quarta-feira, 25 de junho de 2008

O vagar voluntário


(OU DESCOBRIR A MEDITAÇÃO NATURAL EM SUA PRÓPRIA VIDA)

Lama Surya Das


Extrato do livro: ÉVEILLEZ VOTRE SPIRITUALITÉ
As sabedorias orientais do cotidiano
[págs 370-373]
Tradução ao português: Karma Tenpa Dhargye




A mente natural ou inteligência primordial instrui-nos nos instantes em que somos sinceros conosco. De tais ocorrências aparecem instantes que chamaremos de "vagar consciente". Esses vagares dão-nos uma percepção de nosso estado idílico natural, estado que existe agora em nós, e não que deva ser insuflado do exterior.

Eis um exemplo de vagar consciente: a contemplação de um lago, do mar, de um rio, de uma floresta, de um jardim ou do oceano. Alguns se dirão surpresos se digo ter um pendor por uma aspiração natural e instintiva à paz, ao espaço, à solidão e à uma forma natural de suavidade contemplativa. Um matemático, amigo de meu irmão, aficionado por passar longas horas, à noite, na sua banheira compulsando folhas cobertas de equações, empilhadas sobre uma estante articulada. Indo ao correio, me acontece freqüentemente aperceber-me de uma mulher passeando um enorme cão. Um e outro parecem igualmente felizes. O vagar consciente não se parece em nada com uma fuga diante de suas responsabilidades ou de suas preocupações. Seria antes o inverso. O símbolo escolhido por Thich Nhat Hanh para sua ermida no sul da França é uma rede, a qual, melhor que qualquer outra coisa, ilustra a palavra "vagar".

Podemos vagar sós ou acompanhados. "Vamos fazer um passeio", dizemos a um amigo. Depois partimos, sem destino preciso. "Creio que há um concerto no parque. Proponho irmos escutar um pouco de música, a menos que prefiras um passeio de bicicleta". Vagar, é deixar-se levar pela corrente dos acontecimentos, é autorizar-se à vagabundagem espiritual, sentar-se numa espreguiçadeira e olhar o desfile das nuvens. O segredo inerente a uma tal prática caracteriza-se por um renunciar, um abandono à sua natureza confiante. Não é uma grande ocupação, pois que tudo irá bem.

Em que o vagar consciente é uma prática espiritual? Perguntariam vocês. Ela é o que favorece o contato com nossa natureza profunda, com o caractere inato de nossa existência. Permanecer um só minuto sem querer fazer o menor gesto, sem ter o menor pensamento, eis o que substitui a disciplina espiritual. Isso nos impregna da mente do momento, expressão espontânea de nossa unicidade. Estamos no lugar certo e no momento certo, sem que nada seja requerido de nossa pessoa.

Para um Ocidental, isso seria um grande salto para frente ao ver em uma tal espontaneidade um instante de espiritualidade, uma união com o sagrado. Sobre a veracidade de que essa mente natural seja a mente búdhica, o mestre Dzogchen Kongtrul Rinpoche declara: "Isso parece muito bom para ser verdadeiro, também recusamos acreditar. O fenômeno parece-nos tão familiar que nós o ignoramos, tão evidente que nem o notamos. Paradoxalmente, não podemos acessá-lo, porque somos aí como estrangeiros".

Esses mestres Dzogchen afirmam também que esse truísmo ilustra a maneira mais pessoal de nos reaproximar de nossa verdadeira natureza e da perfeição. Entretanto, convém para cada um descobrir por nós mesmos os vagares conscientes que nos sejam próprios. É a maneira natural de reencontrar nosso Budha interior.

Ao final de um retiro Dzogchen, em Santa Rosa, uma praticante trouxe um poema sobre a busca de seu modo de meditação natural. Achei que é um eloqüente reflexo da sabedoria inata, quanto à maneira de ser durante as meditações naturais.



eu Nunca não soube

Põe tua mochila às costas.

Alonga-te na relva verde

Puxa para ti a abóbada celeste.

Entrega-te ao repouso.

Tantos anos do dharma a prática,

As costas retas, aplicada, voltada para a iluminação

Hoje, nada além do flanco da colina.

Alonga-te na relva verde,

Deixa a terra te levar,

Pegadas de gamos, bosta de cavalo,

E o olho no interior do olho móvel e luminoso.

Eu nunca não soube.

Não me disseram nunca?

Lembro-me de meu mestre zen, na sala de entrevistas:

"Tenha fé em ti, disse-me. Seja somente você mesma".

Ele queria sem dúvida me dizer:

Põe tua mochila às costas,

Deita-te na relva verde,

Deixa o céu te levar.

Entrega-te ao repouso.

Respira o espaço do espaço no espaço.

Eu jamais conheci tão grande luminosidade.


Extraído de: http://www.nossacasa.net/SHUNYA/default.asp?menu=1167