segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A terceira revolução industrial e a crise ambiental



Entrevista com Jeremy Rifkin

Na semana decisiva para o futuro do pacote sobre o clima europeu, o professor Jeremy Rifkin está em Bruxelas. Nesta terça-feira, 09, o guru da Terceira Revolução Industrial, já consultor de Merkel e de Zapatero, acompanhado de uma dezena de administradores delegados de grandes sociedades, encontrou o vice-presidente da Comissão, Gunther Verheugen, para estabelecer um plano de ação em vista ao próximo salto qualitativo em matéria de clima e de energia, que está previsto para 2050. “Estamos prontos para colaborar também com a administração Obama – explica Rifkin – mas a Europa é o carro-chefe da terceira revolução industrial. E esta semana será crucial se ela quiser continuar a sê-lo”.
A reportagem é de Andrea Bonanni, publicada no jornal La Repubblica, 09-12-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Por que crucial, professor?
Porque, sobre a mesa dos chefes de governo europeus, cruzam-se três crises de época estreitamente ligadas umas a outras: a crise do clima por causa do efeito estufa, a crise energética e a crise econômico-financeira.

De que modo elas estão conectadas?
Porque todas as três são produto do declínio da segunda revolução industrial, baseada sobre a exploração da energia fóssil e nuclear. Essa era chegou à linha final quando o petróleo alcançou os 147 dólares por barril e o sistema foi contra o muro. E, com a segunda revolução industrial, a globalização também declina.

Não lhe parece ser um pouco drástico?
Não. Não acho. Esse modelo de relações econômicas e produtivas não pode ser retomado: faltam os recursos energéticos e faltam os capitais. O ingresso da China e da Índia na era da globalização levou ao colapso.

Mas e o plano de restauração americano? E o europeu?
São migalhas. O crescimento dos últimos anos que a globalização produziu foi alimentado pelo forte consumo dos americanos. Agora, este acabou. Sabe a quanto chega o endividamento das famílias americanas? Treze bilhões e quinhentos milhões de dólares! Não se resolve um buraco dessas dimensões injetando umas poucas centenas de milhões. Os quatro furacões que atingiram as costas americanas neste ano custaram, sozinhos, a metade do pacote de financiamento da Casa Branca. Entre energia, clima e finanças, combinaram-se os elementos de uma “perfect storm”, uma tempestade perfeita. Estamos frente a uma mudança de época. E são precisos anos para sairmos dela.

E então o que se faz?
É preciso um plano estratégico de longo prazo. É certo manter o corpo exânime do velho sistema vivo artificialmente, pelo menos até que sejamos capazes de dar a luz ao filho da terceira revolução industrial. Mas para obter esse resultado, também é preciso investir muito dinheiro nos quatro pilares dessa revolução: energias renováveis, construção e alta eficiência energética, hidrogênio, sistemas de transporte elétricos baseados em pilha combustível. Segundo os nossos cálculos, para iniciar esse processo, é necessário ao menos um trilhão de dólares para os EUA, assim como para a Europa.

Estamos longe também dos objetivos mais ambiciosos da próxima cúpula?
Sim. Mas a União Européia hoje é a única que tem um projeto que compreenda todos os três mecanismos necessários para dar o salto. Há um pacote energético para reduzir 20% das emissões, para aumentar em 20% a eficiência energética e, sobretudo, para aumentar em 20% as energias renováveis, que é um primeiro esboço da terceira revolução industrial. Além disso, há uma estratégia de longo prazo baseada no corte de 50% até 2050. Enfim, há um programa de restauração da economia.

Mas a Itália ameaça vetar?
Sim. Nesse quadro, a Itália está dando o pior exemplo. E francamente isso me deixa atônito. Porque Berlusconi é um homem de negócios capaz, e não entendo como ele não vê as enormes oportunidades de negócios que esse programa comporta.

Será que não ameaçamos o veto porque estamos atrás há pelo menos dez anos com relação a países como a Espanha e a Alemanha e tememos não conseguir superar isso?
Sim, é verdade. A Itália está atrasada. Mas permanece sempre como a sexta potência econômica. Se a Espanha conseguiu, vocês [italianos] também podem conseguir. E depois não há alternativas. Se a Itália não se mexe agora para recuperar o tempo perdido, dentro de dez anos, onde ela estará? E as crianças italianas de hoje, que futuro terão?

Etnometodologia






A etnometodologia e a análise da conversação e da fala

Por: Adalto H. Guesser (1)

1. Introdução

O termo etnometodologia designa uma corrente da sociologia americana, que surgiu na Califórnia no final da década de 1960, tendo como seu principal marco fundador a publicação do livro Studies in Ethnomethodology [Estudos sobre Etnometodologia], em 1967, de Harold Garfinkel.
A publicação da obra de Garfinkel provocou uma reviravolta na “sociologia tradicional” gerando intensos debates no meio acadêmico das universidades americanas e européias, particularmente inglesas (2) e alemãs (Coulon, 1995a, p. 7).
Segundo Coulon, na França a etnometodologia chegou no início da década de 1970, quando traduções de textos etnometodológicos começaram a ser publicados em algumas revistas. No entanto, somente a partir de meados da década de 1980 é que passou a ser ensinada em várias universidades francesas e, posteriormente, já nos anos 1990, é que um grupo de pesquisadores da sociologia da educação, desenvolvendo trabalhos com base etnometodológica3, propagaram largamente a nova teoria naquele país. No Brasil, a etnometodologia ainda é pouco conhecida nos campos da sociologia, possuindo alguns raros trabalhos publicados; são exemplos as duas obras traduzidas do francês, de Alain Coulon, (1995a e 1995b) e um artigo traduzido do inglês, de John Heritage (1999). Outras referências esparsas e bastante resumidas podem ser encontradas em manuais de metodologia, como o caso de um breve capítulo dedicado à etnometodologia na obra de Haguette (1992) e na de Birnbaum & Chazel (1977), dentre outros. Nas universidades brasileiras, a etnometodologia ainda é mais utilizada pelos campos da educação infantil, ensino de matemática e de educação física (4).


Harold Garfinkel



Heritage (1999) justifica que vários fatores contribuíram para que o surgimento da etnometodologia tenha sido bastante turbulento. Aponta como principal causa o fato de os escritos de Garfinkel serem altamente condensados e não estarem sistematicamente articulados em termos de referência da sociologia clássica, dando origem a muita confusão e equívocos, mesmo entre os adeptos da nova matriz teórica. Soma-se ainda o fato de a obra de Garfinkel ter sido publicada justamente num período de “caótica convulsão nas ciências sociais”, principalmente nos Estados Unidos, com a crise do paradigma dominante, o estrutural-funcionalismo parsoniano. Mesmo antes da publicação dos Estudos sobre Etnometodologia, Garfinkel já havia se preocupado em “repensar” a teoria da ação parsoniana, cujo corpus teórico vinha criticando e reformulando. Por este motivo, Garfinkel atraiu para si as críticas tantos dos defensores, como dos opositores do estrutural-funcionalismo, legando aos primórdios da etnometodologia uma resistência quase gratuita no meio acadêmico.
A perspectiva de Garfinkel parte da base teórica de Parsons, que fora seu orientador entre 1946 e 1952, mas com profundas reformulações advindas da influência da fenomenologia sobre ele exercida através de Alfred Schütz e Eduard Husserl, entre outros, que o levaram a posicionar-se contra certas versões da sociologia tradicional da época (Haguette, 1992). O ponto central da inovação teórica de Garfinkel residia no âmbito de questões conceituais da sociologia, como a teoria da ação social, a natureza da intersubjetividade e a constituição da ação social do conhecimento, com amplas ramificações teóricas e metodológicas (Heritage, 1999, p. 323). Para uma melhor compreensão da obra de Garfinkel se faz necessário uma revisão das principais correntes teóricas que influenciaram o seu pensamento, sendo que destacamos neste trabalho três delas: a teoria da ação de Parsons, a fenomenologia social de Alfred Schütz e o interacionismo simbólico desenvolvido pela “Escola de Chicago”.

2. A influências da teoria da ação social de Talcot Parsons

Talcot Parsons exerceu forte influência sobre o pensamento de Garfinkel. Importante figura na sociologia americana, tentou com sua obra integrar os trabalhos de Durkheim, Weber, Pareto e outros nomes de peso da sociologia mundial. Por esta razão, a teoria da ação é denominada por muitos como “a grande teoria”. O principal feito de Parsons foi reabilitar a sociologia de matriz européia aos trabalhos desenvolvidos nos Estados Unidos. Segundo Coulon (1995a), sua perspectiva provinha de um ambiente acadêmico rico, pois o departamento em Havard, ao qual estava vinculado e liderava, apresentava a vantagem de reunir a sociologia propriamente dita, a psicologia e a antropologia. A teoria parsoniana da ação se constituiu basicamente como uma teoria da motivação da ação.

Talcot Parsons


Segundo Parsons,

as motivações dos atores sociais são integradas em modelos normativos que regulam as condutas e as apreciações recíprocas. Assim se explica a estabilidade da ordem social e sua reprodução em cada encontro entre os indivíduos. Compartilhamos valores que nos transcendem e governam. Temos a tendência, para evitar a angústia e castigos, a nos conformarmos com as regras da vida em comum (Coulon, p. 10).

Para Parsons o ator submete-se às normas sociais, que por sua vez determinam suas ações. O ator é privado de reflexividade e por esta razão é incapaz de analisar sua relação de dependência a esse conjunto de normas. Heritage (1999) aponta duas questões fundamentais que dominavam as preocupações de Parsons. A primeira é que considerava que os homens não vivem em sociedade apenas reproduzindo ações de modo a se adaptar ao ambiente onde estão inseridos. Ao contrário, os homens e mulheres se empenham em alcançar metas, e suas ações estão sendo sempre orientadas por esta “metafísica voluntarista”, como designou o fenômeno. A outra questão tinha a ver com o “problema da ordem” proposto por Hobbes. Levando em conta as discussões de Hobbes e a constatação do estado de “caos” no estado de natureza, Parsons tenta perceber como os esforços ativos dos agentes sociais podem reconciliar-se uns com os outros de tal sorte que as relações sociais não venham a ser dominadas pelo exercício externo da força e da fraude. Parsons se valeu do conceito de “super-ego” de Freud para explicar a regularidade da vida social. Segundo esta concepção moralista, durante todo o processo da vida, as regras sociais e as formas de conduta são apreendidas e interiorizadas pelos indivíduos. Tal acúmulo de conhecimentos se configura como que um “tribunal interior”, que julga os nossos comportamentos e até mesmo os nossos pensamentos (Coulon, 1995a, p.10). Percebe-se aqui a forte influência de Durkheim no pensamento de Parsons, quando ele absorve a idéia de que existe uma coerção externa que molda e determina as ações dos indivíduos e que os valores morais interiorizados no curso da socialização exercem forte influência no processo de tomada de decisões dos agentes. Segundo Garfinkel, Parsons não construiu uma teoria da ação, capaz de resgatar as formas de como os agentes agem, mas ao invés, desenvolveu apenas uma teoria das disposições para agir. Ou seja, a teoria desenvolvida por Parsons não era capaz de identificar a ação em si, mas apenas as motivações que impeliam os agentes a agirem desta ou daquela maneira. Uma vez que os agentes são dominados por coerções externas e suas decisões e ações são orientadas para dar conta de uma normatividade que se coloca “de fora”, a sua reflexividade sobre a ação fica em segundo plano, bastando agir segundo um sistema de normas previamente acumulado pelo processo de socialização. Garfinkel desconsidera esta passividade reflexiva, afirmando que o indivíduo não é um “idiota social”, regido apenas por coerções externas. As normas estão presentes em sua análise e o influenciam, entretanto ele interage com elas interpretando-as, ajustando-as e modificando-as (Votre & Figueiredo, 2003, p.2). Foi a partir deste ponto que Garfinkel começou a divergir mais decisivamente de Parsons, principalmente no período pós-guerra.
Outro ponto em que Garfinkel vai concentrar suas críticas é em relação ao processo de comunicação que desenvolvemos através do uso da linguagem. Para Parsons, nossa comunicação é estabelecida a partir de símbolos que preexistem a nossos encontros, como sistema de referência e como recurso externo, inexaurível e estável (Coulon, 1995a, p.10). Para a perspectiva da etnometodologia ocorre justamente o contrário.
Os símbolos utilizados para nossa comunicação não se encontram estabelecidos em conjuntos de regras e normas de comunicação preexistentes, mas são construídos e produzidos por processos de interpretação. Aqui se funda a passagem de um paradigma normativo (parsoniano) para um interpretativo (etnometodológico). Ou seja, os indivíduos produzem os símbolos e códigos utilizados para estabelecer uma comunicação inteligível, interpretando as ações daqueles com quem estabelecem relação. Tais símbolos são reinventados e adaptados a cada novo encontro. Parsons desenvolve uma discussão sobre a racionalidade do agente, afirmando que esta é determinada no momento em que o mesmo calcula o tipo de atitude que deve tomar com o objetivo de atingir um determinado fim, com base em conhecimentos adquiridos, compatíveis com o conhecimento científico (Heritage, 1999, p.327). Neste caso, toda explicação científica deverá ser a mesma explicação que o próprio agente dá para sua ação, pois cada agente singular ao mover-se racionalmente, desenvolve uma lógica fixa, que deverá ser a mesma empregada por todos os demais, que participam do mesmo grupo social, e que almejam alcançar o mesmo fim. Garfinkel descarta esta opção, pois considera que o efeito cumulativo de ações normativamente orientadas levaria à formação de agentes sociais incapazes de agir livremente por orientação própria. Na memorável expressão de Garfinkel, os agentes sociais nesta concepção passam a ser tratados como de “juízo dopado” [judgemental daps] em termos de discernimento, cuja compreensão e raciocínio em situações de ação concreta são irrelevantes para um enfoque analítico da ação social (Heritage, p. 328).
Ao contrário, considera que cada indivíduo contribui decisivamente e singularmente na “construção” de seus processos de interação com os demais agentes sociais, e seu esforço interacional deve ser levado em conta no momento das análises sociológicas, pois são eles os únicos capazes de revelar o “sentido das ações” empreendidas pelos agentes.

3. A influência do interacionismo simbólico da Escola de Chicago

O interacionismo simbólico, com origem na chamada “Escola de Chicago”5 representou uma nova possibilidade para a sociologia, popularizando o uso dos métodos qualitativos na pesquisa de campo, movendo-se na contracorrente da concepção durkheimiana do ator.

Durkheim, embora reconhecesse a capacidade do ator para descrever os fatos sociais que o cercam, acha que essas descrições são por demais vagas, muito ambíguas, para que o pesquisador possa usá-las de modo científico, sendo tais manifestações subjetivas não subordinadas ao domínio da sociologia. Ao invés, o interacionismo simbólico afirma que a concepção que os atores fazem para si do mundo social constitui em última análise o objeto essencial da pesquisa sociológica (Coulon, 1995a, p. 14).

Para esta corrente, o conhecimento sociológico só pode ser percebido pelo pesquisador a partir da observação direta e imediata das interações entre os atores sociais, das ações práticas dos atores e o sentido que eles atribuem aos objetos, às situações, aos símbolos que os cercam, pois é nesses pormenores que os atores constróem seu mundo social. E se a sociologia pretende resgatar a realidade, deve tomar conta desses inúmeros contatos interacionais que se estabelecem entre os atores nas ações corriqueiras do cotidiano. Os interacionistas rejeitam o modelo da pesquisa quantitativa e suas conseqüências sobre a concepção do rigor e da causalidade nas ciências sociais (Coulon, 1995a, p.15). Para esta corrente, é impossível apreender o social através de princípios objetivos, pois a subjetividade, ou a intersubjetividade dos atores, é extremamente importante e determinante das ações sociais. Desconsiderar as motivações pessoais e a liberdade subjetiva dos atores é criar um mundo imaginário, idealizado, que não corresponde à realidade concreta. O interacionismo simbólico ancora-se numa concepção teórica que considera que os objetos sociais são construídos e reconstruídos pelos atores interminavelmente. Ou seja, o significado social dos objetos se deve ao fato de lhes darmos sentido no decurso de nossas interações (Coulon, 1995a, p.16). Portanto, a interação social é uma ordem frágil, instável, temporária, que está em constante construção pelos atores, de modo que estes podem, através dela, interpretar o mundo em que estão inseridos e no qual interagem. Em outras palavras, afirma-se que as ações sociais não podem ser capturadas no decurso de uma lógica pré-estabelecida, causalmente estabelecida a partir de uma ordem de fatos externos e fixos.
A ordem dos fatos sociais e o sentido das ações, por ser mutável e própria de cada ato interacional, deve ser considerada a cada nova interação. Portanto, a pesquisa de campo é importantíssima para a efetivação desta forma de se fazer sociologia. O pesquisador deve observar diretamente o cotidiano das relações estabelecidas pelos atores sociais e procurar recuperar o sentido que eles dão a cada ato, no contexto em que se inserem, temporal e espacialmente.

4. A influência da fenomenologia social de Alfred Schütz

Alfred Schütz estudou Direito em Viena, Áustria. Em seus primeiros estudos tomou como ponto de partida a obra de Max Weber, publicando sua primeira obra em 1932, Der Sinnhafte Aufbau der Sozialen Welt [A Fenomenologia do Mundo Social], a qual dedicou a Edmund Husserl, considerado o pai da fenomenologia (6) e com o qual Schütz manteve contato muito próximo e de intensa colaboração, até sua forçada saída do país em fuga ao regime nazista, em 1938. Schütz desenvolve a noção de Verstehen, já presente em Max Weber (7). Propõe o estudo dos processos de interpretação que utilizamos em nossa vida diária, cotidiana. Para ele, a linguagem cotidiana esconde um tesouro de tipos e características pré-constituídos, de essência social, que abrigam conteúdos inexplorados (Coulon, 1995a, pg. 11). O mundo social que Schütz se propõe a estudar é aquele da vida cotidiana, vivida por pessoas comuns, tanto o daquelas simples e iletradas, como o daquelas cultas. Neste mundo a maioria dos atos são realizados, muitas vezes, automaticamente, sem grandes elaborações racionais, Para Schütz a realidade social é

a soma total dos objetos e dos acontecimentos do mundo cultural e social, vivido pelo pensamento de senso comum de homens que vivem juntos numerosas relações de interação. (...) Desde o princípio, nós, os atores no cenário social, vivemos o mundo como um mundo ao mesmo tempo de cultura e natureza, não como um mundo privado, mas intersubjetivo, ou seja, que nos é comum, que nos é dado ou que é potencialmente acessível a cada um de nós. E isso implica a intercomunicação e a linguagem (Schütz apud Coulon, 1995a, p. 12).


Alfred Schütz



Para este autor, o mundo é interpretado a luz de categorias e construtos do senso comum que são largamente sociais na sua origem (Heritage, 1999, p. 329). Esses elementos cognitivos são os recursos que os indivíduos utilizam para compreender e serem compreendidos nas suas ações do cotidiano. A realidade é fruto dessa contínua atividade de interpretação dos sentidos das ações que são empreendidas no dia-a-dia. Ninguém percebe a realidade da mesma forma que os outros. Cada um de nós realiza experiências subjetivas que são inacessíveis aos outros, mas que são “compartilhadas” através da comunicação, por processos de entendimento que são construídos entre os atores, de modo a que possam ser compreendidos. Para Schütz,

los actores sociales experimentan el mundo social como una realidad llena de significados. Un acto tiene un único contenido, el que proviene del actor mismo, y si el mundo social es algo entendible para todos sus actores sociales, implica que ellos lo entienden de una manera similar y así poder crear relaciones sociales (Mella, 2003, p. 47).

Esta percepção do mundo social como um fenômeno intersubjetivo é o ponto central da obra de Schütz. Ou seja, independentemente de como o sintamos, o mundo cotidiano não é constituído de nossas experiências privadas, particulares. Não é vivido independentemente dos demais indivíduos sociais, ao contrário, é compartilhado, é construído nas relações estabelecidas com outros atores a partir da comunicação. As nossas ações num mundo social somente tomam sentido em relação com as ações dos demais. Embora cada ator perceba a realidade de uma maneira singular, existe a possibilidade da troca de percepções através da comunicação. Embora os homens nunca realizem experiências idênticas, eles supõem que elas sejam idênticas, fazem que sejam idênticas, para todos os fins práticos (Coulon, 1995a, p. 12). Ou seja, criam processos de ajustes de modo que a experiência vivida por um seja assimilada e compreendida pelo outro através de processos de interação e comunicação, desta forma podem compartilhar da mesma realidade criando um mundo comum, compreensível para todos aqueles que vivenciam o mesmo contexto cultual e social. Teoricamente, Schütz descreveu cinco propriedades importantes do conhecimento e da cognição (Heritage, 1999, p. 329). Primeiro, denomina que o mundo da vida cotidiana é um mundo permeado de naturalidades. Os atores que interagem no cotidiano agem, geralmente, seguindo cursos ordinários, desenvolvidos por percepções pré-adquiridas no decurso dos acontecimentos do passado ou do cálculo racional das orientações das ações empreendidas no presente. Segundo, propõe que a construção (constituição) dos objetos (tanto naturais, quanto sociais) é necessária e continuamente atualizada por meio de “sínteses de identificação” (ibidem, p. 330), ou seja, a realidade se transforma a cada segundo, os atores constróem os objetos da realidade adicionando elementos e resignificando-os a cada novo instante que os percebem, variando de acordo com os contextos onde estão inseridos. Terceiro, Schütz estabelece que os objetos do mundo social são constituídos no interior de uma estrutura de “familiaridade e pré-conveniências, fornecida por um “estoque de conhecimentos à mão” que é esmagadoramente social em sua origem (ibidem). Quarto, esse estoque de construtos sociais é mantido numa forma tipificada, ou seja, são ordenados em tipos característicos capazes de serem correlacionados e reconhecidos à medida em que são novamente observados. Esta propriedade permite também o ordenamento dos objetos em categorias para futuras análises cognitivas. E, por último, que a compreensão intersubjetiva se realiza por meio de um processo no qual os atores esperam “reciprocidade”, apesar das diferentes perspectivas que orientam as compressões da realidade de cada um deles. É essa propriedade que permite que se estabeleçam relações de comunicação e de troca de experiências objetivas entre os atores ao desenvolverem suas ações subjetivas.
Apesar de Schütz evidenciar a necessidade de compreensão do senso comum, ele antecipa que esta não é uma tarefa fácil. Segundo ele, o senso comum é como uma “colcha de retalhos”, formada de partes altamente desiguais e, por vezes, desconexas. O senso comum não é formado por uma lógica racional, ao contrário, as ações do senso comum são muitas vezes irracionais e ilógicas. Portanto, Garfinkel influenciado por Schütz, vai divergir de Parsons que acreditava que as ações dos agentes se confundem com a lógica científica, e passa a considerar que as ações idealmente racionais não devem ser buscadas no mundo do senso comum (Heritage, 1999, p. 331). Aliás, ratifica Garfinkel, caso o cientista deseje reduzir seu trabalho a identificar a lógica dos acontecimentos ordinários a partir, exclusivamente, de uma orientação racional, terá seu trabalho perdido, pois esta empreitada é tão desnecessária quanto impossível de ser alcançada. Com esta observação, estabelece um novo território para as análises sociológicas, qual seja, o estudo das propriedades do raciocínio prático de senso comum nas situações mundanas de ação (ibidem).

5. Os conceitos desenvolvidos pela etnometodologia

A etnometodologia, como toda teoria, elencou uma série de conceitos que traduzem perspectivas epistemológicas e metodológicas do conjunto de idéias que defende. Muitos desses conceitos não foram criados pelos etnometodólogos, senão que foram tomados de empréstimo de outras correntes e áreas do conhecimento, imputando sobre eles alguma modificação ou acréscimo. Uma característica interessante da etnometodologia, em relação às demais correntes antecessoras, é o caráter de complementaridade e de valorização do aporte já construído pela ciência. Ou seja, os etnometodólogos estavam certos de que estavam criando uma teoria nova, no entanto não acreditavam que partiam do zero, desconsiderando o acúmulo desenvolvido pelas correntes anteriores; ao contrário, aproveitavam o que era possível e acrescentavam valor aos aspectos pouco desenvolvidos, descartando apenas aqueles que contradiziam os princípios etnometodológicos. São muitos os termos e conceitos trabalhados pelos etnometodólogos e que delineiam um perfil teórico desta corrente, porém ressaltaremos neste trabalho apenas cinco, considerando-os como os mais importantes e fundamentais para uma boa compreensão dos princípios etnometodológicos. Seguiremos a pista de Alain Coulon (1995a) e explicitaremos os conceitos de “prática/realização”; a “indicialidade”, a “reflexividade”; a “relatabilidade (ou accountability)”; e a “noção de membro”.

6. Prática, realização

A preocupação central da etnometodologia é buscar abordar as atividades práticas, as circunstâncias práticas e o raciocínio sociológico prático desenvolvido pelos atores no curso de suas atividades cotidianas, sejam estas atividades ordinárias ou extraordinárias, partindo de um raciocínio profissional ou não. Considera que a realidade social é construída na prática do dia-a-dia pelos atores sociais em interação; não é um dado pré-existente (Votre & Figueiredo, 2003, p. 4). Evidencia-se uma nova preocupação para a sociologia, a recuperação e a análise do “senso comum”, que para a sociologia clássica, desde Durkheim, devia ser evitado como um problema. Ao contrário, os etnometodólogos procuram descobrir no senso comum os verdadeiros sentidos que os atores dão às suas ações e esperam desvendar o raciocínio prático que orienta as ações sociais. A etnometodologia analisa as crenças e os comportamentos de senso comum como os constituintes necessários de “todo comportamento socialmente organizado”(Coulon, 1995a, p. 30).
Esta nova perspectiva exige uma mudança dos métodos e das técnicas de coleta de dados, bem como da construção teórica. Já não é mais possível trabalhar com a hipótese de que exista a priori um sistema de normas estável que dá significação ao mundo social, mas é preciso considerar que os fenômenos cotidianos estão em constante criação, transformação, e extinção. Tais fenômenos são criados pelos atores para dar significação às suas ações e permitir uma compreensão das ações empreendidas pelos demais atores que coexistem com ele num mesmo contexto. Ao contrário da sociologia tradicional que considerava possível determinar as “leis sociais” que regem os comportamentos e as ações sociais, a etnometodologia entende que as ações desenvolvidas pelos atores é guiada pelo seu raciocínio prático, fruto dos momentos particulares vivenciados e experimentados a cada ato interacional.

7. A indicialidade

O mundo social é constituído de ações interacionais entre os agentes, que são desenvolvidas pelo uso da linguagem. As intenções, ações, pedidos, ordenamentos, ensinamentos, trocas de auxílio, etc. são comunicadas através da linguagem estabelecida entre os atores, uma linguagem que não é ordenada e radicalmente fixa, mas que é flexível e adaptável, conforme o grupo de agentes que a desenvolve. Para os etnometodólogos, compreender o mundo social, antes de tudo, é compreender a linguagem que este mundo se utiliza para se fazer compreensível e transmissível. As ações sociais somente adquirem sentido neste contexto, ou seja, somente possuem significação quando são compreendidas pelos atores que interagem no mundo social. Portanto, para se capturar o mundo social nas análises sociológicas, é necessário estar atento e levar em conta as redes de significações que são estabelecidas pelo uso da linguagem.
A linguagem que interessa aos etnometodólogos não é a linguagem culta, dos lingüistas eruditos ou aquela dos discursos estruturados, mas aquela do dia-a-dia, utilizada pelo cidadão comum, nas suas ações práticas do cotidiano. Os etnometodólogos utilizam em suas pesquisas, em suas descrições e interpretação da realidade social, os mesmos recursos lingüísticos que o homem ordinário, a linguagem comum (Coulon, 1995a, p. 32). Uma das bases do estudo do raciocínio prático consiste na maneira como os membros de uma sociedade utilizam a palavra narrativa quotidianas para determinar a posição de suas experiências e de suas atividades. Portanto, o etnometodólogo se interessa pela maneira como os atores se servem da elocução ou da fala para construir um conjunto de ações coordenadas e inteligíveis. Cicourel (1977) estabelece que o método utilizado pelos etnometodólogos deve ser o mesmo do lingüista que, pretendendo descrever a estrutura da linguagem, se utiliza da elocução ou da fala para construir a sua gramática. Segundo ele,

etnometodólogos e lingüistas recorrem a concepções da significação um pouco diferentes, mas tanto uns como outros tomam como ponto de partida a produção do discurso e da narrativa (...). O etnometodólogo sublinha que é preciso entregar-se a todo um trabalho de interpretação para chegar a reconhecer que uma regra abstrata se adapta a uma situação particular, enquanto os lingüistas minimizam a influência das propriedades interacionais sensíveis ao contexto, insistindo, ao contrário, na importância das regras sintáticas, na análise semântica (Cicourel, 1977, p.61).


A linguagem cotidiana, ordinária, é repleta de expressões indiciais. As expressões indiciais são expressões, como por exemplo “isto”, “eu”, “você”, “etc”, que tiram o seu sentido do próprio contexto (Coulon, 1995a, p. 32). Indicialidade é um termo adaptado dos lingüistas e refere-se a expressões que possuem significados “trans-situacional”, ou seja, expressam em si mesmas um conjunto de idéias que superam o seu próprio significado literal ou sugerem a interligação de conteúdos já subentendidos ou já referidos, ou ainda, conteúdos que podem ser deduzidos pelos próprios atores no momento da interação, sem a necessidade de explanação verbal pormenorizada. As expressões que os atores empregam nos seus atos interacionais estão carregadas de indicialidade, ou seja, são formadas de expressões que somente ganham significado a partir do conhecimento do contexto local onde elas são produzidas. A indicialidade é assim essa incompletude que toda palavra possui. Ela precisa estar situada num contexto específico para revestir-se de significado (Votre & Figueiredo, 2003, p. 5). Segundo Coulon, uma expressão indicial que foi minuciosamente analisada pelos etnometodólogos foi a expressão “et cetera”. Esta expressão sugere ao discurso um complemento narrativo que só poderá ser desenvolvido pelos atores que possuírem o conhecimento contextual local no qual aquela fala se insere. A regra do “et cetera” exige que um interlocutor e um ouvinte aceitem tacitamente e assumam juntos a existência de significações e de compreensões comuns daquilo que se diz, quando as descrições são consideradas evidentes, e mesmo que não sejam imediatamente evidentes. Isto manifesta a idéia de existir um saber comum socialmente distribuído (Coulon, 1995a, p. 36).
No pensamento sociológico onde a lógica é utilizada para balizar o discurso, as expressões indiciais são vistas como inconvenientes e são rechaçadas das análises por não permitir enunciar proposições gerais, uma vez que seu conteúdo somente recebe significação num contexto de relação mais amplo, via de regra variável e muito flexível, podendo ser interpretado de inúmeras maneiras, dependendo do referencial contextual que dispõe o ouvinte. Os etnometodólogos entendem que a linguagem ordinária desenvolvida pelos atores comuns, nas suas ações práticas e corriqueiras do dia-a-dia, por ser a base das relações sociais, fornece a chave para o entendimento dos sentidos das ações que as pessoas desenvolvem nas suas práticas cotidianas. Procurar analisar e compreender o sentido das ações é procurar entender como estas ações são comunicadas e transmitidas socialmente. Uma outra característica decorrente desta perspectiva deriva do fato de que a indicialidade sugere sempre um sentido local e contextual, singular para cada ato interacional. Portanto, a sociologia não pode jamais almejar obter com suas análises generalizações que possam servir para explicar o conjunto dos fatos sociais dispersos nos diferentes contextos históricos e culturais. Desta forma, o pesquisador não deve solapar as expressões indiciais de suas análises, mas ao contrário, deve privilegiar atenção a elas, de modo a poder absorver o maior conteúdo explicativo possível através das significações contidas nelas.

8. A reflexividade

Os atores sociais ao desenvolverem e praticarem suas atividades cotidianas descrevem o quadro em que estão inseridos a partir de uma operação mental onde correlacionam o cabedal de experiências adquiridas, os conhecimentos, a capacidade criativa e adaptativa e as trocas de intenções do processo interacional. Segundo Coulon, a reflexividade designa as práticas que ao mesmo tempo descrevem e constituem o quadro social. Descrever uma situação é constituí-la. A reflexividade designa a equivalência entre descrever e produzir uma interação, entre a compreensão e a expressão dessa compreensão (Coulon, 1995a, p. 42), ou seja, na medida que desenvolvemos nossas ações práticas, estamos envolvendo uma série de atividades racionais motivadas tanto pelos reflexos dos sinais que recebemos do exterior como daqueles produzidos em nosso próprio interior. Essa reflexividade de sinais produzidas pelos atores é que dá origem às ações sociais, e é esse o produto social que deve ser analisado pelos sociólogos.
O processo de reflexividade não é o processo de reflexão que os atores desenvolvem sobre suas atitudes fatuais ou mentais. Quando se diz que as pessoas têm práticas reflexivas, isto significa que refletem sobre aquilo que fazem, embora não tenham consciência do caráter reflexivo de suas ações. Nos Estudos sobre Etnometodologia, Garfinkel afirma que a reflexividade pressupõe

que as atividades pelas quais os membros produzem e administram as situações de sua vida organizada de todos os dias são idênticas aos procedimentos usados para tornar essas situações descritíveis (Garfinkel, 1984, p. 55).

A propriedade reflexiva dos atores sociais permite que eles exprimam as significações de seus atos e de seus pensamentos, ou seja, de suas ações sociais. Esse processo é automático e contínuo. Mesmo sem perceber, o indivíduo desenvolve esta atividade a cada minuto de sua existência, pois necessita a si próprio de encontrar motivações e orientações para suas ações. Esse conjunto de percepções gerados pela reflexividade serve como base para a tomada de decisão e para a formação de uma idéia de mundo, coordenando os atores e articulando-os cooperativamente com os demais atores sociais. Para os etnometodólogos, a compreensão das significações das ações só é possível a partir do próprio processo de reflexividade desenvolvido pelos atores, que deve ser captado e recuperado no momento em que são produzidos. Portanto as fontes dos dados para as análises sociais devem ser os próprios atores, em interação efetiva, a partir do processo de relatabilidade, que apresentamos abaixo.

9. A relatabilidade (ou accountability)

O termo accountability, que designa para Garfinkel a propriedade de relatabilidade, ou seja, de descrição, é uma característica que permite aos atores sociais comunicarem e tornarem as atividades práticas racionais compartilháveis. A relatabilidade está intimamente ligada ao processo de reflexividade. A relatabilidade são as descrições que os atores fazem de seus processos reflexivos, procurando mostrar sem cessar a constituição da realidade que produziram e experienciaram. Em outras palavras, a relatabilidade não é a descrição pura e simplesmente da realidade enquanto pré-constituída, mas enquanto essa descrição em se realizando, fabricando o mundo, construindo-o (Coulon, 1995a, p. 46). A relatabilidade é a propriedade que permite que os atores tornem o mundo visível a partir de suas ações, tornando as ações compreensíveis e transmissíveis. Ao passo que são descritas, ou seja, ao passo que são dotadas de significado e sentido através dos processos pelos quais são relatadas, as ações sociais exprimem o mundo social na sua mais pura essência. Os etnometodólogos não estão, portanto, preocupados em apenas descrever as ações sociais a partir dos relatos fornecidos pelos atores, mas procuram compreender como os atores reconstituem permanentemente uma ordem social frágil e precária, a fim de compreenderem e serem compreendidos (Coulon, 1995a, p. 46), em outras palavras, como os atores conseguem estabelecer intercâmbio, comunicação, interação. Considerar que o mundo social é relatável (accountable), significa dizer que ele é disponível, passível de ser descrito, compreendido, analisado pelos sociólogos a partir da accountable dos atores em interação.

10. A noção de membro


Para os etnometodólogos, membro não é apenas um ente que pertence a um determinado grupo, mas ao contrário, é um ente que compartilha a construção social daquele determinado grupo. Em outras palavras, é membro o indivíduo que domina a linguagem comum do grupo, que interage com os demais a partir de redes de significação estabelecidas nos processos interacionais, que compreende o mundo social em que está inserido sem grandes esforços racionais, mas apenas pela pertença natural de sua socialização. Segundo Coulon, um membro é

uma pessoa dotada de conjunto de modos de agir, de métodos, de atividades, de savoir-faire, que a fazem capaz de inventar dispositivos de adaptação para dar sentido ao mundo que a cerca. É alguém que, tendo incorporado os etnométodos de um grupo social considerado, exibe “naturalmente” a competência social que o agrega a esse grupo e lhe permite fazer-se reconhecer e aceitar (Coulon, 1995a, p. 48).

11. Uma perspectiva metodológica da etnometodologia

Como vimos, a etnometodologia se funda sob o estudo do raciocínio prático do cotidiano, buscando a partir desde conjunto de evidências reconstruir uma explicação precária da realidade observada. Precária não no sentido pejorativo, ou seja, com a conotação de parcialidade, de insuficiência, mas de relativa humildade científica, admitindo-se que as explicações servem para dar conta das significações interacionais de um determinado grupo, em determinado contexto histórico e cultural, e tão somente, não podendo explicar realidades totalizantes, de grande abrangência.
A partir dos anos de 1970, a etnometodologia começou a cindir-se, segundo Coulon em dois grupos. De um lado, se colocaram aqueles sociólogos que, embora adeptos das novas perspectivas propostas pela etnometodologia, mantinham seus vínculos com as preocupações mais tradicionais da sociologia, como os campos da educação, da justiça, das organizações, das administrações, da ciência (Coulon, 1995a, p. 26). De outro lado, se colocaram os analistas de conversação, que tentam descobrir em nossas conversas as reconstruções contextuais que permitem lhes dar um sentido e dar-lhes continuidade (ibidem). De fato, uma das bases do raciocínio prático encontra-se na maneira como os membros de uma sociedade utilizam a palavra e a narrativa cotidianas para determinar a posição de suas experiências e de suas atividades (Cicourel, 1977, p. 60).
Greg Myers (2002) discute a análise da conversação e da fala, uma técnica derivada da etnometodologia. Ao apresentar a técnica, Myers diverge de metodologias que tentam reduzir enormes quantidades de dados brutos de uma pesquisa, sejam eles entrevistas já transcritas, formulários de levantamento e anotações de estudos de caso ou anotações de campo, com o objetivo de usar estes dados em uma argumentação, pois assim são desconsiderados os momentos reais da fala e/ou as marcas na página. O autor argumenta que, muitas vezes, é adequado voltar a esta enorme quantidade de dados da pesquisa, desde que possamos percebê-los como falas, olhando para interações específicas em suas situações particulares (Myers, 2002, p. 271).
Myers também dedica importância à interação social entre pesquisador e pesquisado. Segundo ele, o objetivo dos manuais de pesquisa em ciências sociais é eliminar possíveis influências que possam afastar a situação da pesquisa do mundo real. Sendo assim, as interações de pesquisa são planejadas a fim de serem padronizadas e reduzidas, desconsiderando, assim, o pesquisado e as circunstâncias da interação de pesquisa, enquanto que, outros pesquisadores lembram que até mesmo os encontros planejados transformam-se em complexas formas de interação social. Tudo pode ser analisado a partir do referencial do sujeito da investigação. Portanto, o interesse da análise de conversação está em perceber como os participantes organizam a interação de momento a momento (Myers, 2002, p. 272).
Na análise da conversação, os dados de pesquisa não são considerados como tendo um status especial que os separe de outra fala (Myers, 2002, p. 272). Com esta técnica, o pesquisador realiza uma análise detalhada a partir da fala dos sujeitos da pesquisa, podendo, assim, identificar categorias utilizadas pelos participantes, como também, seus pontos de vista. Segue, desta forma, em direção a uma pesquisa mais reflexiva, pois, além de considerar o referencial do participante, o próprio pesquisador poderá refletir a respeito de seu papel social. Ao trabalhar com grupos focais (8), Myers percebe que esta técnica produz uma grande quantidade de dados e uma forma de trabalhar com tal quantidade seria usar as transcrições como dados brutos. Ele objetiva mostrar como os participantes gerenciaram ordenadamente a interação. Para este enfoque, o analista busca a interpretação de um turno (fala de uma pessoa do começo ao fim), examinando a resposta de outro participante no turno seguinte, pois, a chave da organização espacial está nas relações entre os turnos adjacentes (Myers, 2002, p. 274). Porém, este enfoque exige muita atenção para a forma com que cada fala foi realmente feita, principalmente, com questões de tempo. Os detalhes da transcrição são essenciais para realizar a análise de conversação e, portanto, Myers destaca alguns tópicos práticos que devem ser considerados desde o começo da pesquisa.

a) Planejamento: o tópico guia, ou a folha da entrevista, deve garantir uma gravação clara.
b) Registro: a gravação deve ser clara para permitir uma boa transcrição. O local deve ser analisado com antecipação, pois não pode haver muitos ruídos.
c) Transcrição: sua forma é muito discutida; algumas opiniões são citadas por Myers que destaca, entre outros, Elinor Ochs como a favor de tratar a “transcrição como teoria”; Sharrock & Anderson que defendem uma transcrição detalhada utilizada na análise de conversação e Atkison & Heritage como defensores de uma lista de símbolos-padrão para análise de conversação. Entende-se que quanto mais detalhada for a transcrição, mais rica será sua análise; no entanto, para uma transcrição mais acurada é preciso dispor de maior tempo e recursos financeiros.
d) Atribuições: para analisar uma fala é preciso ter clareza a fim de saber quem disse o quê. Tal ponto exige um certo esforço para identificar as continuidades ou as falas de cada participante.
e) Análise: será menos extensa que a transcrição, no entanto, é importante que o primeiro passo da análise seja uma leitura atenta da transcrição juntamente com a escuta da fita.
f) Relatório: para Myers, a forma ideal de relatório seria mostrar seções da fita como demonstração de um argumento. No entanto, como as transcrições são detalhadas, elas ocupam muito espaço em relatórios impressos e a leitura de transcrições detalhadas pode ser desestimulante para leitores não acostumados com a técnica. Myers acredita que tecnologias futuras superem essas dificuldades, porém cabe ao pesquisador definir os pontos mais relevantes e definir as metodologias de pesquisa e os pressupostos teóricos sobre suas investigações sociais. Myers sugere algumas características para análise. Ele acredita não existir uma listagem simples de características que sejam relevantes na análise de conversação; no entanto, a partir de seu exemplo, ele sugere pontos como: seqüência, tópico, formulação e indexação. Tais características se relacionam com os tópicos mais amplos da investigação.

As pessoas não apenas chegam com atitudes favoráveis ou desfavoráveis, com respeito a determinados atores ou ações. Elas tomam posição com respeito às insinuações do moderador, sobre as contribuições dos outros participantes, sobre os objetos que as rodeiam e sobre as ações e a fala que se desenvolvem. Elas propõem e exploram possíveis colocações com relação ao turno anterior, e desse modo não é surpresa que seus pontos de vista sejam muitas vezes complexos, instáveis e aparentemente contraditórios. Para os pesquisadores, a interação é um modo de investigar opiniões; para os participantes, as formulações de suas opiniões são um modo de interação, em uma sala cheia de pessoas estranhas (Myers, 2002, p. 285).

O autor ainda expõe alguns problemas metodológicos sobre análise de conversação. Para ele, a análise detalhada da fala propõe questões diferentes. A inferência se refere à capacidade de persuasão de toda a interpretação. O analista procuraria exemplos em que os participantes discordam e mostraria como outros participantes respondem a essas instâncias como uma oportunidade de realização de suas expectativas. A relação da amostra com o conjunto social mais amplo chama-se generalização. É preciso evitar tais generalizações, pois os grupos estudados não são escolhidos para representar a sociedade como um todo, mas são grupos escolhidos devidos às suas particularidades para que pudessem dizer algo referentes às questões teóricas propostas. Outro problema metodológico levantado por Myers é sobre a relação dos participantes da investigação com vários grupos sociais, ou seja, a identidade. É preciso ter cuidado ao atribuir afirmações a grupos sociais específicos; os pesquisadores da análise de conversação somente dão atenção para os elementos de identidade mostrados pelos participantes na fala. Um último problema apresentado é sobre o tipo de atividade, sobre a relação entre o que eles fazem ou dizem nos grupos focais e o que eles iriam fazer ou dizer em outros contextos, sobre em que pensam os participantes quando falam.
Os argumentos de Myers justificam que uma análise cuidadosa das falas, das transcrições, adotando modelos baseados na análise de conversação, pode nos levar a compreensões mais claras sobre os dados coletados de uma pesquisa em ciências sociais. No entanto, é preciso considerar que a análise necessita de muita atenção durante a gravação e a transcrição. Por um lado, tal análise permite ao pesquisador examinar as categorias dos participantes e a relevância dada a essas categorias pelos próprios participantes, fornecendo explicações mais claras. E por outro, pode ser uma oportunidade para o melhoramento das técnicas de pesquisa, pois possibilita a reflexão sobre a investigação e o lugar do pesquisador dentro dela.

12. Bibliografia

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ZITKOSKI, Jaime José. O Método Fenomenológico de Husserl. Porto Alegre: EdPUCRS, 1994.

Notas

1 Mestrando em Sociologia Política (UFSC), Bacharel em Ciências Sociais (UFSC), Correio Eletrônico: adalto@cfh.ufsc.br

2 Ressalta-se aqui o importante trabalho intitulado Ethnomethodology de Roy Turner (1974).

3 Alan Coulon (1995b) indica alguns trabalhos franceses no campo da sociologia geral, a obra de Jean-Michel Berthelot L’intelligence du social, Paris, PUF, 1990 e La construction de la sociologie, Paris, PUF (“Que sais-je?”, n. 2602), 1991.

4 Esta afirmação não é precisa, parte de nossa constatação, bastante superficial, após ter explorado o tema pela Internet e verificado o uso da etnometodologia nas áreas aqui apresentadas.

5 Para uma análise mais aprofundada do interacionismo simbólico ver Hans Joas. (1999) Interacionismo simbólico; Alain Coulon (1995c). A Escola de Chicago; Sebastião Vila Nova (1998). Donald Pierson e a Escola de Chicago na Sociologia Brasileira: entre humanistas e messiânicos.

6 Sobre o método fenomenológico de Husserl ver Zitkoski (1994) O método fenomenológico de Husserl. Porto Alegre, EdPUCRS. Ressalta-se que a “fenomenologia social” de Schütz difere em alguns pontos da obra de Husserl, para uma compreensão mais acurada deste ver Bergmann & Luckmann (1998) A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis, Vozes.

7 Sobre o conceito de Verstehen em Weber ver Saint-Pierre (1999) Max Weber: Entre paixão e a Razão, Campinas: EdUnicamp, e Cohn (1999) Weber. Coleção Os Grandes Ciêntistas Sociais. São Paulo: Ática, ou diretamente na obra do autor em Weber (1979) Economía y Sociedad. México: fondo de Cultura Económica e (1982) Ensayos sobre metodología Sociológica. Buenos Aires: Amortu.

8 Myers toma como exemplo uma transcrição de seu estudo realizado na Lancaster University, em conjunto com John Urry, Bronislaw Szerszynski e Mark Toogood, sobre “Cidadania global e o meio ambiente”, cuja técnica utilizada foi a de grupos focais.




Fonte: Revista Eletrônica dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFSC Vol. 1 nº 1 (1), agosto-dezembro/2003, p. 149-168

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