis (petróleo, gás). A dinâmica cega do desenvolvimento da capacidade produtiva não controlada socialmente levou, por um lado, ao previsível esgotamento dos recursos de energia fóssil e, por outro, à destruição do clima global e do meio ambiente natural, em grau igualmente previsível.

A barreira natural exterior e a barreira econômica interior apresentam horizonte temporal diverso. Ao passo que o final da real “valorização do valor” já se encontra no passado e a economia capitalista atravessa sua crise histórica agora, no espaço de poucos anos (grosso modo ao longo da próxima década), a barreira natural absoluta ainda se encontra no futuro (num período de no máximo duas a três décadas). A crise econômica e o concomitante fechamento de capacidades de produção refreiam o esgotamento dos recursos energéticos – às custas da crescente miséria social global na forma capitalista. Simultaneamente, porém, os processos de destruição das bases naturais e do clima apresentam tamanho avanço, que não chegam a ser detidos pela crise econômica, sendo que a barreira natural exterior será atingida apesar de tudo.

Destruição capitalista da natureza

O fim da modernização significa, portanto, que, além de ter que superar a forma capitalista da reprodução, durante muito tempo uma sociedade mundial pós-capitalista terá que sofrer e lidar com as consequências da destruição capitalista da natureza. Para a análise e crítica teórica da crise, é importante enxergar a interconexão interna das duas barreiras históricas do capitalismo. Existe, porém, o perigo de jogar um contra o outro esses dois aspectos da crise histórica; isto vale para ambos os lados: para as elites capitalistas bem como para os representantes de um “reducionismo ecológico”, que somente admitem a barreira natural exterior. A gestão capitalista da crise e o reducionismo ecológico poderiam entrar em aliança perversa, que redundaria em negar a barreira econômica e, em nome da crise ecológica, pregar às massas depauperadas e miseráveis uma ideologia da “renúncia social”. Contra isso, é preciso sustentar que a crise, a crítica e a superação da estrutura capitalista têm prioridade, porque a destruição da natureza é consequência, e não causa da barreira interior desse sistema.

IHU On-Line - Por que o senhor diz que o vexame da crise é também o vexame da esquerda pós-moderna?

Robert Kurz -
A crise não é nenhum vexame, mas um processo objetivo, resultante da dinâmica cega da concorrência e do desenvolvimento descontrolado da capacidade de produção. No que tange à esquerda pós-moderna, pode-se falar de vexame na medida em que descartou, em sua maior parte, a crítica da economia política. O “economismo” dos tradicionais marxistas de partido só foi criticado para eliminar de vez a objetividade negativa das categorias capitalistas de “trabalho abstrato” e “valorização do valor”. A dinâmica de crise inerente ao capitalismo passou totalmente despercebida, tendo sido traduzida para “possibilidades ilimitadas”. Tal como as elites neoliberais, a esquerda pós-moderna acreditava no “crescimento tocado a finanças” e se transformou na expressão ideológica do capital fictício. O virtualismo econômico foi complementado pelo virtualismo tecnológico da internet. O Second Life do espaço virtual sofreu a mutação de tornar-se a forma de vida “propriamente dita”, o suposto “trabalho imaterial” de Antonio Negri, acabou sendo a continuação da ontologia capitalista do trabalho.

O real problema de substância do “trabalho abstrato” foi negado; um “antissubstancialismo” ideológico (ou “antiessencialismo”) a contrastar com Marx denunciou esse problema de substância como mera metafísica de um pensamento ultrapassado, em vez de nele reconhecer uma “metafísica real” do capitalismo, a qual não deixa de ser bastante material. Concomitantemente, ocorreu uma orientação pela esfera da circulação. A ilusão financeira capitalista de que atos de compra e venda também poderiam gerar crescimento, como a real produção de mercadorias, também constituiu a premissa implícita do pensamento pós-moderno. O endividado sujeito de mercado e consumo aparecia como portador da reprodução e de uma possível emancipação, sendo que nem mais se podia dizer em que esta consistiria.

O falso virtualismo econômico e tecnológico teve seu correlato filosófico numa epistemologia que não mais queria criticar e superar a fetichista “aparência real” da relação de capital, mas seduzia para a crença de a pessoa poder “realizar-se a si própria” nessas condições. Seguindo as ilusões virtualistas, a “gaiola de ferro” (Max Weber) do sistema produtor de mercadorias foi redefinida como “ambivalência” e “contingência” abertas para tudo e a qualquer hora. Verdade, mesmo a verdade negativa da crítica, não teria mais base objetiva nas condições reinantes, mas podia ser “produzida” e “negociada”. Para a esquerda pós-moderna, a natureza negativa do capital se dissolvia numa indefinível “pluralidade” [“Vielfalt”, “diversidade”] de fenômenos, a qual se apresentaria como desconexa “pluralidade” de movimentos sociais, sem focalizar o âmago concreto do capital.

Pensamento pós-moderno e neoliberalismo

Em termos sociais, a esquerda pós-moderna foi um trendsetter da individualização e flexibilização capitalista. O flexi-indivíduo abstrato não foi reconhecido como forma do sujeito burguês em crise, mas recebeu o nimbo de antecipação da individualidade liberta já no seio do capitalismo. Em vez de aparecer como forma última de existência do mercado totalitário e como ameaçadora “guerra de todos contra todos” na concorrência universal da crise, a individualização aparecia como forma atomizada da “autorrealização”, e o “ser humano flexível” (Richard Sennet) se apresentava não como objeto indefeso ao sabor das imposições capitalistas, mas como seu próprio “soberano”, que poderia conquistar novos espaços e transformar a si próprio no que quisesse. A proximidade do pensamento pós-moderno para com a ideologia neoliberal sempre foi inquestionável, apesar dos contrastes exteriores. Agora a esquerda pós-moderna se depara com os destroços das suas ilusões e é confrontada com a dura realidade de uma crise monumental, a qual desde o começo ela não quis admitir e para a qual ela, por isso, não está preparada.

IHU On-Line - A esquerda de hoje vive uma crise existencialista? Antes de sugerir alternativas para as crises atuais, a esquerda mundial teria de resolver seus próprios impasses? Para o senhor, há atualmente um vazio teórico das esquerdas ou um “desencontro metodológico” na busca de bases comuns para uma teoria?

Robert Kurz -
A crise existencial da esquerda de hoje consiste justamente no fato de ela não ter conseguido transformar o marxismo e reformular a crítica da economia política dentro dos padrões do século XXI. Pois naturalmente não existe volta para os paradigmas de uma época passada. O rótulo de “pós-modernidade” era fajuto, porque a real transformação social do capitalismo não inaugurou novos espaços sociais, mas justamente marcou a transição para sua ruína histórica. Nem o fim do antigo movimento operário nem o naufrágio do “socialismo real” foram digeridos criticamente. A transição pós-moderna não superou o marxismo tradicional, apenas lhe deu continuidade numa forma esvaziada. Enquanto desaparecia totalmente de vista o objetivo socialista e se dissolvia aquela falsa “pluralidade” de aspirações meramente particulares, o paradigma da “classe operária” se transformou numa insustentável multidão de sujeitos sociais postiços; no caso de Negri, desembocou no conceito totalmente vazio de “multidão”, que significa tudo e nada. O esvaziamento do sujeito tem seu correlato numa virtualização das lutas sociais, que em grande parte somente ainda têm caráter simbólico, sendo cada vez menos capazes de intervenção real.

Caracterizar essa situação com “impasses” da esquerda é um eufemismo. A esquerda antiga tanto quanto a pós-moderna acabaram. Não existe mais sujeito ontológico do “trabalho”, porque o “trabalho” acabou revelando ser substância histórica do capital e ficou obsoleto. Com isto, também o paradoxal conceito marxista de “sujeito objetivo” em si, que somente precisaria chegar “a si”, está liquidado em termos históricos e não pode ser continuado em sucedâneos. Neste aspecto, o “vazio teórico” da esquerda é idêntico com o “desencontro metodológico”. A esquerda nunca conseguiu captar a dialética sujeito-objeto do fetichismo moderno. A consequência foi cair num objetivismo tosco ou num subjetivismo igualmente tosco. A oscilação entre esses dois pólos do fetichismo perfaz boa parte das discussões de esquerda que não conseguiram deixar para trás essa polaridade.

Sujeitos paradoxais

Para um novo movimento social emancipatório o que importa não é mais despertar pelo beijo um “sujeito objetivo”, mas fazer uma crítica da forma sujeito, sem salvaguarda ontológica, e interpretá-la como forma de existência capitalista. A forma “sujeito” sempre só pode ser um agente do “sujeito automático” da valorização do capital e não pode ser confundida com a vontade para a ação emancipatória, a qual precisa constituir-se a si própria e não pode ter fundamento ontológico. Isto é algo difícil de ser pensado, porque justamente a esquerda pós-moderna desistiu da crítica do sujeito (o Foucault tardio voltou a apelar para o sujeito particularizado). Essa crítica fracassou principalmente por não estar conectada com a crítica da economia política.

Este problema também está ligado à crítica da moderna relação entre os gêneros. É verdade que a esquerda tradicional e também a esquerda pós-moderna fez suas mesuras obrigatórias perante o feminismo, mas nunca levou realmente a sério a sua temática. Também o próprio feminismo, apesar de meritórias análises, em grande parte limitou-se a definir as mulheres como “sujeito objetivo” tão paradoxal quanto a “classe operária”. O postulado de uma "formação de sujeito" feminina, por isso, leva ao mesmo beco sem saída. Também o feminismo foi vitimado pela transição pós-moderna e dissolveu a forma de existência feminina “divergente” [“abgespalten”] no capitalismo numa “diversidade” de aspirações emancipatórias particulares que não tangem o problema central.

Também aí seria importante mediar a crítica do patriarcado moderno com a crítica da economia política, e não tratá-la como questão “derivada” [“abgeleitet”], secundária. No caso, é fundamental a noção de que as categorias aparentemente neutras do capital e a respectiva forma “sujeito” em si já são “masculinas”, e que a “razão” capitalista é androcêntrica na origem. A dissolução da família tradicional e dos respectivos papéis de gênero nada altera no caso, porque o caráter androcêntrico do capitalismo continua de outra forma. A crítica dessas formas sociais e a crítica da relação capitalista dos gêneros condicionam-se mutuamente e precisam ser pensadas em conjunto.

A crítica do “sujeito objetivo” do “trabalho” e da existência feminina “divergente” não é jogo de palavras, mas tem consequências práticas enormes para a superação do capitalismo. Acontece que desse modo também ficou liquidada a noção do marxismo antigo de emancipação social e de socialismo “dentro” das categorias capitalistas que somente teriam que ser reguladas e moderadas de outra forma. No limite histórico do capitalismo, levanta-se o desafio da “crítica categorial” da conexão entre “trabalho abstrato”, forma de mercadoria e “valorização do valor” bem como da relação entre os sexos neste contexto. Isto também é difícil de ser pensado, porque essas condições existenciais estão interiorizadas, tendo sido inclusive firmadas ainda mais pelo pensamento pós-moderno. Somente a formulação de novo objetivo socialista sobre a base de uma “crítica categorial” pode levar ao desenvolvimento de exigências de transição imanentes que também sejam adequadas no processo da crise histórica, assim obtendo real poder de se impor. Sem o foco unificador sobre o âmago do capitalismo, movimentos sociais permanecem indefesos e particularizados. É de se temer, entretanto, que a esquerda, pega de surpresa pela crise, acabe confiando em concepções demasiado tacanhas de suposta “salvação”, assim apenas ratificando sua impotência histórica.




IHU On-Line - Em que sentido a conjuntura atual tem contribuído para que a política se torne um modelo em extinção? Podemos dizer que a economia “colonizou” a política? Está se repensando a política a partir do que está acontecendo atualmente?

Robert Kurz -
A política centrada no Estado como instância sintetizadora do capitalismo está saindo de linha não por ter sido colonizada pela economia, mas por ter fracassado, há muito, em função de suas próprias premissas. O problema não tem a ver apenas com a condição exterior da globalização do capital, a qual rompeu os espaços de economia nacional. A força reguladora do Estado se extingue principalmente pelo fato de substancialmente nada mais haver para ser regulado. A valorização capitalista nas formas de “trabalho abstrato” de dinheiro sempre já tem constituído a premissa do Estado, a qual ele não consegue contornar. Quando o capital se desvaloriza pelo seu próprio desenvolvimento de capacidade produtiva, o Estado somente consegue reagir a isso mediante inflacionária emissão de dinheiro pelo seu banco central. Isto não supera a falta de substância do capital virtualizado, mas a exacerba como desvalorização do veículo-fim-em-si-mesmo chamado dinheiro. Ocorre que a competência do banco central é puramente formal; sua geração de dinheiro somente pode dar expressão à produção substancial de valor agregado mediante “trabalho abstrato”, mas não consegue substituí-la.

Os limites do crédito estatal já haviam sido alcançados no final dos anos 1970. Naquela época, a expansão do crédito estatal, desprovida de substância, foi punida por surtos inflacionários. A ilusão do neoliberalismo consistiu no fato de atribuir a inflação exclusivamente à atividade do Estado. A desregulamentação neoliberal somente transferiu o problema do crédito estatal para os mercados financeiros. Embora a punição da inflação ficasse protelada por causa do caráter transnacional da economia de bolhas financeiras, o potencial inflacionário começou a manifestar-se na conjuntura deficitária global até 2008. Esse processo, num primeiro momento, foi interrompido porque desde então o capital virtual e com ele a conjuntura mundial estão dando seu último suspiro. Mas se agora o Estado é novamente invocado como “última instância” e deus ex machina, seus pacotes conjunturais e de salvação novamente terão que provocar a desvalorização do próprio dinheiro; só que isso acontecerá numa fase de desenvolvimento mais elevada e em proporção muito maior que trinta anos atrás.

Renascimento da política

Neste cenário, a esperança pelo “renascimento da política” é a maior de todas as bolhas. Os danos provocados pela limitação política dos prejuízos serão inclusive maiores que a crise atual. O Estado somente ainda consegue regulamentar a morte definitiva do seu capitalismo. Neste aspecto, a esquerda também está desorientada enquanto não conseguir questionar os próprios fundamentos do sistema. Na mesma medida em que a suposta “autonomia” dos movimentos sociais particulares e simbólicos vira fumaça pela barreira interior da valorização, é de se temer que a esquerda sofra uma regressão para o seu tradicional estatismo, porque nada mais lhe ocorre. Já agora a maior parte daquilo que pretende ser crítica social de esquerda praticamente não passa de um pouquinho de nostalgia keynesiana. Se é que a esquerda espera lançar suas “reformas sociais” aproveitando o bonde da administração estatista da crise, ela acabará descarrilando junto com ele e, uma vez passado seu carnaval no virtualismo, ela se tornará um trendsetter da política inflacionária. Ela bem que merece esse destino.

IHU On-Line - Que outras forças de esquerda podem surgir nesse momento?

Robert Kurz -
Se fracassar a esquerda global presa nas categorias capitalistas, a gente naturalmente ficará se perguntando onde é que há outras forças de emancipação social. Com certeza haverá rebeliões e conflitos sociais quando as pessoas ficarem privadas de suas condições básicas de vida, por mais precárias que sejam. Essas erupções também podem tomar o rumo da direita, manifestando-se como sexismo, racismo, antissemitismo e nacionalismo, embora isso não tenha a menor chance de superação reacionária da crise. Também ocorrem levantes sociais espontâneos que se entendem vagamente como esquerdistas, como se pode observar na Grécia faz alguns meses. Esses vândalos juvenis a reagir visceralmente contra a opressão das necessidades vitais já estão sendo mitificados por alguns esquerdistas, que os usam contra a necessária transformação teórica.

Mas o culto da espontaneidade sempre passou vexame. As revoltas espontâneas da juventude, por mais organizadas que sejam, darão em nada, se não puderem adquirir uma noção crítica da situação em termos condizentes com a época. Por isso não existe alternativa, senão desenvolver nova meta socialista por meio de uma crítica categorial que não pode ficar vinculada ao “falso caráter imediato” da práxis espontânea. É preciso aguentar essa tensão para que a emergente resistência social não morra sufocada em seu próprio palavreado a campear “filosofia de vida”.

IHU On-Line - O senhor diz que a sociedade mundial precisa se libertar do jogo do economismo real e organizar seus recursos de uma nova forma, além do Estado e do mercado. Nesse sentido, como a esquerda pode desenvolver um trabalho revolucionário e mudar a atual conjuntura? Quais seriam, neste caso, as propostas da esquerda diante da crise financeira internacional?

Robert Kurz -
É preciso salientar que é justamente a sociedade que precisa ser libertada globalmente do economismo real do capital. É verdade que uma nova forma de reprodução somente pode ter êxito mais além do mercado e do Estado. Nos últimos anos, essa fórmula foi cada vez mais usada no sentido de ser apenas uma economia alternativa cooperativista, por assim dizer “ao lado” da síntese social pelo capital, e a qual de alguma maneira haveria de se ampliar aos poucos. Isto apenas dá continuidade ao particularismo “colorido” pós-moderno. Entretanto, a formação negativa de sociedade [negative Vergesellschaftung] do capitalismo somente pode ser superada por inteiro, ou não será superada. A economia alternativa cooperativista já tem um longo histórico e sempre fracassou, da última vez nos anos 1980.

Esta crise de proporções históricas não melhora as condições para semelhantes ideias, muito pelo contrário. Isto porque uma reprodução “alternativa” restrita a um espaço pequeno não só está vinculada a imposições sociais inconfessas, mas também fica na dependência das funções de mercado e Estado, uma vez que por conta própria só consegue satisfazer poucas necessidades vitais. E a reprodução real dos indivíduos fica inserida num encadeamento que Marx, sob condições capitalistas, chamou de “trabalho social total”. Essa estrutura somente pode ser transformada por inteiro; não se pode começar com batatas ou software e achar que se criou um “modelo” em escala reduzida, que só precisaria ser aplicado à sociedade como um todo. O “platonismo de modelo” é produto da teoria econômica burguesa, não da crítica radical.

Quando, em plena crise, por falta de “financiabilidade”, se desligam água e luz, quando entram em colapso a assistência médica e a distribuição capitalista de gêneros alimentícios, então o que está em pauta não é o gradativo “entrar em rede” de comunas que pretendem reformar a vida, ou a “formação de rede” de permuta virtual, e sim a transformação do modo capitalista de “formação de rede” de toda a sociedade. Para tanto, é necessária a resistência organizada de toda a sociedade contra a administração da crise que estipula metas próprias em nível de síntese social.


Robert Kurz


Economia solidária como placebo

Daí só desviam a atenção os placebos particularistas tipo “economia solidária”, que geralmente consistem numa mixórdia de economia de subsistência, “reformas monetárias” ilusórias e abstrata ideologia comunitária. Querem fazer da urucubaca uma bênção. É muito coerente que essas propostas também fiquem namorando com “soluções para a crise financeira” e se aliem à nostalgia keynesiana. Não existe mais solução para a crise financeira; deve-se atacar o próprio critério de “financiabilidade”, se é que se pretenda levar a sério um novo modo de reprodução que vá além do mercado e do Estado.

IHU On-Line - Considerando que estamos na era da informação e vivendo a crise do capital, que novos rumos vão compor o mundo do trabalho no que se refere à relação capital/trabalho? Considerando a inserção de novas tecnologias na sociedade atual, mas também as atuais crises, é possível pensar em desglobalização na era da informatização? Podemos pensar assim em uma nova economia mundial?

Robert Kurz -
A informática enquanto base da terceira revolução industrial justamente gerou o desenvolvimento da capacidade produtiva que necessariamente tinha que levar à barreira interior do capitalismo. Sob condições capitalistas, trata-se de pura “tecnologia da crise”, que só mais além da valorização poderia desenvolver potenciais positivos. A ilusão pós-moderna e do capitalismo financeiro consistia em que a informática implicaria novas formas do “trabalho imaterial”, numa assim chamada sociedade da informação, bem como novas relações entre capital e trabalho, com maior “autodeterminação” dos trabalhadores. Na verdade, a “era da informação” já no passado levou ao desemprego em massa, ao subemprego e à precarização das relações de trabalho. Já a suposta autodeterminação levou a uma compulsiva “autorresponsabilização” dos indivíduos pelo processo de valorização. Antonio Negri pretendia estilizar essa evolução negativa como opção para uma “autovalorização autônoma” (autovalorisazzione). Esta acabou virando um chavão para a administração repressiva do trabalho, a qual a transformou na proposta de definir os indivíduos como “autoempresários da sua força de trabalho” e como “gestores do seu próprio capital humano”, a fim de deixá-los totalmente à mercê das condições do capitalismo em crise. A nova crise exacerbaria dramaticamente essas tendências e desmentiria de uma vez por todas as tentativas de tentar enxergar na forma capitalista da sociedade da informação uma “ambivalência” com potencial emancipatório. A metafísica pós-moderna da ambivalência está esgotada.

A globalização não pode ser reduzida à tecnologia da informação. Sob condições capitalistas ela somente poderia ser uma globalização do capital, sob cujo mando também se encontra a informação. É de se esperar que, com a política inflacionária do Estado, o processamento da crise leve a uma “desglobalização” na medida em que se ensaie a retirada para o egoísmo protecionista das economias nacionais, que somente ainda são formais; tudo isso acompanhado de ideologias neonacionalistas. Só que isto não pode superar a crise, apenas a agrava. Também é de se perguntar se a internet é sustentável – não por causa de um possível colapso tecnológico (embora também aí haja indícios de esgotamento da capacidade) -, mas porque ela depende de uma formidável infraestrutura, cuja “financiabilidade” está tão em dúvida quanto todo o resto. Uma globalização meramente virtual não é sustentável, caso não esteja ligada à reprodução material transnacional mais além do capitalismo. As maritacas da blogosfera e os bitolados freaks da internet ainda podem levar um baita susto.

IHU On-Line - Como se pode falar em ética nos moldes atuais da sociedade capitalista?

Robert Kurz -
Em todas as formações fetichistas históricas, ética não passou de uma tentativa de conviver socialmente com as condições de reprodução dadas, pressupostas às cegas, sem superá-las. Mesmo a ética burguesa moderna pretende resolver contradições e crises sem tocar nas causas constitutivas. Nela, o lugar da crítica radical deve ser assumido por um cânon de normas de conduta moral para os indivíduos, para que dentro das formas existentes a pessoa possa ficar nice para as outras. O que pode falhar não é o sistema, mas apenas a moral dos indivíduos. A crise atual, aliás, também tem sido atribuída aos déficits éticos dos banqueiros e executivos. Não é por acaso que o “pacote de resgate” de maior volume está na ética, que, para variar, está em alta. Infelizmente esse pacote está totalmente oco. O “sujeito automático” não está acessível para quaisquer imperativos éticos; ética, portanto, é mais ou menos a última coisa com que a teoria crítica deveria ocupar-se.