sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Crise e transformação

Emergência Espiritual - Crise e Transformação
Autor: Stanislav Grof
Editora: Cultrix
Stan Grof é psiquiatra e apesar do título não estamos falando de sessões espíritas, ok? Transcrevo abaixo o assunto abordado.

" A principal idéia desenvolvida neste livro é a de que algumas das experiências dramáticas e dos estados mentais incomuns que a psiquiatria tradicional diagnostica e trata como distúrbios mentais são, na verdade, crises de transformação pessoal ou "emergências espirituais". Episódios dessa espécie têm sido descritos na literatura sagrada de todas as épocas como resultados de práticas de meditação e como marcos do caminho místico, em suma, experiências dotadas de um conteúdo ou sentido espiritual bem claro.
Quando entendidas e tratadas adequadamente, em vez de serem simplesmente suprimidas pelas rotinas psiquiátricas padronizadas, essas experiências podem ter como resultado a cura e produzir efeitos benéficos nas pessoas que passam por elas(...)"

O desenho do aparelho psíquico é universal ?



Transcrevo abaixo entrevista com Fernado Hermann, acerca da depressão.
Além do interesse pelo próprio tema, achei oportuno porque traz também, nas entrelinhas, a indagação: afinal, até que ponto e em que medida o aparelho psíquico desenhado por Freud é universal ?

Depressão: a principal neurose da sociedade atual. Entrevista especial com Fernando Hartmann

Considerado um dos grandes males da sociedade contemporânea, a depressão está sendo discutida amplamente por psicólogos e psicanalistas, como Roland Chemama, que acaba de lançar o livro “Depressão: a grande neurose contemporânea”. A obra será discutida no Fórum Clínico especial sobre a análise de Chemama, que acontece no próximo dia 31, às 16h, na Associação Clínica Freudiana de São Leopoldo. A IHU On-Line conversou com o debatedor do evento, Fernando Hartmann, sobre a depressão vista como a grande neurose atual e suas significações para a sociedade. “Falar de subjetividade em psicanálise nunca é algo fácil. Se entendermos que o sujeito é um efeito da linguagem a questão da subjetividade estará relacionada aos efeitos que os discursos vigentes terão sobre uma singularidade, porque, como efeito, digamos que o sujeito não tem muito a fazer”, afirmou Fernando, na entrevista, realizada por e-mail.
Fernando Hartmann é graduado em Psicologia, com especialização em Teoria Psicanalítica, pela Unisinos. Possui mestrado e doutorado em Educação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) É autor de Violências e contemporaneidade (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2005).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - O senhor escreveu um livro sobre violência e contemporaneidade. De que forma esses impasses no relacionamento entre os homens está contribuindo para que a depressão seja, como fala Roland Chemama (1), a grande neurose de hoje?

Fernando Hartmann - Eu concordo plenamente com Roland Chemama quando ele afirma que a clínica individual responde ao que se passa na clínica social. Se no início do século passado a histeria era o que tínhamos de mais evidente enquanto patologia psíquica, podemos dizer que atualmente a patologia psíquica mais evidente é a depressão. Podemos acreditar que isso tem relação com as mutações sociais que a humanidade vem sofrendo. Conforme Chemama, “a grande neurose contemporânea” é um dizer do psicanalista Jacques Lacan (2) de algumas décadas atrás, no qual ele referia uma paralisia da ação que une a impotência e a utopia. No livro Violências e contemporaneidade, discuto algumas formas em que a violência se apresenta seja na clínica individual, ou seja, no social. Se, no Brasil, estamos vivendo um momento de violência urbana acentuada de mais a mais podemos inferir que isso se deve a uma crescente desvalorização da vida, uma falta de força da lei, uma banalização das relações, uma falta de perspectiva no futuro e um desreconhecimento do passado histórico. Nós bem poderíamos utilizar estas mesmas palavras para caracterizar um sujeito depressivo.
A questão da violência no Brasil é muito complexa, sendo, a meu ver, um significante que serve para vários significados e em relação ao qual não pretendo dar conta aqui. Talvez um ponto de aproximação seja justamente a questão do tempo, esse tempo sem passado ou futuro de nossos jovens envolvidos em atos violentos. Roland Chemama, em seu livro sobre depressão, ressalta a dificuldade do sujeito frente ao tempo. Para o depressivo, é como se o tempo fosse sempre o mesmo, quer dizer passado e futuro se apagam em um presente contínuo. Se esta orientação de seqüência temporal desaparece, o sujeito não consegue mais fazer planos para o futuro, assim como não consegue contar sua vida passada de uma forma que possa conter momentos históricos, marcantes, subjetivados. A vida passa como se ele fosse sempre passivo e as coisas fossem acontecendo. O sujeito depressivo não consegue definir claramente a causa de sua depressão. Quando a causa da depressão pode ser claramente enunciada como, por exemplo, a perda de um emprego, da namorada, morte de alguém da família, podemos supor que se trata de um momento de depressão que a pessoa está passando, diferentemente da depressão enquanto uma estrutura psíquica caracterizada por um desinvestimento radical na vida. Estas diferenças são importantes para delimitarmos o estar deprimido e o ser depressivo.
Voltando à questão da relação do sujeito depressivo com o tempo, esse tempo que não passa, em que tudo é igual, podemos fazer uma correlação com a forma como lidamos com o tempo hoje. Ninguém tem tempo. O tempo é algo que sempre falta. A velocidade com que vivemos, nos deslocamos, comemos, nos divertimos, nos comunicamos não tenderia a uma anulação cada vez maior do passado e do futuro? Isso não nos mantém em um presente cada vez mais estendido? O depressivo pratica uma extensão do presente. O que possibilita uma distinção do tempo, para que ele não seja sempre presente, é a linguagem no que ela introduz de serialidade, quer dizer, falar uma palavra depois da outra, produzir uma diferença.
Sabemos a diferença marcada pela serialidade introduzida pelo simbólico, uma coisa depois da outra. Foi o que possibilitou ao humano inventar esse tempo semanal, anual, marcado pela nominação dos dias, meses, anos. Em uma sociedade em que tudo é igual e tudo se vale, quer dizer, mesmo as diferenças não marcam uma hierarquia: são, antes, uma escolha que pode ser não importa qual. Nós construímos isso.
Então, se não existe diferença, e aqui serei freudiano, se não há diferença sexual, a tendência é permanecermos em um tempo sempre igual. Por que será que cada vez mais as diferentes etapas da vida diminuem dando lugar a uma busca de idade imutável? Nós diminuímos o tempo da infância, as crianças cada vez mais se tornam adolescentes mais cedo em suas vidas, e, também, evitamos, de todas as formas, as marcas da velhice: basta ver o grande aumento de cirurgias plásticas praticadas. Nós queremos parar o tempo. Essa impressão do tempo parado diz respeito à depressão.

IHU On-Line - Para o senhor, a depressão é uma doença da autonomia?

Fernando Hartmann - A questão da autonomia não é uma questão fácil, como foi possível verificar no evento que o Instituto Humanitas promoveu este ano na Unisinos. A depressão freqüentemente é reconhecida como uma dificuldade de viver, uma dificuldade por vezes de fazer as coisas mais simples como comer, tomar banho, sair de casa, conversar com pessoas. A concepção médica retrata a depressão, como abatimento, inibição do pensamento, sentimento de vazio, cansaço, apatia, impossibilidade de amar, impotência ou frigidez, sentimento de inferioridade, de inadaptação ou de ausência de valor. Em psicanálise alguns autores como Roland Chemama, por exemplo, defendem que é por não ter sustentado seu desejo como convinha que um sujeito pode estar deprimido. Acho também importante dizer aqui que momentos de tristeza, mesmo de depressão, durante o curso de uma vida, digamos decorrentes da perda de um emprego, da perda de um ente querido, um caso de amor ou por motivos outros devido às contingências da vida são momentos aos quais no mínimo temos o direito de passar, não a obrigação, mas o direito. Certamente, a depressão não se caracteriza por um estado de tristeza qualquer. O desinvestimento na depressão é algo muito radical, mas no que diz respeito às relações do sujeito com a sociedade que o sustenta acho importante fazermos algumas conjecturas.
Atualmente, nós não queremos mais saber destes momentos, nós não suportamos mais a tristeza, mesmo que momentânea, e devemos estar sempre bem, belos e saudáveis. O que está em desacordo com este discurso deve ser excluído. Para simplificar, direi que nós devemos estar sempre potentes. Porém, de onde vem esta necessidade de potência constante? Bem, logicamente ela vem de um sentimento de impotência, de um medo da impotência, de uma busca de identidade frente ao social, uma identidade a qual nos vemos obrigados a reconstruir a todo instante porque não é mais referida a uma tradição, ao sobrenome de família, ao sobrenome do pai. Digo isso para simplificar, mas se constantemente precisamos estar demonstrando a nossa potência é porque temos medo da nossa impotência, da nossa falta de identidade. Um bom exemplo disso é o uso indiscriminado de medicamentos tipo Viagra, tanto por homens mais velhos como por jovens e até mesmo por mulheres. Devido ao receio de falta de potência, se utiliza o medicamento, que de fato é um medicamento para impotência. Quer dizer, mostrando a potência desta forma denunciamos a nossa impotência.
Necessitando recriar nossa identidade todos os dias, mostramos nossa falta de identidade. Se antes nós estávamos mais seguros, tanto de nossa identidade como de nossa potência, era porque nós admitíamos que havia alguém a quem nós devíamos a nossa identidade e também alguém a quem devíamos a nossa potência. Para isso, precisamos supor alguém que tenha uma identidade além de nós mesmos e alguém que seja mais potente que nós. Se hoje supomos não dever isso a ninguém, também nos vemos jogados em um tempo contínuo de reinvenção de nossa identidade e de nossa potência. Talvez por esse caminho possamos revisitar a passagem que Gilles Lipovetsky (3) faz na re-nominação de tempos pós-modernos para tempos hiper-modernos. Não podemos desreconhecer a relação do hiper com a potência ou melhor, dizendo, com o esconder a impotência.

IHU On-Line - Como a depressão pode ser entendida e discutida dentro das novas subjetividades?

Fernando Hartmann - Falar de subjetividade em psicanálise nunca é algo fácil. Se entendermos que o sujeito é um efeito da linguagem, a questão da subjetividade estará relacionada aos efeitos que os discursos vigentes terão sobre uma singularidade, porque como efeito, digamos que o sujeito não tem muito a fazer. Porém, Jean-Pierre Lebrun, (4) em seu livro La perversion ordinaire, nos propõe um segundo momento de subjetivação, que é a retomada pelo sujeito deste primeiro momento de subjetivação. Então, digamos que a subjetividade deriva de um movimento de dobra, de retomada do sujeito enquanto efeito e enquanto aquele que enuncia. Vou propor tomarmos esta questão da subjetividade e da depressão de uma forma dinâmica. Bem, como vimos, as patologias subjetivas não são realidades fora da história, quer dizer, não podemos fazer uma separação entre o individual e o social. Então, vamos supor, conforme Chemama em seu livro sobre depressão, que as estruturas clínicas estão ligadas às mutações históricas e o autor seguindo a indicação de Lacan defende que mutação a qual está ligada a estrutura psíquica depressiva é a transformação do lugar do pai.
Lacan, já em 1938, falava de um declínio da imagem paterna. De uma forma mais ampla, podemos verificar que o pai, no seio da família, tem se tornado ao longo dos últimos anos mais sedutor do que protetor. O pai, que antes mantinha um lugar diferenciado na família, de respeito, autoridade, proteção passa a ser um pai mais fraco, com não tanto respeito nem autoridade, um pai que se preocupa mais em ser amado pelos filhos do que em educar estes. Digamos que a imagem que se pode ter do pai parece ter enfraquecido a imago social do pai. Qual é a importância disso? Um pai enfraquecido terá mais dificuldade de marcar a separação entre a mãe e a criança, tendo em vista que é função paterna tirar a criança da totalidade mãe-bebê e assim direcioná-la ao mundo. Ele também terá mais dificuldade de marcar a diferença sexual. Para Lacan, esse pai que se apresenta como uma imagem ausente, deprimida, enfraquecida, desde já, não poderá desempenhar o papel de interdição. Como bem sabemos, a interdição é fundamental no desenvolvimento do desejo. Então, sem a interdição, ou com uma meia interdição, o sujeito terá dificuldades com relação à estruturação de seu desejo. É essa dificuldade com relação ao desejo que encontraremos nos sujeitos depressivos, eles freqüentemente falam de uma apatia.

IHU On-Line - Quais são as particularidades da depressão hoje? Ela apresenta uma certa unidade?

Fernando Hartmann - A depressão se refere a uma determinada estrutura psíquica, mas na psicanálise não consideramos a depressão como uma estrutura clínica assim como a psicose, a neurose ou a perversão. Digamos que a depressão pode ocorrer tanto em sujeitos neuróticos quanto em psicóticos ou perversos. Uma das particularidades da depressão hoje são os medicamentos antidepressivos. Conforme estatísticas, os medicamentos antidepressivos são os mais vendidos no mundo atualmente. Acredito que todos conhecemos pessoas que já tomaram ou tomam antidepressivos. A indústria farmacêutica tem realizado grandes avanços nesta área, e muitas vezes estes medicamentos são de grande importância no tratamento do depressivo. Porém, o que nós vemos hoje é um excesso do uso deste tipo de medicamento. Os antidepressivos são amplamente receitados pelos médicos e não somente na psiquiatria ou neurologia, mas também na clínica geral. Eles são receitados de forma indiscriminada, desde que o paciente esteja triste e com algumas dificuldades na vida como uma desilusão amorosa, perda de emprego, doença na família, luto, enfim questões que todos de alguma forma ou de outra temos grandes chances de passar, quer dizer são situações normais da vida. O problema é que utilizando um medicamento muitas vezes as pessoas passam verdadeiramente a se acharem doentes. Então elas precisam de um medicamento para enfrentar a vida, neste sentido, como falei antes com respeito ao Viagra, elas assumem o fato de serem impotentes, mostrando a sua falsa potência medicamentosa. Freud (5) já dizia que assumir o fato de ser doente serve muito bem para escondermos sentimentos recalcados aos quais não queremos ou não podemos nos deparar.

IHU On-Line - Como a ruptura do laço social, conseqüência da depressão, influência nas mudanças sociais do sujeito para consigo e para com os outros na sociedade do individualismo que estamos vivendo?

Fernando Hartmann - Eu não estou bem certo se existe uma ruptura do laço social. Eu diria de preferência que estamos passando por mutações históricas que proporcionam outras formas de laço social. Algumas pessoas na França já falam do ressurgimento do matriarcado. Acredito que não se trata de julgar, de fazer uma análise equivocada de que antes vivíamos em tempos dourados que hoje se tornam terríveis. O que eu posso dizer a partir de meu trabalho clínico é que escutando as pessoas na sua singularidade se tornam evidentes alguns laços que amarram estas pessoas ao social, aos discursos que sustentam este social. Justamente nesta tensão entre o que é do singular e o que é do coletivo o sujeito trafega. Lacan dizia que o que faz laço social é o discurso. Ele nomeou quatro discursos: da histérica, do universitário, do mestre e do analista. São quatro formas lógicas que Lacan encontrou para pensar as relações do sujeito com o saber, a verdade e o trabalho. Ele ainda falou poucas vezes de um outro discurso que seria o discurso do capitalista, discurso que é uma derivação do discurso do mestre e no qual o que comanda é o objeto. Como Lacan disse a respeito do capitalismo: “consome, consome que se consome”. Acho que ainda temos uma forte influência deste discurso capitalista, com o laço social que ele pode proporcionar. A questão do discurso é o endereçamento, é por isso que ele faz laço social. Roland Chemama escreve o livro Depressão, a grande neurose contemporânea na forma de cartas endereçadas a um amigo. Acredito que isso não acontece por acaso. O endereçamento a um outro, assim como se faz com as cartas, é uma das formas de lidarmos com a depressão, sair do isolamento e fazer laços sociais.

Notas:

(1) Roland Chemama é um psicanalista e filósofo francês. É membro da Associação lacaniana internacional, da Associação freudiana internacional e organizador do Dicionário de Psicanálise.