segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O neoliberalismo acabou e não foi o fim da história

Keynes


6/10/2008

Entrevista especial com José Guilherme Vieira


Para José Guilherme Vieira, o índice de confiança empresarial já demonstra, na prática, que teremos uma recessão forte assegurada

Restrição ao crédito no curto prazo? “Não se engane! É só o começo”, alerta o professor da Universidade Federal do Paraná José Guilherme Vieira. Ao refletir sobre a crise financeira internacional, ele dispara: “Eu não recomendaria para ninguém se endividar agora. Daí para frente é tudo previsível: esfriamento da construção civil, desemprego, queda no setor de serviços, mais empresas em dificuldade, inadimplência, quebras, mais desemprego”. Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Vieira afirma que “o Estado é necessário para regular não só o sistema financeiro como também para defender a concorrência”. Ele se diz um grande defensor do capitalismo regulado e acha que, nisso, pode ser considerado um seguidor de Keynes.

Graduado em Ciências Econômicas, pela Fundação Universidade Federal do Rio Grande, José Guilherme Vieira é mestre e doutor em Desenvolvimento Econômico, pela Universidade Federal do Paraná. Atualmente, é também professor na Universidade Positivo e nas Faculdades Integradas Santa Cruz, de Curitiba.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que sentido as teorias de Keynes podem ser úteis para compreendermos a crise financeira internacional? Keynes contribui para vislumbrarmos alguma saída ou alternativa?

José Guilherme Vieira –
Keynes, mais do que Kalecki, outro grande nome na heterodoxia, ajuda a entender muito bem esse estado de ânimo dos investidores no mercado de capitais. No famoso capítulo 12 de sua Teoria Geral ele descreve, aliás, de forma ambígua, o papel desse tipo de “investidor”. Ao mesmo tempo em que o especulador permite o aumento da liquidez na economia, causa também as instabilidades e contribui para a formação de um ambiente de incertezas. A partir daí, podemos ter bem claro que a leitura de sua obra prima pode nos ajudar a prever os próximos passos "naturais" da crise. Isso quer dizer que, independente dos desdobramentos da crise no sistema bancário (que é séria e sistêmica) o “Animal Spirit” já foi abalado. O índice de confiança empresarial - que é a melhor proxy para medir esse estado de espírito do empresário brasileiro - já demonstra, na prática, que teremos uma recessão forte assegurada. Keynes e Kalecki se parecem mais com relação ao que se deve fazer diante da crise, mas a sutileza da interpretação dos mecanismos que levam a uma parada nos investimentos é uma contribuição única do mestre inglês.

IHU On-Line – O senhor acredita que a crise financeira internacional em efeito dominó pode provocar mudanças no capitalismo? Que tendências se apresentam?

José Guilherme Vieira –
Sim, a crise é sistêmica. Além dos impactos naturais em todo o castelo de cartas que se erigiu em cima de créditos podres, os impactos mais imediatos nos setores da economia real se fazem sentir sobre aqueles que vendem a prazos longos (imóveis e automóveis) devido a um continuo encarecimento de crédito e redução de prazos para pagamentos. Não se engane! Qualquer restrição que venha a surgir no curto prazo é só o começo. Eu não recomendaria para ninguém se endividar agora. Daí para frente é tudo previsível: esfriamento da construção civil, desemprego, queda no setor de serviços, mais empresas em dificuldade, inadimplência, quebras, mais desemprego. O que deve acontecer no Brasil é que o governo vai acabar acelerando as obras do PAC para compensar o desaquecimento, sobretudo porque em 2010 tem eleição presidencial. Mas, no mundo, as coisas se arrastarão por mais tempo e acabarão, sim, por decretar uma mudança de paradigmas. Em primeiro lugar, porque os efeitos da recessão econômica acabam por se refletir na mudança de governos. Insatisfeitos com a crise em seus países, os eleitores tendem a promover a renovação política. O novo governo, por sua vez, precisa mudar o status quo. Assim, espero um maior fechamento das economias mundiais para o comércio internacional (embora em menor escala do que antes dos anos 1980) e um maior fechamento do mercado de capitais (esse sim, em grande escala). O neoliberalismo acabou (não foi o fim da história, portanto).

IHU On-Line – O livre mercado é viável na atual economia capitalista ou a intervenção do Estado é realmente necessária?

José Guilherme Vieira –
Nunca houve livre mercado. Estados Unidos e Europa nunca se abriram para os produtos dos países emergentes. Na realidade, essa retórica foi sempre em favor dos seus próprios interesses comerciais. Nós deveríamos abrir nossos mercados, mas eles não. Argumentos como “setores sensíveis” sempre estiveram na mesa de negociações. No entanto, eu sou favorável ao livre mercado, acredito na lei das vantagens comparativas. É uma pena que nunca possamos testá-la na prática, pois isso exigiria a ausência de barreiras comerciais. O ponto em que realmente não acredito é que o sistema de preços funcione. Saiu um livro esse ano, Previsivelmente irracional, de Dan Ariely, que mostra como pensamos os preços na prática. O mercado não é capaz de mandar sinais eficientes através de preços. E eu provo isso: qual é o valor da Vale do Rio Doce? Bom, se esse valor é estabelecido pelo preço das suas ações eu imagino que todos os dias eles estejam assinando e rasgando contratos (pois essa seria a única explicação para a flutuação absurda de seus preços na Bolsa de Valores de São Paulo). O Estado é necessário para regular não só o sistema financeiro como também para defender a concorrência. Eu sou um grande defensor do capitalismo regulado e acho que nisso posso ser considerado um seguidor de Keynes.

IHU On-Line – Qual a principal contribuição da retórica na economia keynesiana para a revolução na economia provocada por suas teorias?

José Guilherme Vieira –
Keynes, em certa medida, foi um artista. Ele era mesmo uma celebridade na Inglaterra. Dava entrevistas, circulava entre a elite, os intelectuais. Você pode ver sua personagem em filmes que retratam a vida de vários escritores famosos. Mas o fato de ser filho da elite e ter uma excelente educação burguesa fazia com que suas palavras, fossem elas quais fossem, tivessem espaço para serem ouvidas. Eu me interessei pela análise da retórica de Keynes depois de ler um trabalho de Francisco Anuatti (USP), que falava sobre o assunto. Daí resolvi fazer o mesmo estudo só que focado na Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Quando empreendi a leitura do livro com esse propósito, tive uma outra percepção da sistemática de Keynes. Antes, sempre achei o livro desorganizado (embora genial pelo conteúdo). Às vezes, achei-o confuso e mesmo incompreensível em determinados trechos. Mas pude ver que essa confusão foi muitas vezes proposital. Por exemplo: concluí, entre outras coisas, que a distribuição de renda também era uma variável chave (e não apenas marginal) no esquema de Keynes. Para a economia, portanto, um programa como o Bolsa Família é extremamente positivo no seu esquema teórico.

Os especuladores financeiros também são responsabilizados pelas crises na economia capitalista. Mas porque ele apresenta esses temas com pouco destaque? Porque seria revolucionário demais juntar medidas destinadas a corrigir esses problemas a todo o conjunto de outras mudanças propostas. Eu acho que ele também viu a janela de oportunidade que se abriu diante de seus olhos para se colocar enfaticamente como a única alternativa dentro do capitalismo (já que a outra possibilidade de sair da depressão de 1929 seria o socialismo soviético). E isso pode ser visto no capítulo 24 da Teoria geral, no qual Keynes diz para onde deve levar a sua filosofia. A revolução keynesiana está para a economia como Einstein está para a física. Ocorre que, diferentemente do que ocorre com a física, na economia a Revolução foi sucedida de uma contra-revolução que tentou apagar tudo dos livros. Veja os livros de economia de hoje: apagaram Marx, Keynes onde foi possível (obviamente, não na macroeconomia) e enalteceram Friedman, Lucas etc. Acho que vem uma Revolução paradigmática por aí. Mas não sei o que virá, que corrente dará as cartas. Mas, com certeza, será intervencionista.

IHU On-Line – Podemos estabelecer alguma comparação entre o momento econômico vivido na época da ascensão do paradigma keynesiano e o momento econômico atual?

José Guilherme Vieira –
Totalmente. Mas não ainda nesse exato momento. Mais de 10000 bancos faliram nos EUA na década de 1930 (o sistema era composto por pequenos bancos). Estamos longe disso. Mas algumas coisas são semelhantes. O foco da crise é o cerne do sistema e por isso a crise é inegável. O presidente da república dos EUA é republicano (como o era na época). Ele também não fez nada no começo da crise como seu correspondente na Depressão. Teremos eleições em que se afigura uma mudança de comando de ideologias (como ocorreu na Depressão). O mundo está dependente dos EUA como sempre (comercial e financeiramente). Vínhamos de um período de expansão global, extrema liquidez, irracionalidade nos mercados de ações e agora assistimos a restrição de liquidez, entesouramento de dinheiro nos bancos, enfim, é o mesmo cenário só que agora os governos agiram relativamente mais cedo e com maior força. Só que isso já não afasta mais a crise.

IHU On-Line – Qual a influência das revoluções científicas para as transformações econômicas? Como Keynes contribui para a compreensão deste fenômeno?

José Guilherme Vieira –
Ele foi a única Revolução Científica Kuhniana na economia. Quase em toda a parte se dizia que Keynes e sua macroeconomia dirigida eram a solução. Acho que a maior contribuição dada pela revolução é que toda a unanimidade é burra quando se fala em ciência. O liberalismo virou uma fé e quando isso estava disseminado veio a crise. De igual forma, quando o mesmo ocorreu com Keynes, veio a crise. Agora, quando todos falavam das maravilhas do mercado eficiente, veio a crise. É preciso uma dose de pluralismo na economia. Sejamos plurais.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a política econômica (juros) do governo Lula e o risco da inflação? Keynes teria algo a ensinar a esse governo?

José Guilherme Vieira –
Agora é tarde para falar sobre isso, acho. Perdemos uma oportunidade para crescer e a política monetária não tem mais a força necessária para recuperar a economia da recessão que virá. Pode observar. Não adiantarão pacotes de liquidez se você estiver pensando em salvar o “Animal Spirit”. Os pacotes monetários servem para evitar que o mal se agrave ainda mais. A dose de juros foi exagerada sim e existem razões para acreditar que isso não se deva apenas ao sistema de metas inflacionárias. Mas, como disse, é passado. Se tudo der certo, a inflação será tolerável. Se der tudo errado, teremos deflação!

IHU On-Line – Qual a importância do trabalho para as teorias econômicas de Keynes? Como isso se aplica na sociedade brasileira atual, considerando o aumento de postos de trabalho, do salário mínimo e da renda em geral de uma determinada camada da população?

José Guilherme Vieira –
O trabalho sempre foi a única fonte da riqueza produzida. Se existem trabalhadores desempregados, é produto potencial que se perde. Riqueza que não se cria e que divide a que já existe. Reconhecer que não nos encontramos no ponto de emprego máximo e erigir uma teoria que objetiva atingi-lo foi sua maior contribuição. Mas não podemos nos enganar a respeito de onde os trabalhadores entram no esquema keynesiano. Eles são úteis. Eles consomem o que ganham (Kalecki foi mais eficiente em demonstrar as implicações desse ponto). Não é por pena dos trabalhadores que Keynes os quer empregados. Se eu fosse um marxista - e estou longe disso -, diria que ele deseja que eles estejam empregados por que seriam uma espécie de mais-valia desperdiçada.