"Como é possível que a civilização engendrada pelo pensamento científico possa ter desaguado numa ignorância tão assombrosa, enquanto a outra, que preferiu se resguardar no pensamento mítico, conseguiu produzir fartura de proteínas, carboidratos e exuberância metafísica?", pergunta Luiz Bolognesi, roteirista de "Bicho de Sete Cabeças" e diretor de "Uma História de Amor e Fúria", em artigo publicado na Folha de S. Paulo, 23-02-2014.
Eis o artigo.
"Meio copo de água é mais caro que a garrafa de uísque escocês. É por isso que a água do aquífero guarani, a maior reserva subterrânea do planeta, já não cai na torneira do brasileiros. É vendida pela Aquabrás a peso de ouro nas plantações de etanol e exportada para o mundo inteiro. Quanto mais diminui a calota polar, mais disparam as ações da Aquabrás. Enquanto isso, o pessoal lá embaixo está bebendo água do mar infectada com lixo industrial."
Esse é o depoimento do jornalista João Cândido na parte final do filme "Uma História de Amor e Fúria". Ele está no alto de um condomínio vertical no Rio de Janeiro em 2.096. O presidente da República, pastor Armando, acaba de declarar que só a fé do povo pode trazer chuva, enquanto um rali é realizado no deserto da Amazônia e um grupo de guerrilheiros explode o braço do Cristo Redentor, exigindo água para todos.
Ouvi algumas vezes que o roteiro do filme seria criativo. Discordo. Infelizmente, ele tem muito mais a ver com pesquisa e capacidade dedutiva do que com criatividade.
Na outra ponta do filme - lá no começo -, ouvimos um pajé conversando com um guerreiro tupinambá na aldeia deles, em frente ao Pão de Açúcar, numa noite de lua cheia. Eles acabam de presenciar a chegada de franceses que se instalaram onde é hoje a ilha do Governador. Os recém-chegados estão propondo ao cacique trocar anzóis por peixes e machados por toras de pau brasil. Ouvimos o pajé dizer: "Essas trocas não nos interessam. Você tem que deter o cacique. Ou esta terra será dominada por Anhangá, o deus das trevas. Florestas vão desaparecer. As águas vão ficar podres e infectadas com o veneno da serpente. Animais e homens vão morrer de sede". O guerreiro tupinambá ouve achando que há certa dose de exagero. Imagina, florestas desaparecerem, água ficar envenenada...
Entre as duas pontas do filme, estamos nós. Eu e você. Hoje. Guerreiros, sem saber. Presenciando nosso próprio definhamento sem nos darmos conta porque desaprendemos a ouvir as vozes do passado. E como diz o jornalista João Cândido, "viver sem conhecer o passado é andar no escuro". Se estivéssemos um pouco mais atentos, minimamente de olhos abertos, deveríamos estar comprometidos até o último fio de cabelo com as campanhas de desmatamento zero e os projetos de recuperação de mata ciliar, áreas de nascentes e recursos hídricos.
Não vi os fazendeiros da soja, cana ou gado refletindo sobre esse problema, que vai arruinar o negócio deles quando o oceano de nuvens que desce da Amazônia parar de dar as caras. Tampouco vi "black bloc" empunhando cartaz sobre o tema.
Mas li neste jornal que quase 150 municípios do Estado estão fazendo racionamento de água e os mananciais estão com níveis perigosamente baixos. Um taxista, essa espécie de pajé que nos cabe, me disse outro dia, de modo lacônico: "Nesse inverno, o pessoal vai se estapear por causa de água". Ai, ai, ai.
A palavra córrego numa aldeia kraó que visitei designava um pequeno braço de água cristalina que corre sobre um chão de areia branca e quente entre árvores frondosas, onde todos tomam banho na hora do pôr do sol, contando piadas sobre as coisas que aconteceram durante o dia. O que a palavra córrego designa em São Paulo, Rio, Recife ou qualquer outra cidade do país?
Como é possível que a civilização engendrada pelo pensamento científico possa ter desaguado numa ignorância tão assombrosa, enquanto a outra, que preferiu se resguardar no pensamento mítico, conseguiu produzir fartura de proteínas, carboidratos e exuberância metafísica?
Se optamos pela ciência, não deveríamos ao menos fazer uso dela? Cientistas afirmam aos quatro ventos que o regime de chuvas na América do Sul depende do oceano de nuvens que se forma sobre a Amazônia. Não seria prudente para a sobrevivência da nossa espécie adotarmos imediatamente uma política de desmatamento zero? Ou vamos permitir que essa tragédia anunciada seja o futuro dos nossos filhos?