quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Robert Kurz: A esquerda e a dialética sujeito-objeto do fetichismo moderno




Por: Patricia Fachin e Márcia Junges

Tradução Benno Dischinger e Walter O. Schlupp, 30/03/2009


Robert Kurz não faz concessões ao aproximar o pensamento pós-moderno com a ideologia neoliberal. Agora, diz ele, “a esquerda pós-moderna se depara com os destroços das suas ilusões e é confrontada com a dura realidade de uma crise monumental, a qual desde o começo ela não quis admitir e para a qual ela, por isso, não está preparada”. Incapaz de captar a “dialética sujeito-objeto do fetichismo moderno”, a esquerda caiu num “objetivismo tosco ou num subjetivismo igualmente tosco”. As ideias foram desenvolvidas na entrevista concedida por Kurz, por e-mail, à IHU On-Line.

O rótulo de ‘pós-modernidade’ era fajuto, argumenta, “e, no caso de Negri, desembocou no conceito totalmente vazio de ‘multidão’, que significa tudo e nada. O esvaziamento do sujeito tem seu correlato numa virtualização das lutas sociais, que em grande parte somente ainda têm caráter simbólico, sendo cada vez menos capazes de intervenção real”. Dessa forma, continua Kurz, “a esperança pelo ‘renascimento da política’ é a maior de todas as bolhas. Os danos provocados pela limitação política dos prejuízos serão inclusive maiores que a crise atual. O Estado somente ainda consegue regulamentar a morte definitiva do seu capitalismo. Neste aspecto, a esquerda também está desorientada enquanto não conseguir questionar os próprios fundamentos do sistema”. Se a esquerda quiser aproveitar “o bonde da administração estatista da crise” para iniciar suas reformas sociais, ela “acabará descarrilando junto com ele”, vaticina. “Ela bem que merece esse destino”.

Robert Kurz estudou Filosofia, História e Pedagogia. É cofundador e redator da revista teórica EXIT! — Kritik und Krise der Warengesellschaft (EXIT! — Crítica e Crise da Sociedade da Mercadoria). A área dos seus trabalhos abrange a teoria da crise e da modernização, a análise crítica do sistema mundial capitalista, a crítica ao Iluminismo e a relação entre cultura e economia. Publica regularmente ensaios em jornais e revistas na Alemanha, Áustria, Suíça e Brasil. Entre seus livros publicados em português, citamos O colapso da modernização (São Paulo: Paz e Terra, 1991), O retorno de Potemkin (São Paulo: Paz e Terra, 1994) e Os últimos combates (Petrópolis: Vozes, 1998).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - As atuais crises financeira e ecológica estão relacionadas com o “colapso da modernização”?

Robert Kurz -
O termo colapso é um chavão provocativo, geralmente usado em sentido pejorativo, no intuito de desqualificar como “apocalípticos”, que não devem ser levados a sério, os representantes de uma teoria radical da crise. Não só as elites capitalistas, mas também os representantes da esquerda preferem acreditar que o capitalismo pode renovar-se eternamente. É claro que um sistema social global não desmorona de uma hora para outra como um indivíduo infartado. Mas a era do capitalismo passou. Afinal de contas, a modernização não foi outra coisa senão a implementação e o desenvolvimento desse sistema, não vindo ao caso se os mecanismos eram do capitalismo privado ou do capitalismo estatal.

Apesar de todas as diferenças exteriores, o fundamento comum consiste na “valorização do valor”, isto é, na transformação de “trabalho abstrato" em “valor agregado”. Entretanto, esta não é uma finalidade subjetiva, mas um fim em si mesmo que acabou ficando independente. Tanto os capitalistas quanto os assalariados, assim como os agentes estatais, não passam de funcionários desse fim em si mesmo que se soltou e está incontrolável, o qual Marx chamou de “sujeito automático”. No caso, a concorrência universal força a uma dinâmica cega do desenvolvimento da capacidade produtiva, a qual constantemente gera novas condições de valorização para finalmente encontrar uma barreira histórica absoluta.

A barreira econômica interior consiste no fato de o desenvolvimento da força produtiva levar a um ponto em que o “trabalho abstrato” enquanto “substância” do “valor agregado” é tão reduzido, mediante racionalização do processo produtivo, que fica impossível aumentar o valor real [reale Verwertung]. Essa “dessubstancialização do capital” ou “desvalorização do valor” significa que os produtos em si deixaram de ser mercadoria, podendo ser representados em forma monetária como forma genérica de valor, limitando-se a ser meros bens de consumo. A finalidade da produção capitalista, porém, não é a fabricação de bens de consumo para satisfazer necessidades, e sim o fim em si próprio que é a valorização. Por isso, segundo critérios capitalistas, ao se alcançar a barreira econômica interna é preciso fechar a produção e, portanto, o processo vital da sociedade, mesmo que todos os meios estejam disponíveis.

Capitalismo virtual

Em termos reais, essa situação já havia surgido em meados dos anos 80, com a terceira revolução industrial. O capitalismo prolongou sua vida em forma “virtualizada”, por um lado, mediante endividamento historicamente sem precedentes (antecipação de valor agregado futuro, que na realidade jamais poderá ser resgatado); por outro lado, pelo inchaço, igualmente nunca visto, das assim chamadas bolhas financeiras (ações e imóveis). Esse pseudoacúmulo de capital monetário “desprovido de substância” foi usado para alimentar também a produção real de mercadorias.

Resultou daí uma conjuntura deficitária global com fluxos de exportação de mão única principalmente para os Estados Unidos. As zonas de processamento de exportação da China e da Índia, porém, não representam uma expansão real do “trabalho abstrato”, porque seu ponto de partida não foi poder de compra real, e sim o capital monetário “desprovido de substância” representado no endividamento e nas bolhas financeiras. Por mais de duas décadas se nutriu a ilusão de que o “crescimento tocado exclusivamente pelas finanças” seria viável. De forma alguma, o fim dessa ilusão consiste exclusivamente numa crise financeira. A decantada “economia real”, na verdade, há muito que já não é mais real, e sim foi alimentada artificialmente com bolhas financeiras “desprovidas de substância”. Agora o capitalismo é reduzido a seus reais fundamentos de valorização. A consequência é uma nova crise da economia mundial, sem que se vislumbrem novos potenciais reais de valorização.

Ao mesmo tempo, o capitalismo esbarra em sua limitação externa natural. Na mesma medida em que ficou supérfluo o “trabalho abstrato” enquanto transformação de energia humana em “valor agregado”, acelerou-se a expansão da aplicação tecnológica das energias fósseis (petróleo, gás). A dinâmica cega do desenvolvimento da capacidade produtiva não controlada socialmente levou, por um lado, ao previsível esgotamento dos recursos de energia fóssil e, por outro, à destruição do clima global e do meio ambiente natural, em grau igualmente previsível.

A barreira natural exterior e a barreira econômica interior apresentam horizonte temporal diverso. Ao passo que o final da real “valorização do valor” já se encontra no passado e a economia capitalista atravessa sua crise histórica agora, no espaço de poucos anos (grosso modo ao longo da próxima década), a barreira natural absoluta ainda se encontra no futuro (num período de no máximo duas a três décadas). A crise econômica e o concomitante fechamento de capacidades de produção refreiam o esgotamento dos recursos energéticos – às custas da crescente miséria social global na forma capitalista. Simultaneamente, porém, os processos de destruição das bases naturais e do clima apresentam tamanho avanço, que não chegam a ser detidos pela crise econômica, sendo que a barreira natural exterior será atingida apesar de tudo.

Destruição capitalista da natureza

O fim da modernização significa, portanto, que, além de ter que superar a forma capitalista da reprodução, durante muito tempo uma sociedade mundial pós-capitalista terá que sofrer e lidar com as consequências da destruição capitalista da natureza. Para a análise e crítica teórica da crise, é importante enxergar a interconexão interna das duas barreiras históricas do capitalismo. Existe, porém, o perigo de jogar um contra o outro esses dois aspectos da crise histórica; isto vale para ambos os lados: para as elites capitalistas bem como para os representantes de um “reducionismo ecológico”, que somente admitem a barreira natural exterior. A gestão capitalista da crise e o reducionismo ecológico poderiam entrar em aliança perversa, que redundaria em negar a barreira econômica e, em nome da crise ecológica, pregar às massas depauperadas e miseráveis uma ideologia da “renúncia social”. Contra isso, é preciso sustentar que a crise, a crítica e a superação da estrutura capitalista têm prioridade, porque a destruição da natureza é consequência, e não causa da barreira interior desse sistema.

IHU On-Line - Por que o senhor diz que o vexame da crise é também o vexame da esquerda pós-moderna?

Robert Kurz -
A crise não é nenhum vexame, mas um processo objetivo, resultante da dinâmica cega da concorrência e do desenvolvimento descontrolado da capacidade de produção. No que tange à esquerda pós-moderna, pode-se falar de vexame na medida em que descartou, em sua maior parte, a crítica da economia política. O “economismo” dos tradicionais marxistas de partido só foi criticado para eliminar de vez a objetividade negativa das categorias capitalistas de “trabalho abstrato” e “valorização do valor”. A dinâmica de crise inerente ao capitalismo passou totalmente despercebida, tendo sido traduzida para “possibilidades ilimitadas”. Tal como as elites neoliberais, a esquerda pós-moderna acreditava no “crescimento tocado a finanças” e se transformou na expressão ideológica do capital fictício. O virtualismo econômico foi complementado pelo virtualismo tecnológico da internet. O Second Life do espaço virtual sofreu a mutação de tornar-se a forma de vida “propriamente dita”, o suposto “trabalho imaterial” de Antonio Negri, acabou sendo a continuação da ontologia capitalista do trabalho.

O real problema de substância do “trabalho abstrato” foi negado; um “antissubstancialismo” ideológico (ou “antiessencialismo”) a contrastar com Marx denunciou esse problema de substância como mera metafísica de um pensamento ultrapassado, em vez de nele reconhecer uma “metafísica real” do capitalismo, a qual não deixa de ser bastante material. Concomitantemente, ocorreu uma orientação pela esfera da circulação. A ilusão financeira capitalista de que atos de compra e venda também poderiam gerar crescimento, como a real produção de mercadorias, também constituiu a premissa implícita do pensamento pós-moderno. O endividado sujeito de mercado e consumo aparecia como portador da reprodução e de uma possível emancipação, sendo que nem mais se podia dizer em que esta consistiria.

O falso virtualismo econômico e tecnológico teve seu correlato filosófico numa epistemologia que não mais queria criticar e superar a fetichista “aparência real” da relação de capital, mas seduzia para a crença de a pessoa poder “realizar-se a si própria” nessas condições. Seguindo as ilusões virtualistas, a “gaiola de ferro” (Max Weber) do sistema produtor de mercadorias foi redefinida como “ambivalência” e “contingência” abertas para tudo e a qualquer hora. Verdade, mesmo a verdade negativa da crítica, não teria mais base objetiva nas condições reinantes, mas podia ser “produzida” e “negociada”. Para a esquerda pós-moderna, a natureza negativa do capital se dissolvia numa indefinível “pluralidade” [“Vielfalt”, “diversidade”] de fenômenos, a qual se apresentaria como desconexa “pluralidade” de movimentos sociais, sem focalizar o âmago concreto do capital.

Pensamento pós-moderno e neoliberalismo

Em termos sociais, a esquerda pós-moderna foi um trendsetter da individualização e flexibilização capitalista. O flexi-indivíduo abstrato não foi reconhecido como forma do sujeito burguês em crise, mas recebeu o nimbo de antecipação da individualidade liberta já no seio do capitalismo. Em vez de aparecer como forma última de existência do mercado totalitário e como ameaçadora “guerra de todos contra todos” na concorrência universal da crise, a individualização aparecia como forma atomizada da “autorrealização”, e o “ser humano flexível” (Richard Sennet) se apresentava não como objeto indefeso ao sabor das imposições capitalistas, mas como seu próprio “soberano”, que poderia conquistar novos espaços e transformar a si próprio no que quisesse. A proximidade do pensamento pós-moderno para com a ideologia neoliberal sempre foi inquestionável, apesar dos contrastes exteriores. Agora a esquerda pós-moderna se depara com os destroços das suas ilusões e é confrontada com a dura realidade de uma crise monumental, a qual desde o começo ela não quis admitir e para a qual ela, por isso, não está preparada.

IHU On-Line - A esquerda de hoje vive uma crise existencialista? Antes de sugerir alternativas para as crises atuais, a esquerda mundial teria de resolver seus próprios impasses? Para o senhor, há atualmente um vazio teórico das esquerdas ou um “desencontro metodológico” na busca de bases comuns para uma teoria?

Robert Kurz -
A crise existencial da esquerda de hoje consiste justamente no fato de ela não ter conseguido transformar o marxismo e reformular a crítica da economia política dentro dos padrões do século XXI. Pois naturalmente não existe volta para os paradigmas de uma época passada. O rótulo de “pós-modernidade” era fajuto, porque a real transformação social do capitalismo não inaugurou novos espaços sociais, mas justamente marcou a transição para sua ruína histórica. Nem o fim do antigo movimento operário nem o naufrágio do “socialismo real” foram digeridos criticamente. A transição pós-moderna não superou o marxismo tradicional, apenas lhe deu continuidade numa forma esvaziada. Enquanto desaparecia totalmente de vista o objetivo socialista e se dissolvia aquela falsa “pluralidade” de aspirações meramente particulares, o paradigma da “classe operária” se transformou numa insustentável multidão de sujeitos sociais postiços; no caso de Negri, desembocou no conceito totalmente vazio de “multidão”, que significa tudo e nada. O esvaziamento do sujeito tem seu correlato numa virtualização das lutas sociais, que em grande parte somente ainda têm caráter simbólico, sendo cada vez menos capazes de intervenção real.

Caracterizar essa situação com “impasses” da esquerda é um eufemismo. A esquerda antiga tanto quanto a pós-moderna acabaram. Não existe mais sujeito ontológico do “trabalho”, porque o “trabalho” acabou revelando ser substância histórica do capital e ficou obsoleto. Com isto, também o paradoxal conceito marxista de “sujeito objetivo” em si, que somente precisaria chegar “a si”, está liquidado em termos históricos e não pode ser continuado em sucedâneos. Neste aspecto, o “vazio teórico” da esquerda é idêntico com o “desencontro metodológico”. A esquerda nunca conseguiu captar a dialética sujeito-objeto do fetichismo moderno. A consequência foi cair num objetivismo tosco ou num subjetivismo igualmente tosco. A oscilação entre esses dois pólos do fetichismo perfaz boa parte das discussões de esquerda que não conseguiram deixar para trás essa polaridade.

Sujeitos paradoxais

Para um novo movimento social emancipatório o que importa não é mais despertar pelo beijo um “sujeito objetivo”, mas fazer uma crítica da forma sujeito, sem salvaguarda ontológica, e interpretá-la como forma de existência capitalista. A forma “sujeito” sempre só pode ser um agente do “sujeito automático” da valorização do capital e não pode ser confundida com a vontade para a ação emancipatória, a qual precisa constituir-se a si própria e não pode ter fundamento ontológico. Isto é algo difícil de ser pensado, porque justamente a esquerda pós-moderna desistiu da crítica do sujeito (o Foucault tardio voltou a apelar para o sujeito particularizado). Essa crítica fracassou principalmente por não estar conectada com a crítica da economia política.

Este problema também está ligado à crítica da moderna relação entre os gêneros. É verdade que a esquerda tradicional e também a esquerda pós-moderna fez suas mesuras obrigatórias perante o feminismo, mas nunca levou realmente a sério a sua temática. Também o próprio feminismo, apesar de meritórias análises, em grande parte limitou-se a definir as mulheres como “sujeito objetivo” tão paradoxal quanto a “classe operária”. O postulado de uma "formação de sujeito" feminina, por isso, leva ao mesmo beco sem saída. Também o feminismo foi vitimado pela transição pós-moderna e dissolveu a forma de existência feminina “divergente” [“abgespalten”] no capitalismo numa “diversidade” de aspirações emancipatórias particulares que não tangem o problema central.

Também aí seria importante mediar a crítica do patriarcado moderno com a crítica da economia política, e não tratá-la como questão “derivada” [“abgeleitet”], secundária. No caso, é fundamental a noção de que as categorias aparentemente neutras do capital e a respectiva forma “sujeito” em si já são “masculinas”, e que a “razão” capitalista é androcêntrica na origem. A dissolução da família tradicional e dos respectivos papéis de gênero nada altera no caso, porque o caráter androcêntrico do capitalismo continua de outra forma. A crítica dessas formas sociais e a crítica da relação capitalista dos gêneros condicionam-se mutuamente e precisam ser pensadas em conjunto.

A crítica do “sujeito objetivo” do “trabalho” e da existência feminina “divergente” não é jogo de palavras, mas tem consequências práticas enormes para a superação do capitalismo. Acontece que desse modo também ficou liquidada a noção do marxismo antigo de emancipação social e de socialismo “dentro” das categorias capitalistas que somente teriam que ser reguladas e moderadas de outra forma. No limite histórico do capitalismo, levanta-se o desafio da “crítica categorial” da conexão entre “trabalho abstrato”, forma de mercadoria e “valorização do valor” bem como da relação entre os sexos neste contexto. Isto também é difícil de ser pensado, porque essas condições existenciais estão interiorizadas, tendo sido inclusive firmadas ainda mais pelo pensamento pós-moderno. Somente a formulação de novo objetivo socialista sobre a base de uma “crítica categorial” pode levar ao desenvolvimento de exigências de transição imanentes que também sejam adequadas no processo da crise histórica, assim obtendo real poder de se impor. Sem o foco unificador sobre o âmago do capitalismo, movimentos sociais permanecem indefesos e particularizados. É de se temer, entretanto, que a esquerda, pega de surpresa pela crise, acabe confiando em concepções demasiado tacanhas de suposta “salvação”, assim apenas ratificando sua impotência histórica.




IHU On-Line - Em que sentido a conjuntura atual tem contribuído para que a política se torne um modelo em extinção? Podemos dizer que a economia “colonizou” a política? Está se repensando a política a partir do que está acontecendo atualmente?

Robert Kurz -
A política centrada no Estado como instância sintetizadora do capitalismo está saindo de linha não por ter sido colonizada pela economia, mas por ter fracassado, há muito, em função de suas próprias premissas. O problema não tem a ver apenas com a condição exterior da globalização do capital, a qual rompeu os espaços de economia nacional. A força reguladora do Estado se extingue principalmente pelo fato de substancialmente nada mais haver para ser regulado. A valorização capitalista nas formas de “trabalho abstrato” de dinheiro sempre já tem constituído a premissa do Estado, a qual ele não consegue contornar. Quando o capital se desvaloriza pelo seu próprio desenvolvimento de capacidade produtiva, o Estado somente consegue reagir a isso mediante inflacionária emissão de dinheiro pelo seu banco central. Isto não supera a falta de substância do capital virtualizado, mas a exacerba como desvalorização do veículo-fim-em-si-mesmo chamado dinheiro. Ocorre que a competência do banco central é puramente formal; sua geração de dinheiro somente pode dar expressão à produção substancial de valor agregado mediante “trabalho abstrato”, mas não consegue substituí-la.

Os limites do crédito estatal já haviam sido alcançados no final dos anos 1970. Naquela época, a expansão do crédito estatal, desprovida de substância, foi punida por surtos inflacionários. A ilusão do neoliberalismo consistiu no fato de atribuir a inflação exclusivamente à atividade do Estado. A desregulamentação neoliberal somente transferiu o problema do crédito estatal para os mercados financeiros. Embora a punição da inflação ficasse protelada por causa do caráter transnacional da economia de bolhas financeiras, o potencial inflacionário começou a manifestar-se na conjuntura deficitária global até 2008. Esse processo, num primeiro momento, foi interrompido porque desde então o capital virtual e com ele a conjuntura mundial estão dando seu último suspiro. Mas se agora o Estado é novamente invocado como “última instância” e deus ex machina, seus pacotes conjunturais e de salvação novamente terão que provocar a desvalorização do próprio dinheiro; só que isso acontecerá numa fase de desenvolvimento mais elevada e em proporção muito maior que trinta anos atrás.

Renascimento da política

Neste cenário, a esperança pelo “renascimento da política” é a maior de todas as bolhas. Os danos provocados pela limitação política dos prejuízos serão inclusive maiores que a crise atual. O Estado somente ainda consegue regulamentar a morte definitiva do seu capitalismo. Neste aspecto, a esquerda também está desorientada enquanto não conseguir questionar os próprios fundamentos do sistema. Na mesma medida em que a suposta “autonomia” dos movimentos sociais particulares e simbólicos vira fumaça pela barreira interior da valorização, é de se temer que a esquerda sofra uma regressão para o seu tradicional estatismo, porque nada mais lhe ocorre. Já agora a maior parte daquilo que pretende ser crítica social de esquerda praticamente não passa de um pouquinho de nostalgia keynesiana. Se é que a esquerda espera lançar suas “reformas sociais” aproveitando o bonde da administração estatista da crise, ela acabará descarrilando junto com ele e, uma vez passado seu carnaval no virtualismo, ela se tornará um trendsetter da política inflacionária. Ela bem que merece esse destino.

IHU On-Line - Que outras forças de esquerda podem surgir nesse momento?

Robert Kurz -
Se fracassar a esquerda global presa nas categorias capitalistas, a gente naturalmente ficará se perguntando onde é que há outras forças de emancipação social. Com certeza haverá rebeliões e conflitos sociais quando as pessoas ficarem privadas de suas condições básicas de vida, por mais precárias que sejam. Essas erupções também podem tomar o rumo da direita, manifestando-se como sexismo, racismo, antissemitismo e nacionalismo, embora isso não tenha a menor chance de superação reacionária da crise. Também ocorrem levantes sociais espontâneos que se entendem vagamente como esquerdistas, como se pode observar na Grécia faz alguns meses. Esses vândalos juvenis a reagir visceralmente contra a opressão das necessidades vitais já estão sendo mitificados por alguns esquerdistas, que os usam contra a necessária transformação teórica.

Mas o culto da espontaneidade sempre passou vexame. As revoltas espontâneas da juventude, por mais organizadas que sejam, darão em nada, se não puderem adquirir uma noção crítica da situação em termos condizentes com a época. Por isso não existe alternativa, senão desenvolver nova meta socialista por meio de uma crítica categorial que não pode ficar vinculada ao “falso caráter imediato” da práxis espontânea. É preciso aguentar essa tensão para que a emergente resistência social não morra sufocada em seu próprio palavreado a campear “filosofia de vida”.

IHU On-Line - O senhor diz que a sociedade mundial precisa se libertar do jogo do economismo real e organizar seus recursos de uma nova forma, além do Estado e do mercado. Nesse sentido, como a esquerda pode desenvolver um trabalho revolucionário e mudar a atual conjuntura? Quais seriam, neste caso, as propostas da esquerda diante da crise financeira internacional?

Robert Kurz -
É preciso salientar que é justamente a sociedade que precisa ser libertada globalmente do economismo real do capital. É verdade que uma nova forma de reprodução somente pode ter êxito mais além do mercado e do Estado. Nos últimos anos, essa fórmula foi cada vez mais usada no sentido de ser apenas uma economia alternativa cooperativista, por assim dizer “ao lado” da síntese social pelo capital, e a qual de alguma maneira haveria de se ampliar aos poucos. Isto apenas dá continuidade ao particularismo “colorido” pós-moderno. Entretanto, a formação negativa de sociedade [negative Vergesellschaftung] do capitalismo somente pode ser superada por inteiro, ou não será superada. A economia alternativa cooperativista já tem um longo histórico e sempre fracassou, da última vez nos anos 1980.

Esta crise de proporções históricas não melhora as condições para semelhantes ideias, muito pelo contrário. Isto porque uma reprodução “alternativa” restrita a um espaço pequeno não só está vinculada a imposições sociais inconfessas, mas também fica na dependência das funções de mercado e Estado, uma vez que por conta própria só consegue satisfazer poucas necessidades vitais. E a reprodução real dos indivíduos fica inserida num encadeamento que Marx, sob condições capitalistas, chamou de “trabalho social total”. Essa estrutura somente pode ser transformada por inteiro; não se pode começar com batatas ou software e achar que se criou um “modelo” em escala reduzida, que só precisaria ser aplicado à sociedade como um todo. O “platonismo de modelo” é produto da teoria econômica burguesa, não da crítica radical.

Quando, em plena crise, por falta de “financiabilidade”, se desligam água e luz, quando entram em colapso a assistência médica e a distribuição capitalista de gêneros alimentícios, então o que está em pauta não é o gradativo “entrar em rede” de comunas que pretendem reformar a vida, ou a “formação de rede” de permuta virtual, e sim a transformação do modo capitalista de “formação de rede” de toda a sociedade. Para tanto, é necessária a resistência organizada de toda a sociedade contra a administração da crise que estipula metas próprias em nível de síntese social.


Robert Kurz


Economia solidária como placebo

Daí só desviam a atenção os placebos particularistas tipo “economia solidária”, que geralmente consistem numa mixórdia de economia de subsistência, “reformas monetárias” ilusórias e abstrata ideologia comunitária. Querem fazer da urucubaca uma bênção. É muito coerente que essas propostas também fiquem namorando com “soluções para a crise financeira” e se aliem à nostalgia keynesiana. Não existe mais solução para a crise financeira; deve-se atacar o próprio critério de “financiabilidade”, se é que se pretenda levar a sério um novo modo de reprodução que vá além do mercado e do Estado.

IHU On-Line - Considerando que estamos na era da informação e vivendo a crise do capital, que novos rumos vão compor o mundo do trabalho no que se refere à relação capital/trabalho? Considerando a inserção de novas tecnologias na sociedade atual, mas também as atuais crises, é possível pensar em desglobalização na era da informatização? Podemos pensar assim em uma nova economia mundial?

Robert Kurz -
A informática enquanto base da terceira revolução industrial justamente gerou o desenvolvimento da capacidade produtiva que necessariamente tinha que levar à barreira interior do capitalismo. Sob condições capitalistas, trata-se de pura “tecnologia da crise”, que só mais além da valorização poderia desenvolver potenciais positivos. A ilusão pós-moderna e do capitalismo financeiro consistia em que a informática implicaria novas formas do “trabalho imaterial”, numa assim chamada sociedade da informação, bem como novas relações entre capital e trabalho, com maior “autodeterminação” dos trabalhadores. Na verdade, a “era da informação” já no passado levou ao desemprego em massa, ao subemprego e à precarização das relações de trabalho. Já a suposta autodeterminação levou a uma compulsiva “autorresponsabilização” dos indivíduos pelo processo de valorização. Antonio Negri pretendia estilizar essa evolução negativa como opção para uma “autovalorização autônoma” (autovalorisazzione). Esta acabou virando um chavão para a administração repressiva do trabalho, a qual a transformou na proposta de definir os indivíduos como “autoempresários da sua força de trabalho” e como “gestores do seu próprio capital humano”, a fim de deixá-los totalmente à mercê das condições do capitalismo em crise. A nova crise exacerbaria dramaticamente essas tendências e desmentiria de uma vez por todas as tentativas de tentar enxergar na forma capitalista da sociedade da informação uma “ambivalência” com potencial emancipatório. A metafísica pós-moderna da ambivalência está esgotada.

A globalização não pode ser reduzida à tecnologia da informação. Sob condições capitalistas ela somente poderia ser uma globalização do capital, sob cujo mando também se encontra a informação. É de se esperar que, com a política inflacionária do Estado, o processamento da crise leve a uma “desglobalização” na medida em que se ensaie a retirada para o egoísmo protecionista das economias nacionais, que somente ainda são formais; tudo isso acompanhado de ideologias neonacionalistas. Só que isto não pode superar a crise, apenas a agrava. Também é de se perguntar se a internet é sustentável – não por causa de um possível colapso tecnológico (embora também aí haja indícios de esgotamento da capacidade) -, mas porque ela depende de uma formidável infraestrutura, cuja “financiabilidade” está tão em dúvida quanto todo o resto. Uma globalização meramente virtual não é sustentável, caso não esteja ligada à reprodução material transnacional mais além do capitalismo. As maritacas da blogosfera e os bitolados freaks da internet ainda podem levar um baita susto.

IHU On-Line - Como se pode falar em ética nos moldes atuais da sociedade capitalista?

Robert Kurz -
Em todas as formações fetichistas históricas, ética não passou de uma tentativa de conviver socialmente com as condições de reprodução dadas, pressupostas às cegas, sem superá-las. Mesmo a ética burguesa moderna pretende resolver contradições e crises sem tocar nas causas constitutivas. Nela, o lugar da crítica radical deve ser assumido por um cânon de normas de conduta moral para os indivíduos, para que dentro das formas existentes a pessoa possa ficar nice para as outras. O que pode falhar não é o sistema, mas apenas a moral dos indivíduos. A crise atual, aliás, também tem sido atribuída aos déficits éticos dos banqueiros e executivos. Não é por acaso que o “pacote de resgate” de maior volume está na ética, que, para variar, está em alta. Infelizmente esse pacote está totalmente oco. O “sujeito automático” não está acessível para quaisquer imperativos éticos; ética, portanto, é mais ou menos a última coisa com que a teoria crítica deveria ocupar-se.