terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Indústria cultural: o empobrecimento narcísico da subjetividade

T. Adorno


Verlaine Freitas1
(Fonte: Revista Kriterion v.46 n.112 Belo Horizonte dez. 2005)

RESUMO

O objetivo do texto é fazer uma análise da dimensão crítica do conceito de indústria cultural proposto por Adorno e Horkheimer a partir da noção psicanalítica de narcisismo, tal como Adorno a interpretou. A cultura de massa será vista como propiciando o prazer substancialmente ilusório de satisfazer a ânsia de engrandecimento do ego, no mesmo instante em que mantém o indivíduo atado às tendências inerciais de unificação social.

"Indústria cultural" é um termo essencialmente crítico, que ganhou visibilidade a partir da obra conjunta de Adorno e Horkheimer, a Dialética do esclarecimento, tradicionalmente considerada a baliza histórico-filosófica da Escola de Frankfurt.

A concepção de uma teoria crítica, elemento programático desse movimento intelectual do século XX, leva bastante a sério uma dimensão do pensamento filosófico colocado como seu fundamento já em Kant. A crítica aos produtos da razão, estabelecendo os limites para o conhecimento legítimo, é índice da explicitação filosófica do aprofundamento subjetivo, calcado na tomada de consciência do que constitui o sujeito em sua relação com a objetividade.

Apesar deste enorme passo kantiano na direção da reflexividade como índice da consistência do pensamento, Marx invocava a necessidade de uma crítica crítica, na medida em que se aperceba da rede de valores que sustenta a própria atividade interpretativa. Trata-se, por assim dizer, de dar um novo "giro" na revolução copernicana proposta por Kant, restituindo ao objeto sua dignidade no processo cognitivo, mas sem recair na ingenuidade realista pré-kantiana.

Max Horkheimer


Se o sujeito é uma mediação necessária para o objeto, como enfatizou Kant, a teoria crítica de Max Horkheimer e seus companheiros da Escola de Frankfurt tentará mostrar que o objeto também é uma mediação para o sujeito. A objetividade histórica, que transparece nas relações de poder que se decantam nas formas do pensamento, ou seja, nos conceitos, princípios, valores, paradigmas, normas morais etc, é sistematicamente negligenciada pela teoria tradicional, mas é o parâmetro necessário para desfazer a ilusão solipsista do conhecimento que se satisfaz com a apropriação técnico-científica dos fatos.

A obra conjunta de Adorno e Horkheimer já citada realizou essa crítica da enformação histórica do real em diversos âmbitos: na gênese da subjetividade, na razão científica, na moralidade, na ideologia do anti-semitismo e na própria indústria cultural. Cada um desses momentos é equacionado através de sua inserção no processo de desenvolvimento da racionalização ocidental.

O capítulo que nos interessa tem exatamente como subtítulo "o esclarecimento como mistificação das massas". Trata-se de um logro sistematicamente impingido aos consumidores da cultura de massa, tratados como se fossem sujeitos na fruição das obras, quando na verdade não passam de encruzilhadas de tendências do movimento capitalista cada vez mais globalizado.

Há várias formas de mostrar o caráter substancialmente ilusório da cultura de massa. Aqui vou me deter na idéia de Adorno de que toda a cultura de massa é narcisista, pois suas produções visam a glorificar a imagem que o indivíduo faz de si mesmo.

Esse tema geral será dividido em três partes: a regressão mimética, as relações entre o universal e o particular no estilo da indústria cultural e a apropriação do trágico, com a conseqüente eliminação do indivíduo.


A cultura de massa é um tipo de produção cultural que tem sua força devida ao fato de que seus consumidores, de alguma forma, precisam de algo que ela está disposta a oferecer como um dos ingredientes de seus produtos. Essa necessidade tem várias origens, e seria inviável perscrutar um número razoável delas. Adorno gosta de insistir no fundamento social, econômico, para ela, enfocando a dinâmica de constituição da subjetividade burguesa. Embora nosso ponto de vista nos leve a priorizar o fator individual, psicanalítico, consideramos a posição adorniana importante, pois, naturalmente, não existe individualidade sem a enformação coletiva, em que a esfera do trabalho e das relações econômicas em geral tem um peso substantivo.


Embora o trabalho ao longo da História tenha sido, via de regra, algo constrangedor para os que não compartilham das benesses do acúmulo de riqueza social, ele não necessariamente contrariava a determinação da identidade individual. A partir da revolução burguesa, o trabalho mesclou-se com um novo fundamento para a autoconcepção subjetiva, que é a liberdade.

A nova concepção de sujeito autodeterminado pela razão, livre dos entraves das tradições religiosa e moral, favoreceu a emergência do âmbito da individualidade como uma esfera que se percebe como razoavelmente autônoma. Ora, bem se vê pelas evidentes desigualdades sociais nos países e em escala planetária, que essa autodeterminação individual entra em flagrante conflito com o esforço reiterado de reprodução da própria existência no trabalho repetitivo, monótono, inexpressivo, sem criatividade dos trabalhadores de classe baixa e média. Mesmo que se considerem os ofícios com remuneração financeira mais elevada, a falta de reconhecimento do sujeito em seus produtos ou a insatisfação com a nula dimensão social da própria atividade fazem com que possamos dizer que a vida sob o império das relações de produção capitalista é marcada por um dilaceramento e por uma contradição profundos: ao mesmo tempo que se projeta como um ser livre e autodeterminado em termos íntimos — e sente orgulho pela constituição superconsciente de si —, o sujeito se vê expropriado de suas forças vitais e intelectuais na materialidade do cotidiano exaustivo e ingrato.

É como se a individualidade prometida pela forma burguesa de vida já se frustrasse em si mesma, dado que sua realização sempre ficou aquém de seu projeto:

(...) a sociedade burguesa (…) desenvolveu, em seu processo, o indivíduo. Contra a vontade de seus senhores, a técnica transformou os homens de crianças em pessoas. Mas cada um desses progressos da individuação se fez à custa da individualidade em cujo nome tinha lugar, e deles nada sobrou senão a decisão de perseguir apenas os fins privados (DE 145)2.


Ora, é precisamente este o consumidor da cultura de massa: Conformes à época atual [zeitgemäß] são aqueles tipos que nem possuem um ego, nem agem propriamente de modo inconsciente, mas espelham de modo reflexo o movimento objetivo. Eles praticam todos um ritual sem sentido, seguem o ritmo compulsivo da repetição, empobrecem-se afetivamente: com a destruição do ego, eleva-se o narcisismo ou seus derivados coletivos. 3


Embora haja várias formas de concepção do narcisismo, até mesmo na própria obra freudiana, a que parece marcar mais substancialmente a filosofia de Adorno é aquela delineada no texto de Freud Para introduzir o narcisismo, de 1915.

Lê-se nessa obra — retomando uma das idéias nucleares de toda a psicanálise — que o desenvolvimento da subjetividade é fundado na emergência dos ímpetos pulsionais, excitações — ligadas a um complexo fantasístico —, que contêm muito do que virá mais tarde a ser a sexualidade, embora ainda não marcada pela polaridade masculino-feminino (daí a designação de sexual/pré-sexual para essa vivência).

O bebê humano inicialmente experimentaria vários tipos de relação com o mundo, e um que é especialmente importante é a amamentação, que satisfaz a necessidade de autoconservação, mas também fornece o prazer oral, ligado ao ato de chupar [Lutschen] o seio materno.

Tendo a memória de satisfação desse ato, a criança passa a chupar o próprio dedo ou o bico, mostrando claramente que o prazer que se vinculava inicialmente à autoconservação ganhou um "valor próprio", e tem seu sentido na experiência de excitação corporal.

Essa idéia é expandida por Freud a todos os processos de interação somática do infante com a realidade, e configura o auto-erotismo, em que a satisfação seria difusa por todas as zonas erógenas — sendo que qualquer parte do corpo poderia ser uma, dependendo de sua estimulação.
A partir de diversos processos que não nos cabe investigar aqui, "uma nova ação psíquica" pode ser dita ocorrendo na criança: a formação da unidade do ego. Uma vez configurada, essa unificação acarreta uma espécie de canalização da libido para esse núcleo do que virá a ser a individualidade, momento em que a criança experimenta uma primeira forma de narcisismo, caracterizado por um sentimento de onipotência, de completude, de mescla com todos os objetos de prazer e exclusão de tudo o que quebra essa unidade ideal.

Com a percepção cada vez mais acentuada da insuficiência dos objetos para os desejos e a assimilação da censura dos pais, esse narcisismo é minado, restando dele apenas uma fração, compatível com o princípio de realidade. A memória de prazer, aliada à luta contra suas excitações iniciais, substancialmente incompreendidas, e por isso ameaçadoras,4 solicita uma espécie de retorno indefinidamente praticado ao momento de investimento narcísico do ego, em que todo objeto de desejo (pessoa, coisa, idéia, imagem etc.) representará, de alguma forma, uma dupla satisfação: pulsional e narcísica, ou seja, como ob-jeto propriamente dito e como reflexo do ego.

É essa dimensão especular, mimética, que está na base de nossa interpretação da crítica de Adorno à cultura de massa.
a) Regressão mimética

Toda a indústria cultural, particularmente o cinema e a televisão, prima por um enorme esforço de reprodução detalhada do cotidiano. Quanto mais as técnicas de composição e de montagem das peças avançam, mais fácil é para os espectadores perceberem o filme como um prolongamento da realidade e esta daquele. A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-se distinguir do filme sonoro. Ultrapassando de longe o teatro de ilusões, o filme não deixa mais à fantasia e ao pensamento dos espectadores nenhuma dimensão na qual estes possam, sem perder o fio, passear e divagar no quadro da obra fílmica, permanecendo, no entanto, livres do controle de seus dados exatos, e é assim precisamente que o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar imediatamente com a realidade. (DE 119)

Um prazer substancial fruído nessas obras é o da constante repetição do dado, da reprodução milimétrica dos sons, das cores etc. Cada vez mais os aparelhos sonoros e visuais domésticos tenderam a primar pelas técnicas sofisticadas de estereofonia e de precisão da imagem.

O gozo pela reprodução hiper-realista do real é tão grande que mal se consegue escapar da curiosidade de se saber como cada efeito foi produzido.

Na Poética, Aristóteles disse que a mímesis proporciona um prazer cognitivo, na medida em que, conhecendo-se o original, os homens se regozijam com a identificação de sua mímesis, dizendo: "Ah, isso é aquilo!"5.
Se, por um lado, a mímesis aristotélica ainda era sempre ao mesmo tempo poiética, isto é, incluía o prazer da elaboração, do fazer artístico, que não se limitava à cópia, absorvendo elementos imaginários e possíveis (o que fez com que o estagirita atribuísse um maior valor à poesia do que à história); por outro lado, a mímesis da indústria cultural tem seu fundamento crucial na redução da relação mimética ao sentido restrito de cópia.

A ideologia fica cindida entre a fotografia de uma vida estupidamente monótona e a mentira nua e crua sobre o seu sentido, que não chega a ser proferida, é verdade, mas, apenas sugerida, e inculcada nas pessoas. Para demonstrar a divindade do real, a indústria cultural limita-se a repeti-lo cinicamente. Uma prova fotológica como essa, na verdade, não é rigorosa, mas é avassaladora. Quem ainda duvida do poderio da monotonia não passa de um tolo. (DE 138)6

É exatamente pelo fato de exercitar-se na representação minuciosamente realista, não apenas da realidade empírica, mas também de idéias fantasísticas como as de super-heróis, em que cada salto imaginativo é seguido do desejo obstinado de ser convincente nos mínimos detalhes (como o da capa esvoaçante em pleno vôo ou do transporte por ondas eletromagnéticas), que a indústria cultural pode proporcionar uma distração sob medida para aqueles que têm que retornar ao trabalho repetitivo. Eles gozam, no divertimento, da mesma repetitividade a que estão sujeitos no cotidiano.

A mesma falta de sentido, vinculada à desesperança de alterar o curso das coisas em uma vida de luta incessante, é transposta como figuração de um destino intransponível nas obras: "a diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio" (DE 128).

A mera duplicação apraz, e tanto mais quanto maior é a ânsia de referir-se a um objeto que mostre aquilo que o próprio sujeito é. Mesmo nas seqüências fílmicas velozes, em que se exige atenção aos detalhes e presteza para decifrar enigmas, como é o caso do exercício continuado dos jogos eletrônicos, o gozo da mera repetição é evidente, acrescido da satisfação orgulhosa de si de chegar ao final e "descobrir" aquilo que já estava estipulado pelo diretor do filme ou pelo criador do jogo.
Aqui podemos detectar uma espécie de regressão à onipotência dos pensamentos de que fala Freud: a imagem é vivida como condensando toda a dignidade do real. De modo semelhante a como os povos primitivos acreditavam na ligação direta do desejo à satisfação pelo objeto através de uma representação, os meios de comunicação de massa, colocando-se como uma espécie de "presença universal", assumem o poderio atribuído a eles por um ego profundamente enfraquecido, que a qualquer instante se apóia em uma representação para obter um retorno efêmero à onipotência infantil. De toda a esfera da cultura de massa, a publicidade é talvez o elemento mais emblemático nesse processo de regressão fantasística.

Jean Baudrillard


Segundo Jean Baudrillard, a realidade publicitária é a produção de um âmbito imagético que tem força mítica, através da manipulação técnica de um conjunto de imagens, de signos, que ganham autonomia a partir do próprio meio em que são produzidos, e que são avaliados, medidos, não por sua referência ao real histórico, conflituoso, mas pela tecnicidade de sua estruturação, acabando por "substituir" este último.

Não se trata "apenas" de uma interpretação "tendenciosa" do que seria o conteúdo autêntico da realidade historicamente vivida, mas da produção de uma nova realidade, uma "neo-realidade". Assim, não é uma questão válida, em relação à publicidade, se o que ela diz é verdadeiro ou falso.

O objeto (a ser vendido) é tratado como se fosse um acontecimento, é louvado como um fato substancial, digno, elevado, que vale por si mesmo, pelo fato de ser narrado, referido pelo discurso.

Se os publicitários mentissem, seria fácil desmascará-los. O que acontece, efetivamente, é que eles produzem miticamente a realidade que dizem apenas enunciar. É uma profecia que se cumpre pelo simples fato de ser pronunciada no meio reluzentemente técnico e será tornada real no ato de compra, que apenas testemunha a veracidade (isto é, a força de constrição imagética) já contida na narrativa publicitária. Esse discurso é tauto-lógico, ou seja, refere-se a si próprio o tempo todo como meio de reforçar o caráter de evento primordial do objeto, cuja imagem deverá ser resgatada no ato de compra. Pode haver propaganda enganosa, mas não publicidade enganosa, uma vez que esta não se vincula, ao contrário daquela, à transmissão de conteúdos, mas, sim, à glorificação imagética da marca, que, dentre todas as suas promessas, a de inserir o indivíduo na glória do universal talvez seja a mais evidente.7

Aí se compreende algo de grande importância para a psicanálise: o desejo frustrado jamais encontra repouso, pois toda satisfação que obtém é radicalmente ilusória, relativa apenas à atenuação onanista da angústia gerada pelo próprio desejo. Desse modo, o ego narcísico vive engradeado e em busca de imagens que o conectem à universalidade de modo fantasístico.

b) Universal-particular e o estilo
Outro elemento importante para o gozo narcísico na cultura de massa é a integração maciça dos detalhes na totalidade do enredo. Do mesmo modo que o desejo de mudança para uma vida melhor nos indivíduos não pode colidir com sua sacrossanta necessidade de que as coisas permaneçam em ordem, os detalhes e pormenores das obras devem inserir-se sem resto no movimento total da obra.
A reconciliação do universal e do particular, da regra e da pretensão específica do objeto, que é a única coisa que pode dar substância ao estilo, é vazia, porque não chega mais a haver uma tensão entre os pólos: os extremos que se tocam passaram a uma turva identidade, o universal pode substituir o particular e vice-versa. (DE 122)

Na arte, ao contrário, o estilo nunca foi seguido à risca pelos grandes artistas, que viam nele uma forma de dar voz ao sofrimento que surdamente se faz presente no caos das contradições da vida capitalista.
Essa eloqüência do estilo significa mediar os antagonismos sociais historicamente sedimentados na vivência individual através da força da síntese dos elementos dispersos na obra de arte. Na medida em que tal unidade não é simplesmente imposta, mas surge a partir deles, o estilo se afigura como uma espécie de promessa de universalidade que nunca se realiza precisamente em nome de uma que se tenha o direito de imaginar como possível.

A indústria cultural pratica, em vez disso, uma falsa reconciliação entre o universal e o particular. O todo na obra não tem conexão íntima com os particulares, pois é imposto a eles a partir de um esquema geral milimetricamente planejado. Aquilo que a abstração conceitual impõe friamente aos dados perceptivos é agora glorificado a partir do prazer lúdico que se infiltra na contemplação narcisista, que percebe tudo como satisfazendo o desejo de plenitude.

Nada melhor para explicar a idéia de um "círculo da manipulação e da necessidade retroativa, no qual a unidade do sistema se torna cada vez mais coesa" (DE 114), pois o desejo do ego enfraquecido é satisfeito e estimulado, ao mesmo tempo que o sujeito se ilude precisamente ao pensar que esse prazer coincide com o que o faz um ser livre.
Essa integração não é apenas princípio construtivo das obras, pois reflete a existente entre os diversos produtos e serviços vinculados ao sistema, principalmente o de patrocinadores.

A indústria cultural é um todo auto-referente constituído por um processo contínuo de fornecimento de motivações para que ele seja consumido em suas partes em função de sua articulação total.

Comprar um objeto do mesmo tipo usado pelo herói do filme significa, entre outras coisas, o prazer de integração no meio que reflete com absoluta mestria aquela a que já se está sujeito na vida monótona de todo dia.


Mas como a acoplagem do todo e do particular na obra ficcional não contém fissuras, a compra do objeto exposto na obra traz um plus de felicidade, recusada pela sofrida integração pelo trabalho. Esse sofrimento, entretanto, não é simplesmente renegado pela indústria cultural, mas sim constitui-se como um de seus elementos, na medida em que o trágico é, paradoxalmente, assimilado por ela.

c) A anulação do trágico e do indivíduo

A tragédia grega, segundo Theodor Adorno, é a expressão literária do momento histórico de desenvolvimento do sujeito, em que o indivíduo começa a se aperceber da fissura existente entre sua singularidade e a ordem cósmica avassaladora: "a dissolução do sortilégio do destino e o nascimento da subjetividade".8

Para Jean Pierre Vernant, a consciência trágica surge no momento em que os planos divino e humano não estão totalmente unidos, mas não radicalmente separados, de tal modo que toda ação humana se coloca como um desafio ao futuro, em que a decisão dos deuses é algo inesperado, somente se dá a conhecer no desfecho trágico com que as ações do protagonista se encadearam de modo cego para ele, e cujo sentido somente é perceptível no olhar dos espectadores, que conseguem abarcar com sua visão todas as unilateralidades dos personagens, que não se comunicam em uma linguagem homogênea, mas cheia de falhas e entraves.9

O espírito trágico, então, mostra o surgimento ainda precário da consciência da diferença entre o indivíduo e a totalidade social e cósmica. O que se pode chamar de heróico significa esta ousadia em relação ao âmbito de penumbra, de indeterminação, em que a arrogância dos homens é a única forma de constituir a pólis como tendo legitimidade de existência perante a força da necessidade natural que tudo parece englobar em um ciclo de nascimento e morte que ameaça fazer do homem apenas mais um ser tragado nesta onda de fluxo e refluxo. Tenta-se arrancar um sentido das garras da noite eterna que parece se abater sobre o homem na sua luta esganiçada por permanecer vivo.

Se a indústria cultural quer dar aos indivíduos a satisfação narcisista de eles possuírem um ego, é necessário que ela lhes dê, também, a satisfação de perceber que seu sofrimento cotidiano tem um sentido, uma razão de ser. De modo semelhante a como o herói trágico laborava na busca da constituição de um espaço de contingência no meio da necessidade natural, o indivíduo contemporâneo precisa da idéia de que as coisas podem ser modificadas pela sua liberdade, de que as coisas não estejam decididas de antemão, que seu esforço vale a pena.

Dor, infortúnio e sofrimento são mostrados nas obras de indústria cultural como aquilo pelo qual se deve passar a fim de fazer com que a existência como um todo ganhe sentido ao permanecer exatamente como está. Essa negatividade é signo de seu contrário, como diz Baudrillard, pois funciona como uma apologia da ordem medíocre da vida cotidiana.10

Adorno chama a atenção para uma fórmula dramática amplamente empregada: getting into trouble and out again, que é uma caricatura exacerbada de uma dialética mesquinha: as obras começam com uma ligação aberta com a placidez do cotidiano, atravessam o negativo do sofrimento em suas diversas formas e terminam ou confirmando "a impossibilidade de destruir a vida real" (DE 143) — deixando que o cotidiano restaure a ordem "perdida" —, ou mostrando essa suposta harmonia como uma espécie de ratificação de que o sofrimento tem um sentido.

Toda violência exercida pela sociedade no indivíduo é fruída como um lastro para a perseverança em uma vida da qual se retira toda possibilidade de transparência perante suas motivações mais substanciais.
Assim, "a pseudo-individualidade é um pressuposto para compreender e tirar da tragédia sua virulência: é só porque os indivíduos não são mais indivíduos, mas sim meras encruzilhadas das tendências do universal, que é possível reintegrá-los totalmente na universalidade" (DE 145).
Além de a indústria cultural aproveitar-se da fraqueza do ego narcísico de seus consumidores, alimentá-los constantemente com pseudo-satisfações, ainda os engana quanto à sua determinação como sujeitos, na medida em que oblitera o olhar para aquilo que os poderia fazer diferentes do que a coletividade fez deles: "a liquidação do trágico confirma a eliminação do indivíduo" (DE 144).
A cultura de massa é a da resignação perante a onipotência coletiva. Da mesma maneira que o indivíduo sabe que a ordem econômica não segue seus desejos, que é preferível tentar se adaptar a ela do que estabelecer uma vida que lhe seja indiferente, todos os grandes heróis, mocinhas, ricaços, símbolos sexuais etc., da indústria cultural estipulam imagens e ideais com que as pessoas podem se identificar, como se todos eles dissessem respeito a alguma coisa que o indivíduo pode perceber em si mesmo, seja em seus desejos e fantasias mais onipotentes, seja em suas idiossincrasias menos nobres.




Entretanto, todo este mundo onírico de humanização exacerbada, borbulhante de características individuais e sublimes, não permite uma identificação imediata e simples. Como diz Adorno, as pessoas não são tão estúpidas o suficiente para achar que elas têm o direito de se colocar no lugar de seus ídolos. A indústria cultural sempre conta com um resto de bom senso por parte de seus consumidores, que, sabendo usar o princípio de realidade, percebem com clareza que este mundo fantástico não está a seu dispor, como se dependesse de sua vontade realizar este céu de bem-aventurança aqui na terra.

Desse modo, a conjugação desse ideal apreendido pela imaginação e um mínimo senso de realidade resulta na resignação, na consciência de que é preferível riscar de uma vez por todas a esperança de participar desse mundo das estrelas e se contentar com este gozo imaginário de pertencer a ele.
Assim, a indústria cultural produz incessantemente uma catarse dos ímpetos revolucionários, subversivos, críticos e libertadores. Todos eles solicitam do indivíduo a consciência de que a felicidade somente é alcançada pelo esforço de superação do estado de miséria, através do trabalho sistemático e contínuo do pensamento crítico, que é virtualmente negado pela série de associações entre imagens grandiosas que se oferecem sem cessar à mente dos consumidores.
Essa ponte entre a particularidade desejosa e impotente e a universalidade rica e inacessível é estabelecida precisamente pelo que nós conhecemos como consumo. Não existe muita diferença, no âmbito da indústria cultural, entre ver um programa e comprar os produtos anunciados nos intervalos comerciais, pois a lógica do processo é a mesma para as duas atitudes: estabelecer um vínculo entre aquelas duas esferas do particular e do universal.

Mas uma característica que devemos enfatizar é que este vínculo é feito como se fosse um curto-circuito, sem o esforço de constituição de uma rede de elementos simbólicos resultantes de nosso autoconhecimento, que, procurando superar as deficiências de nosso olhar para a rede de significantes que constituem nosso desejo, almeja construir um sentido a partir desse próprio labor.

É a isso que se propõe o que Adorno chama de "esclarecimento psicanalítico", na medida em que o ego procura sair das trevas de seu inconsciente. A orquestração dos elementos pulsionais narcísicos através da lógica do sistema da indústria cultural tem algo em comum com as formações de grupo analisadas por Freud. Ambas podem ser caracterizadas como uma psicanálise às avessas. Tanto os líderes dos agrupamentos e das multidões, como Hitler, quanto os diretores de produção da indústria cultural procuram manter a dependência dos indivíduos perante as leis implacáveis de seu inconsciente, apropriadas por aqueles segundo técnicas específicas de identificação e de satisfações substitutivas.11

A psicanálise, ao contrário, é caracterizada pela meta de fazer com que os ímpetos e moções inconscientes — que aprisionam em uma ação sem sentido, obstruindo a busca pela auto-realização — sejam trazidos à luz e apropriados pelo ego: "wo Es war, soll Ich werden" ("onde era id, deve se tornar ego").12

Se o processo de racionalização ocidental sempre foi o de livrar os homens do medo e colocá-los na posição de senhores, vemos que na cultura de massa isso redunda precisamente em seu contrário, cabendo à reflexão crítica a tarefa de mostrar o quanto essa promessa sempre conteve um elemento de fraude, mas cuja denuncia já é um grande passo para a construção de um mundo mais humanizado e, portanto, livre.


Referências


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Artigo recebido em 15/09/05 e aprovado em 15/11/05.

1 Professor do Departamento de Filosofia da UFMG.



2 ADORNO; HORKHEIMER. Dialética do esclarecimento. Doravante citada no texto como DE, seguida do número de página.

3 ADORNO. Zum Verhältnis von Soziologie und Psychologie, p. 83.

4 Aqui seria importante mencionar a relevância psíquica da ambigüidade prazer/ameaça presente na sexualidade infantil e, por extensão, em toda a vida humana. A rigor, é o caráter radicalmente incompreendido da ameaça pulsional que levará ao recalque da sexualidade, princípio motor de toda formação de compromisso entre o desejo e a censura inconscientes.

5 ARISTÓTELES. Poética, p. 243.

6 É muito interessante ler essa passagem, escrita nos anos 1940, e vê-la confirmada de forma viva mais de cinqüenta anos depois no sucesso mundial dos reality-shows.

7 Cf. BAUDRILLARD. A sociedade de consumo, p. 132-136.

8 ADORNO. Ästhetische Theorie, p. 344.

9 Cf. VERNANT; VIDAL-NAQUET. Mito e tragédia na Grécia antiga, p. 7 et seq.

10 BAUDRILLARD. A sociedade de consumo, p. 103.

11 Cf. ADORNO. Freudian Theory and the Pattern of Fascist Propaganda, p. 431.

12 FREUD. Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, p. 86.