quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

O último grito de André Gorz


Antes de morrer, o filósofo André Gorz transmitiu, via fax, um texto, com a data de 17-09-2008, para a revista ÉcoRev’ um longo artigo intitulado O trabalho na saída do capitalismo.

Segundo Jean-Claude Guillebaud, autor de inúmeros livros, vários deles traduzidos para o português como A Tirania do Prazer e A Reinvenção do Mundo :


“O texto que André Gorz enviou via fax, no dia 17 de setembro, para a revista ÉcoRev’ é magnífico pela sua gravidade e da grande capacidade de visão ampla e profunda. Longe de se imiscuir com bravatas políticas e frivolidades do momento, Gorz manifesta seu espanto de ver o capitalismo (ele ousa empregar esta palavra) se tornar cada vez mais imperioso e conquistador à medida que ele é minado, desde o seu interior, pro uma lógica irracional”.
No ano passado, a editora Bertrand Brasil traduziu e publicou o seu livro A Força da Convicção.

Por isso, introduzo o último texto de Gortz com o artigo de Jean-Claude Guillebaud, que foi publicado pela revista francesa La Vie, no, 3253, 03-01-2008 (Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=12012)

Guillebaud cita o texto de Gorz:
“Pelo seu próprio desenvolvimento, o capitalismo chegou a um limite tanto interno quanto externo que ele é incapaz de superar. Trata-se, portanto, de um sistema que sobrevive de subterfúgios para escapar da crise das suas categorias fundamentais: o trabalho, o valor, o capital”.

Guillebaud continua:

“Falando do “limite”, Gorz designa a corrida à produtividade do capital investido, à pressão ilimitada sobre os salários, as condições de trabalho e o meio ambiente. Esta corrida, absurda desde o seu início, traz consigo fenômenos explosivos como o crescente endividamento, a financeirização da economia mundial, o aparecimento das ‘bolhas’ financeiras cuja imaterialidade ameaça o sistema planetário de derrocamento. Uma tal “loucura” em movimento favorece uma instabilidade mundial geradora de violências terroristas, guerras larvares, desesperança social.
“O decrescimento, escreve Gorz, é portanto um imperativo para sobreviver. Mas ele supõe uma outra economia, um outro estilo de vida, uma outra civilização, outras relações sociais”.

“É preciso ter presente que este texto, fortemente argumentado – escreve Guillebaud – foi redigido antes que aparecessem, especialmente nos EUA, os sinais anunciadores de uma depressão financeira que faz com que muitos analistas evoquem, sombriamente, a possível reedição da crise de 1929”.

Para Jean-Claude Guillebaud, o artigo de Gorz, “é uma mensagem essencial. Ela lembra a mensagem de do filósofo Edmund Husserl (1859 – 1938) que, em 1935, num texto prodigioso – mas pouco lido na época! – falava do medo de ver a Europa cair no ceticismo, no nihilismo e na barbárie. Alguns textos precisam ser lidos por nós com muita atenção. E com respeito”.






O trabalho na saída do capitalismo


Por: André Gorz



(OBS: A página eletrônica Rue89, publicou um extrato do texto que segue abaixo.)



A questão da saída do capitalismo nunca foi tão atual. Ela se põe em termos e com uma urgência de uma radical novidade. Por causa do próprio desenvolvimento, o capitalismo atingiu um limite tanto interno quanto externo que ele é incapaz de ultrapassar e que faz com que seja um sistema que sobrevive por meio de subterfúgios à crise das suas categorias fundamentais: o trabalho, o valor, o capital.


A crise do sistema se manifesta no nível macro-econômico como também no nível micro-econômico. Isso se explica principalmente pela mudança tecnocientífica que introduz uma ruptura no desenvolvimento do capitalismo e arruína, por seus repercussões a base do seu poder e sua capacidade de se reproduzir. Tentarei de analisar esta crise, em primeiro lugar, sob o aspecto macro-econômico e, depois, nos seus efeitos sobre o funcionamento e a gestão das empresas.


1.- A informação e a robotização permitiram introduzir quantidades crescentes de mercadorias com quantidades decrescentes de trabalho. O custo do trabalho por unidade de produto não cessa de diminuir e o preço dos produtos tende a baixar. Quanto mais a quantidade de trabalho para uma determinada produção diminui, mais o valor produzido por trabalhador – sua produtividade – deve aumentar para que a massa de lucro realizado não diminua. Tem-se, assim, este aparente paradoxo que quanto mais aumenta a produtividade, tanto mais é necessário que ela aumente para evitar que o volume do lucro não diminua. A corrida em busca da produtividade tende assim a acelerar, os efetivos empregados tendem a ser reduzidos, a pressão sobre o pessoal endurece, o nível e a massa dos salários diminui. O sistema evolui para um limite interno onde a produção e o investimento na produção param de ser muito rentáveis.
Os índices atestam que este limite foi atingido. A acumulação produtiva do capital produtivo não para de regredir. Nos EUA, as 500 empresas do índice Standard & Poor’s dispõem de 631 bilhões de reservas líquidas; a metade dos lucros das empresas americanas provém dos mercados financeiros. Na França, o investimento produtivo das empresas do CAC 40 não aumenta mesmo quando os lucros explodem.


A produção não sendo mais capaz de valorizar o conjunto dos capitais acumulados, uma parte crescente destes conserva a forma de capital financeiro. Uma indústria financeira se constitui que não pára de afinar a arte de fazer dinheiro não comprando nem vendendo nada além das diversas formas de dinheiro. O dinheiro mesmo é a única mercadoria que a indústria financeira produz por meio de operações, nos mercados financeiros, cada vez mais arriscadas e cada vez menos controláveis.


A massa de capital que a indústria financeira drena e gera ultrapassa de longe a massa de capital que valoriza a economia real (o total dos ativos financeiros representa 160 trilhões de dólares, ou seja, quatro vezes mais do que o PIB mundial). O “valor” deste capital é puramente fictício: ele repousa, em grande parte, sobre o endividamento e o “good will”, isto é, sobre as antecipações: a Bolsa capitaliza o crescimento futuro, os lucros futuros das empresas, a alta futura dos preços imobiliários, os ganhos que poderão ser gerados pelas reestruturações, pelas fusões, concentrações, etc. As Bolsas se enchem de capitais e de seus rendimentos futuros e as famílias são incitadas pelos bancos a comprar (entre outros) as ações e os certificados de investimento imobiliário, a acelerar, desta maneira, a alta da Bolsa, a emprestar dos bancos somas crescentes à medida que aumenta o capital fictício da Bolsa.


A capitalização da antecipações do lucro e do crescimento anima o endividamento crescente, alimenta a economia com liquidez devido à reciclagem bancária da mais-valia fictícia, e permite aos EUA um ‘crescimento econômico’ que, fundado sobre o endividamento interno e externo, é, de longe, o principal motor do crescimento mundial (inclusive do crescimento chinês). A economia real torna-se, assim, um apêndice das bolhas especulativas mantidas pela indústria financeira. Até o momento, inevitável, em que as bolhas estouram, levando os bancos à bancarrota em cadeia, ameaçando com o colapso o sistema mundial de crédito, a economia real de uma depressão severa e prolongada (a depressão japonesa dura já quase quinze anos).
Tem-se acusado a especulação, os paraísos fiscais, a opacidade e a falta de controle da indústria financeira (particularmente os hedge funds), a ameaça de depressão, ou seja, o derrocamento que pesa sobre a economia mundial não é devido à falta de controle; ele se deve à incapacidade do capitalismo se reproduzir. Ele não se perpetua e somente funciona sobre bases fictícias cada vez mais precárias. Pretender redistribuir por meio da imposição as mais-valias fictícias das bolhas precipitaria o que a indústria financeira quer evitar: a desvalorização da massa gigantesca dos ativos financeiros e a derrocada do sistema bancário.


A “reestruturação ecológica” irá agravar ainda mais a crise do sistema. É impossível evitar uma catástrofe climática sem romper radicalmente com os métodos e a lógica econômica que reinam há 150 anos. Se se prolonga a tendência atual, o PIB mundial será multiplicado por 3 ou 4 vezes, de hoje até o ano 2050. Ora, segundo o relatório do Conselho sobre o clima da ONU, as emissões de CO2 deverão diminuir em 85% até 2050 se se quer limitar o aquecimento climático em 2º C, no máximo. Além dos 2º, as conseqüências serão irreversíveis e não controláveis.


Portanto, o decrescimento é um imperativo de sobrevivência. Mas ele supõe uma outra economia, um outro estilo de vida, uma outra civilização, outras relações sociais. Na sua ausência, o derrocamento só será evitado impondo restrições, racionamentos, alocações autoritárias de recursos característicos de uma economia de guerra. A saída do capitalismo, portanto, se dará de uma ou outra maneira, de modo civilizado ou bárbaro. A questão é somente de que forma se dará esta saída e qual a cadência com que vai se dar.


A forma bárbara nos já é familiar. Ela prevalece em várias regiões da África, dominadas por chefes de guerra, pela pilhagem das ruínas da modernidade, os massacres e tráficos de seres humanos, tendo como pano de fundo a fome. Os três Mad Max eram relatos antecipatórios.
Uma forma civilizada de saída do capitalismo, ao contrário, raramente é analisada. A evocação da catástrofe climática que ameaça conduz geralmente a propor uma necessária ‘mudança de mentalidade”, mas a natureza desta mudança, suas condições de possibilidade, os obstáculos a serem superados parecem sufocar a imaginação.


Propor uma outra economia, outras relações sociais, outros modos e meios de produção e modos de vida é visto como algo ‘irrealista’, como se a sociedade da mercadoria, do assalariamento e do dinheiro fosse impossível de ser superada. Na realidade, uma multidão de índices convergentes sugerem que esta superação já iniciou e que as chances de uma saída civilizada do capitalismo dependem antes de tudo da nossa capacidade em distinguir as tendências e as práticas que anunciam a possibilidade.


2.- O capitalismo deve a sua expansão e a sua dominação ao poder que ele tomou, em um século, sobre a produção e, ao mesmo tempo, sobre o consumo. Ao expropriar, primeiramente, os operários dos seus meios de produção e dos seus produtos, ele foi assegurando, progressivamente, o monopólio dos meios de produção e a possibilidade de subsumir o trabalho. Ao especializar, dividir e mecanizar o trabalho nas grandes fábricas, ele fez dos trabalhadores os apêndices das megamáquinas do capital. A apropriação dos meios de produção pelo produtores se tornou impossível. Eliminando o poder daqueles sobre a natureza e a destinação dos produtos, ele garantiu ao capital o quase-monopólio da oferta, portanto o poder de privilegiar em todos os domínios as produção e o consumo mais rentáveis, como também o poder de fomentar o gosto e os desejos dos consumidores, a maneira pela qual ele satisfariam as suas necessidades. É este poder que a revolução informacional começa a romper.