segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Entrevista com Michael Hardt

Hardt e Negri, autores de Império


9/11/2008

'A luta contra o conservadorismo continua'. Entrevista com Michael Hardt


“A política não acabou porque Obama foi eleito presidente dos Estados Unidos”, diz Michael Hardt, autor, junto com Antonio Negri, de “Império”, que, durante alguns anos, foi uma espécie de bíblia antiimperialista para os movimentos sociais de esquerda. Otimista com a vitória do democrata, Hardt acha que os pacifistas e os grupos de defesa dos direitos humanos poderão, a partir de agora, ser mais ambiciosos em suas campanhas, porque não precisarão desperdiçar energia lutando por causas básicas como a proibição da tortura e o fechamento de Guantánamo, em Cuba. “A luta contra o conservadorismo tem que continuar”, conclama Hardt.

A entrevista é de Helena Celestino e publicada pelo jornal O Globo, 09-11-2008.


Houve uma grande mobilização para eleger Obama, especialmente entre os jovens. O senhor acha que uma nova geração foi conquistada pela política?

Esta é a pergunta que estou me fazendo: como vai ser a relação de Obama com os jovens, os movimentos sociais. Todas essas pessoas que se mobilizaram na eleição vão voltar para a casa ou vão ter representantes no governo ou mesmo continuarão ativas e, eventualmente, vão protestar contra Obama? Muito desse movimento internacional a favor de Obama foi criado pelos grupos pacifistas, pelos grupos contra a globalização capitalista. Penso que pode acontecer uma situação similar à dos governos de esquerda na América Latina, com uma relação questionável entre governo e movimentos sociais, como vem acontecendo no Brasil, na Bolívia, no Equador.

O discurso de Obama é de pragmatismo político, entendimento racial...

De um lado, é importante não acreditar neste discurso de que acabaram os conflitos raciais e as tensões por causa da luta contra a guerra. De outro lado, é importante ter uma nova plataforma com a qual os movimentos sociais podem se conectar. Ou, dito de outra maneira, os movimentos sociais vão poder ser muito mais inteligentes e produtivos do que no período Bush. Nos últimos anos, tivemos de nos concentrar em temas óbvios, em assuntos que não deveriam estar mais em questão, como tortura, fechamento de Guantánamo, guerra do Iraque. Claro que não se pode torturar e que Guantánamo tem de ser fechada.

Esses assuntos agora deixarão de ser motivo de polêmica e poderemos lutar por coisas mais importantes. Agora, os movimentos sociais poderão ser mais produtivos e terão novas oportunidades de pensar os desafios do mundo atual.

O maciço apoio a Obama foi visto como uma derrota dos conservadores, mas, ao mesmo tempo, o casamento gay e até uniões heterossexuais não formalizadas foram rechaçadas em alguns lugares. O que pensa disso?

A eleição de Obama não significa o fim da política. As forças conservadoras não deixaram de ser poderosas nos Estados Unidos. Essa população afro-americana e hispânica que apoiou Obama é contra o casamento gay, são grupos socialmente conservadores. A luta contra as forças conservadoras têm que continuar no país.

O senhor não acha que a crise econômica vai limitar as possibilidades políticas do governo Obama?

Acho, claro. O governo vai ser limitado pela crise econômica e pelas duas guerras em curso, a do Iraque e a do Afeganistão. Não vai ser possível tirar as tropas imediatamente. A crise econômica provavelmente vai piorar muito no próximo ano e, portanto, vai ser praticamente impossível colocar em prática todos os projetos econômicos de Obama.

De qualquer jeito, é muito melhor para os Estados Unidos e para o mundo ter a equipe de Obama administrando essa crise do que ter os técnicos de John McCain ou Bush. Não podemos esperar que Obama cumpra todas as expectativas criadas ou as promessas feitas.

O senhor acha que a crise econômica e financeira atual é a pior enfrentada pelo mundo capitalista recentemente?

É certamente uma crise importante, mas não significará o fim do capitalismo ou do controle financeiro, nem do FMI ou do Banco Mundial, e nem mesmo o fim da importância dos EUA no mundo. A crise financeira é importante, mas o sistema global está se reorganizando e não vai desmontar.

O senhor acha que a crise está provocando uma reorganização do poder global?

Acho que, com Obama no governo, voltamos à questão que eu e Toni (Antonio Negri) tentamos enfrentar no livro “Império”: se os EUA são capazes de governar o mundo unilateralmente ou se os EUA não são mais um país com poder imperialista. Bush tentou governar o mundo de forma unilateral e fracassou do ponto de vista econômico, político e militar.

Nós voltamos à questão, agora, para saber qual será a forma deste império global: eu acho que será com os Estados Unidos, junto com outras nações dominantes, trabalhando com as corporações capitalistas e com as instituições supranacionais — como FMI e Banco Mundial — para criar uma espécie de network da ordem global. Eu acho que os EUA, como poder imperialista, morreram e foram enterrados. Mas entender a organização global, a forma que o capitalismo global tomará, continua sendo um desafio.

A crise, na visão de Habermas

Habermas
9/11/2008

Os EUA agarrarão a oportunidade da razão? Entrevista com Jürgen Habermas


Um dos mais importantes filósofos vivos, o alemão Jürgen Habermas fala sobre os efeitos da atual crise financeira sobre o futuro dos Estados nacionais. Para ele, as mudanças que o sistema político mundial sofrerá nos próximos anos irá depender necessariamente das posições que os EUA -e seu novo presidente- irão adotar.

Habermas defende que os EUA, mesmo enfraquecidos, ainda permanecerão como a superpotência liberal.

A entrevista é de Thomas Assheuer, publicada pelo jornal Die Zeit e traduzida pelo jornal Folha de S. Paulo, 09-11-2008.

Eis a entrevista.

O sr. deve estar decepcionado com os EUA, que, em sua opinião, foram o cavalo de tração da nova ordem mundial.

O que nos resta a não ser apostar nesse cavalo de tração? Os Estados Unidos sairão enfraquecidos da dupla crise atual. Mas permanecerão por enquanto a superpotência liberal. A exportação mundial da própria forma de vida correspondeu ao universalismo falso, centralizado, dos velhos ricos. Em contraposição, a modernidade se alimenta do universalismo descentralizado do respeito igual por cada um. É do próprio interesse dos EUA não somente deixar de lado seu posicionamento contraproducente em relação à ONU, mas também colocar-se no topo do movimento reformista. Do ponto de vista histórico, a combinação de quatro fatores oferece uma constelação extraordinária: superpotência, mais antiga democracia na terra, a posse de um presidente liberal e visionário e uma cultura política na qual orientações normativas encontram um notável solo de ressonância.

Os EUA sentem-se hoje profundamente inseguros devido ao fracasso da aventura unilateral, à autodestruição do neoliberalismo e também ao mau uso de uma consciência de excepcionalidade. Por que essa nação não poderia, como fez com tanta freqüência, recompor-se de novo e tentar integrar a tempo as grandes potências concorrentes de hoje - e potências mundiais de amanhã - em uma ordem internacional que prescinda de uma superpotência? Por que um presidente - que, saído de uma eleição decisiva, irá encontrar somente um espaço mínimo de ação - não desejaria, pelo menos na política externa, agarrar essa oportunidade razoável, essa oportunidade da razão?

Falando assim, o sr. não arrancaria mais do que um riso cansado dos chamados "realistas"...

O novo presidente americano precisa se impor contra as elites dependentes de Wall Street no próprio partido; ele também deveria ser afastado dos reflexos evidentes de um novo protecionismo. E os EUA precisariam, para uma meia-volta tão radical, do impulso amigável de um aliado leal, mas autoconsciente. Só pode existir um Ocidente "bipolar", no sentido criativo, se a União Européia aprender a falar para fora com uma só voz. Em épocas de crise, talvez seja necessária uma perspectiva que tenha um alcance mais longo do que o conselho do "mainstream" embonecado do sucesso a qualquer custo.

O sistema financeiro internacional entrou em colapso, e há a ameaça de uma crise econômica mundial. O que mais o inquieta?

O que mais me inquieta é a injustiça social, que consiste no fato de que os custos socializados oriundos da pane do sistema atingem da forma mais dura os grupos sociais mais vulneráveis. Assim, solicita-se da massa composta por aqueles que, de qualquer modo, não pertencem aos que lucram com a globalização que ela de novo pague pelas conseqüências, em termos da economia real, de uma falha funcional previsível do sistema financeiro. Também em escala mundial, esse destino punitivo efetua-se nos países mais fracos economicamente. Esse é o escândalo político. Mas apontar agora bodes expiatórios, isso, sem dúvida, considero hipocrisia. Também os especuladores comportaram-se de forma conseqüente, nos limites da lei, de acordo com a lógica, aceita socialmente, da maximização dos ganhos. A política se torna ridícula quando moraliza, em vez de se apoiar no direito coativo do legislador democrático. Ela, e não o capitalismo, é responsável pela orientação voltada ao bem comum.

Para os neoliberais, o Estado é somente um parceiro no campo econômico e precisa se apequenar. Agora esse pensamento não tem mais crédito?

Isso dependerá do desenrolar da crise, da capacidade de percepção, por parte dos partidos políticos, dos temas públicos.

Por que o bem-estar é hoje distribuído de forma tão desigual? O fim da ameaça comunista desinibiu o capitalismo ocidental?

O capitalismo contido no âmbito dos Estados nacionais, cercado por políticas econômicas keynesianas, marcado por um bem-estar incomparável - do ponto de vista histórico -, já havia acabado logo após o abandono do câmbio fixo e do choque do petróleo. De fato, a ruína da União Soviética desencadeou um triunfalismo fatal no Ocidente. A sensação de ter razão, em termos da história mundial, tem um efeito sedutor. Neste caso, inchou uma doutrina político-econômica e a tornou uma visão de mundo que penetra em todas as esferas da vida.

De que o mundo sentiu falta depois de 1989? O capital simplesmente se tornou poderoso demais diante da política?

Ficou claro para mim, ao longo dos anos 1990, que as capacidades políticas de ação precisavam crescer atrás dos mercados, no plano supranacional. À globalização econômica deveria ter seguido uma coordenação política mundial e a legitimação adicional das relações internacionais. Mas as primeiras peças adicionais já ficaram atoladas no governo de Bill Clinton. Desde o início da modernidade, o mercado e a política sempre precisaram se contrabalançar de forma que a rede de relações solidárias entre os membros de uma comunidade política não se rompesse. Uma tensão entre capitalismo e democracia sempre existe porque mercado e política repousam sobre princípios opostos.

Mas o sr. insiste no cosmopolitismo de Kant e acolhe a idéia de uma política interna mundial, introduzida por Carl Friedrich von Weizsäcker. Isso soa bastante ilusório -basta que se observe o estado atual das Nações Unidas.

Mesmo uma reforma basilar das instituições centrais das Nações Unidas não seria suficiente. De fato, o Conselho de Segurança, o Secretariado, as cortes de Justiça precisariam urgentemente entrar em forma para uma imposição global dos direitos humanos e da proibição da violência -em si já uma tarefa imensa. Nesse plano transnacional, há problemas de distribuição que não podem ser decididos do mesmo modo que infrações contra os direitos humanos ou violações de segurança internacional, mas precisam ser negociados de forma política.

Mas para isso já existe uma organização experimentada, que é o G-8.

Isso é um clube exclusivo, no qual algumas dessas questões são discutidas de forma descomprometida. Entre as expectativas exageradas que se ligam a essas encenações e o resultado medíocre do espetáculo midiático sem conseqüências, existe uma desproporção traiçoeira.

O discurso sobre a "política interna mundial" soa antes como os sonhos de um vidente.

Ainda ontem a maioria consideraria não realista aquilo que ocorre hoje: os governos europeus e asiáticos superam-se mutuamente em sugestões de regulamentações em vista da institucionalização insuficiente dos mercados financeiros.

Mesmo que novas competências fossem atribuídas ao Fundo Monetário Internacional, isso ainda não seria uma política interna mundial.

Não quero fazer previsões; em vista dos problemas atuais, o que podemos fazer, na melhor das hipóteses, são considerações construtivas. Os Estados nacionais deveriam, de forma crescente e, com efeito, em seu próprio interesse, se perceber membros da comunidade internacional. Quando hoje falamos de "política", estamos amiúde falando da ação de governos que herdaram uma autoconcepção como atores coletivos, que decidem de forma soberana. Mas essa autoconcepção de um Leviatã, que, desde o século 17, se desenvolveu junto com o sistema de Estados europeu, hoje já não é mais vigorosa. O que chamávamos ontem de "política" muda diariamente seu estado.

Mas como isso se coaduna com o darwinismo social, que, como o sr. diz, se expande novamente na política internacional desde o 11 de Setembro?

Talvez se devesse dar um passo atrás e observar uma conjuntura maior. Desde o final do século 18, o direito e a lei permearam o poder do governo, constituído politicamente, e lhe negaram, na circulação interior, o caráter substancial de um simples "poder". Mas ele guardou para si uma quantidade suficiente dessa substância, apesar da rede de organizações internacionais e da força de coesão crescente do direito internacional. Ainda assim, o conceito de "político", cunhado no âmbito do Estado nacional, está se liquefazendo. Na União Européia, por exemplo, os Estados-membros, no passado e no presente, guardam o monopólio da força e também transpõem, mais ou menos sem reclamações, o direito que é determinado na esfera supranacional. Essa mudança de forma do direito e da política também se relaciona a uma dinâmica capitalista que pode ser descrita como interação entre abertura forçada funcionalmente e fechamento sociointegrativo em níveis cada vez mais elevados.

O mercado arromba a sociedade, e o Estado social a fecha novamente?

O Estado social é uma proeza tardia e frágil. Os mercados e as redes de comunicação sempre em expansão já tiveram uma força de arrombamento, que, para o cidadão individual, é, ao mesmo tempo, individualizante e libertadora. A isso, porém, sempre seguiu uma reorganização das velhas relações de solidariedade numa moldura institucional expandida. Esse processo iniciou-se no início da modernidade, quando os estamentos dirigentes da Alta Idade Média se tornaram, passo a passo, parlamentares -como na Inglaterra- ou foram subjugados por reis absolutistas - como na França. Essa domesticação jurídica do Leviatã e do antagonismo entre as classes não foi simples. Mas, pelas mesmas razões, a bem-sucedida constitucionalização do Estado e da sociedade aponta hoje, após um surto de globalização econômica, para uma constitucionalização do direito internacional e da esfacelada sociedade mundial.