quinta-feira, 20 de setembro de 2007

O que significa a ecologia libidinal?

O conceito de ecologia libidinal tem por finalidade estabelecer um vínculo entre, por um lado, a psicanálise política, nomeadamente a que foi desenvolvida por via das teorias de Wilheilm Reich e Herbert Marcuse ( o chamado Freud-marxismo), e por outro, as reflexões ecologistas, sociológicas e económicas ( que constroem uma crítica ao crescimento económico), surgidas no fim dos anos de 1970 e que são hoje retomadas por uma plêiade de movimentos, desde os movimentos antiglobalização ao pensamento libertário.Trata-se pois de uma ecologia no sentido em que pretende enfatizar a continuidade e a interdependência entre o ser humano e os outros sistemas vivos e não-vivos. E assume-se também como libidinal na medida em que a energia vital universal corresponde no homem à energia sexual ( libido)
Mas não se pense que se trata de mais uma ideologia. Por definição, uma ideologia é um sistema fundado num axioma de base que é inquestionável. Por exemplo: «Deus existe» (todas as religiões são ideologias), ou «a laei do mercado leva-nos à prosperidade» ( ideologia liberal). Ora é nossa vontade escapar a este esquema mental. Sem apriorismos predefinidos procuramos observar quais são os motivos de sofrimento humano e o estado do planeta para justificar a necessidade de transformações sociais e económicas para tornar possível o desenvolvimento das potencialidades de cada ser.
Por sua vez a psicanálise política é a aplicação da psicanálise para a análise dos fenómenos de sociedade. Com efeito, as relações sociais e o modelo de sociedade são uma resultante do psiquismo dos indivíduos que compõem uma sociedade, sendo aqueles condicionados e formados também pelo modelo social dominante.E se a terapia individual pode tratar alguns pacientes, a verdade é que só um abordagem psicanalítica global da sociedade permitirá corrigir os males que sofrem a quase totalidade dos seus membros.( ver a este propósito o livro La Psychanalyse politique, de Roger Dadoun, P.U.F., 1995 – tradução portuguesa, A psicanálise política de Roger Dadoun )

Renda Mínima Universal (RMU) e Capitalismo Cognitivo

Transcrevo abaixo um resumo extraído do Blog Polis+Arte (http://a8000.blogspot.com/2007/09/renda-universal.html).
O assunto é importante e traz conexões com as idéias de Jean Zin (cujo resumo podemos encontrar no verbete da wikipedia: http://fr.wikipedia.org/wiki/Jean_Zin, bem como em seu próprio Blog: http://jeanzin.fr/.
O cientista político Giuseppe Cocco defende na entrevista com Ana Paula Conde a necessidade de uma renda universal.Abaixo algumas observações sobre a questão, várias delas presentes no excelente livro de André Gorz, L'immateriel
  • O capitalismo está ligado à miséria também e por isso é necessário ações anti-capitalistas
  • Destruir o capitalismo é ação inoperante e frequentemente violenta e pior sem ele.
  • O anti-capitalismo é uma ação da sociedade - frequentemente encabeçada pelo estado - no interior do capitalismo.
  • A falta de garantia de uma renda suficiente é o poder do capital.A renda universal garante a liberdade para um trabalho imaterial - cuidados com o outro, produção artística, de softwares livres, doméstico, de ensino, de política, etc - terá uma gratificação material separada do capitalismo e do trabalho dependente.
  • A renda universal marca a importância das atividades não assalariadas nem dependentes.
  • Desemprego não é igual a inatividade ou inutilidade. Para o capitalismo ele é garantia da possibilidade de explorar muito. A RMU garante um poder mínimo de negociação no campo do trabalho assalariado.
  • O trabalho imaterial, a riqueza social do líder comunitário, da mãe de família, da professora da creche da comunidade, do programador de softwares etc, não é mensurável e pode ser igualmente paga, criando um novo paradigma para o trabalho e para a inserção social.
  • A mão de obra não é mais necessária para a produção de valor, mas a produção de valor, feita por poucos tem total condições de sustentar a produção de valores simbólicos, afetivos e não transformáveis em dinheiro.
  • "A renda universal nos libera de uma falsa idéia de um pleno emprego para a realidade do pleno emprego da vida" Laurent Guilloteau.
  • A renda mínima garantida visa liberar as vidas para atividades mais ricas e de maior valor social do que as que hoje o capitalismo propõe a uma boa parte da população.
  • Porque nas ruas do Brasil ou do México há o mesmo número de pessoas vendendo produtos chineses e produtos com açucar que pessoas indo de um lugar a outro.
  • A RMU só é possível porque o capitalismo se transformou. Se no fordismo a principais matérias primas eram raras - metais, força física, energias - no capitalismo cognitivo, a principal matéria prima é abundante e o seu consumo não há extingue, ao contrário, aumenta sua quantidade e potência - informação, criação, invenções subjetivas, de maneira ampla; o conhecimento.
  • Inventar a vida não pode ser a mesma coisa que inventar uma empregabilidade, como vemos hoje nos jovens de 18/20 anos.
  • Porque fora do mercado se produz valores mais importantes para a vida que dentro dele.
  • A RMU é um revolução dentro do capitalismo porque hoje o capitalismo é assim. Ela deve ser incondicional. Não há poder que tenha condição de avaliar o que é produção de valor social o que não é.
  • É importante ensinar a pescar, dizem. Uma bela imagem para um mundo sem rios e sem pesca. Ensinar a pescar hoje não pode ser ensinar a servir o capital, mas a inventar uma vida de valor comum.
  • A RMU é a maneira de levar a fundo as transformações do capitalismo contemporâneo não permitido que ele se apodere da informação e do conhecimento universalisado. O discurso contra a pirataria e a favor do direito autoral é paradigmático desta tentativa capitalismo se apropriar do que não mais lhe pertence, do que é comum.
  • O fundamental da RMU não é desvalorizar o trabalho, mas valorizar o trabalho que não cabe dentro das estruturas capitalistas e liberar o indivíduo da obrigação de aceitar qualquer trabalho para sobreviver.

Quando Morremos

por Hsing yun - Do livro "Ensinamentos Fundamentais do Budismo Ch’an"
Hoje vamos discutir o processo da morte e o que ocorre após a morte. Não é um assunto fácil. Se eu contasse que depois da morte há muito sofrimento, vocês poderiam sentir medo da dor que teriam que enfrentar. Com essa atitude mental, vocês podem não compreender a verdadeira natureza da morte. Se eu lhes revelasse que a vida após a morte é serena e pacífica, vocês talvez me interpretassem de maneira errônea e pensassem que a morte é maravilhosa e que ela é sinônimo de estar liberado. Portanto, a única coisa que posso dizer é: "A vida não é necessariamente alegre e a morte não é necessariamente miserável".
Havia um homem rico que teve um filho em seus anos tardios de vida. Quando o menino nasceu, a casa se encheu de convidados que tinham vindo saudar o novo pai. Entre eles havia um mestre Ch’an que não parecia compartilhar do clima festivo ao seu redor. E, de fato, logo ele começou a chorar. O homem rico ficou confuso e perguntou: "Mestre, há algo errado? Porque está tão aborrecido? O mestre Ch’an respondeu tristemente: "Eu choro porque vocês adicionaram mais um nome ao número de mortos da sua família."
Uma pessoa iluminada vê o nascimento como uma extensão da vida e a morte como o começo de uma outra vida. Nascer não diz respeito apenas à vida nem a morte quer dizer apenas morrer. Quando olhamos para o nascimento e para a morte como uma coisa só, o que há para ser comemorado ou para ser lamentado?
Quando vemos alguém com cem anos, com freqüência o saudamos dizendo: "Que você possa viver para comemorar 120 anos!" Todos os anos, no Dia da Lembrança (Remembrance Day, um feriado em Taiwan, festejado em 9 de setembro) o governo homenageia os idosos e celebra a sua longevidade. Vamos pensar sobre isso por um instante. Seria mesmo o fato de alguém chegar a 120 anos realmente uma razão para celebrar? Se um homem vive até os 120 anos, seu filho de cem anos pode um dia ficar doente e morrer. Um após o outro, seu neto de oitenta anos e seu bisneto de sessenta anos, também podem morrer. Esse homem idoso poderia não usufruir da alegria de passar o tempo com seus netos. Ao sobreviver à morte de seus filhos e de seus netos, ele ficaria sozinho. Na vida de uma pessoa, não há nada mais difícil de suportar do que a perda de um filho. Portanto longevidade não significa necessariamente felicidade. Na maioria das vezes, com ela vem a solidão, a carência e a debilidade física.
Não deveríamos ser obsessivos em relação à longevidade nem tampouco temer a morte. A menção da morte freqüentemente provoca várias imagens atemorizantes nas pessoas. Na cultura chinesa, os mortos são muitas vezes retratados sendo punidos, tendo de subir montanhas de facas ou sucumbindo em potes de óleo fervendo. Se nós pudéssemos de fato entender a morte, veríamos que morrer não é muito diferente de tirar um passaporte que nos permita atravessar para um outro país. Que liberdade! A morte é um caminho que nós todos devemos atravessar. Como podemos fazer para encarar a morte de forma a nos sentirmos preparados e não assustados? Para fazer isso, precisamos primeiro entender a morte. E é sobre a natureza da morte que eu gostaria de discutir nos tópicos que se seguirão.
I. O Momento da Morte e o Estado de Morte
Apesar de todos termos vivido e morrido através de inumeráveis renascimentos, nenhum de nós se lembra da experiência da morte. Não sabemos o que a morte realmente é. De acordo com os sutras, quando morremos ainda estamos totalmente conscientes de tudo o que está à nossa volta. Podemos ouvir a voz calma do médico ou os lamentos da nossa família. Podemos ainda ver pessoas se juntando ao redor de nosso corpo, tentando mover nosso corpo que agora está sem batidas de coração e respiração. Podemos nos preocupar com as várias coisas que necessitam ainda ser completadas. Podemos sentir a nós mesmos nos movendo entre nossa família e amigos, querendo dizer a eles o que deveriam fazer. Mas, todos estão cheios de tristeza e ninguém pode nos ver ou escutar.
No Reader’s Digest, saiu uma vez um artigo sobre a experiência de quase-morte de um homem. Um dia, enquanto dirigia, ele sofreu um grave acidente; o carro ficou completamente destruído, e ele morreu na hora. Quando a ambulância, os médicos, a polícia e sua família chegaram ao local, sua consciência já havia deixado seu corpo e ele se sentiu flutuando no ar. Podia ouvir um rumor, um grupo de pessoas discutindo sobre como o acidente ocorrera. Então ele foi até o oficial de polícia e tentou contar-lhe o que de fato ocorrera. Mas o oficial não podia nem vê-lo nem escutá-lo. A essa altura, ele só tinha sua consciência e já não tinha mais a posse de seu corpo. Finalmente ele tomou consciência de que estava flutuando fora de seu corpo, vendo seu próprio corpo como um observador. Em seguida, se encontrou passando, numa velocidade incrível, através de um túnel longo, escuro e estreito.
Uma outra pessoa também relatou sua experiência de quase-morte após sofrer um ferimento grave na cabeça e ser trazida de volta de seu leito de morte. Ela conta: "Lembro que minha cabeça fez ‘boom’ e perdi a consciência. Depois, senti apenas uma sensação de estar aquecido, confortável e em paz". Isto porque no momento que nossa consciência deixa o corpo, ela não mais está confinada e pode sentir um nível de conforto e serenidade que não teria experimentado antes. Uma outra pessoa também disse o mesmo de sua experiência de quase-morte: "Quando estava morrendo, tive uma sensação extremamente boa e pacificadora". Outro homem descreveu sua experiência dessa maneira: "Senti que estava leve como uma pluma. Eu voava livremente em direção a um mundo de luminosidade!". A morte pode não ser tão amedrontadora e horrível como nós imaginávamos.
Nos sutras está escrito que nossa vida nesse mundo é incômoda e desajeitada, não diferente da situação de uma tartaruga curvada sob o peso de sua carapaça. Quando morremos, podemos nos livrar desse peso e transformar uma existência que estava confinada pelos limites do corpo físico. Porém, quando estamos diante da morte, a maioria de nós ainda tenta se apegar às sete emoções mundanas e aos seis desejos sensuais. Ainda não conseguimos nos desprender de nossos filhos, filhas, netos ou de nossos bens. Não queremos morrer e não aceitamos a morte graciosamente. Pensamos na morte como uma experiência dolorosa, como quando se rasga o casco de uma tartaruga viva. O Budismo não compartilha dessa visão da morte. O Budismo nos ensina que quando morremos, nos libertamos desse corpo e nos sentimos extremamente à vontade e livres. É como se tirássemos das costas um grande peso. Como isto é leve e livre!
Independente de sermos espertos ou lerdos, bons ou maus, todos nós temos de encarar a morte. A morte não é uma questão de se, mas uma questão de quando e de como. Até mesmo um imperador poderoso como Chin-shih, que unificou a China, tornando-se o seu Primeiro Imperador, não conseguiu encontrar uma maneira de prolongar sua vida. O lendário Peng Tsu pode ter vivido até oitocentos anos, mas cosmológicamente sua vida foi curta como a de um inseto, que vive apenas do alvorecer ao anoitecer. Todos os seres que vivem devem, sem exceção, também morrer. A diferença só reside nas circunstâncias da morte. Os sutras dividem as circunstâncias da morte em cinco categorias.
1. Morte a partir da exaustão do tempo de sua vidaIsto é o que é chamado morrer de velhice. É como uma chama trêmula que morre naturalmente quando seu suplemento de óleo se exaure. Nós todos gostamos de viver uma longa vida, mas a vida humana tem um limite. A vida continua somente a cada inspiração nossa, mas tão logo cessamos de respirar, morremos e retornamos à terra. Há um ditado que diz: "Alguns vivem somente do amanhecer ao entardecer. Outros nascem na primavera ou verão e morrem no outono ou inverno. Alguns vivem por dez anos, ou cem, ou até por mil anos. Podemos viver por um período curto ou longo de tempo, mas há realmente uma grande diferença nisso?" O que esse ditado quer dizer é que nossa vida tem um limite e ninguém escapa dessa realidade.
2. Morte a partir da exaustão de seus méritos
Está escrito nos sutras: "Os seres humanos não entendem da vida e da morte; os olhos humanos não discernem méritos e deméritos (cármicos)". A vida é como uma bolha de ar na superfície da água; quando o ar dentro da bolha se dissipa, a bolha não mais existe. Depois que um homem rico tiver esbanjado sua fortuna, ele se torna pobre. Similarmente, quando nós tivermos exaurido nossos méritos, a morte brevemente virá bater à nossa porta.
3. Morte causada por acidentes
Isto é o que chamamos de "morte prematura". A pessoa morre quando não era previsto. Pode ser em um acidente de carro, numa emboscada de guerra, assassinado por um inimigo, ou atacado por uma fera. Essas mortes são repentinas ou inesperadas. Há um provérbio chinês que é uma boa descrição desse tipo de morte súbita: "Enquanto alguém continua a respirar, as possibilidades são abundantes. Quando a morte chega, tudo vai para um estar parado".
4. Morte desejada
As três circunstâncias de morte descritas acima são imprevisíveis e incontroláveis. Ao contrário, na morte desejada não cabe incerteza e ela pode ser planejada. No Budismo, isto é com freqüência descrito como "vivendo e morrendo como se quer". Há muitos grandes mestres e sábios budistas que podem nascer e morrer como querem. Eles não são controlados pelo nascimento e morte, pois estão em completa consonância com o existir simultâneo e o rompimento das causas e das condições. O mestre Tao-an da Dinastia Chin do leste é um exemplo perfeito de tais grandes mestres. Ele tinha controle total do momento de abrir mão da sua vida. Em 8 de fevereiro do vigésimo ano da era Chien-yuan, ele reuniu seus discípulos no grande vestíbulo do templo em Chang-an. Após ter rezado e reverenciado ao Buda, ele calmamente disse aos seus discípulos: "Vou deixá-los agora! Todos vocês devem continuar a propagar as palavras do Dharma e despertar os ignorantes de sua ilusão".
Todos ficaram chocados e imploraram: "Mestre, és tão saudável e forte. Deverias viver por um longo tempo para continuar o trabalho do Buda. Como podes parar e nos deixar agora? É hora do almoço; por favor, almoce primeiro."
Tao-an respondeu: "Bom, eu comerei um pouco" E tendo dito isso, comeu seu almoço como de costume, voltou ao quarto para descansar e morreu enquanto descansava. O mestre Tao-an morreu conforme desejava, completamente livre de dor e sofrimento. Se nós praticarmos o Dharma diligentemente, podemos ficar livres do carma, a força que nos liga à morte. Nós também podemos alcançar a iluminação e entrar no nirvana.
Agora que nós discutimos as circunstâncias da morte, vamos colocar nosso foco em outro aspecto da morte.Quais são as sensações que a acompanham?.
Os sutras nos falam de três sensações que experimentamos na morte:
1. O desequilíbrio do grande elemento terra1
Quando se morre de uma doença do corpo, a sensação é de afogamento e é como se o corpo fosse um torrão afundando no oceano. Vagarosa e gradualmente, o corpo é imerso e a pessoa sente-se sufocar. A sensação associada a esse tipo de morte é descrita como "o grande elemento terra sendo abarcado pelo grande elemento água".
2. O desequilíbrio do grande elemento água
Quando se morre de doenças circulatórias, a sensação inicial é a de ser submerso em água e a pessoa sente-se molhada e fria. Em seguida, essa sensação de frio dá lugar a uma queimação e a pessoa sente muito, muito calor. A sensação associada a esse tipo de morte é descrita como "o grande elemento água sendo tragado pelo grande elemento fogo".
3. O desequilíbrio do grande elemento fogo
Quando se morre de doenças pulmonares, a sensação é de estar queimando como um grande incêndio ao entardecer. Então o corpo sente uma dor como se fossem mordidas e como se estivesse sendo despedaçado por fortes ventos e espalhado como cinzas. A sensação associada a esse tipo de morte é descrita como "o grande elemento fogo sendo engolido pelo grande elemento vento".
Vamos agora discutir o que acontece imediatamente após a morte e antes de nosso próximo renascimento. Os sutras nos contam que a sensação imediatamente após a morte não é de todo desagradável, porque quando morremos nosso corpo se transforma de uma forma finita e limitada para um estado sem formas e sem limites. Pode parecer um pouco surpreendente, mas existem três boas razões para explicar isso:
1. O limite do tempo e do espaço
Quando estamos vivos, somos limitados pelo tempo e pelo espaço. Não podemos viajar simplesmente desejando ir até um certo lugar e não podemos reverter o processo de envelhecimento que a passagem do tempo nos traz. Ao morrer (e antes de nosso próximo renascimento) somos liberados dos limites do nosso corpo físico e nossa verdadeira natureza pode se mover livremente através dos três reinos da existência.
2. O fardo do corpo
Está escrito no Dhammapada, "O corpo físico é a causa de todos os sofrimentos no mundo. Os sofrimentos que nascem da fome e sede, calor ou frio, raiva ou medo, luxo, desejos, ódios e tragédia — todos têm raízes na existência do corpo". Quando estamos vivos, gastamos muito tempo cuidando do nosso corpo. Quando sentimos fome, temos de comer; quando sentimos frio, temos que colocar mais roupa. Quando nos sentimos doentes, temos que aliviar a dor. Se pararmos por um momento e prestarmos atenção, saberemos que muitas de nossas preocupações vem do corpo. Após a morte, a consciência não mais está restrita pelos limites do corpo e todos os problemas associados a um corpo físico também se extinguirão com ele. Não há mais fome nem doença. Uma grande carga é tirada de nossos ombros.
3. O elemento sobrenatural
Enquanto estamos vivos, nossas faculdades são limitadas pelo nosso corpo. Após a morte, não mais estamos cerceados pelas leis da física. Seremos capazes de ver coisas que não podem ser detectadas pelo olho humano. Seremos capazes de ouvir sons que não podem ser ouvidos pelo ouvido humano. Seremos capazes de flutuar no ar, pois a força da gravidade não nos diz respeito mais. Nesse estado, paredes não serão capazes de nos deter e seremos capazes de viajar simplesmente com a força do nosso desejo.
A morte não é um fim; não é uma finalidade. Ao contrário, é o começo de uma nova existência. Quando morremos, o corpo físico para de funcionar, mas a consciência continua viva. Durante o tempo que se segue logo após a morte e antes do próximo renascimento, a consciência está num estado conhecido no Budismo como um "estado intermediário do ser". Dependendo do carma acumulado em vidas anteriores, um ser intermediário renascerá em um dos seis reinos. Uma vez renascido, todas as memórias de vidas passadas se perderão. Isso é chamado "confusão do renascimento". Por isso não conseguimos ter acesso a nenhuma memória das nossas vidas anteriores. Um poema escrito pelo Imperador Shun Chin explica bem isso: "Quem era eu antes de nascer? Quem sou eu após meu nascimento? Se esse homem crescido sou eu, então quem é aquele [que vai viver] após minha morte?"
Realmente não é importante saber sobre nossas vidas passadas ou futuras. Dos ensinamentos budistas, nós apreendemos que nunca morremos. O que morre é o corpo físico, uma combinação dos quatro grandes elementos. Enquanto o corpo físico morre, a consciência continua sem interrupção. Quando aprendemos que o corpo físico é tão permanente como uma bolha d’água, começamos a ver as ilusões do mundo que nos circunda. Podemos então aceitar a morte sem reservas.
Julgamento após a Morte e o Próximo Renascimento
Comumente pensamos sobre os que partiram e refletimos em quais tipos de situação eles podem estar. Na cultura budista chinesa, é costume rezar pelos mortos durante a celebração do ano novo e em vários outros feriados. Isso é benéfico se for feito em atenção e respeito aos pais que se foram ou aos que amávamos. A maioria das pessoas, porém, acredita erradamente que quando seus pais morrem transformam-se em fantasmas no inferno e então encomendam serviços religiosos na esperança de que eles descansem em paz. Na verdade, isso é bastante desrespeitoso em relação aos pais falecidos, pois só os que cometeram graves erros renascerão como fantasmas famintos ou seres demoníacos. Será que achamos que nossos pais não eram virtuosos? Por que não podemos supor que nossos pais tenham ido para o reino celestial ou que renasceram na Terra Pura do Buda do Ocidente, Terra da Bem-aventurança.
Várias religiões acreditam que ao morrermos, seremos julgados em relação à forma como conduzimos nossas vidas. A religião popular da China acredita que após a morte, compareceremos diante do Rei Yama, que nos julgará. Os cristãos acreditam que ao morrermos, estaremos diante de Deus, que decidirá se seremos bem recebidos no céu ou condenados ao inferno. Os budistas também acreditam no julgamento após a morte. A diferença é que não seremos julgados pelo Buda, pelos bodhisattvas ou pelo Rei Yama, mas por nosso carma. O conjunto de carma positivo e negativo de nossas ações passadas vai determinar em que reino de existência nós renasceremos e as condições nas quais iremos renascer. Nos ensinamentos budistas, apreendemos que nossa felicidade ou miséria não são controladas pelas divindades, mas estão em nossas próprias mãos.
Para onde se vai após a morte? Algumas pessoas acreditam que a morte é o capítulo final da vida, que não existe nada após a morte e, muito menos, que se possa renascer. Para elas a vida é curta e frágil. Em função de sua visão da morte, olham a vida com ceticismo e ansiedade. Em vez de enxergar a vida como um tesouro e fazer o melhor uso dela, essas pessoas vêem a vida apenas como uma oportunidade de mergulhar nos prazeres e satisfazer os sentidos. Como não olham a vida e a morte no contexto da Lei de Causa e Efeito estão prontas para fazer o que quer que seja, legal ou ilegalmente, para conseguir alcançar seus objetivos pessoais. Tal visão da morte e, portanto, da vida é errônea e pode nos levar à perdição. Embora os cristãos sejam diferentes dos budistas na forma como vêem esse julgamento final, eles também acreditam na existência do céu e do inferno e que há uma vida após a morte. No Budismo, acreditamos que depois de morrermos, vamos renascer em um dos seis reinos da existência. De fato, existe um verso que pode ajudar os parentes dos que faleceram, a saber, em qual reino seus entes queridos renascerão: "Os iluminados emergem da cabeça, os seres celestiais se elevam aos céus através dos olhos. Os humanos emergem do coração e os fantasmas famintos do estômago. Animais saem pelos joelhos e os seres demoníacos, pelos pés."
Esse verso quer dizer que: a última parte do corpo que se mantém quente indica o reino no qual o morto irá renascer. Se uma pessoa morre e seus pés forem os primeiros locais a ficarem frios e a cabeça for a última, significa que o morto atingiu o sagrado fruto da iluminação. Se os olhos forem os últimos lugares a permanecerem quentes, significa que a consciência partiu através dos olhos e que a pessoa renascerá no céu. Caso seja o coração o último lugar a permanecer quente, ela renascerá como um ser humano. Se o ventre se mantiver quente por um longo tempo, ela terá caído no reino dos fantasmas famintos. Se apenas os joelhos ficarem quentes, ela renascerá como animal. Se forem os pés a ficarem quentes por último, ela cairá no inferno.
Em que reino de existência, nós renasceremos? Como é que isso é decidido? Tudo depende do carma positivo e negativo acumulado em nossas ações passadas. Como diz esse ditado: "Se você quiser saber sobre sua vida futura, só o que tem a fazer é refletir sobre sua vida presente". Existem três tipos de forças cármicas que determinam em que reino e em quais condições se dará nosso próximo renascimento. Essas forças cármicas são moldadas segundo:
1. O peso relativo de nosso carma positivo e negativo
A maneira como essa força cármica atua pode ser comparada à forma como um auditor de banco lida com as contas dos seus clientes; os que devem muito dinheiro devem ser cobrados primeiro. Quando se morre, o peso relativo do bom e do mau carma determinará o renascimento da pessoa. A pessoa que fez muitas ações positivas renascerá em um reino bom, enquanto a pessoa com muito carma negativo renascerá num dos três reinos de sofrimento. O princípio por trás disso é simples como o ditado: "O bem cria o bem, o mal cria o mal".
2. Nossos hábitos
No Budismo, nós acreditamos que os hábitos de uma pessoa podem afetar o seu renascimento. Se alguém tem o hábito de recitar o nome do Buda Amitabha, sua mente tem grandes chances de estar com Amitabha. Se essa pessoa se depara com um acidente e se lembra de recitar o nome do Buda Amitabha no momento de sua morte, esse gesto pode ajudá-la a renascer na Terra Pura da Bem-aventurança.
3. Nossos pensamentos
O renascimento de uma pessoa está intimamente relacionado com seus pensamentos diários. Se a pessoa é devotada aos caminhos do Buda, então renascerá na Terra Pura. Se a pessoa é compromissada com o céu e suas práticas estão de acordo com ele, renascerá em um reino celestial. Portanto em nossa prática diária é importante discernir os tipos de pensamentos nos quais ancoramos nossa mente.
Mas independentemente do fato de nosso renascimento estar ligado ao peso do nosso carma, à força de nossos hábitos ou ao poder de nossos pensamentos, devemos sempre nos ater ao pensamento correto, praticar o bem e evitar causar o mal. Dessa forma, não precisamos ter medo nem do julgamento nem da morte.
Costumes Quanto aos Funerais e a Forma de se Olhar a Morte
Diferentes culturas têm diferentes maneiras de lidar com o corpo do morto e os costumes variam quanto ao sepultamento. Algumas das diferentes maneiras de preservar o corpo incluem o congelamento, a desidratação, a dissecação e a mumificação.
Alguns povos enterram seus mortos enquanto outros os cremam. Alguns lançam os corpos ao mar, outros os deixam a céu aberto. A maneira como os budistas tratam os mortos é bastante similar a de outras culturas descritas acima, com duas grandes distinções. Primeiro, os budistas defendem a prática de não mover o corpo até oito horas após a morte. Segundo, recomendam que nós não deveríamos chorar alto próximo ao corpo, pois nosso choro perturba o morto.
Porque não se deve mover o corpo até oito horas após a morte? Realmente, há uma base científica para esse costume budista. Depois que os pulmões pararam de respirar e o coração parou de bater, o sistema nervoso pode ainda continuar a funcionar. Algum grau de consciência também pode ter restado no subconsciente. Embora possa estar clinicamente morta, a pessoa não está ainda completamente morta. Portanto quando alguém morre, não deveríamos mover a pessoa mesmo que esteja deitada, sentada ou reclinada na cama. Se tentarmos mover o corpo poderemos estar causando ao morto, desconforto que, por sua vez, pode provocar ressentimento e raiva. Como o estado da mente do morto influencia seu renascimento, é aconselhável não mover seu corpo por oito horas após a morte.
Na literatura budista, existe uma história de como perturbar o corpo do morto, ainda que sem intenção, pode ter conseqüências nefastas. Uma vez um rei, que era um budista devoto morreu. A família real se reuniu ao redor do corpo e ficou de vigília. Aconteceu que um mosquito pousou no nariz do rei. Um membro da família real tentou enxotar o mosquito, mas não conseguiu e terminou por bater no rei. O rei ficou muito perturbado e com raiva. Por conta disso, renasceu como serpente.
Há uma outra razão pela qual devemos esperar oito horas antes de mover o corpo de um morto. Durante a prática da meditação sentada, é possível entrar em um estado de concentração meditativa no qual o pulso se torna quase imperceptível. Para os que não estão familiarizados com a prática da meditação, a pessoa em concentração meditativa parece morta. Havia uma história de um velho monge que entrou em estado de concentração meditativa enquanto realizava sua prática. Quando seu jovem discípulo tomou seu pulso e descobriu que ele não estava respirando, pensou que o monge havia morrido. Desta forma, o corpo foi cremado. Quando o velho monge saiu de seu estado de concentração, não conseguia encontrar seu corpo. Logo, as pessoas no templo começaram a ouvir o monge chamar dia e noite: "Onde está a minha casa? Onde está a minha casa? Irritadas com o choro, as pessoas no templo, pediram ajuda a um grande amigo do monge. O amigo chegou ao templo e sentou-se em silêncio. Quando o velho monge chamou pela sua casa (isto é, por seu corpo), seu amigo disse-lhe bem alto: "Simplesmente vá. Por que você ainda quer se incomodar com uma casa?". Quando o velho monge ouviu isso, instantaneamente atingiu a iluminação e nunca mais procurou por sua casa.
Nos tempos antigos, quando não havia nenhum método certo para se saber se uma pessoa havia, de fato, morrido, o costume budista de não mover o corpo do morto por oito horas era uma proteção contra os erros. Num livro intitulado A Verdade da Morte, há um capítulo sobre um homem que, por engano, foi considerado morto. Ora, existe um costume chinês de se exumar e juntar os ossos dos mortos alguns anos após sua morte. Muitos anos se passaram, até que a família decidiu que era tempo de abrir o túmulo e recolher os ossos do homem. Quando abriram o caixão, ficaram horrorizados ao encontrar sua cabeça virada e seus membros dobrados na posição fetal. A família se deu conta que havia errado ao considerá-lo morto, quando ele tinha apenas desmaiado. Que horror deve ter sentido quando despertou e se encontrou num caixão. Dessa forma, o costume budista de não mover o corpo do morto por oito horas não é sem razão. Isso também permite à família um tempo para se acalmar e ao morto um momento de paz e silêncio.
Ao longo das oito horas do período de espera, é ideal que a família ajude o morto recitando o nome do Buda. Dessa maneira, ele pode repousar sua mente no nome do Buda enquanto faz sua viagem para um outro renascimento. Devíamos lembrar de não chorar perto do morto. Se não conseguimos nos controlar e precisarmos chorar, devemos fazer isso longe dele.
Embora o corpo possa estar duro e frio, a consciência ainda pode estar hesitando. Nossa tristeza pode causar bastante problema para o morto e se tornar um obstáculo para seu movimento em direção a um outro renascimento.
Será realmente necessário lamentarmos a perda de alguém que morre? Podemos pensar na morte como uma partida para umas férias e podemos nos regozijar pela alegre e agradável viagem que ele empreende.
Quando nossos entes queridos morrem, devemos pensar neles indo para o paraíso ou se transformando em Budas. Podemos pensar na morte como uma mudança para a Terra Pura da Bem-aventurança. Uma terra onde o sofrimento não pode ser encontrado. Isso não é maravilhoso? No Budismo, nós olhamos a morte como o início de uma nova vida, como uma crisálida se metamorfoseando em uma linda borboleta, ou um pintinho saindo de sua casca. Porque que nós, que estamos vivos, sentimos tamanho pesar pelos que morrem?
Em relação aos preparativos funerários, o Budismo apóia a cremação. É ao mesmo tempo conveniente e higiênico, especialmente em áreas densamente populosas. Diferentemente de se enterrar o corpo, cremar não requer muito espaço; é também relativamente barato.
Lembro de um monge mais velho falar para mim: "Depois que eu morrer, por favor, jogue minhas cinzas no oceano para os peixes e camarões. Dessa maneira, posso construir algumas relações causais com as criaturas do oceano". Isso é uma maneira tão solta de olhar a vida e a morte - um grande contraste à tendência egocêntrica que a maioria de nós possui. Algumas pessoas são muito egoístas e gananciosas. Quando estão vivas, querem adquirir esse ou aquele pedaço de terra para si próprias. Quando morrem, querem competir com os vivos por melhores e mais espaçosos terrenos para sua última morada. Que absurdo!
Alguns de vocês podem dizer que um funeral budista é digno, mas extremamente simples. Como é possível mostrar nosso amor pelo morto se não fazemos uma cerimônia elaborada ou não o enterramos em um túmulo suntuoso? Eu acredito que a resposta para essa pergunta tem mesmo a ver com a visão que cada um tem da morte. Se pudermos nos liberar da vida e da morte, não estaremos restringidos por costumes sociais que dizem o que é ou não adequado para um funeral. Chuang-tzu, um antigo e famoso filósofo chinês, foi alguém que não se sentiu preso aos costumes sociais. Quando estava morrendo, seus discípulos se juntaram ao seu redor para discutir sobre os arranjos do seu funeral. Chuang-tzu, que acompanhava a discussão, riu e disse: "O céu e a terra são meu caixão, o sol e a lua são meus tesouros, as estrelas são minhas pedras preciosas. Isso já não é suficiente? Existe alguma coisa mais grandiosa?"
Os discípulos estavam descrentes e responderam: "Nós não podemos fazer isso. Se deixarmos seu corpo para fora os corvos e as águias virão bicá-lo. É melhor usarmos um caixão adequado".
Chuang-tzu riu e disse: "Que diferença faz? Se vocês deixarem meu corpo para fora os corvos e as águias virão bicá-lo. Se enterrarem meu corpo num caixão, as formigas e as larvas vão se alimentar da minha carne. Por que vocês roubam dos corvos para alimentar as formigas? Por que são tão injustos?"
Não basta ter um funeral adequado, devemos também ter uma perspectiva adequada em relação à morte. Se pudermos cortar os gastos nos arranjos de um funeral e utilizar esse dinheiro para caridade, estaremos ajudando os mortos a deixarem seu amor como herança para os vivos. Se as circunstâncias permitirem, não deveríamos hesitar em doar órgãos para salvar a vida dos que precisam. Quando temos a perspectiva correta perante a morte, então teremos a possibilidade de conduzir os arranjos de funeral com tal sabedoria e de tal forma que ambos, vivos e mortos, serão beneficiados.
Como os budistas vêem ou não vêem a morte? Os budistas não olham a morte como aniquilação ou sono eterno. Os budistas vêem a morte como um mudar-se de uma casa para outra ou de uma situação para outra. Nos sutras existem muitas metáforas para a morte.
1. A morte é como nascer novamente
A morte é o início (de uma nova vida); não é um fim. O processo da morte pode ser comparado a extrair o óleo de sementes de gergelim ou de fazer manteiga a partir do leite.
2. A morte é como uma formatura
A vida de uma pessoa pode ser comparada à vida escolar de um jovem e a morte, à sua formatura. Quando se forma, as notas que ele recebe dependem do quanto ele foi bom ou mau aluno. Da mesma forma, quando morremos, as circunstâncias nas quais renasceremos dependem do bom e do mau carma que acumulamos.
3. A morte é como se mudar
Quando há nascimento, há morte. A morte é como se mudar de uma casa antiga para uma casa nova.
4. A morte é como trocar de roupa
Morrer é como tirar a roupa antiga, já gasta e colocar roupas novas. Quando entendemos que todas as experiências na vida são nuvens flutuantes passando em frente aos nossos olhos, veremos então que o corpo nada mais é do que um artigo de roupa.
5. A morte é renovação
Nosso corpo experimenta processos metabólicos todos os segundos. Novas células são criadas enquanto células antigas morrem. O ciclo de nascimento e morte é como o processo de criar células novas para repor as células antigas.
Quando temos a perspectiva correta sobre morte, não há por que temê-la. O que deve nos preocupar não é o quando morremos, mas o que acontece após a nossa morte. A maioria de nós passa a vida pensando apenas em se divertir e em aproveitar. Gastamos nosso tempo atrás de fama e de fortuna, sem termos uma visão clara de para onde estamos indo. Sem um propósito e uma direção claramente definidos, a vida não tem sentido. O que é fama e fortuna quando nos encontramos em nosso leito de morte? Quando sabemos como viver a vida, sabemos como lidar com a morte. Confúcio uma vez falou:
"Se não entendemos a vida, como podemos compreender a morte?". Não deveríamos ficar consumidos pelo medo de morrer, que é em si um processo físico. O que é mais trágico é viver nossas vidas na ilusão e na ignorância; podemos estar vivos no corpo, mas mortos no espírito. Por essa razão decidi falar sobre a morte. Espero que nossa discussão de hoje possa ajudar cada um de nós a despertar do pesadelo da morte. A tarefa urgente a ser feita é enxergar a vida e a morte no contexto da impermanência, do sofrimento e do vazio. Se nós assim fizermos, encontraremos o significado de vida e morte".
IV. Mortes Inusitadas e Mortes Extraordinárias
Alguns de vocês podem perguntar: Como pode a morte ser maravilhosa e extraordinária? Se fizermos uma pausa e pensarmos nisso com cuidado, descobriremos que a noção de uma morte maravilhosa não é artificial. Quando temos uma correta compreensão dos ensinamentos do Buda, vemos através do manto do mistério da morte e ficamos totalmente em paz sobre a vida e a morte. O mestre Ch’an, Shan-chao de Fen-yang falou muito bem sobre isso: "Cada um de nós vive por todos os seres e morre por todos os seres".
Existe uma história maravilhosa sobre a maneira como Shan-Chao morreu. Quando ele ainda estava vivo, havia um poderoso magistrado chamado Lee Hou. Lee sempre quis que Shan-chao se tornasse o abade do templo de Cheng-tien e ofereceu-lhe a posição de mestre em três diferentes ocasiões. E como o mestre repetidamente não aceitava a oferta, Lee ficou furioso. Então mandou um mensageiro ir até o mestre e pessoalmente trazê-lo para o templo. Quando o mensageiro ia partir, o magistrado disse: "Preste bem atenção, se você vier sem o mestre sua vida não será poupada!". O mensageiro ficou petrificado. Foi até o mestre Ch’an e implorou a ele que o acompanhasse ao templo Chen-tien. Ao saber do destino que o mensageiro teria caso não cumprisse a ordem do magistrado, o mestre percebeu que não tinha muita escolha. Juntou seus discípulos e lhes disse: "Por um lado, eu não gostaria de deixá-los todos aqui e me tornar o abade do templo Chen-tien. De outro, se eu os levar, tenho medo que vocês não consigam me acompanhar".
Um dos discípulos levantou-se e disse: "Mestre, eu quero ir com você. Posso andar 80 milhas por dia".
O mestre balançou a cabeça e suspirou: "Muito devagar. Você não consegue me acompanhar".
Outro discípulo o chamou: "Eu irei, posso caminhar 120 milhas por dia".
O mestre sacudiu a cabeça e disse: "Muito devagar, muito devagar".
Os discípulos se entreolharam confusos e pensaram: "Quão rápido pode o mestre viajar?"
Naquele instante, outro discípulo veio silenciosamente para frente. Ele reverenciou o mestre e disse: "Mestre, eu entendi. Eu irei com você". O mestre perguntou: "Quão rápido você pode andar?". O discípulo respondeu: "Tão rápido quanto o senhor possa viajar, eu também posso".
Ao ouvir isso, o mestre sorriu e disse: "Muito bem, vamos!".
Sorrindo e sem movimentos bruscos, o mestre Ch’an morreu. O discípulo que havia se oferecido como voluntário permaneceu respeitosamente ao lado do mestre e em seguida também morreu. Que despreocupado é deixar este mundo quando desejamos!
O mestre Ch’an Te-pu da Dinastia Sung foi igualmente encantador ao morrer. Certo dia, ele juntou os discípulos ao seu redor e disse: "Estou prestes a deixar vocês. Embora eu esteja curioso sobre o tipo de arranjos funerários que vocês irão preparar para mim, não estou certo se terei tempo de voltar para apreciar suas oferendas. Sendo assim, em vez de nós nos preocuparmos uns com os outros depois da minha partida, porque não gastamos um tempo juntos e desfrutemos das oferendas agora?"
Os discípulos sentiram que seu mestre estava agindo estranhamente, mas não ousaram desobedecer. Prepararam o serviço funerário e prestaram homenagem ao seu mestre pensando que se tratava de um jogo. No dia seguinte, Te-pu de fato morreu.
Alguns de vocês podem pensar que é muito estranho alguém preparar uma cerimônia funerária antes de morrer. Mas, na realidade, isso é bastante bem-humorado e prático. Um velho ditado chinês capta bem esse sentimento:
"Oferecer uma gota d’água para uma pessoa enquanto ela está viva é melhor do que oferecer a ela fontes d’água após ela ter partido desse mundo". É melhor respeitarmos nossos pais enquanto estão vivos do que dar a eles um funeral requintado quando morrerem.
O mestre Ch’an Tsung-yuan, da Dinastia Sung, também olhava a morte com desprendimento. Ele tinha oitenta e três anos quando alcançou a iluminação e não estava preso nem à morte e nem à vida. Quando sentiu que era tempo de deixar esse mundo, o fez com graça e dignidade. Compôs, inclusive, uma elegia para si mesmo:
Nesse mundo ninguém deve viver além de seu tempo, pois, após a morte, todos nos tornaremos pó na tumba. Como agora eu tenho oitenta e três anos; escrevo essa elegia para dizer adeus ao meu corpo. A maneira como o mestre Ch’an Hsing-kung morreu também é legendária. Naquele tempo, havia um bandido feroz chamado Hsu Ming. Ele havia matado muitas pessoas e causado bastante sofrimento. Hsing-kung não agüentava ver os aldeões sofrerem, então decidiu ir conversar com o bandido. Embora tivesse consciência de que sua vida corria grande perigo, ele não tinha medo. Enquanto fazia sua refeição com o bandido, escreveu essa elegia para si mesmo:
Frente a frente com a calamidade e no meio do terremoto,
Eu sou um sujeito feliz e sem medo.
Não há momento mais perfeito que agora,
Corte-me em dois se quiser.
A coragem e a compaixão de Hsing-kung converteram o ladrão e muitas vidas foram salvas por sua causa. Tempos depois, quando o mestre percebeu que o fim de sua vida estava se aproximando, contou aos seus discípulos que gostaria de morrer flutuando no rio. Eles então prepararam para ele um barco e fizeram um furo no fundo. O mestre entrou no barco levando uma flauta. O barco flutuou rio abaixo ao som da flauta. O mestre também deixou um poema explicando porque havia escolhido deixar o mundo dessa forma. O poema diz assim:
Uma morte sentada ou de pé não pode ser comparada com uma partida flutuando.
Economiza lenha e o chão não é perturbado.
Partir de mãos vazias é muito libertador e alegre.
Quem pode me entender?O Venerável Chuan-tzu2 pode. Na virada do século, havia um monge em Rangoon, Burma, que se chamava Miao-shan. Em 1934, Miao-shan ficou doente com derrame cerebral e desnutrição. Grandes bolhas cresceram em seus pés e em suas costas. Mesmo assim, ele continuou a fazer prostrações ao Buda nas pedras quentes do calçamento. As bolhas abriram e infeccionaram, soltando pus e sangue. Sua condição não o perturbava e ele recusou tratamento médico. Nem banho queria tomar e ninguém sabia mais o que fazer. No dia de sua morte, um de seus discípulos de novo sugeriu que tomasse um banho. Dessa vez, o venerável acenou e respondeu: "Estou contente que você tenha sugerido isso; é hora". Tendo dito isso, foi até o banheiro e alegremente tomou seu banho. O discípulo, que estava preocupado com o mestre, ficou ao lado da porta e insistiu que o venerável tomasse um bom banho para acalmar suas feridas. O venerável respondeu através da porta: "Eu sei, tomarei um bom banho hoje, pois é meu último banho".
Muitas horas se passaram. O discípulo ainda ouvia o som da água escorrendo, mas o venerável não estava mais à vista. Ao abrir a porta, descobriu que o venerável havia morrido. Embora continuasse de pé, seu coração tinha parado. Quando conseguimos deixar de lado as coisas às quais nos prendemos, não temeremos mais a morte.
Existem muitos outros exemplos de mestres Ch’an tendo mortes pacíficas. O mestre Ch’an Tan-hsia Tien-jan morreu debruçado em seu bastão. O Venerável Hui-hsiang morreu ajoelhando-se com um sutra em suas mãos. O mestre Liang-chieh da Dinastia Tang tinha controle absoluto da hora de sua morte. Pediram que ele ficasse vivo por mais sete dias e ele assim o fez. O mestre Ch’an Yu-an voltou à vida depois de haver estado em seu caixão por três dias. O mestre Ch’an Ku-ling Shen-tsan perguntou a seus discípulos:
"Vocês querem saber o que significa o samadhi silencioso?"
Quando os discípulos responderam a seu mestre negativamente, o mestre fechou os lábios com firmeza e morreu instantaneamente. A forma como Pang Yun e sua família morreram são ainda mais interessantes e variadas. Sua filha Lian-chao sentou na cadeira de seu pai e morreu, enquanto o próprio Pang Yun deitava-se para morrer. Quando seu filho, que estava trabalhando no campo, soube das mortes, baixou seu arado e morreu de pé. A mulher de Pang Yun viu que todos eles tinham morrido, empurrou uma rocha abrindo uma fenda e entrou nela. Antes, porém, deixou esse verso:
Morrer sentado, deitado ou de pé não é inusitado.
A senhora Pang simplesmente deixou-se ir e partiu. Com ambas as mãos ela afastou uma rocha sem veio E partiu sem deixar vestígios para outros verem. Quando alcançarmos a sabedoria de ver através da vida e da morte, também poderemos morrer sem dor e sem esforço, como alguns dos mestres Ch’an sobre os quais falamos hoje. Com o nascimento vem a morte. Sejamos ou não budistas, teremos de enfrentar a morte um dia. Felizmente, com os ensinamentos budistas, podemos entender a vida, e, a partir daí, a morte. Não devemos ter medo da morte, porque a morte é nada mais do que um fenômeno natural. Quando nos preparamos enquanto estamos vivos, podemos ter esperança naquilo que se segue após a morte.
Nós fazemos provisões de tudo na vida. Guardamos uma lanterna para um caso de emergência ou de blackout. Temos à mão um guarda-chuva caso chova. Empacotamos comida para longas viagens e trocamos nossos guarda-roupas ao anúncio de uma nova estação. Da mesma maneira, deveríamos nos preparar espiritualmente para o dia em que a morte vier bater à nossa porta. Não devemos depositar nossas esperanças apenas no presente, também devemos refletir sobre a vida após a morte. Em meio à impermanência da vida e morte, temos que ter em mente que o Corpo-dármico3 é eterno e a vida-sábia4 é atemporal.
Nossa natureza búdica é eterna!

Notas:

1 No Budismo, acreditamos que o corpo é composto de quatro grandes elementos: terra, água, fogo e vento.
2 Venerável Chuan-tzu foi um monge que viveu antes de Hsing-kung e que também preferiu morrer flutuando na água.
3 Conjunto de ensinamentos do Buda
4 Nossa sabedoria espiritual