sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O mundo é para poucos


 
 
Luiz Antonio Cintra , 05-02-2014.
 
 
Ganhou manchetes mundo afora ao apontar para a hiperconcentração de riqueza em andamento na quase totalidade dos países ocidentais. Sete em cada dez indivíduos vivem em países onde a desigualdade avançou nas últimas três décadas, informa a Oxfam.
Segundo o estudo, a crise financeira detonada em setembro de 2008 veio a calhar para os mais ricos. O 1% do topo da pirâmide, anota a pesquisa, detém hoje metade da riqueza gerada no planeta. O financista norte-americano Warren Buffett é um exemplo da turma ganhadora: acumulava patrimônio de 40 bilhões de dólares antes da quebra do Lehman Brothers, e nada atualmente em uma piscina recheada de 59 bilhões de moedas. O quarto mais rico do planeta, segundo a lista da Forbes, Buffett é um dos 85 afortunados que, aponta a Oxfam, possuem patrimônio equivalente ao da metade mais pobre da população mundial, ou 3,5 bilhões de cidadãos. “Alguma desigualdade econômica é essencial para conduzir o crescimento e o progresso”, escrevem os responsáveis pela pesquisa. “Os níveis extremos de concentração da riqueza atuais, entretanto, ameaçam excluir centenas de milhões de obter os ganhos de seus talentos e trabalho duro.”
 
Não é outra coisa o que tem acontecido desde o crash, com maior intensidade nos dois polos mais afetados pela crise, os EUA e a Zona do Euro (exceto a Alemanha). O quadro retratado espelha as opções feitas para enfrentar a crise, desenhadas de acordo com os interesses dos bilionários, constata a ONG. A saída escolhida foi salvar bancos e companhias consideradas “grandes demais para quebrar”, ao mesmo tempo que os gastos públicos eram cortados indiscriminadamente.
O resultado foi uma onda avassaladora de desemprego e a falência de empresas cuja quebra, para as autoridades, teria o efeito positivo de ampliar a eficiência da economia como um todo. Nesse sentido, as políticas adotadas deram certo. O levantamento mais recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) contabiliza 202 milhões de desempregados no mundo, 5 milhões a mais do que no fim de 2012. Mantida a tendência, algo bastante provável, serão 215 milhões sem empregos no fim de 2017, estima Guy Rider, diretor da OIT.
 
O estudo da Oxfam enumera algumas das causas da concentração crescente. Há décadas a falta de limites minou a representação popular nos Parlamentos. E o lobby das maiores corporações aos poucos tirou do caminho regras e leis forjadas para garantir (ou ampliar, conforme o caso) a concorrência nas economias. Estima-se que os bancos norte-americanos gastaram 1 bilhão de dólares em lobby nos últimos anos para enfraquecer e adiar a legislação em discussão para tornar o sistema financeiro menos arriscado.
A corrupção, a perversidade de sistemas tributários como o brasileiro, que taxa proporcionalmente mais quem tem menos, os subsídios, a redução dos gastos em saúde e educação públicas, a perda de espaço dos sindicatos de trabalhadores e uma rede internacional de paraísos fiscais (em que, estima a ONG, cerca de 18 trilhões de dólares são escondidos para não pagar impostos) também explicam o processo em andamento.
 
O marco zero dessa tendência, contudo, não tem nada de novo. Especialistas o situam no período que vai do fim da década de 1970 ao início dos anos 80, sob os auspícios da onda neoliberal e da desregulação dos mercados, particularmente o financeiro, sob a batuta ideológica da dupla Ronald Reagan e Margaret Thatcher.
 
A resultante constatada agora não é um efeito colateral inesperado. Ao contrário. A cartilha Reagan-Thatcher recomendava deliberadamente o corte dos impostos dos mais ricos, em paralelo à redução dos direitos sociais e salários dos mais pobres, com o argumento de que o primeiro movimento garantiria fôlego para o consumo, enquanto o segundo ampliaria a competividade da economia ao reduzir o custo do trabalho. Uma parcela considerável das palavras de ordem pró-desregulação foi tecida, por sinal, justamente no Fórum Econômico de Davos, que nesta edição, diante da escala da tragédia social nos países ricos, procura convencer a opinião pública de que, no fundo, estão preocupados com a distância crescente entre ricos e pobres. Ao custo de 40 mil dólares por participante, vale notar.
 
Na ponta do lápis, o quadro evoluiu nos EUA conforme o esperado pelos formuladores de tais políticas: a renda dos 10% mais pobres avançou, desde meados dos anos 1980, apenas 0,1% ao ano. Já aquela dos mais ricos cresceu, pela mesma métrica, 1,5%. No Reino Unido, o mesmo movimento: a renda avançou, em média, 0,9% na base da pirâmide e 2,5% entre os 10% do topo. Estudo da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, realizado em 2011, apontou os EUA, o Reino Unido e Israel como “pioneiros” da regressão social entre os mais ricos. A partir dos anos 2000, anota a pesquisa, a tendência incluiu as nações tradicionalmente menos desiguais, caso da Alemanha, Dinamarca, Suécia e outros países nórdicos.
 
A partir do crash de 2008, a concentração da riqueza ganhou força, resultado da opção de salvar os grandes bancos e corporações. No estudo da Oxfam, o caso norte-americano é mais uma vez destaque: 95% do ganho de renda registrado a partir de 2009 no país foi para o 1% mais rico. E, quanto mais no topo, maiores os ganhos proporcionalmente. Em 2012, por exemplo, enquanto o 1% mais rico ficou com 22% da renda do país, o 0,1% mais afortunado abocanhou 11% do bolo. Um norte-americano do sexo masculino e graduado recebe atualmente, em média, 40% do que recebia quatro décadas atrás.
 
No artigo “A desigualdade é uma opção”, publicado em outubro de 2013, o Nobel de Economia Joseph Stiglitz, professor da Universidade Columbia, comenta a hiperconcentração em curso. De 1988 a 2008, anota o economista, a renda do 1% mais rico do planeta cresceu cerca de 60%. No mesmo período, a dos 5% mais pobres manteve-se estagnada. “Os ganhos de renda têm sido maiores entre aqueles da elite mundial – executivos financeiros e corporativos dos países ricos – e as amplas ‘classes médias emergentes’ de China, Índia, Indonésia e Brasil. Quem perdeu? Africanos, alguns latino-americanos e cidadãos do Leste Europeu pós-comunista e da antiga União Soviética.”
 
Apesar de bem-vinda, a discussão em torno da desigualdade em Davos está longe de ser sinal de uma nova postura – e seria loucura supor que haverá ali uma guinada ideológica. Em 2005, o tema ocupou o topo das preocupações dos milionários reunidos na Suíça, àquela altura em companhia dos debates sobre o terrorismo. Em 1994, o tema também foi abordado, quando Klaus Schwab, presidente do fórum, definiu o encontro como uma oportunidade para “um gigantesco brainstorm para líderes empresariais, políticos, científicos e culturais, para analisar todos os pressupostos básicos da humanidade”.
 
Então, os ouvintes saíram de Davos, embarcaram em seus jatos particulares e foram cultivar suas fortunas.
 

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Sobre a Lei Antiterror

"Aparentemente, a razão desta lei é incutir o terror entre cidadãos brasileiros, a fim de evitar manifestações de massa durante a Copa do Mundo". O comentário é de Deisy Ventura, professora de Direito Internacional e Livre-Docente do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) sobre a Lei Antiterror em artigo publicado pelo portal Saúde Global, 12-02-2014.

Segundo ela, "no Brasil de hoje, há uma geração a ser eliminada, menos por divergências políticas irreconciliáveis, e mais porque ela é inoportuna. Calhou de ser a Copa, e num evento de tal magnitude econômica para algumas empresas, inclusive de comunicação, uma acusação de homicídio não basta. É preciso a desonra e um tanto de exceção. De todos os erros dos que caíram de amores pelo poder, que observo com grande pesar, esta lei anti-terrorismo é que revela com maior profundidade a inanição política em que se encontra o nosso país".

Eis o artigo.

Não há maior infâmia. Chamar alguém de terrorista é descartá-lo de imediato como, mais do que fora da lei, fora do humano, fazedor do hediondo. E como não há a mínima possibilidade de negociação, resta apenas a violência, aliás a linguagem dele.
É fácil explicar a naturalidade desta repulsa. Bem antes das imagens do 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque, num bate-boca em Estocolmo, em 1957, Albert Camus disse ao estudante argelino que cobrava seu apoio à Frente de Libertação Nacional algo como: “enquanto estamos falando, bombas são jogadas nos bondes da Argélia. Minha mãe pode estar em um deles. Se isto é justiça, eu prefiro minha mãe”*.
A ideia de que a morte de inocentes desonra qualquer causa já o havia levado a escrever Os Justos, em 1949, genial peça em que a presença inesperada de duas crianças compromete a realização de um atentado, por hesitação de um militante, Kaliayev (naquele momento, duplamente desgraçado, pelo Estado como “terrorista” e por seu próprio grupo como “traidor”). Isto não impediu Camus de reconhecer, em suas Reflexões sobre o terrorismo que, na Argélia, “cada repressão, ponderada ou demente, cada tortura policial e cada julgamento ilegal acentuaram o desespero e a violência nos militantes”, e que “a responsabilidade coletiva erigiu-se em princípio de repressão”.
Mesmo antes do falecimento de Camus, em 1960, a expressão terrorismo foi ganhando novos contornos. Surpreende a atual ascensão do “terrorista” Nelson Mandela – preso entre 1962 e 1990, entre outras razões por associação criminosa e recurso à violência – ao extremo oposto da infâmia, à quase santidade. Na mesma linha, entre tantos, há o recente fato da Irmandade Muçulmana passar a ser oficialmente designada pelo Egito, em 25/12/2013, como organização “terrorista”, apesar do partido Liberdade e Justiça, que é considerado sua vitrine política, ter recebido mais de 13 milhões de votos (51,73% do total) nas eleições presidenciais de 2012. Ou talvez justamente por isto, eis que o Presidente eleito, Morsi, foi deposto pelo exército, em 03/07/2013.
Então afinal, para além de lançar a infâmia sobre os opositores políticos com grande respaldo popular, juridicamente, o que seria o terrorismo? É a criminalização da intenção, diz a imensa jurista Mireille Delmas-Marty, alertando para o risco de jogar fora a democracia sob o pretexto de defendê-la:  ”reduzindo as liberdades, o Estado se injeta, numa verdadeira estratégia de auto-imunização, uma parte do mal, assumindo o risco de uma violência que se alimenta de outras e termina por contaminar todo o sistema” (Liberdades e segurança num mundo perigoso, 2010).
Esta avaliação se aplica perfeitamente ao Projeto de Lei do Senado Federal n.499, de 2013, cuja tramitação seria acelerada esta semana, supostamente em razão da lamentável morte de um cinegrafista. O curioso é que todas as condutas previstas no projeto que causam lesões objetivas à vida e ao patrimônio já são consideradas crimes pela ordem jurídica brasileira, aliás puníveis com onerosas sanções. Tudo indica, por conseguinte, que o melhor seria investir no cumprimento das leis vigentes, tão escasso no Brasil.
Ocorre que a novidade é de outra cepa. Quem está preocupado em cumprir as leis, coisa que daria um trabalho danado, inclusive a destituição de altos cargos e a reorganização de pesadas instituições? Agora o problema do legislador é punir a intenção de “provocar ou infundir terror ou pânico generalizado” (art.2) por meio destes crimes. A lei não define o que é terror ou pânico generalizado, mas estipula a pena de reclusão de 15 a 30 anos para a “ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa” praticada com esta intenção (ou talvez simplesmente com este efeito, não se sabe).
Os demais artigos são, porém, bastante esclarecedores. Três pessoas já conformam um “grupo terrorista”, e a mera formação de um trio para fins de incutir terror ou pânico já é punível com 5 a 15 anos de reclusão (art.7). O financiamento (“contribuir de qualquer modo para a obtenção de ativo, bem ou recurso financeiro”, art.3) é punível com reclusão de 15 a 30 anos. Dar abrigo a pessoa que “se saiba tenha praticado ou esteja por praticar” a grotesca empreitada custaria a reclusão de 3 a 8 anos, da qual só escapa a família do acusado.
O mais grave, porém, é o artigo 5: “Incitar o terrorismo: Pena – reclusão, de 3 a 8 anos”. O suporte fático tem 21 caracteres com espaços. Nada mais é dito. É uma tipificação para twitter. Miúda, mas de extrema coerência: já que o substantivo pode ser qualquer coisa, o verbo também.
Todos estes novos crimes são inafiançáveis e insuscetíveis de graça, anistia ou indulto (art.10). A jurisprudência é quem dirá para que lado vamos. Mas antes do processo há a prisão, o fichamento, a execração pública, a desonra, ainda que daqui a alguns anos nossos juízes decidam, quem sabe, que terroristas são só aqueles que estão nas listas elaboradas pelos Estados Unidos ou pela União Europeia, ou quiçá o Egito – ou que tal a nossa ABIN?
Aparentemente, a razão desta lei é incutir o terror entre cidadãos brasileiros, a fim de evitar manifestações de massa durante a Copa do Mundo. Diga-se de passagem, tal paz maquilada, se obtida, seria um bem público barato a um preço caríssimo. Em tempo e espaço remotos, imagino que por gozação, alguém disse que aos juristas não caberia questionar as razões que engendram as leis, e sim aplicá-las. Nem mesmo o tal piadista poderia imaginar que isto se transformaria em pretensão científica, e mais adiante em senso comum no Poder Judiciário. Cada um aplica a parte que lhe toca, e o fato de que grande parte da lei jamais toca a alguém parece irrelevante.
Contudo, seria preciso ao menos avaliar os efeitos deste projeto. Duríssimas leis anti-terrorismo jamais evitaram a violência extrema e bem conhecida, por exemplo, de organizações como o Exército Republicano Irlandês (IRA) ou do País Basco e Liberdade (ETA). Ao contrário, o “terrorista” de hoje só se torna o possível interlocutor político de amanhã quando ele é reintegrado à esfera da lei, ao campo da negociação possível. Como ensinam Delmas-Marty e Henry Laurens, esta foi a regra nas lutas pela libertação nacional que hoje são, quase consensualmente, reconhecidas como legítimas.
Não é por outra razão que o direito internacional padece para definir o terrorismo, sob intensa pressão dos Estados Unidos, que preconizam uma ordem internacional à serviço de sua própria segurança. Na imensa gama de situações de violência (melhor dito, os estados de violência que sucederam a guerra tradicional, na expressão de Frédéric Gros) em que os governos nacionais lançam seus oponentes à ilegalidade e em que os Estados, democratas ou não, praticam a violência para incutir terror em sua própria população ou alhures, como o direito internacional poderia identificar um critério universal para definir o “combatente ilegal“? Já definimos o crime contra a humanidade e o crime de guerra. Por que seria necessário tipificar um novo crime?
Historicamente, as leis anti-terrorismo servem à eliminação dos inimigos (independentistas, separatistas, resistentes, etc.), deixando os inocentes de Camus, inclusive os cinegrafistas, à mercê da violência de todos, poderosos e opositores, numa espiral de violência que só poderia ser interrompida pelo diálogo.
No Brasil de hoje, há uma geração a ser eliminada, menos por divergências políticas irreconciliáveis, e mais porque ela é inoportuna. Calhou de ser a Copa, e num evento de tal magnitude econômica para algumas empresas, inclusive de comunicação, uma acusação de homicídio não basta. É preciso a desonra e um tanto de exceção. De todos os erros dos que caíram de amores pelo poder, que observo com grande pesar, esta lei anti-terrorismo é que revela com maior profundidade a inanição política em que se encontra o nosso país.
* Sobre as versões desta declaração, ver pesquisa de David Carrol, p.64 e nota 5.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Tendência de aquecimento do planeta é "inegável"

OMM afirma que tendência de aquecimento do planeta é "inegável"
 
 
A reportagem é de Fabiano Ávila e publicada pelo Instituto CarbonoBrasil, 05-02-2014.
 
 
No último dia 22, a NASA liberou um comunicado salientando a contínua elevação das temperaturas do planeta desde a Revolução Industrial, fato que a agência considerou como uma evidência incontestável do aquecimento global.
 
Agora foi a vez de a Organização Meteorológica Mundial (OMM) destacar que é “inegável” a tendência de aquecimento do nosso planeta.
 
A OMM classificou 2013 como o sexto ano mais quente desde 1850, com uma temperatura 0,5°C acima da média entre 1961 e 1990. Por sua vez, a NASA informou que o ano passado foi o sétimo mais quente, enquanto a Administração Oceânica e Atmosférica Nacional dos Estados Unidos (NOAA) classificou-o como o quarto. No entanto, as três entidades concordam que 13 dos 14 anos com as maiores temperaturas médias aconteceram no século XXI.  
 
“A temperatura global para o ano de 2013 é consistente com a tendência de aquecimento em longo prazo. A taxa do aquecimento não é uniforme, mas a tendência de elevação é inegável. Considerando a quantidade de gases do efeito estufa em nossa atmosfera, as temperaturas continuarão a subir por gerações”, declarou Michel Jarraud, secretário-geral da OMM.
 
“Nossa ação – ou inação – para reduzir as emissões de dióxido de carbono e outros gases do efeito estufa moldará o estado do planeta para nossas crianças, netos e bisnetos”, completou. Em seu boletim, a NASA também havia afirmando de forma enfática o papel da concentração de gases do efeito estufa (GEEs) na alta das temperaturas.
 
“Os padrões meteorológicos sempre causarão flutuações nas temperaturas médias anuais, mas o aumento contínuo nos níveis de GEEs na atmosfera da Terra está resultando na elevação das temperaturas globais em longo prazo (...) Cientistas esperam que cada década seja mais quente do que a anterior”, destacou.
 
Segundo a agência espacial norte-americana, a concentração de GEEs na atmosfera está na faixa das 400 partes por milhão, a maior vista no planeta nos últimos 800 mil anos. A OMM destacou ainda que 2013 foi um ano sem influência do El Niño, portanto sem uma grande variabilidade natural que explicasse o porquê das altas temperaturas.
 
A entidade alerta também que mais de 90% do excesso de calor causado pelas atividades humanas está sendo absorvido pelos oceanos, mascarando de certa forma o quão rapidamente está se dando a elevação das temperaturas do planeta.
O relatório completo da OMM sobre 2013, o Status of the Climate 2013, será publicado em março, e trará mais informações sobre dados regionais, precipitação, enchentes, secas, ciclones tropicais, cobertura de gelo e nível do mar.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Entrevista com Eduardo Coutinho

Quando a minha tese é outra: negro tem que filmar branco e camponês tem que filmar negro e tem que trocar. Índio tem que começar a filmar branco e branco…sabe? Nada impede que branco filme índio. Precisa dos dois lados, um do lado de dentro, um de fora. Não tem sentido que um filme sobre metalúrgico só pode ser feito por metalúrgico. Isso é uma tolice. O multiculturalismo que botou isso na cabeça. Então pra filmar uma lésbica eu tenho que ser lésbica? É o mesmo do mesmo, entende? Não há conflito. Não vou ao cinema para ser educado, pra aprender o bem. Odeio esse tipo de coisa tipicamente americana.
 
 

“Tudo o que eu faço é contra o jornalismo”

 
Entrevista inédita de Eduardo Coutinho concedida em 2011 a Mariana Simões e reproduzida pela Pública, 03-02-2014. Foto: Divulgação/SESC.
Eu tinha 22 anos quando comprei uma passagem para o Rio de Janeiro para entrevistar Eduardo Coutinho. Na época eu cursava graduação em Comunicação nos Estados Unidos e estava passando as férias em Brasília. Fiquei um mês trabalhando na tese: metade fazendo pesquisa sobre a obra de Coutinho e a outra metade com o telefone na orelha, tentando agendar uma entrevista com o documentarista.
Quando consegui o número de telefone do escritório dele,  achei que a minha entrevista estava garantida. Mas faltando uma semana para eu voltar para Nova York, ainda não tinha dado em nada. Comecei a entrar em pânico. “Se faça de boba, minha filha,” meu pais me disseram.
Eu segui o conselho: mandei um e-mail para a produtora dele dizendo que já tinha comprado minha passagem para ir ao Rio de Janeiro e que, no dia seguinte, ligaria para confirmar o horário da entrevista. “Você sabe como é, ele já está velho, não gosta mais de dar entrevista,” alguém me disse pelo telefone dias depois. Expliquei que já estava no Rio de Janeiro esperando ele me atender. A passagem custou caro, eu iria voltar logo para o exterior, fui dizendo.
Eu tinha entrevistado o cineasta Vladimir Carvalho na semana anterior. Ele foi simpático ao telefone e, quando nos encontramos, ficamos horas conversando. Um homem sorridente, com boa vontade, cheio de energia.  
Com Coutinho foi praticamente o oposto. Quando entrei na sala para entrevistá-lo, a única que estava sorridente era eu. Coutinho estava atrás de uma mesa, me esperando, um maço de cigarros em mãos. Ele falava baixo, meio rouco. Tossia muito.
Apertou minha mão. Perguntei se podia filmar a entrevista, ele gesticulou que sim e eu comecei a agradecer como uma tonta. Disse que era uma honra poder entrevistar um homem que mudou a cara do documentário brasileiro. Fui logo acrescentando que achava ele um grande documentarista, alguém que eu admirava, mas percebi que ele não gostou dos meus elogios. Não queria se fazer de herói, nem aceitar o título de grande cineasta; ele era apenas um cara que gostava de documentar o encontro da câmera com o mundo. E, de fato, avisou que não fazia filmes para descobrir a verdade sobre ninguém.
Tudo que eu tinha entendido sobre o trabalho dele até então foi aos poucos desmoronando. “Eu estou interessado que a pessoa fale a partir de sua experiência sabendo que, como é memória, toda memória é mentirosa, e portanto tem verdade e mentira juntos. Isso é inevitável,” ele explicava. De acordo com Coutinho, não era possível fazer um documentário que só contasse a verdade. Para ele, não existia uma verdade única sobre um acontecimento, mas sim várias verdades ou várias experiências vividas que juntas pudessem contar uma história.
Assim como os gestos e o comportamento dele, naquele dia, também contaram uma história.
Quando entrei na sala, vi um homem de 80 anos que já estava cansado, cuja voz às vezes falhava, mas um homem que ao longo da entrevista foi se soltando, começou a mostrar outra cara. Apesar da aversão que sentia em dar entrevistas, eu notava o brilho no olho dele, o orgulho que tinha pelo que fazia, a paixão que sentia pela arte que havia criado. Antes de ir embora, pedi para tirarmos algumas fotos juntos. Na última, ele puxou meu braço  e disse: “Agora chega de fotos genéricas, vamos fazer uma em movimento.” E aí ele acenou para a câmera e por um instante consegui capturar algo: não a verdade sobre Coutinho, mas um retrato dele naquele momento. Que se foi.
Você acha que o documentário é de alguma forma uma extensão do jornalismo?
Questões gerais eu odeio. Se você me pergunta a diferença do documentário pra ficção nós não vamos sair do lugar. Não, eu fiz nove anos de jornalismo para a TV Globo, trabalhei três anos em jornal também, até fui jornalista, dirigi filmes para o Globo Repórter. Mas eu, desde que eu saí do Globo Repórter, tudo que eu faço é contra o jornalismo.
Contra o jornalismo?
Eu odeio o jornalismo. Não estou interessado em jornalismo. Não estou interessado em informações, mapas, em filme militante, em filme político. Deus me livre. Aquecimento global, liberar maconha. Não estou interessado em filmes políticos, sociais, genéricos. Nada que é genérico me interessa. Quero saber das pessoas que eu filmo, só. Então comigo é uma exceção, um tipo de cinema particular que eu faço, do qual é o único que eu sei falar. Não falo sobre o cinema em geral porque, bom, o documentário pode ser tudo, né? Jornalistas podem fazer excelentes documentários jornalísticos, evidente. O Michael Moore é jornalista, no fundo um cineasta, e que é um tipo engraçado e tal, mas que é um populista evidentemente de esquerda e que, enfim, usa metas que eu não usaria. Mas é um cara altamente eficaz, está milionário e tal, mas é jornalismo. E seus filmes são úteis? São, em certa medida são. Tratar dos assuntos que ele trata, agora, as metas que ele usa, não me interessa.
Você acha que o Michael Moore interfere muito no filme?
Michael Moore é um exemplo, tem mil outros. Todo cara que começa a fazer um filme dizendo “eu vou fazer esse filme para obter tal resultado” não me interessa. Vou dar um exemplo: o filme do Al Gore, não vou ver. Não estou interessado! O filme que o cara sabe que ele vai fazer para dizer que a maconha deve ser legalizada, não estou interessado! Que o mundo vai ser aquecido, o cacete a quatro, não estou interessado! Outro pra dizer que não pode comer carne. Outro pra dizer que a miséria é boa. Não quero saber disso, não interessa. Faça um livro, faça isso no jornal. Agora a experiência de fazer cinema, que é tão ingrata, que você não ganha dinheiro, que é chata pra burro, só tem sentido para mim se é uma coisa que você goste, desse tipo de coisa eu não gosto. Tem gente que adora e faz bem. Um filme que é feito sobre o nazismo etc, isso é um filme jornalístico de um certo sentido, mas com alto nível de pesquisa e tal e interessante, mas não é o tipo de filme que me interessa fazer.
Até que ponto você, como diretor, deve interferir, por exemplo, durante uma entrevista?
Eu tento não interferir. Ou melhor, eu tento… Eu não julgo. Eu não julgo se um cara, uma pessoa que é escrava, que gosta de ser escrava, eu não vou perguntar “mas como?!” Se ela quiser ela dá um discurso do porquê ela gostar de ser escrava. Eu não estou lá para mudar as pessoas, eu estou lá para ver o estado do mundo através das pessoas. A partir da relação que eu vou ter com a pessoa, que é o essencial, na qual tudo pode acontecer, pode haver conflitos ou não conflitos etc. Mas que eu não estou lá a fim de dizer para a pessoa que ela mude de opinião, não. Aliás, a opinião não me interessa. Me interessa que as pessoas tratem de sua vida. A partir de suas vidas, as pessoas vão ter opiniões de direita e esquerda, tanto faz, mas que são viscerais. Eu não estou interessado no conteúdo social da vida da pessoa, eu estou interessado no que a pessoa fala a partir de sua experiência sabendo que, como é memória, toda memória é mentirosa, portanto tem verdade e mentira juntas, isso é inevitável. Não há solução. Ninguém consegue desobstruir a memória, então eu aceito aquilo que é exagero. Como sabe se o sentimento é verdadeiro ou não? Sabe, “eu gostei de um cara.” Eu sei lá se gostou ou não, ela conta a história do romance dela, é um segredo. Porque são pessoas comuns. Se eu fosse entrevistar o Napoleão não ia entrevistar sobre a vida dele, o interessante é a política dele. Quer falar sobre um político, faça um livro.
Por que você começou a fazer documentário tão tarde na vida? Acho interessante que não foi na faculdade que você entrou nesse caminho. Você começou fazendo Direito, não foi?
Comecei por Direito porque era o que se fazia. Direito, Engenharia, Medicina. Mas enfim, larguei, fui trabalhar em jornalismo, depois fiz um curso de cinema e passei a fazer cinema. Agora, ninguém podia pensar em fazer documentário no Brasil nos anos 1960. Nem cinema! Quanto mais documentário. Longa metragem? Isso não existia. Som direto ia começar ainda e tal. E daí fui fazer ficção até o final dos anos 70. Fiz um filme interrompido que tinha um lado documental mas que ao mesmo tempo eram camponeses e atores. E daí eu parei, fui fazer televisão teve o golpe de estado tal, tal, tal. Eu larguei o cinema durante dez anos e voltei para fazer o Cabra [Marcado para Morrer] onde eu fiz um trabalho de história, de jornalismo, de cinema, tudo misturado. Cabra tem tudo isso. Cabra tem tudo, pesquisei como um filho da puta. Trabalhei muito antes de fazer o filme. Sobre a historia dos camponeses etc pra saber que perguntas que eu devia fazer. Nos filmes que eu fiz nos últimos dez anos e tal, não faço pesquisa, não tem que fazer pesquisa. Eu vou filmar num lixo e simplesmente vou ao lixo conversar com as pessoas. Isso é bom ou ruim? Você tem que perguntar pra uma pessoa que tá lá no lixo, isso é bom ou ruim? Porque eu sei que tem aquilo e tem coisa pior que aquilo.
Em Boca do Lixo, você se surpreendeu com o que as pessoas falaram nos depoimentos?
Não há coisa mais degradante do mundo do que o cara ser filmado catando o lixo. E tive a reação deles e aí eu dizia ‘e por que?’ E depois eles diziam os motivos pelos quais trabalham no lixo. Motivos até, econômicos. Entende? Em fim, eu tentei ouvir o lado deles. Ninguém diz aqui é bom, mas muitos dizem “não, mas aqui eu alimentei meus filhos, eu conheci amigos”, por exemplo. O cara de esquerda supõe que aquilo dali é horrível, que a culpa é do governo, que a culpa é do capitalismo. Acontece que eu fui lá aberto e ouvi gente dizendo: “Eu prefiro isso do que ser empregada”. Taí um troço novo. Porque o cara nas condições terríveis do lixo, pelo menos ele é autônomo, ele não tem patrão. Alienado ou não, o cara julga um triunfo ele não ter um patrão. No Brasil inteiro deve ter um milhão de pessoas que vive na rua vendendo coisas. E essa noção de liberdade, se é falsa ou não, não importa. O cara no lixo diz “Olha eu trabalho aqui, agora sábado eu não venho. Sábado eu faço feira, não sei o que.” Não ter um patrão para quem tem herança de escravidão é um troço essencial. Tudo no Brasil está ligado ao troço da escravidão. Isso pesa muito, entende? O horror ao trabalho é um troço que vem dos 350 anos de escravidão.
Edifício Master, documentário produzido por Coutinho em 2002
Pulando um pouco, o filme que me introduziu ao seu trabalho, foi o Edifício Master…
É onde eu já estou num outro caminho, em que eu não quero dizer que aquilo ali é o inferno ou o paraíso. Eu quero simplesmente tentar ver como as pessoas vivem aquilo. Porque como eu não vivo aquilo, se eu tivesse a minha idade e tivesse morando lá eu dizia ‘pô, fim de linha, que fracasso’. Depende, as pessoas que eu encontrei lá, tem um aposentado que esteve nos Estados Unidos, tem pessoas de classe média que estão lá um período da vida que depois saíram de lá e também foram para Alemanha, o cacete. Tem de tudo lá: classe média baixa, média e meia média. Entende? Então o que me interessava era conhecer isso, o que é viver naquela cidade. Paris, Moscou, Nova York, é tudo igual. Você encontra a mesma solidão. Um cara que mora numa quitinete e que morre dez dias depois alguém encontra pelo cheiro porque era solitário. Se encontra aqui, se encontra em Nova York, se encontra em todo lugar.
Inclusive a minha tia avô ela mora em um edifício igualzinho a esse…
Em Copacabana?
Em Copacabana!
A maior porcentagem de idosos no Brasil é em Copacabana: tem 15% de idosos. A razão é muito simples. Tem tudo lá: prostituição, crime, tal. Mas é um bairro que tem muita vida, tem comércio, tudo é perto. É muito melhor morar em Copacabana do que no centro da cidade que não tem nada. E a praia está perto então o velhinho vai lá e passeia. Então morar em Copacabana, hoje, para aquelas pessoas foi um ganho. É uma coisa interessante com todos os problemas que tem.
Eu li uma entrevista em que você dizia que, quando você começou a fazer o Edifício Master, sentia medo de não desenvolver uma história boa porque era um bairro de classe média.
Isso aí é porque as pessoas se defendem. Se vai lá na favela e todo mundo está disposto a falar, eles têm eloquência, têm beleza na fala, têm a gíria. Cem anos de cultura em favela. A favela é um troço orgânico e forte em comparação com o asfalto. O exterior/interior não existe, você está andando e, da janela, alguém te chama pra entrar, entende? Eles têm consciência que tem o ‘nós da favela’ e tem o ‘nós do asfalto’. Isso está ligado, porque eles vivem a vida do asfalto também, vão à praia e tal mas eles tem consciência do ‘nós’ favelados. Num prédio, ninguém fala ‘nós’. A diferença é essa. Como é que eu vou dizer ‘nós do meu prédio’? Eu moro num prédio normal- 30 apartamentos, 35, sei lá. Mas não vou dizer ‘nós’. Nem conheço quem mora lá, nem quero conhecer ninguém. As pessoas na favela se conhecem todas, é um outro tipo de vida. Tem esse lado positivo de formar comunidade, de que é uma vida muito aberta. Então quem se mata é quem mora no Master, em favela ninguém se mata. Já ouviu falar em algum suicídio em favela? Eu nunca vi. É impressionante, não sei se tem estudo sobre isso, mas eu não conheço caso. Um mata o outro, droga é outra coisa porque o cara é viciado, dependente e guerra do tráfico é outra coisa. Mas suicídio mesmo, sem razão ou por depressão, é difícil.
Então por isso eles [os personagens de Master] falavam pouco, eles riam pouco, tinham pouca riqueza vocabular. Em termos de experiência de vida também não era tão forte. É por isso que tem 37 personagens – eu tinha que ter quantidade porque eu sabia que não ia ter personagens maravilhosos como tive em outros filmes que podiam ocupar dez minutos. Tem 37 pessoas no filme e acho que nenhum chega a cinco seis minutos. Pessoas que entram por três, quatro minutos. Mas em compensação é 1 hora e 50 minutos de gente falando.
Quando te veio essa ideia de botar só gente falando?
Isso foi desde que eu voltei a fazer cinema com Santo Forte. Fui fazer um filme sobre religião mas não queria botar culto nenhum, queria botar gente falando sobre religião. Daí eu fiz, acabei filmando também culto, mas acabei tirando e jogando fora. Depois de longas experiências arrumando e montando, tirei praticamente tudo, mas ainda tem imagens. E eu fui reduzindo e atualmente tem um filme que não tem imagem nenhuma. Só tem um preto e tem uma pessoa que fala ou canta. E é chegar no limite. Filme que só tem pessoas falando como Jogo de Cena. O próximo vai ser pior ainda, só tem uma pessoa que fala, um corpo falando. Então atrás você não tem que distrair, mostrar fotografia do filho, do neto. “Meu filho morreu”, pronto, conta a história do filho. A pessoa imagina, não preciso da foto do filho. Se é dito, a imagem é totalmente desnecessária no caso dos filmes que eu faço. Eu trabalho com cinema que se baseia na palavra. Por isso é muito difícil vender pra fora. Nunca vendeu. Quem não entende português é difícil, a legenda passa 60 %. Então é difícil porque meus filmes não vendem.
Você acha que vocês documentaristas são heroicos?
Não, não, não, não. A palavra herói não existe. Vítima e herói: não existe. Não tem coitadinho. Sabe o pobre, o coitadinho, como são feito os filmes. “Ah o coitadinho do pobre!” Eu não fui no lixo para tratar de vítima, senão acaba a relação. Eu vou tratar ele de igual pra igual na medida que é possível. Eu quero conhecer a sua razão. As minhas razões para estar aqui eu sei – eu posso, eu quero. Agora quais são as suas? Cada um tem suas razões para estar em algum lugar para fazer alguma coisa. Isso que eu quero descobrir. Então a razão do outro me interessa. Tentar estar no lugar do outro é a chave da questão. É impossível, mas tem que tentar, e nesse confronto de tentar entender o outro sai um diálogo que é improvisado, que é inventado, porque você inventa também quando fala. E não importa, se inventa bem, é verdade. Se é bem inventado, é verdadeiro e ponto final. “Eu fui feliz”, sei lá se é verdade. Tá dizendo! Pode ser que daqui um ano diga outra coisa. Entendeu? Tem que ser inventado com verdade. Quem inventa mal tá fora!
O documentário já existe à margem do cinema brasileiro. E os filmes estrangeiros dominam o mercado brasileiro então…
Tem o Cinema Novo, tem o cinema brasileiro sério que sempre foi marginal e vai continuar a ser. Tem Globo Filmes e tal, as exceções, mas é 15 % do mercado. O cinema brasileiro em geral é marginal no mercado. Calcule os filmes sérios que tem alguma dimensão estética, o que seja, social, o que seja. São filmes que se tiver 30, 50 mil espectadores já é extraordinário. No mundo todo o documentário é um lixo pequeno. Pensa que na França é diferente? Passou um filme que tem 100 mil espectadores e é extraordinário, é uma festa. Na França! Entende? As pessoas vão ao cinema para ver historias inventadas com atores. Baseadas em fatos reais ou não, mas simplesmente vão para o cinema sonhar. Sempre foi assim. E agora é sonhar em 3D. E aumentou até o nível de diferença de um cinema para o outro. Não dá pra competir com os filmes 3D americanos..não tem como o brasileiro fazer isso. Agora daí, de repente, pega essa esquema de novela e tal e faz o filme. São exceções. Mas o conjunto do cinema, o cinema brasileiro foi, é, e será sempre marginal. O próprio cinema vai passar a ocupar um lugar marginal. As pessoas vão ver filme aonde? Até em celular. Entendeu? Então o ato social de ver filme vai ficar menor, vai ficar como teatro. Ou então filmes que exigem telas gigantescas IMAX, sei lá. Os caras vão ver lá, vão ver esse tipo de cinema.
Cabra marcado para morrer, de 1984
Voltando ao Cabra. Você disse antes que você não tem uma intenção politica com seus filmes. Você diria que nesse filme você teve alguma intenção politica?
Não tem intenção política na medida que a palavra política é equivocada. Todo filme é político. Mas eu estou interessado no social, não no político. Como é que uma sociedade existe? Por que o Brasil é como é? Por que as pessoas são como são? Primeiro, você tem que saber como as coisas são para depois se quiser mudar. No Cabra, eu estava fazendo uma coisa que é diferente porque o Cabra tinha um ato político de fazer o filme, porque tinha história envolvida no filme. Isto é: minha vida parou com o filme. Esse é o fantasma. Como parou a vida dos camponeses. Então apresentou para mim uma dimensão psicológica, é realmente um filme de um caráter politico mas a partir de uma coisa pessoal também. Peões, não. Qualquer cara pode filmar a greve dos operários. Eu fui e fiz um filme lá, mas não tem nada ver com Cabra.
Por isso você quis que o enfoque do peões fossem nos metalúrgicos em vez de políticos?
Tem uma divisão né? Tem a história do Lula e o João [Moreira Salles] estava interessado e eu não, até pelo fato de que é o tipo de filme que tem que negociar cada dia o que filmar etc. Tinha que pedir ajuda ao sindicato foi muito trabalhoso, muito penoso. Cem mil sindicalistas. E eu tinha que achar gente que o sindicato queria e encontrar gente que dissesse coisas que não fossem evidentes. Então teve uma limitação. Não faço mais filme politico, histórico. Em princípio não faço mais.
Peões deve ter sido difícil porque você estava pegando uma região inteira não era como o Master que você ficou num prédio só…
Esse é o problema, ficou um negócio amplo demais. Só se eu ficasse um ano fazendo pesquisa que era impossível. A prisão espacial é essencial para mim. Eu preciso ter uma prisão espacial e naquela prisão eu sou inteiramente livre. Essa pobreza espacial é essencial pra eu não procurar ideologicamente aquele cara interessante. Não, nesse prédio eu tenho que achar um filme. Todos os filmes que eu filmo a regra é essa: num lugar tem que achar um filme. Até agora pelo menos tenho achado uns filmes que não são iguais. Mas são sempre num lugar só. Tirando Peões, todos os filmes que eu fiz recentemente são num lugar só. Numa vila que tem 80 famílias, num canto de lixo, num teatro de gente que responde a um anúncio. Se eu não pedir nada para a pessoa fazer e conversar meia hora com ela, ninguém mais controla se está filmando ou se não está. Não tem como conversar meia hora e a pessoa ficar engessada. Ou fica e sai do filme.
Igual àquele momento no Peões que o rapaz está falando e a esposa não quer participar, ela fala mas não quer aparecer.
Isso é extraordinário! Justamente houve uma briga porque o fotógrafo queria que minha assistente filmasse ela. Eu não quis e ela teve razão de não ter filmado porque o que me interessava era ela fora [de cena]. Ela sai da filmagem, portanto contra, daí ela às vezes dava palpite. Foi maravilhoso. Quem está no campo, quem está fora do campo isso é essencial. Ao lado estava o filho deles que é débil mental. Então tinha, a meio metro do quadro, no sofá, um filho de vinte anos completamente nervoso que gemia. Eu até perdi uma sequência interessante porque entrava o gemido do cara. Você filmando e tinha o cara aqui, a mulher aqui atrás e aqui do lado do sofá o filho gemendo. Não é que ele está com dor,  o cara tem problemas gravíssimos. E você filma e…pra eles é normal, eles vivem com aquele filho, então é normal pra mim, e vamos filmar.
A sua infância teve alguma coisa a ver com seu envolvimento no cinema mais tarde?
Não, eu era cinéfilo, uma pessoa que via filme. Ser cinéfilo é assistir três filmes por dia, anotar no caderno. Quando eu tinha dez anos eu fazia isso. Agora era impossível pensar no cinema brasileiro. Eu vi nove vezes uma chanchada, Carnaval no fogo. O que eu via de cinema brasileiro era chanchada, carnaval. Isso até 1951, 52. Fora isso eu via cinema americano, depois argentino, mexicano. Depois neorrealismo, até que eu fui estudar cinema e passei a me interessar. Mas isso de fazer cinema foi um passo gigantesco que só foi possível depois que eu voltei da Europa em 1960, 61 quando o Cinema Novo começou a nascer e se tornou possível fazer cinema no Brasil. De uma forma marginal, mas de qualquer maneira uma tentativa de ver o Brasil que não tinha aparecido no cinema brasileiro de antes. E fora da chanchada que realmente já não precisava mais porque com a chegada da televisão a chanchada não tinha mais mercado.
Se o Brasil não fosse não atrasado naquela época teria sido possível você entrar antes no ramo do cinema?
Isso não sei. Antes do Cabra, em que eu já tinha uns 40 anos, tudo que eu fizesse não tinha importância. Só quando eu fui filmar o Cabra que eu me libertei. Tudo que eu fiz antes não importa porque eu não sabia o que eu queria da vida. Quando eu fui fazer o Cabra, eu sabia o que queria fazer. Trabalhei cinco, seis anos, pesquisa, filmagem e fiz um filme à altura do que tinha sido a história. Depois fiquei 15 anos praticamente sem fazer filme até fazer o Santo Forte.
Se o Santo Forte não tivesse tido tanto êxito…
Se não fosse a produção do Santo Forte, eu tava morto. Se a repercussão crítica fosse ruim ou ninguém fosse ver, é possível que eu desistisse. Mas a verdade é que eu confiava, sempre confiei no filme falado que era como era e tal. Meus amigos diziam que era impossível, que ninguém ia aguentar. Todos os meus amigos, todos. Tirando uma pessoa da equipe, todos. “Não, é impossível, é uma tortura etc.” Mas foi gravado, foi aceito e foi maravilhoso. O documentário teve cinco prêmios e o público foi de 18 mil pessoas, o que até hoje é difícil fazer, e a crítica foi maravilhosa. Pensei “ Pô, achei, finalmente achei e eu quero continuar a fazer isso” e fiz e não parei de filmar de lá pra cá.
Tem documentário que mostra um caso isolado, por exemplo, de uma criança  pobre que trabalha nas minas da Bolívia e você como espectador se sente muito deprimido e culpado. Mas quando você sai dali você não sente continuidade…
Tem um monte de filmes que se aproximam do outro…Quem é o outro? O outro é o pobre miserável. O cara com defeito físico, o destituído tal, tal. E quem filma geralmente é uma pessoa de classe média, mesmo que com origem proletária. E tem a mania, americano adora isso, de tratar de forma paternalista. E daí o povo adora e chora e sente culpa. Isso é coisa que eu me recuso a fazer. Isso é uma coisa proibida em meu dicionário. Michael Moore, tem uma hora que ele abraça uma mulher lá que foi vítima, pra que ir lá e abraçar? Você tem que guardar distância da pessoa, não tem que consolar ninguém. Ou se consola, faz isso fora do filme. Então existe o “humanismo” entre aspas, que os americanos adoram, que é filmar o pobre. O cinema humanitário é o pior cinema do mundo. O humanitário ou de mensagem. Al Gore, ou então, mensagem. E a outra coisa de americano é essa: se é um filme sobre negra e lésbica tem que ser filmado por negra e lésbica. Sabe? Iguais filmam iguais. Quando a minha tese é outra: negro tem que filmar branco e camponês tem que filmar negro e tem que trocar. Índio tem que começar a filmar branco e branco…sabe? Nada impede que branco filme índio. Precisa dos dois lados, um do lado de dentro, um de fora. Não tem sentido que um filme sobre metalúrgico só pode ser feito por metalúrgico. Isso é uma tolice. O multiculturalismo que botou isso na cabeça. Então pra filmar uma lésbica eu tenho que ser lésbica? É o mesmo do mesmo, entende? Não há conflito. Não vou ao cinema para ser educado, pra aprender o bem. Odeio esse tipo de coisa tipicamente americana.
Eles colocam aquela narração em off que é uma voz assim divina falando…
Quando tem voz em off é pra tratar da pobre vítima da crueldade, os mineiros da Bolívia…e tratam de um jeito que é pra fazer o cara ter culpa, chorar.  Não estou fazendo filme pra ONG, pra arranjar dinheiro. Eu fiz o filme sobre o lixo, ninguém me deu dinheiro pra terminar. Pra começar sim, pra terminar foi difícil. Por que? Porque se eu dissesse que era pra promover um sindicato, eu ganhava. Se fosse catador que queria fazer um sindicato. Porque esses são os filmes que são politicamente corretos. Como meu filme não era, era o cotidiano dos catadores só, ninguém deu dinheiro.
De todos os seus filmes, qual abriu mais portas para você?
Eu me identifiquei com o Cabra. Se não fosse pelo Cabra estava na televisão, TV Globo até hoje, eu estava morto. Fora o Cabra, foi o Santo Forte. Agora, prazer tive em quase todos. Se eu não tivesse prazer eu não fazia. Não sou missionário.
Você acha que Cabra não seria um filme tão bom se não tivesse sido retomado anos depois?
Evidente. Teria sido um documento de época importante mas o filme é um filme com 70 camadas de sentido histórico. É uma revisão da história do Cinema Novo, do cinema brasileiro que inclui tudo: jornalismo, história, cinema, linguagem. Exatamente porque é um filme que conta a história do filme, cinema e história todo tempo, lado a lado. É extraordinário que eu consegui, porque eu soube fazer, tive um montador que me ajudou, tive um fotógrafo que me ajudou a fazer. Enfim, é um filme que aguenta até hoje porque ele não é um filme triunfalista. Ele lida com uma verdade do personagem e não com discurso. Os filmes em geral políticos são triunfalistas, tomamos o poder. Mentira. Jamais faria um filme assim. Quando se ganha se perde também porque dura dez anos. E esse é um filme muito chão, muito simples. Cabra tem dispositivos de montagem extraordinários, tem jornal, manchete, o filme antigo, o filme que eu filmei na UNE, filmes de outras pessoas. Tem filme americano que eu roubei pra usar a imagem, que não paguei, graças a Deus. E a aventura foi essa.
Por que você acha que mudou tanto sua visão entre o primeiro e o segundo filme?
Eu comecei a fazer documentário na TV Globo e eu comecei a descobrir que era aquilo que eu queria fazer. Aí foi uma escola pra fazer o Cabra porque a rapidez que se trabalha em televisão me ajudou a fazer isso depois de uma forma muito mais refinada. Então me ajudou, me educando e me deseducando. Cabra é um filme de suspense porque eu também não sabia o que eu ia encontrar. Quando fui filmar [pela segunda vez] eu não via a Elizabeth [personagem de Cabra] há 17 anos, exatamente o tanto de tempo quanto o espectador… Fui encontrar 17 anos depois, conhecer os filhos. Conheci eles quando filmei eles em 1962, 64 e fui lá ver eles 17, 18 anos depois como está no filme. Eu tinha que chegar filmando.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O fim da Web ?



Os objetos inteligentes e o fim da internet como a conhecemos 

Gabriela Agustini empreendedora digital, em artigo publicado por Brasil Post,

29-01-2014.

O futuro da internet é móvel. E, além dos celulares e tablets, as conexões virão dos mais variados objetos. Geladeira, tênis, lâmpada, carro: em breve todos estarão conectados, emitindo e recebendo dados. Os chamados objetos inteligentes já são realidade e sua crescente popularização joga ainda mais lenha na discussão sobre neutralidade da internet, o princípio que garante o livre acesso a qualquer tipo de informação na rede.
Quando em 2010 Chris Anderson decretou na capa da Wired o fim da web, a interface gráfica que estamos acostumados a usar para acessar a internet, muita gente tomou um susto. Mais de três anos depois, a proliferação de smartphones, TVs com conexão e o mundo dos aplicativos mostram que os apps chegaram para ficar e que um possível fim da web pode estar mais próximo do que se imagina. Seria ok se o substituto não fosse um modelo centralizador, que coloca os interesses econômicos no centro do processo e pouco se importa com a pluralidade e diversidade de conteúdos.
A web nasce baseada na horizontalidade, tem natureza flexível, trabalha com os conceitos de relevância e abertura. Por isso, conseguimos acesso fácil a tanto conteúdo que as indústrias instituídas acham pouco relevante. É assim que um blog de um anônimo passa fácil a audiência de um canal de grande jornal.
No mundo dos aplicativos, a lógica é outra. Em vez de buscar conexões o usuário é incentivado a permanecer no feudo digital criado pela marca. Some isso à possibilidade de oferecer conteúdos com velocidades distintas que você tem uma noção do rumo que a internet está tomando.
E tem muito mais por vir. A indústria automobilística deve ser a primeira a incorporar as aplicações de maneira mais profunda. Sabe a relação que você tem com o seu celular? Então, é mais ou menos assim que serão os carros: cheio de aplicativos, com possibilidade de customização e sistema operacional. Prepara-se para ter que escolher entre um modelo Apple ou Google.
Parece uma maravilha, se não fosse a possibilidade de isso significar o consumidor como "refém" de uma única marca. Pensando nisso, algumas empresas já se uniram, atendendo um chamado da Fundação Linux, para criar um padrão aberto que interligue as conexões das diversas aplicações de IoT (Internet of Things, a Internet das Coisas), os tais objetos inteligentes. A AllSeen Alliance conta com empresas como Cisco, D-Link, Haier, LG Electronics, Qualcomm, Panasonic e Sharp e pretende criar protocolos e padrões abertos, garantindo a capacidade dos sistemas das empresas em se comunicar. Tem uma luz no fim do túnel!
Em tempo, no Brasil o princípio da neutralidade de rede está inserido no Marco Civil da Internet, projeto de lei construído de maneira colaborativa em 2009, que aguarda votação na Câmara dos Deputados.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

O que há de novo na "direita"?


 
"Há algo novo no ar; nos artigos de opinião, nas discussões políticas, no comentário econômico. Os observadores mais atentos, olhando de longe a movimentação que veio de fora dos meios esperados - a academia, a grande imprensa, a política, o meio artístico -, já têm um nome na ponta da língua: "nova direita" - nome dado, evidentemente, pela velha esquerda", escreve Joel Pinheiro, editor da revista "Dicta&Contradicta, em artigo publicado no jornal Valor, 31-01-2014.

Eis o artigo.

De perto ela é mais complexa. A tal "nova direita" é no mínimo duas coisas bem distintas. E, dessas duas, uma nem é direita, embora seja nova. Nesse mesmo balaio estão dois grupos: conservadores e libertários. Eles têm algo em comum: a insatisfação com o estado do Brasil e a descrença nas opções políticas disponíveis ou mesmo na política como um todo. Não pertencem à direita tradicional e, obviamente, se opõem ao governo do PT. O que não quer dizer que aceitem de bom grado o rótulo de direita.
Bem, os conservadores aceitam. Sua marca distintiva é justamente o ódio a tudo o que vem da esquerda. Consideram-se desprovidos de ideologia. Não querem grandes revoluções ou mudanças bruscas e populistas. Veem no PT não apenas um partido de esquerda e, sim, a peça de um movimento político corrupto, revolucionário e destrutivo que põe o país em risco.
Nesse ódio ao esquerdismo entram articulistas como Reinaldo Azevedo no campo da política e, no da cultura, o filósofo Luiz Felipe Pondé. Para além deles, aparece aqui e ali uma série de jornalistas, comentadores sociais e mesmo artistas, cada um com seu público fiel: Rachel Sheherazade (SBT Brasil), Paulo Eduardo Martins, Lobão.
Por trás de todos está um mentor em comum: Olavo de Carvalho, jornalista e filósofo que vive nos Estados Unidos, de onde escreve artigos e dá cursos on-line. Rodrigo Constantino, Rachel Sheherazade, Lobão e Reinaldo Azevedo são leitores seus. Felipe Moura Brasil, novo blogueiro da "Veja", é o organizador de seu livro mais popular - "O Mínimo Que Você Precisa Saber para não Ser um Idiota", coletânea de artigos que resume seu pensamento.
De acordo com Olavo de Carvalho, o esquerdismo vai muito além da política. Toda a cultura está tomada pelo marxismo cultural e a inversão de valores por ele efetuada. O pensamento e os slogans da esquerda são hegemônicos e constituem, assim como o PT, parte de um processo para implantar o comunismo na América Latina via o Foro de São Paulo, organização que reúne os principais partidos e movimentos de esquerda no continente.
O conservador vê sua luta antes de tudo como uma guerra cultural. Por isso, a preocupação especificamente política, quando vai além da mera oposição ao PT, se foca em questões pontuais: aborto, casamento gay, drogas, armas, defesa da família e da religião. Isso acaba dando ao movimento o aspecto de reacionarismo ideológico que ele tanto quer evitar.
A outra metade da "nova direita", a ala liberal ou libertária, também luta contra uma imagem negativa. O pouco de liberalismo que o Brasil conheceu foi sempre visto como uma agenda tecnocrática de economistas, gente que transita entre a teoria econômica pura e o mercado financeiro. Justa ou injustamente, é tachado de pensamento da elite. Além disso, sempre conviveu com o conservadorismo cultural. Essa associação ainda é comum, como no caso de Rodrigo Constantino, que iniciou sua carreira como liberal radical e vem cada vez mais adotando o discurso conservador. O liberalismo brasileiro clássico é, assim, facilmente classificável como direita.
Os libertários, ala mais radical do liberalismo, querem enterrar essa associação. Parte dos membros se coloca mesmo como "esquerda libertária", posição até então desconhecida no Brasil. Seu foco é na erradicação da pobreza, nos custos que as regulamentações estatais impõem às camadas mais baixas e aos microempreendedores e em causas progressistas como casamento gay e liberação das drogas. Uma boa leitura nesse sentido é o blog Capitalismo para os Pobres, de Diogo Costa, professor do Ibmec-MG. É um liberalismo que não se opõe ao Bolsa Família, mas combate veementemente o BNDES, grande concentrador de capital e poder nas mãos de políticos e megaempresários.
Outra iniciativa que chama a atenção é o Estudantes Pela Liberdade, com membros em universidades de todas as regiões do Brasil, que organizam grupos de estudo, palestras, promovem debates, militância, etc. Tudo isso num tom de diálogo com a esquerda universitária.
Se os conservadores têm conquistado mais espaços nas mídias tradicionais (TV, jornais e revistas), os libertários têm crescido principalmente na internet. O Instituto Mises Brasil tem o site de economia mais acessado do país, com análises pautadas pela escola austríaca de economia, conhecida pelo radicalismo de seus membros. Já o site do Instituto Ordem Livre, que adota uma abordagem mais plural, hospeda colunas sobre combate à pobreza, urbanismo, ética e política.
Falando em política, tem outra novidade na área.
O Partido Novo, que está em processo de formalização, tem algo que ninguém mais tem: dinheiro. Talvez por isso encarne a esperança de todos. Inicialmente, parece defender uma agenda liberal mais tradicional, que pede privatizações, eficiência na gestão e corte de impostos. Mas pode também dar uma guinada libertária, defendendo desregulamentações e fim de transferências de renda regressivas.
Conservadores olham para o passado: querem conservar os valores da civilização ocidental e as instituições vistas como suas principais representantes - a igreja, a família, o Estado democrático de direito, os direitos naturais. Podem ser até liberais em economia, mas seu coração não está na liberdade enquanto tal. Já libertários olham para o futuro sem medo de criar utopias e apostar nas mudanças revolucionárias que sua proposta trará. O Estado é visto ou como uma barreira à criação do novo ou como um definidor de caminhos fixos para a mudança, proibindo e barrando caminhos alternativos.
De princípios humildes, a "nova direita" vem causando desconfortos e sendo bem recebida por muitos. De direita ou não, o fato é que ela traz novidades.

Gestão e sustentabilidade emulados no espaço urbano

Cidades como Objeto de Desejo: gestão e sustentabilidade emulados no espaço urbano
 
 
"Quando se discute o tema das cidades sustentáveis, há várias noções e abordagens em disputa. Fenômeno típico de um campo marcado pela polissemia e pelas controvérsias em torno de visões de mundo concorrentes, a sustentabilidade no espaço urbano remete necessariamente à busca pelo bem viver", escreve Armindo dos Santos de Sousa Teodósio, em artigo publicado na revista Plurale, 13-01-2014.
 
Eis o artigo.
 
Sendo assim, é matéria por definição política, tanto em sua referência às formas de se viver junto na pólis, na cidade, quanto à própria essência da visão de mundo e das ideologias que ensejam. Ao contrário do que as visões tecnicista e gerencialista sobre o espaço urbano defendem, infelizmente também presentes nas disputas pelo significado da sustentabilidade, não se trata apenas de um agrupamento de melhores práticas, estratégias e recursos de gestão empregados em prol da preservação do meio ambiente nas cidades.
Nesse emaranhado de visões, debates e embates, a inexistência de uma concepção monolítica e fechada sobre o que vêm a ser as cidades sustentáveis, ao contrário do que muitos ativistas socioambientais podem imaginar, não é problema ou uma suposta etapa de uma trajetória ainda inicial de uma visão de mundo que uma dia se tornará precisa, delimitada, hegemônica e definitiva. Pelo contrário, a riqueza de opiniões e opções é fruto de um dos componentes mais importantes do desenvolvimento sustentável, que muitas vezes passa despercebido para aqueles que focalizam suas lentes sobre a natureza e se esquecem que a preservação ambiental é sempre um assunto do encontro entre “bichos, plantas e gentes”, o componente das liberdades democráticas e da construção do interesse público. Portanto, os caminhos do desenvolvimento sustentável nas cidades são muitos e levam a muitas “Romas”, a muitas cidades.
A cidade sustentável se sustenta em cima de alguns pilares. O primeiro deles é a crença de que a noção de desenvolvimento sustentável é melhor do que a de sustentabilidade, pois indica que é processo contínuo e se conecta a outras discussões sobre desenvolvimentoque marcaram e marcam os debates em sociedade sobre o bem viver e o interesse público, presentes na também rica polissemia de adjetivos para o desenvolvimento: econômico, local, urbano, comunitário…
Ao se trabalhar com a noção de desenvolvimento sustentável como guia para a compreensão da realidade e a intervenção social continua-se na mesma trilha da discussão sobre desenvolvimento e não se perde os avanços que o adjetivo sustentável tem conseguido arregimentar, apesar de sofrer com os duros golpes de incompreensão, pouca criatividade, covardia e interesses escusos que teimam em se aproveitar dele.
Além disso, cabe notar que sustentabilidade, por mais em voga que esteja, não é atributo de cidades. Não existem cidades sustentáveis! Existem cidades que desenvolvem dinâmicas favoráveis, mas que precisam ser sempre contínuas e refeitas, além de aprimoradas, em direção ao desenvolvimento sustentável. Não adianta sustentar o meio ambiente de uma cidade e o entorno ser degradado. Aliás, isso nem é passível de ocorrer.
Da mesma forma, ao contrário do que o discurso da moda adora defender, não existem empresas sustentáveis, lideranças sustentáveis, práticas sustentáveis, existem sim organizações, pessoas, posturas e ações que contribuem para o processo de desenvolvimento sustentável e aquelas contribuem muito pouco ou nada e ainda aquelas que se opõem a isso.
O desenvolvimento sustentável não se constitui em etapa final de uma longa jornada de uma cidade, uma empresa, uma liderança, na qual se atinge a sustentabilidade, mas sim na própria caminhada ad infinitum, sempre caminhada, sempre esforço, sempre mais exigente e sempre diante de novos desafios para toda a sociedade, até mesmo porque a natureza e as comunidades estão constante mutação, em direção ao bem viver e deixar outros seres e coisas bem viver e existir.
Cabe destacar também que a ideia de sustentabilidade nunca foi apenas preservar o meio ambiente, desde que Ignacy Sachs ajudou a formular a noção de ecodesenvolvimento, que depois se transformou, para pior, convenhamos, em desenvolvimento sustentável.
Usando as ideias de Ignacy Sachs, pode-se compreender que o desenvolvimento sustentável é sempre em um território e, portanto, varia de um local para outro, não existindo o desenvolvimento sustentável, mas os processos de desenvolvimento sustentável em diferentes cidades. E para que ele se efetive, Sachs defende que a participação popular é essencial, visto que a defesa do meio ambiente não se mantém em contextos de baixa participação popular, restrição de liberdades democráticas, limitação autocrática da atuação da imprensa, reduzida transparência e controle social frágil.
Esse pesquisador também defende que o desenvolvimento sustentável precisa se fundar na redução das desigualdades sociais e da pobreza, visto que populações em situação de vulnerabilidade estão mais sujeitas a se vitimarem com as tragédias ambientais e a darem vazão a processos de degradação ambiental para garantirem sua sobrevivência, ao passo que grupos que detém renda muito elevada em relação à média da sociedade podem desenvolver um estilo de vida baseado em consumo exagerado e desnecessário, que se torna referência para outros segmentos sociais, disseminando modos de vida pouco ou nada compatíveis com o desenvolvimento sustentável.
Em suma, o desenvolvimento sustentável tem estreita conexão com o modo de vida das comunidades, sendo assim também uma expressão cultural dos diferentes grupos sociais que compõem as cidades. Por fim, ele opera dentro da chamada economia verde e inclusiva, aquela que se desenvolve em bases que protegem o meio ambiente e ajudam a mitigar desigualdades econômicas, sociais, políticas e no acesso ao meio ambiente.
Vários campos de conhecimento, como já é amplamente sabido, se cruzam na construção dos saberes ambientais, como defende Enrique Leff. No campo das chamadas ciências sociais e humanas, as tradições de estudo do Urbanismo, Economia, Direito, Gestão Pública, Ciências Sociais, Antropologia, Ciências Políticas e Administração se embaralham oferecendo múltiplas abordagens e perspectivas que devem ser resgatadas e postas em ação e diálogo para a promoção do desenvolvimento sustentável nas cidades.
Nesse caldeirão, devem estar presentes o planejamento regional e urbano, o estudo dos modos de vida e sociabilidade urbanos, a análise de políticas públicas, a discussão sobre a ampliação da cidadania e as dinâmicas de democracia participativa, o direito à moradia, à mobilidade e à regularização fundiária nos espaços urbanos e uma série de outros temas, abordagens e tradições de estudos que têm como objeto de análise e de desejo as cidades.
Numa época em que as cidades também recebem inúmeros adjetivos que vão desde as cidades competitivas, cujo um dos casos emblemáticos é Barcelona, passando pelas cidades inteligentes, digitais, democráticas, inovadoras até chegar nas cidades resilientes, as cidades sustentáveis podem se transformar apenas em mais uma meta bem abstrata em um oceano repleto de possibilidades, com muitos riscos de inanição diante de tantos focos de ação, dispersando esforços e lutas.
A arte e a maestria por detrás da construção dos processos de desenvolvimento sustentável nas cidades reside em se alcançar o difícil, mas necessário equilíbrio entre pluralidade de caminhos e frentes de ação e a convergência de esforços, energias e avanços nas formas de vida e convivência urbanas.
Ainda assim, nessa multiplicidade de estudos, abordagens, ferramentas de trabalho e possibilidades de ação, algumas referências são essenciais. Mesmo correndo-se o risco de deixar de lado algumas obras e pesquisadores seminais, pode-se dizer que sem algumas discussões e análises dificilmente se consegue alcançar uma compreensão mais robusta e capaz de suportar mais e melhores estratégias, políticas, programas e instrumentos deintervenção socioambiental nas cidades.
São elas geradas por Pedro Jacobi e seus estudos sobre participação e meio ambiente, movimentos sociais ambientais e construção da consciência ambiental no ambiente urbano;Ricardo Abramovay e sua compreensão sobre as estreitas conexões entre mercados e realidades sociais e culturais, oferecendo inovadoras análises sobre formas híbridas de construção de dinâmicas econômicas capazes de preservar o meio ambiente e mitigar desigualdades sociais; José Eli da Veiga e a sua compreensão dos limites das dinâmicas econômicas tradicionais e os mitos da difusão da chamada “economia verde”, capaz de tudo, menos de efetivamente esverdear as cidades; Saskia Sassen, uma das maiores estudiosas das cidades, e sua discussão sobre espaço urbano, globalização, gentrificação e resistência espacial; Ladislau Dowbor e os aparatos teóricos que mobiliza para discutir desenvolvimento local de forma a valorizar, respeitar e ajudar a promover os saberes locais na construção das bases da chamada economia inclusiva e criativa; Richard Sennett e sua trajetória de estudos sobre as cidades, demonstrando como podem ser um espaço privilegiado de construção da cooperação, mas também locais repletos de contradições e ambiguidades na construção das chamadas cidades inteligentes e inovadoras; David Harvey, outro pesquisador essencial, e sua visão sobre a dinâmica econômica das cidades, sua inserção no circuito global de transações mercantis e o curto-circuito da economia capitalista nos tempos atuais; Jeremy Rifkin e sua discussão sobre economia de baixo carbono, do acesso e do compartilhamento; Mike Davis, autor de Planeta Favela, obra essencial para o entendimento da “morte e vida severina” nas cidades pelo mundo afora e seus estudos sobre a crescente urbanização, degradação do meio ambiente nas cidades, desigualdade e exclusão; Andrea Zhouri e suas análises sobre os avanços, dificuldades e ambiguidades da construção de políticas públicas ambientais e de uma governança urbana mais compartilhada na gestão do meio ambiente; Henri Acselrad e suas investigações baseadas nas noções de justiça ambiental e racismo ambiental, que oferecem um olhar essencial sobre as contradições ambientais bem escondidas no ambiente urbano; Raquel Rolnik e suas análises sempre contundentes sobre as cidades que excluem e desrespeitam direitos das populações em situação de risco e vulnerabilidade, colocando-as em maior e mais incisiva degradação através de políticas públicas higienistas, sobretudo em tempos de megaeventos esportivos; e enfim, mas não em último lugar, Yves Cabannes e seus estudos sobre a apropriação coletiva do espaço urbano, construindo dinâmicas compartilhadas e democráticas de governança dos bens públicos urbanos tanto em cidades ricas quanto em espaços urbanos de países pobres e em desenvolvimento.
Mas como sempre perdura a pergunta, principalmente por parte do leitor ávido por se envolver nas batalhas socioambientais urbanas, de como promover efetivamente essa utopia tão necessária, urgente e possível de ser conquistada, mesmo que a duras penas, a difusão mais robusta do desenvolvimento sustentável em sua cidade, cabe listar algumas frentes de ação principais. O desenvolvimento sustentável nas cidades brasileiras opera necessariamente pela:
a) ampliação dos espaços de participação popular na discussão sobre caminhos para o desenvolvimento e por parcerias intersetoriais, ou seja, entre governos, organizações da sociedade civil e empresas que não sejam capturadas pelos parceiros mais fortes e por interesses privados travestidos de públicos;
b) dinâmica econômica que permita que pequenos empreendimentos inovadores em termos sociais ambientais floresçam com crédito justo e que geram trabalho, renda e condições de trabalho justas, mitigando a pobreza e reduzindo as diferenças de renda dentro do espaço urbano;
c) promoção de políticas públicas que contribuam para o transporte coletivo em detrimento do individual;
d) ampliação do acesso a parques, jardins e natureza não apenas para quem tem renda, status e poder nas cidades;
e) política de tratamento adequado da água capaz de efetivamente mitigar problemas de enchentes ou de escassez para os pobres; e) redução dos níveis de poluição atmosférica;
f) difusão de uma educação ambiental capaz não apenas de informar e conscientizar sobre os problemas ambientais urbanos, mas de mudar atitudes e posturas no dia-a-dia da realidade das cidades;
g) ampliação do saneamento urbano para todos, principalmente para as comunidades periféricas;
h) promoção do encontro e da vida compartilhada entre diferentes grupos que compõem o espaço urbano, fazendo florescer a diversidade em suas diferentes dimensões na concretude de um mesmo local, ao contrário de segregá-las em bairros populares, periferias e guetos;
i) difusão da expressão cultural das populações periféricas, combatendo o “racismo ambiental”;
j) promoção de formas compartilhadas de acesso e gerenciamento da habitação popular em oposição ao lobby dos interesses imobiliários urbanos;
l) ampliação da cultura de transparência, prestação de contas e controle social;
m) implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, sem que nenhuma concessão seja feita para dinâmicas empresariais ávidas por excluir os recicladores da riqueza gerada pelo lixo atualmente e por difundir tecnologias de incineração, comprovadamente desfavoráveis ao meio ambiente e a saúde humana.
Como vários caminhos levam ao desenvolvimento sustentável e como isso é quase que mudar tudo ao mesmo tempo agora e promover na Terra a “Cidade de Deus” de Santo Agostinho, pode-se começar com um passo de cada vez. Para tanto, é preciso que floresçam nas cidades não apenas o belo e contagiante espírito de indignação contra as mazelas das políticas públicas e da política no Brasil, mas também uma multiplicidade de organizações da sociedade civil, atuando nos múltiplos campos de promoção do desenvolvimento sustentável no espaço urbano, movidas por uma indignação que resulta em obras, ações, maiores e melhores debates, maiores e melhores dúvidas e controvérsias, que semeadas em solo democrático, podem levar a melhores formas de se bem viver nas cidades desde que sejam sempre regadas pelo compromisso com o interesse público.
 
PARA LER MAIS:
 
02/08/2012 - O que pode levar a uma cidade sustentável?
25/11/2013 - Sustentabilidade, muito além da questão ambiental, artigo de Gelma Reis
01/11/2013 - “Estado do Mundo 2013” pergunta: a sustentabilidade ainda é possível?
17/08/2011 - Para além do "desenvolvimento sustentável"
 
VEJA TAMBÉM:
 
Desenvolvimento sustentável: fundamentação teórico-prática. Revista IHU On-Line, Edição nº 203
A política na condução do desenvolvimento sustentável. Revista IHU On-Line, Edição nº 358
A incompatibilidade entre sustentabilidade, pobreza e miséria. Revista IHU On-Line, Edição nº 384
Rio+20: centrada no equilíbrio entre a sustentabilidade e a equidade. Revista IHU On-Line, Edição nº 384
Vale do Sinos inova em tecnologia e sustentabilidade. Revista IHU On-Line, Edição nº 328