terça-feira, 25 de setembro de 2007

O TRABALHO DA ILUSÃO: PRODUÇÃO, CONSUMO E SUBJETIVIDADE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

ISLEIDE ARRUDA FONTENELLE
Psicóloga; Doutora em Sociologia (USP); Pós-doutorado em Psicologia Social (PUC-SP);
Professora de Psicologia da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV).





1. Introdução



Este artigo apresenta alguns resultados obtidos em minha pesquisa de pós-doutoramento, cujo principal objetivo proposto foi entender que subjetividade corresponde à sociedade contemporânea que se convencionou chamar“das imagens”, por meio de uma análise do funcionamento do marketing na forma como ele busca alcançar“o sujeito do inconsciente”. Esse objetivo geral desdobrou-se em dois objetivos específicos: a apreensão de toda a dinâmica do marketing, a partir da qual poder-se-ia compreender como e porque o marketing tornou-se a estrutura central do capitalismo contemporâneo, especialmente na maneira como suas práticas buscam alcançar o“sujeito do inconsciente”; e uma revisão teórica do conceito de fetiche à luz das questões da realidade contemporânea, trabalhando-o na confluência das teorias marxista e psicanalítica.
O objetivo geral da pesquisa desse pós-doc, por sua vez, originou­se a partir dos resultados obtidos em minha pesquisa de doutoramento – publicada em livro em Fontenelle (2002) –, na qual procurava entender o“fetichismo das imagens” por meio de uma análise em profundidade da marca publicitária, tomando a McDonald’s como paradigmática de uma época na qual a sociedade de consumo desenvolveu-se a um estágio tal que a imagem passou a ocupar o lugar da própria mercadoria.
Dessa maneira, o início da pesquisa esteve fortemente influenciado pela questão do“fetichismo da mercadoria” de Karl Marx, apoiado em alguns pressupostos (porque já anteriormente trabalhados na tese de doutoramento), que me levaram a investigar melhor a questão da subjetividade na sociedade contemporânea a partir da problemática da ilusão, que está na própria base do conceito de fetiche. Pressupostos esses assentados também no apoio teórico dos autores da Escola de Frankfurt (especialmente Theodor Adorno), no sentido de, para além de Marx, negar a tese da“falsa consciência” e insistir em uma“ilusão socialmente necessária”, o que nos leva à ponte com a teoria psicanalítica freudiana do fetichismo e da clivagem do eu, ou seja: de um sujeito que sabe que as imagens que consome são ilusórias, mas age como se não soubesse1.
Partiu-se então da hipótese que o sistema capitalista desenvolveu uma modalidade nova de fetiche, que precisa ser melhor investigada naquilo que seria apenas a ponta de seu iceberg: as imagens. E portanto, esse novo fetichismo só poderia ser compreendido a partir de uma análise mais apurada daquilo que formata a marca publicitária: o marketing.
Diante desse desafio, optei inicialmente por realizar uma análise das práticas do marketing, ou seja, dos processos que antecedem sua formação (pesquisa) e veiculação (publicidade). Esta escolha não se deu por acaso. Vivemos em uma época na qual, como já afirmou Jameson (1996),“o capitalismo dominou o inconsciente humano”. Uma afirmativa perturbadora, porém calcada no fato concreto de que o aparato produtivo contemporâneo está profundamente entrelaçado ao universo simbólico; em outras palavras, de que a“indústria cultural” tornou-se o paradigma da produção capitalista contemporânea. E o marketing ganha destaque justamente quando a cultura assume o lugar de principal mercadoria do capitalismo contemporâneo.
De um lado, podemos então tomar o marketing como sintoma de uma realidade social mais ampla, marcada pela aceleração do tempo, pela desterritorialização, pela conseqüente implosão de todas as suas formas produzidas, resultando naquilo que Bauman (2001) chamou tão apropriadamente de“modernidade líquida”. Mas de outro, o marketing também pode ser acusado de protagonista do processo, ao buscar – mediante o uso de uma de suas ferramentas, a pesquisa – captar o“sujeito do inconsciente”, seus desejos e paixões mais profundos, e por meio de uma outra ferramenta (a publicidade), devolver esses desejos e paixões“reais” mediante a forma de fetiche.
Mergulhando na literatura do marketing dei-me conta que para entender suas práticas eu precisava, antes, entender sua história, já que a história do marketing tem diferentes versões, a depender do fato do marketing ser tomado como produto do campo da administração ou da comunicação.
Do ponto de vista da pesquisa empírica, o aspecto que mais me chamou a atenção foi a história das técnicas de pesquisa em marketing, que desde seu surgimento – tenham sido originadas da administração ou da comunicação – estiveram voltadas para entender o consumidor, oferecendo às empresas uma visão clara desse consumidor e de como as empresas poderiam chegar a ele. Tratava-se, nas primeiras décadas do século XX, de insistir em“um novo tipo de consumidor”, do qual as teorias econômicas não conseguiam mais explicar, porque era preciso pensá-lo para além de seu aspecto racional no ato de consumo. Ou seja: o consumidor“ideal” da teoria econômica não correspondia ao“consumidor real” que as empresas precisavam entender e atender.
Essa questão da racionalidade do consumo pode ser pensada, de um ponto de vista social, como aquele período da história moderna no qual o utilitarismo parecia ceder lugar, cada vez mais, a um mundopsicomórfico. É Richard Sennett quem nos dá uma bela descrição desse tempo, centrando parte de sua análise justamente no significado do“fetichismo da mercadoria” para entender as bases culturais que originaram a sociedade do consumo, que uma perspectiva exclusiva da produção não permitiria apreender. Baseado em histórias da época, Sennett vai revelar como, já nas últimas décadas do século XIX, era possível ver como os donos das lojas de departamento“começaram a trabalhar mais o caráter de espetáculo de suas empresas, de maneira quase deliberada”. Esses proprietários descobriram que associar um vestido feito à máquina à foto de uma duquesa X lhe conferia um status que não tinha relação nenhuma com o próprio vestido, e do mesmo modo, ao pôr uma simples caçarola em uma réplica de um harém mourisco na vitrine de uma loja, dava a esse objeto um“inexplicável” poder de atração. A pergunta que fica é a de“como e por que as pessoas das cidades grandes passaram a tomar essas aparências mistificadas, irresolvidas, tão a sério”. A resposta que Sennett nos dá é a de que nessa época cresce a importância que os cidadãos passam a dar às aparências exteriores,“como sinais do caráter pessoal, do sentimento privado e da individualidade” (Sennet, 1988, p. 184-185).
A dualidade do pensamento do final do século XIX apresentada por Sennett é justamente aquela que fez emergir o marketing como pensamento teórico:“de um lado, a abstrata insistência sobre a utilidade, e de outro, uma dura realidade: a percepção, na prática, de um mundo psicomórfico”. Portanto, como tão bem aponta o autor, a idéia contida no pensamento marxiano de que“as mercadorias estavam se tornando uma ‘aparência de coisas que expressa a personalidade do comprador’”, encontra ressonância em uma época na qual“outras aparências fugazes estavam sendo interpretadas por outros, menos seguros de suas percepções, como sinais de um caráter interior e permanente” (Sennet, 1988, p. 185).
Mas lembremos que este era o princípio do capitalismo industrial, melhor dito, o princípio do qual se poderia usufruir dos bens produzidos pela Revolução Industrial. Essa era, ainda, uma“sociedade da produção”, no sentido atribuído por Bauman:

de que a sociedade dos nossos predecessores, a sociedade moderna nas suas camadas fundadoras, na sua fase industrial, era uma“sociedade de produtores”. Aquela velha sociedade moderna engajava seus membros primordialmente como produtores e soldados; a maneira como moldava seus membros, a“norma” que colocava diante de seus olhos e os instava a observar, era ditada pelo dever de desempenhar esses dois papéis (1999, p. 87-88).

Claro que foi no interior dessa forma social que já começou a se gestar uma“sociedade de consumo”, embora em um sentido muito diferente do que chamamos de“sociedade de consumo” hoje, pois como ainda nos diz Bauman,


quando falamos de uma sociedade de consumo, temos em mente algo mais que a observação trivial de que todos os membros dessa sociedade consomem... No seu atual estágio final moderno (Giddens), segundo estágio moderno (Beck), supramoderno (Balandier) ou pós-moderno, a sociedade (...) precisa engajar seus membros pela condição de consumidores. A maneira como a sociedade atual molda seus membros é ditada, primeiro e acima de tudo, pelo dever de desempenhar o papel de consumidor. A norma que nossa sociedade coloca para seus membros é a da capacidade e vontade de desempenhar esse papel (p. 87-88).


Trata-se, portanto, de uma mudança de foco que provoca uma grande diferença em praticamente todos os aspectos da sociedade, da cultura e da vida individual. Um processo que coincide com o que uma certa literatura crítica sobre a sociedade contemporânea do consumo chama de“sociedade do Goza!”, levando cada um a buscar sua forma de gozo por meio do consumo sem limites, e fazendo uma reviravolta naquele modo de socialização indicado por Freud em uma sociedade repressiva. Muitos dos escritos do sociólogo esloveno Slavoj Zizek vão nesse sentido. E Vladimir Safatle, fazendo uso dos escritos desse autor, lembra bem como algumas conseqüências psíquicas da passagem de uma sociedade da produção à de consumo podem ser identificadas em Jacques Lacan, no Seminário XX, quando o psicanalista francês insistiu“que a figura dominante do supereu na contemporaneidade não estava mais vinculada à repressão das moções pulsionais, mas à obrigação da assunção dos fantasmas. Não mais a repressão ao gozo, mas o gozo como imperativo (...) o gozo transformado em uma obrigação” (Safatle, 2004).
Vivemos hoje, portanto, em uma forma social na qual o consumo tornou-se o ato social por excelência. O que ficou mais claro quando me deparei com novas formas de pesquisa em marketing baseadas no“desejo do consumidor”, ao invés dos antigos métodos de compreensão do“comportamento do consumidor”. Ou seja, formas de pesquisas centradas na“ação” do consumidor, naquilo que ele consome hoje, a fim de, através disso, poder se traçar toda uma forma de tendências futuras de consumo.
Daí porque foi a temática do desejo no fetiche (desejo perverso, para chamá-lo pelo nome?) o ponto central que levou a pesquisa a um novo estágio, no sentido de um avanço teórico para compreensão da realidade contemporânea. Na Psicanálise certamente podemos ler o fetiche como um desejo perverso. Podemos até mesmo admitir que uma interpretação do fetichismo da mercadoria, em Marx, também possa ir por esse caminho. Afinal, em seu sentido mais profundo temos, na idéia da expropriação do corpo do trabalhador, uma grande metáfora para a perversão instituída pelo capitalismo a partir da maneira como ele instrumentaliza a natureza e a cultura. É sobre isso que trata Eagleton (1993), ao tomar a sociedade e a tecnologia como as duas extensões do corpo humano e ver como ambas acabaram subsumidas à lógica da produção de mercadorias, à noção de valor, que passou a permear todos as atividades humanas, não apenas o trabalho. Se aceitarmos a idéia de Terry Eagleton, poderíamos pensar a sociedade como uma extensão do corpo simbólico, e a tecnologia como uma extensão do corpo físico, para daí construirmos a idéia de um“corpo social”, que para além do corpo do trabalhador, é revelador de uma“forma simbólica que adquire o poder para ocultar seu próprio fundamento nas próprias forças das quais se apropria” (Rozitchner, 1989, p. 109-146).
Mas sabemos que desde a época em que Marx escreveu sobre o fetichismo da mercadoria para criticar uma forma-valor que fazia as relações entre os homens se transformarem em relações entre coisas, e que Freud discorreu sobre o fetichismo como fenômeno psicopatológico, muitos desdobramentos foram feitos na própria teoria. Houve avanços no campo marxista, como os da Escola de Frankfurt, que não por acaso abordou especialmente o aspecto da perversão da cultura, sob a forma mercadoria; bem como, pelo pensamento de Guy Debord, que sob o termo“sociedade do espetáculo” buscou na imagem um novo desdobramento da alienação fetichista. No campo psicanalítico, como já me referi antes, Lacan também alargou todo um debate em torno do fetichismo e suas relações de objeto, a ponto do fetichismo ser tomado como algo estruturador da subjetividade. A esse respeito, ver Lacan (1995).
Certamente esses desdobramentos só foram feitos porque seus autores partiram de uma realidade e de uma prática, quais sejam: a realidade social sobre a qual se debruçaram os frankfurtianos nos anos pós-segunda-guerra; Guy Debord nos decisivos anos 1960 (Debord, 1997); bem como Jacques Lacan em sua prática analítica na sociedade francesa da segunda metade do século XX, como o próprio Freud já o fizera a partir de sua clínica.
Baseados na teoria e na realidade vivida, podemos afirmar que o tempo desses autores é e não é mais o nosso. Estabelecemos com aquele tempo uma relação de continuidade e de descontinuidade que só poderá ser claramente considerada se nos voltarmos para a realidade atual, a fim de confrontá-la com a teoria existente. Autores contemporâneos a nós como Fredric Jameson, Terry Eagleton, Slavoj Zizek, Zygmunt Bauman, dentre outros, cumprem justamente esse desafio: reinterpretar a teoria a partir de uma análise da realidade atual, assumindo o desafio de atrelar constantemente os aspectos objetivos e subjetivos. Etambém não por acaso cito esses autores. Eles me inspiram não apenas no método, como no avanço da própria teoria. E foi com eles que estabeleci um diálogo ao longo desta pesquisa.
Voltemos agora às pesquisas contemporâneas em marketing, a fim de verificarmos como uma análise de sua dinâmica interna pôde nos ajudar a entender como e em que sentido busca atingir o dito“desejo do consumidor”, e o que isso nos ajuda a compreender da subjetividade contemporânea. O sentido empírico da pesquisa interessa para compreender como, na prática, a questão do desejo é posta – e resolvida – pelo marketing (sua assunção de que atende ao desejo, na medida em que dá ao consumidor o que ele quer) em contrapartida à teoria crítica que, desde Adorno vem apontando o marketing como“psicanálise às avessas”, que anula todo o desejo, as paixões, e em última instância, o próprio sujeito.
Assim, comecei a ter contato com as novas formas de pesquisa em marketing, as chamadas pesquisas de mercado de tendências culturais, tanto em seu sentido macro – que traçam os grandes panoramas econômicos, sócio-culturais e políticos –, quanto micro, como as coolhuntings, que são empresas que vasculham as sub-culturas jovens a fim de buscarem as tendências culturais que influenciarão o mercado de consumo jovem. Essa minha tarefa não foi nada fácil de se cumprir, já que o“marketing tradicional”, ou seja, aquele estudado nas academias de administração em marketing, ainda não considera esse tipo de pesquisa como uma forma“cientificamente” válida. Isso pode ser compreendido como uma nova forma de“reserva de mercado” dos marqueteiros atuais, tal qual aquela já claramente identificada nos anos 1950, quando as empresas, na prática, já trabalhavam com as chamadas“pesquisas motivacionais”, enquanto os profissionais do marketing – na época em sua maioria economistas – não queriam considerar a idéia de abrir seu mercado para outros profissionais, como psicólogos e sociólogos.
Nesse sentido, como se trata de uma mudança de orientação do marketing que ainda não foi completamente realizada, temos uma confusão de bibliografia existente sobre as práticas do marketing, na qual velhas e novas técnicas se misturam. Muito do que está sendo executado do ponto de vista mais“de ponta” é apresentado em programas veiculados por canais de TV a cabo, dentre os quais, cito:“A natureza humana”, vários capítulos; e“Caçadores de tendências”, também vários capítulos – ambos gravados em 2004 do canal People and Arts, em parceria com a Rede BBC; ou compilado em livros que buscam compreender as transformações sociais e seus impactos nas diferentes dimensões da vida humana, como os de Rifkin (2001) e de Gorz (2005).
São esses livros e programas que apontam para casos concretos e tendências que precisam ser melhor investigados. Se o marketing se impõe a tarefa de vasculhar a cultura para buscar temas que estimulem o desejo humano, isso certamente nos diz algo valioso sobre a subjetividade contemporânea, que precisamos averiguar melhor.
Ao final de um minucioso detalhamento sobre todos esses tipos de novas pesquisas, pude ter um panorama geral e traçar uma característica comum a todas essas novas técnicas de pesquisa: a ênfase na importância de se traçar cenários que sejam baseados nas mudanças sociais, indicando claramente a imbricação cada vez mais profunda entre o domínio do social e do consumo. Uma tendência que começou nos anos 1960/70, quando historicamente o consumo passou a assumir uma importância mais evidente na vida social, com o surgimento do primeiro relatório sobre“tendências sociais” na América – The Yankelovich Monitor –, no qual o enfoque sobre o comportamento começa a se deslocar para o de desejo, embora isso ainda não estivesse explícito. Historicamente foram as mudanças provocadas por aquilo que foi conceituado como“a revolução cultural dos anos 1960” que teriam influenciado mais diretamente essa necessidade de compreender as mudanças sociais, considerando que elas teriam maior impacto sobre o mercado. Assim, o objetivo do“relatório” era o de construir


uma ponte entre as tendências sociais e as decisões de marketing, ponte essa cujo valor apenas recentemente passou a ser reconhecido (...). O objetivo do relatório é fornecer a quem trabalha com marketing informações que lhe permitam relacionar as mudanças que ocorrem nos valores, preocupações, necessidades e interesses das pessoas com as decisões práticas que precisa tomar sobre produtos, investimentos e estratégias (Goldestein, 1990).


É esse o momento em que o marketing começa a compreender o consumo não como um ato como outro qualquer do sujeito, mas como o princípio organizador de toda a vida social. Trata-se, portanto, de pensar a cultura contemporânea como uma cultura orientada para o consumo, na medida em que teria se dado uma fusão entre cultura e mercado. Dessa forma, essas pesquisas evoluíram, a ponto de a partir dos anos 1990 começarem a surgir empresas de pesquisa de tendências culturais que passaram a“ouvir o desejo mediante a cultura”, demonstrando uma fina sintonia que essas técnicas têm com a imbricação cada vez mais profunda entre consumo e desejo, conforme veremos adiante.
E foi esse aspecto que me guiou para o tópico que tomaria o restante de tempo disponível para minha pesquisa de pós-doc: o marketing do acesso. Embora a questão do acesso estivesse presente nas leituras que fiz desde o princípio da pesquisa, só ao final, quando havia abarcado o empírico, foi que entendi plenamente o sentido daquilo que Rifkin (2001) chama de“economia do acesso” – uma época na qual os mercados dão lugar às redes, e quando a noção de“propriedade” é substituída pela de“acesso”. E Rifkin não está se referindo a um futuro longínquo, mas a um processo que já está em franco andamento: nas empresas que operam com as novas tecnologias da informação, nas mais diferentes áreas da“velha economia” do concreto, bem como no campo da indústria cultural.
São muitos os aspectos relacionados a uma“economia do acesso”, cujo termo já está em voga no mundo dos negócios (Arantes, 2004): desde as alterações radicais na relação entre capitalismo e propriedade – já que a propriedade é o fundamento do contrato social moderno, enquanto as relações de acesso apresentam-se como substitutivas da propriedade –, passando por uma radical rediscussão no mundo do trabalho, especialmente a partir do conhecimento como nova força produtiva; até a sociedade do consumo, na forma de um marketing de relacionamento (que vende experiência em vez de produto), sem falar dos aspectos financeiros relacionados a isso, e que foge à minha competência divagar sobre tais. O fato é que a questão central dessa nova forma de capitalismo – veicular não mais o produto, mas a experiência a ele atrelada – requer uma nova forma de relacionamento com o cliente, uma nova forma de trabalhador, e também formas novas de trabalho nas quais o próprio consumidor torna-se trabalhador e produtor de valor.
Certamente que a economia do acesso vem responder a uma mudança social, pois em um mundo tão mutável e que exige tanta flexibilidade, já não é mais necessário ater-se à propriedade dos bens que se queira gozar. Basta acessá-los e pagar por isso o preço do serviço. Mas o investimento no acesso à experiência também vem responder a um limite objetivo do ponto de vista do funcionamento da nova produção, especialmente no caso das empresas de tecnologia da comunicação e da indústria cultural: quando o que se comercializa não é um bem físico, mas intangíveis veiculados pela produção de um software, e esse software pode ser pirateado (como também o é), onde fica o valor trabalho contido na cópia? Diante desse desafio, a primeira saída para o mercado foi buscar proteger o máximo possível essas produções via patentes e marcas registradas – período áureo da produção de imagem. E embora ainda seja intensamente feito, isso encontra limites, como a pirataria, à qual já me referi. Então, um outro caminho que foi e está sendo desenvolvido é o da comercialização do serviço ou da experiência que estão atrelados ao software, mais do que em vender o próprio software.
Do ponto de vista objetivo da nova forma de produção, o acesso vem atender a uma nova estratégia de“redefinição do valor em uma economia em que o custo da tecnologia pura está despencando para zero (...). Então, o valor residirá em estabelecer um relacionamento de longo prazo com um cliente” (Gross, 1995).
A compreensão dessa forma pós-industrial de produção e consumo foi fundamental para a constatação de que estamos presenciando uma nova etapa da produção, que tem a ver com uma“nova organização social da ilusão”. Obviamente esta é uma idéia que está em construção e o que pretendo é convidar o leitor para os primeiros desdobramentos disto.

2. Sobre a nova organização social da ilusão


“... a força dos fantasmas está justamente em sua irrealidade” (Eco e Martini, 2000)



2.1. O suporte material no fetichismo: do valor trabalho ao valor da experiência



O termo“fetichismo da mercadoria” já é amplamente consagrado na teoria sociológica marxista, sendo tomado especialmente como ponto de partida para sua crítica à Economia Política do século XIX, no período de consolidação do capitalismo industrial. A construção do conceito deu-se, portanto, a partir de uma interpretação da realidade da época, enfocando aspectos objetivos e subjetivos ligados à nova forma social estabelecida pelo capitalismo vigente. Portanto, a uma organização social da produção, poderíamos dizer que Marx respondeu com uma“organização social da ilusão”.
Dos muitos aspectos trabalhados no“fetichismo da mercadoria”, um em especial ainda se sustenta (e não por acasoprecisa ser retomado em uma discussão sobre o novo estatuto do fetichismo na sociedade de consumo contemporânea): de que o valor da mercadoria não está no próprio corpo da mercadoria. Para Marx, ele é produto de uma organização social: da que produz a mercadoria (força-trabalho/valor­trabalho/mais-valia) e da que consome a mercadoria, que mediante valores culturais da época, também passa a valorizar a mercadoria (valor-desejo/valor-de-gozo). Portanto, em Marx, o fetichismo da mercadoria indicava uma espiritualização do corpo-mercadoria, embora a mercadoria ainda fosse vendida como aquilo que era: algodão, café etc.
Com o desenvolvimento tecnológico a partir dos anos 1960 e a criação da imagem de marca, a mercadoria ganhou uma alma, aquela alma que Walter Benjamin ainda se perguntava, 50 anos depois dos escritos marxistas. Se a mercadoria tivesse uma alma,“aquela alma com a qual Marx ocasionalmente faz graça –, ela seria a mais plena de empatia já encontrada no reino das almas, pois deveria procurar em cada um o comprador a cuja mão e a cuja morada se ajustar” (1989, p. 52).
Pois essa forma de organização social da ilusão pela imagem foi proveniente de transformações tecnológicas, desafios concorrenciais (diferenciar produtos homogêneos pela imagem de marca), sociais (sociedade da abundância do pós-segunda guerra) e culturais (busca de ilusões, suspensão da descrença). Com isso, começou a se dar um descolamento maior da imagem. Esta começou a ser veiculada sem ter, muitas vezes, nenhuma relação com o produto em questão. Algo que já começou a ficar patente no final dos anos 1960, quando Guy Debord denominou a sociedade como“do espetáculo”, tendo em vista a força da imagem, não apenas do ponto de vista de seu consumo social, mas especialmente de sua força produtora de valor.
Este descolamento da imagem começou a se operar de maneira tal, que nos anos 1980 começou-se, na literatura crítica, a elaborar um pensamento sobre uma forma de anúncio publicitário que não fazia sentido, a chamada“propaganda nonsense” (Lipovetsky, 1989).
Portanto, já não se tratava mais de acusar os meios de comunicação de massas de promoverem uma forma“idealizada” de imagens que“alienariam” o telespectador-consumidor diante da telinha. De alguma maneira, a nova configuração sócio-cultural dada pela imagem chegou ao ponto de permitir que o mercado“jogasse” com essa exposição absoluta da ilusão, e a ela correspondesse uma forma de consumo na qual o sujeito“sabe que consome ilusões, mas age como se não soubesse”.
De lá para cá, portanto, vivemos um recrudescimento do fetichismo, ao que denominei de“fetichismo das imagens”, procurando entender como nossa atual realidade social está sendo produzida, veiculada e apreendida a partir de uma lógica da produção globalizada de imagens, no sentido do que isso altera em termos de nossa subjetividade. Pois“nossas crenças precisam de um suporte, de uma certa materialidade”, portanto, a uma organização social da ilusão corresponde sempre uma organização social da produção.
Como já disse, anda em curso um processo que tem gerado um deslocamento do valor, pois esse passa a se colar cada vez mais na imagem do produto. Com isso, o valor começa a flutuar em torno de uma comunidade de informação – conforme apontado no excelente texto de Harvey (2003). Não que o valor trabalho tenha perdido seu sentido – pelo contrário, as fábricas terceirizadas comprovam isso – mas certamente perdeu sua força na“nova organização social da ilusão”. Quando Lacan, por exemplo, diz que Marx“inventou o sintoma”, Zizek (1991) vai procurar interpretar tal frase a partir de uma análise mais apurada do fetichismo da mercadoria. Pois no fetiche nós temos uma mercadoria-exceção que sustenta (e nega) um discurso universal de liberdade e igualdade – o trabalhador –; e mediante um saber sobre a mais-valia surge um sintoma: a luta de classes (que é onde a verdade reprimida volta). Uma luta que se sustentou em cima da questão do valor. Porque é isso que produz efeito, onde“a realidade resiste”. A luta foi, portanto, do interior do sistema, de algo que o sistema produziu: mercadoria-exceção/força de trabalho.
Voltando: no fetichismo das imagens embaralha-se essa questão do valor. Hoje houve um descolamento tal da imagem de seu produto e uma hiper-valorização tão absoluta da imagem, que o fetichismo da imagem inverte a busca pela espiritualização do corpo (tão característica do fetichismo da mercadoria), e pelo contrário, o que vemos é a tentativa de materialização desse espírito (imagem), que anda à solta, em uma mercadoria. Hoje é a mercadoria que depende inteiramente da imagem. O fetichismo da imagem dá, então, um passo a mais, e para me referir a isso vou parafrasear Slavoj Zizek (2003) afirmando que o fetichismo da imagem“torna manifesta a estrutura fantasmática” da mercadoria.
E é nesse tornar-se manifesta que percebemos o passo a mais que é dado em relação ao fetichismo da mercadoria de Marx. Pois essa“cena fantasmática” interpretada do ponto de vista da realidade social indica antes de tudo que a mercadoria (o corpo mercadoria) passa a ser vista como desnecessária (assim como a mercadoria-exceção: o trabalhador). A imagem é que passa a ser compreendida como fonte de desejo, e portanto, de valor.
Sem dúvida, o suporte materialista para pensarmos os desdobramentos do fetichismo está na questão do valor, pois ele é o“Real da ilusão” no qual estamos enredados. E foi em busca dessa compreensão, a partir de uma análise interna aos mecanismos do marketing na sociedade de consumo contemporânea, que constatei o estágio atual do fetichismo das imagens“coincidindo” com um momento do desenvolvimento econômico no qual dá-se início a uma nova etapa comercial em que a mercadoria torna-se, de fato, desnecessária. Trata-se da“economia do acesso” – uma forma de economia que promove o acesso a serviços e experiências, a fim de que se possa deles gozar, sem que se obtenha a propriedade do serviço. Ou seja: o capitalismo está entrando em uma nova fase na qual o acesso a um bem ou serviço passa a ser mais importante do que a compra/propriedade desse serviço. E isso altera radicalmente a noção de propriedade, um dos elementos centrais do capitalismo industrial e do contrato social moderno. Assim como a questão do valor: veicula-se agora o valor da experiência.
Convém ressaltar, antes de qualquer coisa, que a assunção do consumo da experiência não é uma novidade absoluta nos nossos dias. Desde os princípios da indústria cultural a mercadoria foi veiculada como o acesso a uma experiência de diversão, entretenimento, gozo, fruição. A novidade agora está em este modelo tornar-se hegemônico para outras áreas da economia, especialmente em um momento no qual o fetichismo das imagens já vem acusando uma sobreposição da imagem à mercadoria.
Pois em uma“economia do acesso” investe-se no“uso dos prazeres”, para usarmos a expressão foucaultiana. Ou, como indicam as novas pesquisas de mercado de tendências culturais, o próximo“desejo fundamental” estará atrelado a uma busca por experiências psicoespirituais e pela ressensibilização do corpo (pela via sensorial), seja em que campo mercadológico for. Portanto, seja mediante o“acesso” (sem que ocorra a propriedade do serviço), ou através da compra de alguma mercadoria, o que está em jogo é“o valor da experiência”, especialmente atrelada a uma experiência psicoespiritual ou sensorial.
O“valor da experiência” torna claro algo que, segundo Bauman – baseado no estudo de Goux (1990) –, já estava presente desde o início da formação da sociedade de consumo avant la lettre:



quando a teoria do valor trabalho de Smith/Ricardo/Marx/Mill foi confrontada pela teoria da utilidade marginal de Menger/Jevons/Walras: quando se disse, em alto e bom som, que o que dá valor às coisas não é o suor necessário à sua produção (como diria Marx), ou a renúncia necessária para obtê-las (como sugeriu Georg Simmel), mas um desejo em busca de satisfação; quando a antiga disputa sobre quem seria o melhor juiz do valor das coisas, se o produtor ou o usuário, foi resolvida em termos não ambíguos em favor do usuário, e o problema do direito de emitir um juízo competente se misturou com a questão dos direitos da autoria do valor. Quando isso aconteceu, ficou claro que (...) para criar valor, basta criar, por qualquer meio, uma intensidade suficiente de desejo e que o que em última análise cria o valor excedente é a manipulação do desejo excedente (2003, p. 117-118).


O porque disso só ficar evidente no estágio contemporâneo tem claramente a ver com a forma como se maneja o valor na“organização social da ilusão” em sua relação com o modo social de se produzir. Somente quando chegamos ao estágio no qual um certo desenvolvimento tecnológico, econômico e cultural permitiu tornar exposta a“cenafantasmática da mercadoria” é que o valor dá o seu salto qualitativo. É a partir daqui que podemos nos perguntar: como se organiza a ilusão a partir desse instante em que a própria ilusão se torna manifesta? O que significa, então, um mundo – uma sociedade – no qual a fantasia apresenta-se em estado puro, torna-se aparente? Isso nos impõe pensarmos em outra questão central do fetichismo: a ilusão.

2.2. O estatuto da ilusão no fetichismo: Marx, Freud e desdobramentos contemporâneos



A relação estabelecida entre fetichismo e ilusão, no projeto de pesquisa de pós-doc, resultou dos achados da pesquisa de doutorado sobre“o fetichismo das imagens”, nos quais me deparei com uma forma de consumo na qual o sujeito sabe que as imagens que consome são ilusórias, mas age como se não soubesse. Portanto, essa questão foi o ponto central que me levou a estabelecer um diálogo entre a teoria marxista e a teoria psicanalítica, pois é exatamente no ponto em que fetichismo e ilusão se atrelam nesses dois campos do conhecimento que podemos compreender onde está a diferença fundamental no uso do termo.
E ela está no fato de que, enquanto para Marx, no fetichismo da mercadoria, a ilusão estava relacionada a um“falso saber”, uma falsa consciência a ser esclarecida, portanto, a um momento de ocultamento de uma verdade a ser descoberta (a ideologia seria esse mecanismo do poder que possibilitaria um ocultamento da verdade a ser revelada); na psicanálise freudiana o fetichismo revela-nos uma forma de ilusão mais complexa, que tem seu momento de verdade. Ou seja, há uma ilusão que não deixa de negar uma certa realidade. Daí, o desmentido:“eu sei, mas...” (Zizek, 1996).
Porém em Freud, a perspectiva do fetichismo é a da clínica, a partir de uma psicopatologia que o vincula a certos quadros perversos específicos. Seria necessário fazer um trabalho de passagem de uma ilusão típica de uma clínica da perversão para uma forma de“ilusão socialmente necessária”. Trabalho este primeiramente empreendido pelos autores da Escola de Frankfurt, Adorno e Horkheimer, que baseados em uma realidade de época traçaram um paralelo entre Marx e Freud, a partir do ponto no qual era preciso compreender uma subjetividade forjada por uma forma social fetichista, no sentido preciso de que estaríamos vivendo uma“perversão total da cultura”.
Por conta do dispositivo fascista de propaganda política, estendido para o econômico, esses autores estenderam sua análise para a realidade histórica americana – como a indústria cultural e um de seus correlatos: a propaganda –, que representava o modelo mais acabado de uma forma social que produz homens capazes de reagir a“estímulos, dos quais, inclusive, sentem necessidade” (Adornoe Horkheimer, 1973, p. 185-192), e onde o fetichismo passa a ser compreendido como o momento no qual a ideologia torna-se realidade de si mesma. Esses autores estavam se dando conta dos primórdios da sociedade de consumo de massas, com seus fenômenos correlatos de homogeneização e de total equivalência dos objetos tornados mercadoria, quando já começava a se tornar necessária uma nova organização social da ilusão, que viria a se dar pelas imagens.
Denunciar uma fetichização total da cultura e insistir em uma releitura do fetichismo da mercadoria a partir da adequação entre os fatores objetivos e subjetivos do desenvolvimento capitalista foi um avanço enorme na teoria crítica existente, empreendimento que Adorno faz de maneira excepcional ao propor que a“própria mudança das relações de produção depende largamente do que se passa na ‘esfera do consumo’, mera forma de reflexão da produção e caricatura da verdadeira vida: na consciência e na inconsciência dos indivíduos” (1992, p. 8).
Mas tal empreendimento ainda deixava problemas com relação à subjetividade. Na crítica a uma“perversão da cultura” ainda havia nos autores frankfurtianos um projeto utópico de reconciliação entre“moções pulsionais e estrutura social”, especialmente a partir de um“fortalecimento do eu” (Adorno). Como mostra Safatle (2004), a“expropriação do inconsciente pelo controle social que se imporia devido à fraqueza do eu”, denunciada por Adorno, encontra algo muito similar ao dito lacaniano de que estaria havendo uma“assimilação social do indivíduo levada ao extremo”, com a exceção de que para Lacan“o eu não é exatamente uma instância de mediação, mas já é desde sempre construção reificada de imagens socialmente ideais”. Daí porque seria fadado ao fracasso um projeto que visasse evitar a expropriação social do inconsciente mediante o fortalecimento do eu. Algo que ficou evidente quando, no final dos anos 1960, as formas contraculturais que se assentavam nessa promessa utópica impossível de realizar-se, foram rapidamente assimiladas pelo mercado, resultando em um campo infinito de novas produções para consumo, como nos mostra tão bem os estudos de Frank (1997).
Daí porque, conforme apontei no tópico anterior, o próprio mercado joga com o fim da crença nessa adequação entre desejo e realidade, sem perda de prejuízo diante de um consumidor que sabe, mas age como se não soubesse. Por que isso ocorre? Do ponto de vista da análise social, o que pude constatar é que os consumidores de imagens apresentam uma subjetividade forjada por uma nova configuração sócio­cultural marcada pelo esvaziamento das suas formas simbolicamente produzidas, colocando um problema muito sério de uma ausência de formação de ideais que marcara a sociedade até então no processo de estruturação identitária, e colocando a todos em um vazio identificatório que a imagem vem responder como uma“ilusão de forma”.
Inteirando-me mais da literatura psicanalítica, fica evidente o quanto essa forma social se parece com um tipo específico de supereu, cujo imperativo – Goza! – é impossível de ser satisfeito:



O caráter insensato desse puro gozo fica evidente se pensarmos que toda escolha empírica de objeto é inadequada a um gozo que procura afirmar­se em sua pureza de determinações (...). Ele só pode se realizar no“infinito ruim” do consumo e da destruição incessante dos objetos, que nada mais faz do que atualizar um excedente de gozo (Safatle, 2004).



Portanto, um“supereu perfeito” para a sociedade da descartabilidade absoluta dos objetos na qual vivemos. Diante de uma forma social assim configurada é que o fetichismo das imagens torna manifesta sua“cena fantasmática”. Mas, se do ponto de vista subjetivo, a fantasia é uma proteção contra a angústia da falta de objeto, melhor dito, da inadequação do desejo aos objetos empíricos – nesse sentido a fantasia é o que estrutura a determinação do valor dos objetos (Safatle, 2003) – compreendemos toda a impossibilidade da“falsa consciência” na ilusão fetichista de Marx, pois a cena fantasmática tornada manifesta pelo fetichismo das imagens tem, em nossos dias, gerado mais fetiche.
Mas isso significaria o fim ou o império da ilusão, a ponto de chegarmos no puro cinismo? Certamente que o sujeito consumidor de imagens compreende o mundo todo como uma ilusão, antes de tudo, porque ele vive em um mundo onde, de fato, estar na imagem é existir. E a própria maneira como se veiculam as mercadorias no mundo contemporâneo também sustenta isto: já não há nenhuma intenção de uma apresentação do produto que“faça sentido”. Então, embora saibamos das ilusões contidas nas promessas de gozo pela via da mercadoria ou de sua imagem, consumimos assim mesmo.
Mas não se trata de um puro cinismo, como ausência total decrença. É Slavoj Zizek – na tradição de Marx e da Teoria Crítica, bem como no resgate de uma abordagem política da psicanálise – quem vai refazer o empreendimento frankfurtiano (da junção objetividade e subjetividade; ou se quiser, marxismo e psicanálise) a fim de compreender a ilusão inconsciente que sustenta o agir da posição cínica. E é nesse ponto em que podemos re-estabelecer a relação entre fetichismo e alienação: no“sabe, mas age como se...” há um saber (que poderíamos até identificar como o oposto da“falsa consciência” marxista), que mesmo revelado, não consegue promover a emancipação. Isso porque há um desconhecimento que se manifesta no agir (Zizek diz que a realidade é o lugar da ilusão) – portanto, fruto de uma forma de alienação ligada a configurações históricas específicas e a uma forma de poder que a elas corresponde. Neste caso específico que é o nosso, embora saibamos que existimos para além da imagem, estamos enredados em um modelo social no qual só nos inserimos como sujeitos mediante a imagem.
Como lêem bem o desejo e respondem a ele com fetiche, não surpreende que as novas pesquisas de mercado indiquem uma busca pelo“retorno ao corpo” – pela via sensorial –, e no avesso disso,indiquem também a procura pela experiência“psicoespiritual”. É de novo Zizek quem vai mostrar como a chamada“espiritualidade new age” funciona como um grande fetiche dos nossos tempos. Pois essas formas modernas de espiritualidade estampam uma experiência intensa da materialidade, no sentido dessa relação com o corpo – aquele corpo“indestrutível e não criado, que persiste para além da deterioração do corpo físico (...) uma corporeidade imaterial do corpo sem corpo (...) na sua materialidade sublime” (1991, p. 137).
A relação constitutiva entre corpo e alienação – tão presente nas teorias marxista e psicanalítica – precisa ser retomada a partir dessa nova perspectiva dada pela realidade social na qual nos encontramos: chegamos a um estágio tal de descartabilidade, desterritorialização, descontinuidade temporais, que o fetiche ganha um estranho formato nessa nova era tido como“do acesso”: de não haver mais um objeto a ser consumido, mas apenas gozado – o que coincide com o que foi dito por Zizek em sua palestra no Brasil em 2004 – que os lacanianos já estão se dando conta de um“estranho fenômeno: o fetichismo sem objeto”.
É preciso buscar, portanto, onde está o Real da ilusão nessa nova forma de organização social da ilusão. Ou seja: o lugar onde o sujeito busca“dar consistência à sua identidade fora dos ‘títulos’, dos referenciais que o situam na rede simbólica universal, uma maneira de presentificar (...) sua fantasia” (Zizek, 1991, p. 149-150).

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Notas


IPsicóloga; Doutora em Sociologia (USP); Pós-doutorado em Psicologia Social (PUC-SP); Professora de Psicologia da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV).


1A esse respeito ver: Freud, 1974a, p. 175-185; Freud, 1974b, p. 307-312; Clavreul, J., et al.,1990; Manonni, 1969; e Zizek, 1992.

Hackers, monopólios e instituições panópticas


Por Sergio Amadeu da Silveira

Introdução: Velhos Direitos, Novas Violações e a Ambigüidade das Redes.
A comunicação mediada por computador e a digitalização intensa de grande parte dos conteúdos de expressão – textos, sons ou imagens -- ampliaram as possibilidades das grandes organizações – Estados, companhias transnacionais e redes criminosas – de observar e rastrear o comportamento e o cotidiano dos cidadãos.
A comprovação empírica dessa afirmação pode ser encontrada exatamente nos Estados Unidos, um dos países com grande tradição na defesa da privacidade e, ao mesmo tempo, a nação com o maior número de computadores e internautas.
Em dezembro de 2005, o jornal The New York Times divulgou que presidente George W. Bush teria autorizado o NSA (National Secutity Agency) a realizar milhares de escutas telefônicas e scaneamento de e-mails sem a prévia autorização judicial.3 O governo alega que a Lei USA Patriot, aprovada no fim de 2001, permite a espionagem de pessoas sem consulta ao Judiciário, pois isto seria indispensável para um combate ágil e eficaz ao terrorismo.
No mês de maio de 2006, o site de buscas Google, recusou-se a entregar ao Departamento de Justiça norte-americano uma lista contendo palavras e sites pesquisados por todos usuários durante uma determinada semana. O governo já vinha utilizando as bibliotecas para captar informações sobre o que as pessoas consultam.4 A Lei USA Patriot permite tais ações de rastreamento.
É notável que antes mesmo dos ataques de 11 de setembro, o FBI (polícia federal norte-americana) já scaneava e-mails que transitavam pelos backbones (redes de alta velocidade) e seus roteadores instalados nos Estados Unidos. Esta prática de vigilância ocorria a partir de um sistema chamado Carnivore que permitia ler todos os e-mails e copiar aqueles que continham determinadas frases e palavras-chaves.
É importante ressaltar que mesmo denunciado no parlamento por organizações da sociedade civil, tais como a EFF (Eletronic Frontier Foundation) e EPIC (Eletronic Privacy Information Center), o Carnivore violou e-mails de cidadãos americanos e também de estrangeiros. Todas as mensagens “supeitas” que tiveram o território norte-americano como rota de passagem foram violadas.
Talvez muito mais do que os Estados, algumas poucas corporações estão buscando legitimar a alteração no imaginário social sobre o espaço da privacidade em um mundo inseguro. Empresas que controlam algoritmos embarcados nos códigos de programação computacional, amplamente empregados como intermediários da comunicação contemporânea, tais como sistemas operacionais, estão realizando intrusões em computadores pessoais sem que nenhuma reação revoltosa seja noticiada.
A tecnologia DRM (Digital Rights Management) usada para tentar impedir o uso não autorizado, denominado “pirata”, de softwares, games, vídeos, filmes e músicas, está permitindo que em nome da defesa do copyright seja destruído o direito a intimidade e a privacidade.
Além disso, o caráter transnacional da rede de comunicação mediada por computador, coloca o problema sobre a definição das regras básicas de operação da rede que são definidas por protocolos de comunicação, padrões e pela estrutura dos nomes de domínios.
Emerge a questão da governança da Internet que envolve a disputa entre cinco grandes interesses não necessariamente contrapostos: dos comitês técnicos que definiram até agora os protocolos da Internet; dos Estados nacionais; das corporações de Tecnologia de Informação; da sociedade civil mundial e das várias comunidades hacker; e o interesse do Estado norte-americano.
Uma série de decisões aparentemente técnicas que afetarão a privacidade e o anonimato dos internautas estão sendo debatidas e poderão ser adotadas sem que os cidadãos do planeta, que utilizam a Internet, tenham a mínima possibilidade de debatê-las ou mesmo de recusá-las. Se for definido que o protocolo de comunicação básico entre as milhares de redes deverá ter como o padrão o fim do anonimato na comunicação, isto afetará completamente a forma como conhecemos a Internet hoje.
Estes exemplos reforçam a necessidade de observarmos mais atentamente a relação entre comunicação, tecnologia e mudança social. Também indicam que a comunicação mediada por computador, por seu caráter transnacional, afeta cidadania e exige a reconfiguração dos direitos para uma vida coletiva no ciberespaço.
Sem dúvida, a rede mundial de computadores tem servido às forças democratizantes para compartilhar não somente mensagens e bens simbólicos, mas também conhecimentos tecnológicos que estão gerando as possibilidades distributivas de riqueza e poder extremamente promissoras.
Exatamente nesse contexto, que um conjunto de mega-corporações atuam para manter e ampliar em uma sociedade informacional os poderes que detinham no capitalismo industrial. Para tanto, precisam conter a hiper-comunicação pública e torná-la comunicação privadamente controlada, substituindo a idéia de uma cultura livre pela cultura da submissão ou do licenciamento.
Algumas Considerações Sobre a Noção de Cidadania.
John Perry Barlow, um dos fundadores da Eletronic Frontier Foundation, escreveu a A declaration of the Independence of Cyberspace, em fevereiro de 1996, como reação ao Ato de Decência nas Comunicações, uma lei que visava o controle de conteúdos na Internet, proposta pela administração do presidente norte-americano Bill Clinton. Barlow foi enfático:
“Governments of the Industrial World, you weary giants of flesh and steel, I come from Cyberspace, the new home of Mind. On behalf of the future, I ask you of the past to leave us alone.”
Apesar do seu apelo, dez anos depois é preciso constatar que ele não foi atendido, nem pelos Estados nacionais, nem pelas mega corporações. Isto porque o ciberespaço não existe descolado do mundo material. A Internet depende da infra-estrutura lógica e física que está sobre o comando de pessoas e empresas que habitam os territórios controlados pelos velhos gigantes estatais, os Leviatãs. Sem dúvida alguma, a Internet representa uma mudança de paradigma das comunicações e é vista por uma série de teóricos como a maior expressão da chamada revolução das tecnologias da informação (CASTELLS). A supremacia da comunicação baseada na difusão, a partir de um ponto, está sendo substituída pela comunicação em rede. A Internet assegura a possibilidade de qualquer cidadão disputar a atenção da rede para seus sites, blogs ou mensagens. A net é um meio técnico com características intrínsecas que permitem a democratização da criação de conteúdos.
Considerando ainda que a Internet é uma rede transnacional baseada no fluxo de dados, que transitam sobre um mesmo conjunto de protocolos e regras de codificação e decodificação de códigos, fica evidente que os Estados nacionais não teriam o controle total do fluxo de conteúdos, como ocorre no caso da TV e do rádio. O fluxo da Internet pode originar-se fora do território nacional. A lei nacional tem enorme dificuldade de ser executada se um provedor de conteúdo que hospeda um site de pedofilia encontrar-se hospedado em um país distante.Todavia, existem possibilidades de controle de conteúdos e de aplicações que são realizadas por meio da própria tecnologia.
É preciso relativizar a idéia de que os Estados não possuem formas de bloquear e até mesmo controlar determinados fluxos da Internet. O governo autoritário da China filtra conteúdos e impede o acesso a determinados sites porque controla os dois backbones por onde transitam todos os dados que entram e saem do país. Desconhecer estas possibilidades de controle significa abandonar a jornada da humanidade na luta pela legitimação do direito à livre comunicação como um dos direitos fundamentais do homem e do cidadão. É olhar somente para as promessas democratizantes da comunicação mediada por computador e esquecer de sua face panóptica. É desconsiderar a gravidade do fato do Google organizar buscas censuradas para poder ter acesso ao mercado chinês, prática já realizada pelo Yahoo e MSN.
Donna Haraway, em sua brilhante reflexão feminista, qualificou o momento em que vivemos como a “transição das velhas e confortáveis dominações hierárquicas para as novas e assutadoras redes (...) de 'informática de dominação'”. (HARAWAY, p.65) As redes possuem uma linguagem comum entre as máquinas e estas são intermediários indispensáveis para as linguagens naturais humanas, em um ambiente de comunicação via máquinas de processar dados. O jurista Lawrence Lessig já havia alertado, no final dos anos 1990, que no ciberespaço o código tem o mesmo papel de uma legislação. (LESSIG). Exatamente pelos intermediários tecnológicos que Estados autoritários e neo-autoritários (falo dos Estados Unidos), bem como gigantescas empresas imperiais do capitalismo informacional tentam controlar os cidadãos.
Weissberg denunciou a contradição existente entre o desejo de uma comunicação cada vez mais transparente e desintermediada, a partir do dinamismo e do potencial interativo da Internet, e a realidade de sua operação. Por isso, afirmou que “o objetivo de supressão dos intermediários se transforma, conforme seu próprio movimento, em criação de uma nova camada de mecanismos mediadores que automatizam a mediação.”(p.123) Mas como fica a noção de cidadão em um mundo cada vez mais transnacionalizado e com a comunicação mediada por padrões e códigos (softwares) que são apresentados por instâncias definidas como técnicas e distantes dos mecanismos de controle democrático?
Aqui é necessário enfrentar pelo menos duas questões: primeiro, a da evolução da cidadania; segundo, a questão do papel da comunicação e da tecnologia para a mudança ou permanência das relações sociais.
Segundo vários autores, podemos definir “cidadania” como o direito a ter direitos. T. H. Marshall observando a evolução do conceito na Inglaterra, defendeu existir direitos de primeira e segunda geração. Para Marshall, primeiro teriam surgido os direitos civis e depois os políticos (séculos XVIII e XIX). Uma segunda geração de direitos surgiram no século XX e conformariam os chamados direitos sociais. Apesar de acusada de etnocêntrica e linear, a proposição de Marshall passou a ser referência para a observação da mutabilidade histórica da cidadania. Nesse sentido, alguns teóricos observaram o surgimento na segunda metade do século XX dos direitos de terceira geração, ou seja, direitos de grupos, de minorias e etnias, direitos difusos que ganham força em todo o mundo.
Questões como o direito ao meio ambiente, o feminismo e a defesa do consumidor, são incorporados em várias legislações e discursos políticos. (LISZT)
A comunicação transnacional mediada por computador coloca a necessidade de reivindicar novos direitos? Como reivindicar novos direitos em um ambiente transnacional? Mas não seria um exagero exigir deliberação democrática e debate público sobre as funcionalidades de sistemas, códigos e protocolos considerados técnicos pelas indústrias de TI e pelo senso comum? Vamos verificar um caso concreto que interferirá no cotidiano de todas as pessoas do planeta que utilizam e cada vez mais dependem da rede mundial de computadores.
O protocolo de comunicação da Internet chamado IP (Internet Protocol) permite o endereçamento de dados entre todas as redes que a compõem. A versão deste protocolo que permitiu a expansão veloz da rede por todo o planeta é denominada de IPv4 e está sendo substituída por uma nova versão, o IPv6. Entre os vários motivos de criar uma nova versão estão as razões de segurança. O IPv6 permite que os cabeçalhos dos pacotes de dados sejam assinados digitalmente por chaves criptográficas. Estas chaves servem para identificar o autor das mensagens. Pois bem, se for definido que o padrão de comunicação entre redes será a identificação criptográfica de todos os pacotes, então a Internet terá suprimido o anonimato na comunicação. Suponha que boa parte ou a maioria dos cidadãos dos vaŕios países do mundo sejam contra o fim do anonimato na Internet. Como influenciarão esta decisão? A quem recorrer? Qual será o fórum de decisão? Ou continuaremos a acreditar que estas decisões são meramente técnicas?
Guarinello coloca-nos um ponto extremamente relevante:
“Há, certamente, na história, comunidades sem cidadania, mas só há cidadania efetiva no seio de uma comunidade concreta, que pode ser definida de diferentes maneiras, mas que é sempre um espaço privilegiado para a ação coletiva e para a construção de projetos para o futuro.”(p.46)
O problema é que a Internet por ser transnacional não se enquadra facilmente no terreno onde a cidadania tem conseguido avanços, ou seja, nos espaços nacionais.Entretanto, Liszt Vieira aponta que “recentes concepções mais democráticas pretendem dissociar completamente a cidadania da nacionalidade. (...) Por esta concepção, seria possível pertencer a uma comunidade política e ter participação independente da questão de nacionalidade.”(p.32)
Mark Poster avança e questiona: “podem os novos meios de comunicação promover a construção de novas formas políticas não amarradas a poderes territoriais e históricos? Quais são as características dos novos meios de comunicação que promovem novas relações políticas e novos sujeitos políticos?”(p.328)
Talvez uma boa linha de investigação tenha sido lançada por Benedict Anderson quando afirmou que a nação é uma comunidade imaginada. Os meios de comunicação foram fundamentais para a constituição da idéia moderna de nação. A partir dessa perspectiva, Gustavo Lins Ribeiro defende que do mesmo modo que “Benedict Anderson mostrou, retrospectivamente, a importância do capitalismo literário para a criação de uma comunidade imaginada que evoluiria para tornar-se uma nação. Sugiro que o capitalismo eletrônico-informático é o ambiente necessário para o desenvolvimento de uma transnação.” (p.469)
A emergência de uma “comunidade transnacionalmente imaginada”, nos dizeres de Ribeiro, exige o aparecimento de lealdades superiores a dos Estados Nacionais, forjadas a partir do ciberespaço. Nesse contexto, Mark Poster vê a possibilidade de surgimento de uma espécie de cidadão planetário: “o net-cidadão pode ser a figura formativa num novo tipo de relação política, que partilha a lealdade à nação com a lealdade à Internet e aos espaços políticos planetários que ela inaugura.”(p.329)
Comunicação, Tecnologia e o Mito da Neutralidade.
O problema da cidadania, em um cenário de globalização e transnacionalidade, coloca-nos diante da necessidade de enfrentarmos a discussão do papel das comunicações e das tecnologias da informação nos processos de mudança e permanência das relações sociais.
Dominique Wolton escreveu:
“Se uma tecnologia da comunicação desempenha o papel essencial, é porque simboliza ou catalisa, uma ruptura radical da ordem cultural ocorrendo simultaneamente na sociedade. Não foi a imprensa que, por si, transformou a Europa, mas sim a ligação entre esta e o profundo movimento que subverteu o poder da Igreja Católica.” (WOLTON, 2003, p.32)
Para Wolton, as tecnologias de informação e os meios de comunicação não criam revoluções, ao contrário, são utilizados pelos processos revolucionários ou mudancistas. Sem dúvida, não foi a revolução industrial que criou o capitalismo, mas sem dúvida alguma, o domínio da tecnologia da máquina assegurou a primazia sobre o processo de apropriação da riqueza produzida e, este domínio econômico, gerou mais poder sobre a sociedade. Os capitalistas não poderiam impor suas relações de produção se não incorporassem a forma mais produtiva e avançada de geração de bens materiais. Wolton vê nas promessas em torno das tecnologias da informação as mesmas ilusões que geraram prognósticos otimistas para os impactos da TV, do Rádio, do satélite, do cabo, no convívio humano. O teórico francês não percebeu que a TV e todas as formas do paradigma de difusão não têm nenhuma relação com as tecnologias da informação. Estas são mais do que formas de comunicação intensa e múltipla, são também tecnologias da inteligência (LÉVY) que ampliam as possibilidades de transformar informações em conhecimento. São tecnologias que reivindicam um comportamento interativo e se baseiam na proliferação da cópia. Permitem fundir sons a imagens e estas a textos, sendo multidirecionais e capazes de armazenar bilhões de dígitos na mesma máquina receptora e transmissora de mensagens.
Ao afirmar que “a técnica não é suficiente para mudar a comunicação na sociedade”, Wolton pode estar desconsiderando dois importantes elementos: um histórico e outro teórico. Primeiro, a tecnologia da informação nasceu no âmbito do cálculo e do processamento de dados. Somente depois que o computador tornou-se uma ferramenta de comunicação. De um projeto militar no cenário da Guerra Fria, o paradigma da computação em rede surgiu e foi reconfigurado inúmeras vezes por cientistas, hackers e pensadores da contracultura californiana (CASTELLS). Assim surgiu a Internet real, tal como a conhecemos hoje. É inegável que sua expansão está mudando a face das comunicações no planeta. E a comunicação em rede é completamente distinta do broadcasting. Segundo, talvez a insistência de Wolton em afirmar que a tecnologia não muda a sociedade guarde a concepção de que as tecnologias são socialmente neutras. Técnicas quando inventadas sempre guardam decisões de quem as criou. Muitas delas podem ser reconfiguradas, outras têm o uso ambíguo, como a Internet, mas nunca são criadas sem objetivos, de modo neutro. É exatamente esta a questão que aqui discuto. Decisões sobre a arquitetura das redes e seus protocolos estão sendo tomadas por engenheiros, mas têm grande impacto social e podem limitar ou ampliar a liberdade da comunicação entre as pessoas. São decisões de grande impacto público, portanto, adquirem relevância política, mesmo que tenham sido tomadas por comitês técnicos.
Considerar que determinadas tecnologias guardam potenciais revolucionários, não significa também assumir a proposta de McLuhan. Mattelart criticou a supremacia que McLuhan dava ao meio. Sem dúvida, o meio condiciona, mas dificilmente poderá determinar os conteúdos. São visíveis os exageros de McLuhan quando advogou que “o grande abalo que rompeu o corpo da comunicação e a desmembrou teve lugar na Idade Média. Se a Igreja perdeu posição nessa época, se ela aí perdeu sua unidade mística, foi por causa da tecnologia.”(MATTELART, p.103) Por outro lado, é necessário reconhecer que a invenção de Gutenberg viabilizava a proposta de doutrinadores da Reforma que queriam romper com os intermediários entre o homem e Deus, entre a portador da fé e os escritos sagrados. A impressão de tipos móveis “baniu o estilo de vida comum em favor de uma comunidade massiva onde cada indivíduo pode se tornar um leitor e onde a leitura se torna uma experiência privada.” (idem, p.103)
Em outro texto mais recente, Wolton parece reconhecer a magnitude e a complexidade da comunicação em rede e aponta um problema que indica a necessidade da deliberação pública sobre os caminhos da comunicação mediada por computador, principalmente, a Internet: “É no que o tema da sociedade da informação é perverso: ele homogeneiza tudo e faz desaparecer o homem por de trás dos fluxos de informação. Numa economia do signo, tudo é possível. Cabe então ao homem inventar seus próprios limites.”(WOLTON, 2004, p.155)
Conclusão: Concentração de Poder e Cultura Hacker
Carlos Afonso, um dos pioneiros da Internet no Brasil, ao comentar o debate sobre a governança da Internet na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, ocorrida em duas fases, Genebra, em 2003, e Túnis, em 2005, afirmou:
“Os equívocos de alguns participantes do debate global vão desde acreditar que o tráfego de conteúdo passa pelo sistema de servidores-raiz até pensar que as funções de governança da Internet como um todo deveriam estar sob a alçada da UIT (União Internacional das Telecomunicações). A ICANN também costuma ser apresentada como uma organização global, o que é verdade apenas numa pequena parte e, em termos legais, não o é de forma alguma. A ICANN está sujeita às leis federais dos Estados Unidos e às leis do estado da Califórnia, e o seu poder de governança da Internet está limitado por vários contratos e por um Memorando de Entendimento (ou MoU, na sigla em inglês) envolvendo o governo dos EUA, a ICANN e a principal operadora do sistema global de nomes de domínio, uma empresa privada chamada Verisign.” (AFONSO, p.11)
O que mais chama a atenção na crítica de Carlos Afonso não é a ignorância de alguns participantes, mas o grande poder do governo norte-americano sobre um dos órgãos técnicos que definem regras da comunicação em rede. Por outro lado, este poder não está apenas no contexto da governança da Internet, pois uma sociedade em rede ou informacional exige um conjunto de intermediários e de decisões técnicas de enorme impacto sócio-planetário.
A concentração de poder comunicacional na sociedade da informação poderá ser muito maior do que a ocorrida com a mídia de massas na sociedade industrial. No ano de 2002, mais de 90% dos computadores pessoais do mundo utilizavam o sistema operacional de uma única empresa norte-americana, a Microsoft. O sistema operacional é o principal programa de uma máquina de processar informações. Ele define como a máquina deve agir, como deve alocar a memória, que tipos de programas podem ou não podem ser instalados nela, entre outras funções.
“Por dominar a linguagem básica dos computadores, esta empresa também passou a dominar o mercado de navegadores web (browser), uma vez que passou a vender o browser junto com seu sistema operacional, desbancando todos os outros existentes.”(SILVEIRA, p.157)
Mark Poster alerta-nos que a saída para a democratização da sociedade informacional está na construção de novas estruturas políticas fora do Estado-nação em colaboração com as máquinas.”(p. 322)
Ou seja, é na formação de um movimento de opinião pública planetário, transnacional, no ciberespaço com consequências em todos os territórios, pois para Poster não há como criar processos decisórios mundiais. Poster acredita que “a nova 'comunidade' não será uma réplica de uma ágora, mas será mediada por máquinas de informação. Portanto, o exigido é uma doutrina dos direitos da interface homem/máquina.”(p.322)
Para construirmos a idéia de novos direitos de caráter planetário, será fundamental observarmos a cultura hacker que esteve presente desde o nascimento e em toda a expansão da comunicação baseada nas redes informacionais. A Internet evoluiu aberta, vencendo tentativas de apropriação privada de seus elementos principais, exatamente pela forte influência dos hackers em seus processos vitais. A cultura hacker também está escrevendo uma das mais contundentes críticas a opacidade dos códigos e ao bloqueio do fluxo de conhecimento tecnológico na sociedade da informação. Dela nasceram movimentos como software livre e fenômenos como a maior enciclopédia do mundo, a wikipedia.
Ao estudar a cultura hacker, o filósofo finlandês Pekka Himanen escreveu:
“A ética de trabalho dos hackers consiste em combinar paixão com liberdade, e foi essa a parte da ética dos hackers cuja influência foi sentida com maior intensidade.” (...) “um terceiro e crucial aspecto da ética dos hackers é a atitude dos hackers em relação às redes, ou seja, é a sua ética da rede, que é definida pelos valores da atividade e do cuidar. Atividade, nesse contexto, envolve a completa liberdade de expressão em ação, privacidade para proteger a criação de um estilo de vida individual, e desprezo pela passividade frente à procura pela paixão individual. Cuidar significa aqui a preocupação com o próximo como um fim em si mesmo e um desejo de libertar a sociedade virtual da mentalidade da sobrevivência que tão facilmente resulta de sua lógica.” (p.126)
Os hackers do movimento de software livre estão enfrentando as companhias que buscam monopolizar no planeta o controle dos intermediários da comunicação (softwares, códigos e protocolos da comunicação em rede). Estas companhias alegam que seus direitos de propriedade estão acima de todos os demais direitos, inclusive da liberdade de conhecer, do uso justo de uma obra protegida pelo copyright, do direito à privacidade, à segurança e ao anonimato. Enfim, estamos em uma novo terreno. Dele emanam a reivindicação de novos direitos, direitos de comunicação, de liberdade de expressão e da possibilidade democrática de tomar decisões em uma sociedade em rede, virtual ou ciberespacial.
O debate mal começou.
Sérgio Amadeu da Silveira é doutor em ciência política e professor de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero.
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Este texto foi apresentado originalmente no congresso da Intercom, em setembro de 2006.