terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Divida pública consome metade do orçamento

Dívida pública consome metade do orçamento

“Vemos a utilização do instrumento do endividamento público às avessas”, denuncia Maria Lucia Fattorelli. Ex auditora fiscal da Receita Federal e presidente do Unafisco Sindical(Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal), Fattorelli adverte que, se o instrumento de endividamento do Estado seria para completar suas receitas, o que acontece é exatamente o oposto: o pagamento da dívida tem tirado dos cofres públicos anualmente quase metade de seu orçamento. Em 2011 a dívida pública absorveu R$708 bilhões, o equivalente a 45% do orçamento da União e em 2012, a previsão orçamentária calcula que tenha sido em torno de 48%. A dívida, paga por todos os cidadãos brasileiros, já supera o valor de R$3 trilhões.< /span>
Da onde surgiu essa dívida? A quem ela está sendo paga? O que o povo brasileiro ganha com isso? Por que ela não para de crescer? Maria Lucia Fattorelli, formada em administração e ciências contábeis, ajuda a responder essas e outras questões. Desde 2000, ela integra o movimento Auditoria Cidadã, que investiga a dívida brasileira e pressiona pela realização de uma auditoria oficial, prevista na Constituição Federal mas nunca realizada. O movimento acaba de lançar um livro de estudos, “A dívida pública em debate”, com o objetivo de popularizar a discussão a respeito do tema, que, para eles, “é o nó que amarra o Brasil”.
Maria Lucia prestou assessoria técnica à CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados em 2010 e participou da auditoria oficial da dívida do Equador, que foi concluída em 2008. Com o resultado desse trabalho, que apontou diversas irregularidades, o presidente Rafael Correa propôs aos credores pagar 30% do valor previsto para resgatar todos os títulos.
Fattorelli aponta que o processo de endividamento foi bastante similar em todos os países latino-americanos e suspeita que boa parte da dívida brasileira, que surgiu nos anos 1970, foi simplesmente para financiar a ditadura militar. E mais: salienta a necessidade de investigar se, como aconteceu no Equador, a dívida brasileira não tenha prescrito em 1992 e simplesmente sido ressuscitada pelo governo em conjunto com integrantes do setor financeiro.
“Existe um sistema da dívida”, ressalta: “Esse sistema atua no modelo político, econômico, no sistema legal e na grande imprensa”. “Hoje a dívida está consumindo R$2,3 bilhões por dia”, constata. “É isso que explica: o Brasil é a sexta potência mundial hoje, e ano passado a ONUnos classificou em 84º lugar no índice de desenvolvimento humano”.
A entrevista é de Gabriela Moncau e publicada na revista Caros Amigos.
Eis a entrevista.
A dívida pública brasileira já supera R$3 trilhões?
Se somarmos a dívida interna, que está em R$2 trilhões e 637 bilhões, e a dívida externa, que está em U$422 bilhões, superamos os R$3 trilhões.
Você já chegou a dizer que é melhor falar em dívida pública de maneira geral do que em dívida externa ou interna. Por quê?
Um livro de economia diz que dívida interna é a aquela contraída junto aos residentes no país. Se olharmos na página do tesouro nacional, os dealers são um conjunto de 12 instituições que tem o privilégio de comprar dívida em primeira mão, logo que o tesouro nacional lança os títulos. Estão lá o Citibank, o JP Morgan, o Barclays, o Deutsche Bank, o Royal Bank of Scotland, e por aí afora. Como se pode chamar dívida interna uma dívida que vai direto para a mão de bancos estrangeiros? Por isso dizemos que o mais correto é falar em dívida do setor público. Não existe nacionalidade para o dinheiro. Temos que continuar usando a classificação interna e externa porque na contabilidade pública está dessa forma, mas é preciso considerar o conjunto, a dívida é pública.
Qual a origem da dívida?
Se formos puxar o fio da meada, o Brasil já nasceu endividado. Quando tivemos nossa independência decretada, tivemos que assumir uma dívida que Portugal tinha contraído com a Inglaterra. Mas para pegar esse último ciclo, que é o mesmo que perdura até hoje, ele começou na década de 1970, durante a ditadura militar. Começa num período de total falta de transparência, a parte que aparecia era a do tal “milagre econômico”. Assumimos uma série de empréstimos externos para construir hidrelétricas, siderúrgicas, vários investimentos de infraestrutura.
Só que durante a CPI da dívida buscamos a explicação para a origem dessa dívida. E os contratos desses investimentos explicam menos de 20% dos gastos com a dívida daquela época. E os outros 80%? Fica uma suspeita: será que esse montante, ou pelo menos boa parte dele, foram compromissos assumidos simplesmente para financiar o próprio processo de ditadura militar? Estamos inclusive preparando para um contato com a Comissão da Verdade para incluir em seus trabalhos a investigação sobre o financiamento da ditadura. Quem bancou todos aqueles agentes internacionais que ficavam aqui? Quem bancou aquela estrutura de espionagem, todas as viagens? A maior parte dessa dívida foi junto a bancos privados internacionais. Não foi dívida, por exemplo, com o FMI [Fundo Monetário Internacional], como muitos brasileiros pensam.
Inclusive no governo Lula houve propaganda de que o Brasil pagou tudo o que devia para o FMI e a ideia de que portanto estaríamos livres de dívida externa.
Pois é. Isso aí surtiu o efeito político no imaginário dos brasileiros de que dívida externa é sempre com o FMI. E isso nunca foi fato. Todo o endividamento da década de 1970 foi principalmente com esses bancos privados internacionais, que estavam com excesso de liquidez. Ou seja: tinham um volume muito grande de moeda disponível. Por quê? No dia 15 de agosto de 1971, um domingo, o presidente Nixon simplesmente comunicou que não existiria mais a paridade do dólar com o ouro. Isso permitiu que os EUA ligassem a maquininha e imprimissem qualquer quantidade de dólar que quisessem. A essas alturas, 30 anos depois de Bretton Woods, o mundo inteiro já tinha absorvido o dólar como moeda de trocas internacionais.
Isso causou um excesso de liquidez em poder dos bancos. Esses bancos vieram principalmente aos países da América Latina e ofereceram empréstimos a taxas muito atraentes, em torno de 5%, no máximo 6% ao ano. Esses mesmos bancos privados comandavam o FED [Federal Reserve Bank], que é o Banco Central norte-americano. Ele tem cara de instituição pública, mas o conselho executivo é composto por 10 ou 12 bancos privados, aqueles mesmos que eram os credores. Por volta de 1979 essas taxas começaram a se elevar e chegaram a 20,5% ao ano. Em 1981 já ficou difícil de pagar e em 1982 começou pelo México, seguiu pela Argentina, Brasil, Peru, todos; entraram em crise.
Tem vários princípios de direito internacional que amparam uma revisão caso as condições pactuadas sejam transformadas. Muitos outros princípios foram desrespeitados, como o de conflito de interesse: eram os mesmos bancos credores que comandavam as instituições que determinavam a variação da taxa. Mas nenhum país nunca levantou essas questões, isso que é gravíssimo.
E o que aconteceu no momento da crise, nos anos 1980?
Nesse momento que vem o FMI, para oferecer um empréstimo que garantisse o pagamento imediato daquele período. Mas para garantir esse crédito, o FMI exigiu que cada país fizesse acordos, transferindo as dívidas com esses brancos privados internacionais para o Banco Central (BC).
Tanto as dívidas do setor público quanto do setor privado foram transferidas a cargo do Banco Central. E o mais grave: esse dinheiro que o BC assinou como devedor nunca veio para o Brasil. Por exemplo, as empresas A, B, C do setor público e as empresas X, Y, Z do setor privado tinham dívidas com bancos internacionais. O Banco Central assumiu papel de devedor mas essas empresas já tinham recebido o dinheiro que pegaram emprestado. Ele passou a ser devedor mas não recebeu esse dinheiro, ele só assumiu o ônus da dívida. Isso é muito importante porque é um indício da completa ilegitimidade dessa dívida. Como é que você tem uma dívida, que foi a transformação de outra dívida que você nem tem prova dela, e mais, como é que o BC assume uma dívida da qual ele nunca recebeu dinheiro? E nós é que temos que pagar?
Por que desde então esse valor não para de crescer?
Por causa das condições extremamente onerosas que foram impostas nesses acordos. A gente paga um pedaço dos juros, e outro pedaço é incorporado ao capital. Então foi virando uma bola de neve.
Na década de 1980 várias comissões do Congresso Nacional discutiram isso. Uma comissão em 1983 que teve um relatório brilhante, apontou verdadeiros crimes. Não deu em nada. Teve outra comissão em 1987, no Senado, o relator foi o Fernando Henrique Cardoso. Não deu em nada. Porém, como resultado de todo esse debate a respeito da dívida, entrou na Constituição Federal, em 1988, a necessidade de fazer uma auditoria da dívida. E logo depois foi formada uma comissão para fazê-la. Só que essa comissão enfrentou gravíssimos problemas políticos e quase não conseguiu trabalhar. O relatório foi do falecido senador Severo Gomes que fez uma breve análise jurídica dos acordos da década de 1980, que ele considerou nulas de pleno direito, cláusulas abusivas. Acho que todo brasileiro deveria ler o relatório dele, é um relatório curto q ue está disponível na página na internet da Auditoria Cidadã.
É um documento que tem um parágrafo que eu sei quase de cor: “Esses acordos colocam o Brasil de joelhos sem brios poupados, inerme e inerte, imolado à irresponsabilidade dos que negociaram em nosso nome e à cupidez de seus credores. Renúncia de soberania talvez nós tenhamos tido algumas, mas uma renúncia declarada à soberania do país é a primeira vez que consta de um documento, faz dele talvez o mais triste da história política do país”. Mais uma vez não deu em nada e a Constituição não foi cumprida. E a dívida crescendo.
Existe a suspeita de que essa dívida já tenha prescrito?
Sim, temos uma suspeita de que em 1992 essa dívida passou por um processo de prescrição. Porque todos esses acordos da década de 1980 foram firmados em Nova Iorque e a lei regente desses acordos era a lei de Nova Iorque. Segundo essas leis, as dívidas prescrevem em seis anos. Então, se eu tenho uma dívida com você e interrompo o pagamento, você tem seis anos para me acionar. Seja administrativamente, seja judicialmente. Se você não fez nada, dali a seis anos a dívida morreu, prescreveu. Isso está previsto na lei norte-americana, chama estatuto de limitações. Se uma parcela deixa de ser paga, isso provoca a antecipação do vencimento de toda a dívida.
Em 1986, houve uma interrupção de pagamento de juros daqueles acordos. A partir desse momento começou a contar o prazo de prescrição. Passaram-se seis anos e não houve nenhuma exigência para que o Brasil efetuasse esse pagamento. O BC não foi compelido por nenhuma ação administrativa ou judicial a efetuar o pagamento. Então temos a suspeita de que em 1992 a dívida prescreveu.
Por que um governo optaria por ressuscitar uma dívida já prescrita?
Aí que está. Entra mega corrupção, mensalão é grão de areia perto disso aí, e uma série de outras coisas. Por que temos uma suspeita tão forte que isso tenha acontecido no Brasil? Vários documentos que tivemos acesso no CPI da dívida mencionam um contrato de renúncia que nunca apareceu. Mas em 1992 houve uma forte pressão no Senado para aprovar uma resolução que autorizasse uma negociação no exterior. Uma negociação de mais de 60 bilhões de dólares. A pressão para aprovar isso foi tão forte que esse documento saiu do Ministério da Fazenda para o Senado e em poucos dias foi aprovado, nesse mesmo dia já saiu parecer da Procuradoria da Fazenda, foi tudo muito ágil.
Quem participou dessa comissão que fez essa renegociação em 1992? Foi um contrato feito no Canadá, que nunca apareceu. Um grupo de várias pessoas do Ministério da Fazenda e do Banco Central participou, mas três nomes de destaque, que na época não tinham cargo, eram tipo consultores do setor financeiro: Armínio Fraga, Pedro Malan e Murilo Portugal. Essa negociação feita em 1992 permitiu que toda essa dívida com bancos privados, proveniente desses questionáveis acordos da década de 1980, fosse transformada em títulos, em papéis de dívida negociáveis no setor financeiro, os tais bônus brady. Essa transformação se concretizou em 1994, período em que, com a eleição do Fernando Henrique Cardoso, o Pedro Malan virou Ministro da Fazenda, o Murilo Portugal virou presidente do tesouro e o Armínio Fraga, presidente do Banco Central . Entendeu?
Essa conversão foi tão absurda que ela foi feita em Luxemburgo, um paraíso fiscal, porque nenhuma bolsa de valores regular aceitaria uma conversão desse tipo. Foi uma conversão direta, não foram títulos que o Brasil ofereceu ao mercado e recebeu dinheiro em troca. Mais uma vez, nenhum centavo entrou no país. Foi uma troca direta: de papel por papel. E pagando juros, pagando taxas, pagando comissões, pagando encargos... Por isso a dívida cresce sem parar. Simplesmente se assume uma dívida, sem que o dinheiro entre.
É um endividamento sem nenhuma contrapartida?
Sem contrapartida! Em 1994, converteu em bônus brady, provavelmente ressuscitaram uma dívida morta – que fique registrado que é uma suposição que temos, não encontramos ainda documento que comprove. Temos indícios por conta da menção a um contrato de renúncia em outros documentos e o paralelo que fazemos com o Equador. Porque todo o processo foi idêntico: a dívida da década de 1970, os acordos da dívida nas mesmas datas, a entrada do FMI em 1983, as exigências do FMI, o brady, tudo igual.
Aqui no Brasil esses bônus brady resultantes dessa conversão foram acatados como moeda na compra das nossas empresas submetidas ao processo de privatizações. Então, além de assumir uma dívida absurda porque dinheiro nunca entrou, as nossas empresas ainda foram trocadas por esses papéis de dívida. E quando esses papéis de dívida externa entram no tesouro, o que o tesouro fez? Trocou essa dívida por dívida interna. E aí começa a bola de neve da dívida interna a partir de 1994.
Veio o plano real, com taxas de juros interna altíssimas. Uma das táticas do plano real foi liberar totalmente as importações para que o produto importado chegasse aqui bem baratinho e forçasse as indústrias nacionais a baixar o preço, muitas até quebraram. Só que aquela avalanche de importados tinha que ser paga. E como ser paga se o Brasil não produz dólar? O país abriu para o investimento do estrangeiro na compra de títulos da dívida interna, que paga os maiores juros do mundo. Tudo isso para controlar a inflação. A dívida interna começou a dobrar a cada mês. Então veja bem: dívida externa emitida para pagar dívida anterior e dívida interna para sustentar o plano real.
Com tudo isso, eu pergunto: qual o benefício para a nação? Pois essa dívida é paga por nós tanto com base nos elevados tributos embutidos em tudo que consumimos como nos demais impostos (de renda, de casa, de carro, etc). E cadê os serviços públicos a que temos direito? Como está a educação, a saúde, o transporte? Uma dívida tem que ter alguma contrapartida que justifique todo esse esforço dos cidadãos para pagá-la.
A própria ideia de endividamento público, na teoria, é para completar as receitas do Estado. Pelo jeito o que acontece é o contrário, os recursos do Estado são só retirados.
Exatamente. É a utilização do instrumento do endividamento público às avessas. Endividamento deveria servir para aportar recursos à nação. Aí sim se justifica. Não, o endividamento público se transformou num mecanismo de transferência dos recursos públicos para o setor financeiro privado. A isso cunhamos um termo: existe um sistema da dívida.
Isso é um sistema, tem princípio, meio e fim. Aqui no Brasil, quais as principais metas atualmente? Não são de bem estar social, de pleno emprego, etc. As metas do nosso modelo econômico são superávit primário, metas de inflação. Quem se beneficia? O sistema da dívida.
Para operar, o sistema da dívida interfere no modelo político. O poder econômico é que elege a maior parte dos representantes que estão lá na Câmara, no Senado, nas Assembleias Legislativas. Quem financia as campanhas de quem vence as eleições? Principalmente bancos e grandes corporações que tem um pézinho no setor financeiro. Ao eleger, é claro que vão exigir uma postura na votação das leis, nas medidas, nas licitações. Para operar, esse sistema garante um aparato de membros do Legislativo e do Executivo que está na mão deles.
Isso é tão forte que agora na Europa, com a crise, posso dar exemplo. Na Grécia, o primeiro-ministro anterior, o Papandreou, resolveu fazer um plebiscito sobre aceitar os empréstimos da troika em troca das medidas de austeridade. No dia que comentou sobre esse plebiscito, ele foi obrigado a renunciar. E quem entrou no lugar dele? Um tecnocrata do Goldman Sachs [Lucas Papademos]. Isso escancara como atua o poder econômico no âmbito político.
O sistema da dívida garante também um aparato legal que privilegia seu pagamento em detrimento de todos os outros gastos sociais. Aqui no Brasil para isso foi votada a Lei de Responsabilidade Fiscal. É claro que todo mundo quer que o setor público tenha responsabilidade fiscal, agora se você for ler essa lei, você vê que ela privilegia o pagamento da dívida sobre todos os outros pagamentos. Vamos supor que diante de uma calamidade no Estado o governador escolha não pagar a dívida naquele mês, para atender as vítimas da tal tragédia. Ele não tem essa opção. Se fizer isso, a Lei de Responsabilidade Fiscal aplica o Código Penal, criminaliza o gestor público que não priorizar o pagamento da dívida. Isso tudo é modus operandi do sistema da dívida. E é assim no mundo inteiro.
Também houve durante o governo Lula medidas provisórias privilegiando o pagamento da dívida?
Em 2008, com a desculpa da crise. A medida provisória (MP) dizia que toda a sobra no orçamento de qualquer rubrica que não for gasto durante o ano, no final do ano pode passar o rodo e pagar a dívida. Por que não tem uma norma assim para a educação? Tudo o que não for gasto, reverte no fim do ano para a educação. Existe uma norma assim para a dívida. Foi a MP 435 e depois a MP 450.
O poder econômico opera também na grande mídia. A grande imprensa não publicou nem uma linha sobre a CPI da dívida. A maioria da população não fica sabendo. Então o poder econômico atua principalmente no modelo econômico, político, no sistema legal e na grande imprensa. Não é peixe pequeno, não. Hoje a dívida está consumindo R$2,3 bilhões por dia. É isso que explica: o Brasil é a sexta potência mundial hoje, e ano passado a ONU nos classificou em 84º lugar no índice de desenvolvimento humano.
Quais foram as principais constatações da CPI?
O primeiro mérito dessa CPI é o fato de ter sido resultado da luta social. Segundo, a CPI permitiu o acesso a muitos documentos que nós brasileiros nunca tivemos acesso. As constatações mais importantes foram essas, como o fato de 80% da origem da dívida não ter sido explicada, mais de 90% da dívida ser com bancos privados internacionais, que o FMI nunca foi nosso principal credor.
Que engodo foi o povo achar que quando a dívida com o FMI foi paga, não havia mais dívida. A dívida com o FMI sempre teve dois preços: o financeiro e o político. O preço financeiro sempre foi muito baixinho. Quando o Lula pagou era 4% de juros ao ano. O FMI faz isso porque o preço político é muito alto. Ele exige simplesmente acesso a todas as informações que ele quiser, a tempo e a hora, e vincula essa ajuda econômica ao direito de indicar como vai ser a política adotada pelo país, e monitorar tais medidas. Então o que o Lula fez? Pagou a dívida financeira de 4% antecipadamente – e diga-se de passagem, para pagar a dívida com o FMI foram emitidos títulos da dívida interna, que na época pagavam juros de 19,3%. Então não pagamos a dívida. Ela meramente mudou de mãos, deixamos de dever ao FMI para dever aos detentores dos títulos da dívida interna.
Então financeiramente foi um dano. E politicamente: no dia do pagamento ao FMI, o Palocci, que era ministro da Fazenda, publicou na página do Ministério uma declaração formal. Uma carta dizendo que o pagamento não significava a desvinculação ao inciso tal do estatuto do FMI, ou seja, todo o direito do FMI de monitorar a economia, ter acesso aos dados, etc., prevalecia.
A partir de 2005, o tesouro nacional começou a resgatar antecipadamente títulos da dívida externa, e pagando ágil. É inacreditável, pagar uma conta antes do vencimento e ao invés de pedir desconto, paga ágil.
Por que o tesouro nacional pagou antecipadamente?
Conseguimos aprovar requerimento na CPI para perguntar por quê. O que explica isso é o fato da dívida brasileira estar sendo regida pelo Benchmark. É uma marcação de mercado. E um dos itens desse bendito Benchmark é a satisfação do investidor. Então, o Brasil emitiu títulos da dívida externa em dólar, quando o dólar valia R$4. Depois o dólar caiu para R$1,50. O investidor que comprou esses títulos ficou frustrado. Então o Brasil resgatou com ágil, para manter a satisfação do investidor. Tem condição? Isso foi uma das importantes descobertas da CPI.
Outra importante descoberta: como são definidas as taxas de juros Selic. São definidas pelo Banco Central não com base em fórmula matemática ou qualquer processo científico, mas com base em reuniões realizadas com especialistas do mercado financeiro que vão lá dizer a indicação do patamar em que as taxas de juros deveriam estar para não significar um risco inflacionário. Um tremendo conflito de interesses, porque quem se beneficia das taxas de juros? Por isso no início da crise que as taxas começaram a subir loucamente, você pensa “Peraí. Em período de recessão, de desaceleração, para que subir juros? Qual o risco de inflação? Não tem nenhuma lógica”. E não tem nenhuma lógica mesmo, o mercado financeiro queria compensar no tesouro perdas nas operações de risco que estavam fazendo. É inacreditável.
Em relação à crise econômica mundial, você acha que existe chance de o Brasil seguir o mesmo caminho dos países europeus que estão quebrando? Existe uma sensação geral de que a crise não nos afetou, não nos afetará. O que você espera para 2013?
A crise já está aqui. Está aqui desde a década de 1980 e de certa forma, a gente vem se acostumando com todos esses planos de ajuste, essas medidas de privilégio da dívida em detrimento ao social, com todo esse desrespeito profundo ao cidadão que está financiando o Estado sem o devido retorno.
Agora, esse último aspecto da crise que estourou em 2008 nos Estados Unidos e se transferiu para a Europa, tem fundamento principalmente na extrema financeirização mundial. O que é isso? Os bancos passaram a criar papéis a partir da década de 1990. Simplesmente criar os chamados derivativos, que são meras apostas. E passaram a comercializar esses derivativos no mundo inteiro, não tem limite. Isso entrou em colapso quando a ganância foi grande demais, a especulação do mercado imobiliário norte-americano grande demais, houve uma interrupção nessa corrente e caiu tudo, igual um dominó.
Por que o Brasil não foi atingido no primeiríssimo momento por essa crise específica? Porque aqui no Brasil as regras, inclusive do funcionamento do mercado financeiro, não permitiam esse tipo de negociação. Além disso, no mercado financeiro mundial se bancos do nível do Citibank, do Barclays, do Chase, do Bank of America, etc., estavam oferecendo derivativos, quem ia comprar derivativo dos bancos brasileiros? Então os bancos brasileiros não estavam dependurados nessa onda dos derivativos, que foi a causa da crise lá fora.
Por isso essa onda não nos atingiu tanto no primeiro momento, mas atingiu. E atingiu inclusive empresas brasileiras como a Sadia, a Aracruz, que tinham feito investimentos de alto risco nesses derivativos e foram salvas pelo BNDES, o Luciano Coutinho confessa isso no livro dele. Bilhões de reais foram repassados pelo BNDES a essas empresas. Além dessas empresas que foram salvas, houve queda de arrecadação, fuga de capitais e uma série de medidas com a desculpa da crise, inclusive aquelas MPs que eu mencionei.
Bom, o que nos provoca desespero? A partir daí, começaram a fazer modificações legais para permitir que os bancos brasileiros atuem com derivativos e começamos a criar fundos financeiros para absorver derivativos.
É repetir o mesmo processo que aconteceu nos EUA?
Isso, é abrir os braços e pedir “crise, venha para nós”. Isso aí provocou um impacto direto no oferecimento de crédito, porque essas operações geram uma lucratividade tão grande – pensa bem, é vender papel do nada – que com tantos recursos os bancos oferecem crédito. Está todo mundo endividado, os próprios bancos estão empurrando crédito na sociedade.
Eu não tenho dúvida de que pode piorar muito. Mas acho que vão deixar para estourar depois da copa e dos jogos olímpicos, para dizer que foi a dívida desses mega eventos. Mas já estamos em recessão. Olha o crescimento do PIB. Com muito boa vontade chegou a 1%. O que existe é muita propaganda. Como é que o país está muito bem? Com esse estado de violência, com essa decadência na saúde pública, na educação? Está bem para quem?

A arte é um casamento entre o ideal e o real

Artigo de Camille Paglia



As fés são vastos sistemas de símbolos que falam sobre nós. É daí que as artes visuais devem recomeçar, evitando o kitsch.

A opinião é da escritora norte-americana Camille Paglia, ex-professora da University of the Arts in Philadelphia. O texto que segue é um trecho da introdução de seu livro Glittering Images: A Journey Through Art from Egypt to Star Wars. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 20-01-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A arte é um casamento entre o ideal e o real. A criação artística é um ramo do artesanato. Os artistas são artesãos, mais próximos dos carpinteiros e dos soldadores do que dos intelectuais e dos acadêmicos, com a sua empolada retórica autorreferencial. A arte usa os sentidos e fala aos sentidos. Afunda as suas raízes no mundo físico tangível.

O pós-estruturalismo, com suas origens linguísticas francesas, tem a obsessão pelas palavras e, por isso, é incompetente para iluminar qualquer forma artística fora da literatura. O discurso sobre a arte deve se aproximar dela e descrevê-la nos seus próprios termos. É preciso encontrar um delicado equilíbrio entre o mundo visível e o invisível. Quem subordina a arte à agenda política contemporânea é tão culpado por literalismo rígido e por propaganda quanto um pregador vitoria no ou um burocrata stalinista qualquer.

Uma das razões da atual marginalização das belas artes é que os artistas se voltam muito frequentemente a outros artistas e perderam o contato com as pessoas comuns, das quais desprezam e zombam os gostos e os valores. A maior parte dos artistas norte-americanos são progressistas que têm um contato mínimo, senão nulo, com quem pensa diferente deles. O progressismo militante antiestablishment e defensor da liberdade de expressão dos anos 1960 (com a qual eu me identifico fortemente) transformou-se no utópico mundo ideal da classe dos profissionais afluentes, com os seus vagos impulsos filantrópicos e uma estranha passividade com relação a governo pomposo e autoritário.

Uma ortodoxia monolítica abandonou os artistas em um gueto de opiniões óbvias e os cortou fora das ideias novas. Nada é mais banal do que o dogma progress ista, segundo o qual um valor chocante automaticamente confere importância a uma obra de arte. A última vez que isso foi verdade foi, talvez, no fim dos anos 1970, com as fotografias homoeróticas e sadomasoquistas de Robert Mapplethorpe. Mas a cultura seguiu em frente. No século XXI, buscamos o significado, não a sua subversão.

Os conservadores também, por sua vez, pecaram contra a cultura. Apesar dos seus toques de trombeta por um retorno da educação ao cânone ocidental, eles se comportaram como filisteus provincianos com relação às artes visuais. Embora haja muitos críticos de arte sofisticados entre os conservadores urbanos, o impulso do movimento conservador norte-americano se alimentou sobretudo com as regiões agrárias onde prospera o cristianismo evangélico. O protestantismo tem uma história de iconoclastia: durante a Reforma no norte da Europa, as estátuas das igreja s e os vitrais coloridos foram sistematicamente destruídos por serem idólatras. Com relação ao catolicismo romano, tão rico em arte, o protestantismo norte-americano tradicional é visualmente pobre. As suas imagens de Jesus como Bom Pastor são muitas vezes artisticamente tão fracas que beiram o kitsch.

A maior parte dos conservadores atua em um clima que é indiferente ou hostil com relação à arte. Os principais escritores e críticos conservadores parecem cegos diante da intrincada interconexão entre arte e política na antiga Grécia que inventou a democracia. O nu, baseado no estudo científico da anatomia, foi o grande símbolo do individualismo ocidental que os gregos nos deixaram de herança, mas os conservadores cristãos nunca permitiriam exibir nas escolas públicas os heroicos nus da arte ocidental. O puritanismo norte-americano hesita na suspeita conservadora de que há uma feitiçaria na beleza.

Por outro lado, uma quantidade enorme da melhor arte ocidental foi intensamente religiosa, e os progressistas, que queriam que os presépios fossem tirados das praças, objetariam, por sua vez, contra a instrução doutrinal necessária para apresentar a iconografia cristã na escola pública. Por isso, a educação artística foi obstaculizada nos Estados Unidos, vítima do fogo cruzado da política.

Embora eu seja ateia, respeito todas as religiões e as levo a sério como vastos sistemas de símbolos que contêm uma verdade profunda sobre a existência humana. Embora em seu nome se tenham cometido males, a religião tem sido uma força enorme de civilização na história do mundo. Zombar da religião é algo pueril, sintomático de uma imaginação atrofiada. Porém, essa posição cínica tornou-se de rigor no mundo artístico, um motivo a mais para a banal s uperficialidade de grande parte da arte contemporânea à qual não restou nenhuma grande ideia.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Aaron Swartz, guerrilheiro da internet livre


Aaron Swartz, guerrilheiro da internet livre

O (suposto) suicídio do gênio da programação e ativista Aaron Swartz não é somente uma tragédia, mas um sinal da enorme dimensão do conflito político e ideológico envolvendo defensores de uma Internet livre e emancipatória, de um lado, e grupos organizados dentro do sistema que pretendem privatizar e limitar o acesso à produção intelectual humana, de outro. O comentário é de Rafael A. F. Zanatta em artigo no blog E-mancipação e reproduzido pelo sítio Outras Palavras, 16-01-2013.

Eis o artigo.

 

Colunistas de cultura digital de diversos jornais escreveram sobre a morte do jovem Swartz, aos 26 anos, encontrado morto em um apartamento de Nova Iorque (ler os textos de John Schwartz, para o New York Times; Glenn Greenwald, para o The Guardian; Virginia Heffernan, para o Yahoo News; e Tatiana Mello Dias, para o Estadão). Diante da t urbulenta vida do jovem Swartz e seu projeto político de luta pela socialização do conhecimento, difícil crer que o suicídio tenha motivações estritamente pessoais, como uma crise depressiva. A morte de Swartz pode significar um alarme para uma ameaça inédita ao projeto emancipatório da revolução informacional. O sistema jurídico está sendo moldado por grupos de interesse para limitação da liberdade de cidadãos engajados com a luta de uma Internet livre. Tais cidadãos são projetados midiaticamente como inimigos desestabilizadores da ordem (hackers). Os usuários da Internet, sedados e dominados pela nova indústria cultural, pouco sabem sobre o que, de fato, está acontecendo mundo afora.

 

A visão pública da Internet do wiz-kid Swartz: os anos de formação

 

Nascido em novembro de 1986 em Chicago, Aaron Swartz passou a infância e juventude estudando computação e programação por influência de seu pai, proprietário de uma companhia de software. Aos 13 anos de idade, foi vencedor do prêmio ArsDigita, uma competição para websites não-comerciais “úteis, educacionais e colaborativos”. Com a vitória no prêmio, Swartz visitou o Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde conheceu pesquisadores da área de Internet. Aos 14 anos, ingressou no grupo de trabalho de elaboração do versão 1.0 do Rich Site Summary (RSS), formato de publicação que permite que o usuário subscreva conteúdos de blogs e páginas (feeds), lendos-o através de computadores e celulares. Aos 16 anos frequentou e abandonou a Universidade de Stanford, dedicando-se a fundação de novas companhias, como a Infogami. Aos 17 anos, Aaron ingressou na equipe do Creative Commons, participando de importantes debates sobre propriedade intelectual e licenças open-sources (ver a participação de Swartz em um debate de 2003).

 

Em 2006, ingressou na equipe de programadores da Reddit, plataforma aberta que permite que membros votem em histórias e discussões importantes. No mesmo ano, tornou-se colaborador da Wikipedia e realizou pesquisas importantes sobre o modo de funcionamento da plataforma colaborativa (ler ‘Who Writes Wikipedia?‘). Em 2007, fundou a Jottit, ferramenta que permite a criação colaborativa de websites de forma extremamente simplificada (aqui). Em pouco tempo, Swartz tornou-se uma figura conhecida entre os programadores e grupos de financiamento dedicados a start-ups de tecnologia. Entretanto, sua inteligência e o brilhantismo pareciam não servir para empreendimentos capitalistas. Tornar-se rico não era seu objetivo, mas sim desenvolver ferramentas e instrumentos, através da linguagem de programação virtual, para aprofundar a experiência colaborativa e de cooperação da sociedade.

 

Aos 21 anos, Aaron ingressou em círculos acadêmicos (como o Harvard University’s Center for Ethics) e não-acadêmicos de discussão sobre as transformações sociais e econômicas provocadas pela Internet, tornando-se, aos poucos, uma figura pública e um expert no debate sobre a “sociedade em rede”. O vídeo,

gravado em São Francisco em 2007, mostra o raciocínio rápido e preciso de Swartz sobre a arquitetura do poder na rede e as mudanças fundame ntais da transição da mídia antes e depois da Internet.

 

Ativismo cívico e projetos políticos na rede: para além de empresas e lucros

 

A partir de 2008, Aaron Swartz – um “sociólogo aplicado“, como ele se autodenominava – engajou-se em uma série de projetos de cunho político, voltados ao ativismo cívico de base (grassroots) e ao compartilhamento de conteúdo on-line. Dentre eles, destacam-se três projetos específicos: (i) Watchdog, (ii) Open Library e (iii) Demand Progress.

O Watchdog é um website que permite a criação de petições públicas que possam circular on-line. Trata-se de um projeto não lucrativo, cujo mote é Win your campaign for change. O objetivo é fomentar a prática cidadã de monitoramento de condutas ilícitas, como se todos fossem “cães de guarda” da democracia. O segundo projeto,Open Library, pretende criar uma página da web para cada livro já publicado no mundo. O objetivo é criar uma espécie de “biblioteca universal” com bibliotecários voluntários, sendo possível o empréstimo on-line de e-books. Trata-se de um projeto sem fins lucrativos, nos quais programadores são responsáveis pelo registro e criação das páginas (em códigos abertos) para todos os livros (como diz o site: “Open Library é um projeto aberto: software, dados e documentações são abertos, e sua con tribuição é bem-vinda. Você pode corrigir um erro, acrescentar um livro ou escrever um widget [programa complementar]. Temos uma equipe de programadores fantástico, que avançaram muito, mas não podemos fazer tudo sozinhos!” (n.1) .

 

O terceiro e mais interessante projeto é o Demand Progress, plataforma criada por Swartz para conquistar mudanças progressistas em políticas públicas (envolvendo liberdades civis, direitos civis e reformas governamentais) para pessoas comuns através do lobbying organizado de base. A atuação do DP se dá de duas formas: através de campanhas on-line para chamar atenção das pessoas e contatar líderes do Congresso, e através do trabalho de advocacia pública em Washington “nas decisões por trás das salas que afetam nossas vidas”.

 

Em 2008, indignado com a passividad e dos cientistas com relação ao controle das informações por grandes corporações, Swartz publicou um manifesto intitulado Guerilla Open Access Manifesto (Manifesto da Guerrilha pelo Acesso Livre). Trata-se de um texto altamente revolucionário, que encerra-se com um chamado: “Não há justiça em seguir leis injustas. É hora de vir à luz e, na grande tradição da desobediência civil, declarar nossa oposição a este roubo privado da cultura pública. Precisamos levar informação, onde quer que ela esteja armazenada, fazer nossas cópias e compartilhá-la com o mundo. Precisamos levar material que está protegido por direitos autorais e adicioná-lo ao arquivo. Precisamos comprar bancos de dados secretos e colocá-los na Web. Precisamos baixar revistas científicas e subi-las para redes de compartilhamento de arquivos. Precisamos lutar pela Guerilla Open Access. Se somarmos muitos de nós, não vamos apenas enviar uma fo rte mensagem de oposição à privatização do conhecimento – vamos transformar essa privatização em algo do passado” (cf. ‘Aaron Swartz e o manifesto da Guerrila Open Acess‘).

 

A força criadora do jovem Aaron Swartz residia em um profundo espírito crítico e questionador. Nesta entrevista (sobre o Progressive Change Campaign), Swartz explica como seu ativismo começou: “Eu sinto fortemente que não é suficiente simplesmente viver no mundo como ele é e fazer o que os adultos disseram o que você deve fazer, ou o que a sociedade diz o que você deve fazer. Eu acredito que você deve sempre estar questionando. Eu levo muito a sério essa atitude científica de qu e tudo que você aprende é provisório, tudo é aberto ao questionamento e à refutação. O mesmo se aplica à sociedade. Eu cresci e através de um lento processo percebi que o discurso de que nada pode ser mudado e que as coisas são naturalmente como são é falso. Elas não são naturais. As coisas podem ser mudadas. E mais importante: há coisas que são erradas e devem ser mudadas. Depois que eu percebi isso, não havia como voltar atrás. Eu não poderia me enganar e dizer ‘Ok, agora vou trabalhar para uma empresa’. Depois que percebi que havia problemas fundamentais os quais eu poderia enfrentar, eu não podia mais esquecer isso”. Na entrevista, (aos 22 anos), esclarece que livros como Understanding Power (de Noam Chomsky) foram fundamentais para compreender os problemas sistêmicos da sociedade contemporânea. Todavia, a situ ação não é imodificável. O primeiro passo é acreditar que é possível fazer algo.

 

No final de 2010, Aaron Swartz identificou uma anomalia procedimental com relação a uma nova lei de copyright, proposta por integrantes dos partidos republicanos e democratas em setembro daquele ano. A lei havia sido introduzida com apoio majoritário, com um lapso de poucas semanas para votação. Obviamente, segundo o olhar crítico de Swartz, havia algo por trás desta lei. O objetivo camuflado era a censura da Internet.

A partir da união de três amigos, Swartz formulou uma petição on-line para chamar a atenção dos usuários da Internet e de grupos políticos dos Estados Unidos. Em dias, a petição ganhou 10 mil assinaturas. Em semanas, mais de 500 mil. Com a circulação da petição, os democratas adiaram a votação do projeto de lei para uma analise mais profunda do documento. Ao mesmo tempo, empresas da Internet como Reddit, Google e Tumblr iniciaram uma campanha maciça para conscientização sobre os efeitos da legislação (a lei autorizaria o “Departamento de Justiça dos Estados Unidos e os detentores de direitos autorais a obter ordens judiciais contra sites que estejam facilitando ou infringindo os direitos de autor ou cometendo outros delitos e estejam fora da jurisdição estadunidense. O procurador-geral dos Estados Unidos poderia também requerer que empresa s estadunidenses parem de negociar com estes sites, incluindo pedidos para que mecanismos de busca retirem referências a eles e os domínios destes sites sejam filtrados para que sejam dados como não existentes”, como consta do Wikipedia).

 

Em outubro de 2011, o projeto foi reapresentado por Lamar Smith com o nome de Stop Online Piracy Act. Em janeiro de 2012, após um intenso debate promovido na rede, a mobilização de base entre ativistas chamou a atenção de diversas organizações, como Facebook, Twitter, Google, Zynga, 9GAG, entre outros. Em 18 de janeiro, a Wikipedia realizou um blecaute na versão anglófona, simulando como seria se o website fosse retirado do ar (cf. ‘Quem apagou as luzes em protesto à SOPA?‘ e ‘O apagão da Wikipedia‘). A reação no Congresso foi imediata e culminou na suspensão do projeto de lei. Vitória d o novo ativismo cívico? Para Swartz, sim. Uma vitória inédita que mostrou a força da população e da mobilização possível na Internet. Mas não por muito tempo. Em um discurso feito em maio de 2012 — que merece ser visto com muita atenção –, Aaron foi claro: o projeto de lei para controlar a Internet irá voltar, com outro nome e outro formato, mas irá voltar…

 

Mas não foi somente através da liderança no movimento de peticionamento on-line que culminou nos protestos contra o SOPA que Swartz chamou a atenção das autoridades estadunidenses. Em 2008, ele foi investigado pelo FBI por ter baixado milhões de documentos públicos do Judiciário mantidos pela empresa Pacer (que cobra pelo acesso a documentos públicos!). A investigação, entretanto, não resultou em processo criminal ou civil.

O processo kafkiano que pode estar relacionado com a morte de Swartz teve início em julho de 2011, quando o ativista foi processado por “fraude eletrônica, fraude de computador, de obtenção ilegal de informações a partir de um computador protegido”, a partir de uma acusação da companhia JSTOR - uma das maiores organizações de compilação e acesso pago a artigos científicos. Aaron programara um dos computadores públicos do Massachussets Institute of Technology (MIT) para acessar o banco de dados da JSTOR e fazer download de artigos científicos de diversas áreas do conhecimento. Em poucos dias, baixou mais de 4 milhões de artigos científicos (e não se sabe qual era seu plano inicial, ou seja, de que modo ele pretendia publicar esses documentos de acordo com a tese do open acess movement). Pelo fato de Swartz ter feito o download de muitos documentos ao mesmo tempo (mas o acesso pelo computador da instituição não permite isso?), foi processado por fraude eletrônica e obtenção ilegal de informações.

 

O sentido de um processo kafkiano (referente ao Processo da obra literária de Franz Kafka) deve ser melhor explicado. A questão é que Aaron Swartz não cometeu, a princípio, nenhum ato ilícito (ele poderia fazer o download de artigos científicos como qualquer acadêmico logado a uma máquina com acesso ao JSTOR pode). E mesmo depois de acusado, entregou-se à Justiça e afirmou que não tinha intenção de lucrar com o ato. Diante do aviso de que a distribuição dos arquivos infringiria leis nacionais, Aaron devolveu os arquivos digitalizados para a JSTOR, que retirou a ação judicial de caráter civil. Ou seja: caso encerrado, correto? Errado. Após o acordo entre Aaron e a JSTOR, a Promotoria de Justiça de Boston, através da US Attorney Carmen Ortiz, indiciou Aaron Swartz por diversas ofensas criminais, pedindo a condenação do ativista em 35 anos de prisão (sic!) e o pagamento de 1 bilhão de dólares de multa. O processo penal teve início, sendo oferecida a Swartz a oportunidade de fazer um acordo penal que reconhecesse sua culpa (plead guilty).

 

Irredutivelmente — mesmo sendo aconselhado por alguns advogados a agir em sentido contrário –, Swartz recusou-se a declarar-se culpado, por não considerar seus atos como ilícitos. Mesmo com a intervenção da JSTOR, que reconheceu não se sentir prejudicada pelos atos de Swartz, a Promotoria continuou a amed rontá-lo. O processo penal — extremamente custoso nos Estados Unidos — esvaziou suas poucas reservas financeiras e gerou um enorme trauma psicológico. O julgamento da ação penal estava marcado para abril de 2013 e Aaron Swartz recusava-se a comentar o assunto em entrevistas, palestras e eventos. Alguns especulam que o suicídio está ligado com o processo penal, considerado por muitos como uma resposta do governo dos Estados Unidos contra o ativismo libertário de Aaron. Na opinião de Greenwald, o colunista do Guardian, ele “foi destruído por um sistema de ‘justiça’ que dá proteção integral aos criminosos mais ilustres — desde que sejam integrantes dos grupos mais poderosos do país, ou úteis para estes –, mas que pune sem piedade e com dureza incomparável que não tem poder e, em especial, quem desafia o poder”. (n. 2)

 

Até o momento, n o há cartas ou posts de Swartz sobre o assunto. Não há, aliás, confirmação concreta de que houve suicídio (ou se foi uma morte herzogiana, comum na história brasileira). Trata-se de um grande mistério. Para a família de Swartz, uma coisa é clara: se houve suicídio, o bullying judicial realizado pelo Judiciário estadunidense foi um fator que levou o jovem ativista a encerrar a própria vida, em um sinal de protesto contra todo o injusto sistema.

 

As lições de um jovem revolucionário

 

Há muito o que extrair das falas, dos textos e das ações do gênio da informática Aaron Swartz. Ativista político, sociólogo aplicado, defensor da Internet livre, criador de mecanismos de compartilhamento de dados e crítico da forma como a sociedade global está se estruturando contra as li berdades básicas, Swartz deixa aos jovens da era da Internet um forte recado revolucionário: a mudança começa em cada um. Todo indivíduo possui autonomia para pensar e contestar o que está posto. Além de contestar, a ação colaborativa pode modificar as instituições existentes em uma perspectiva pós-capitalista. O conhecimento pode ser compartilhado, softwares podem ser desenvolvidos em conjunto e projetos podem ser executados com o financiamento coletivo.

 

Informação é poder. Swartz enxergou muito além do que seus contemporâneos e tentou mobilizar os usuários de Internet para construção de um outro mundo. Infelizmente, não foi apoiado da forma como precisava. A reverberação de suas ideias e suas ações ainda é muito fraca. Mas isso não é motivo para desistência. A brevíssima vida deste jovem estadunidense pode inspirar corações e mentes. Em tempos de discussão no Brasil sobre o Marco Civil da Internet, corrupção da política e agigantamento do Judicário, o resgate a seu pensamento é necessário. Ainda mais em um país que conta com mais de 80 milhões de usuários de Internet. A questão é saber se as pessoas terão curiosidade e interesse em compreender o projeto de vida de Swartz ou se irão continuar lendo matérias produzidas por corporações interessadas na limitação da liberdade na Internet.

 

Eu fico com o projeto de Swartz. Aliás, fique livre para copiar esse texto.

 

Notas:

 

(1) Open Library is an open project: the software is open, the data are open, the documentation is open, and we welcome your contribution. Whether you fix a typo, add a book, or write a widget–it’s all welco me. We have a small team of fantastic programmers who have accomplished a lot, but we can’t do it alone!”

(2) “Swartz was destroyed by a “justice” system that fully protects the most egregious criminals as long as they are members of or useful to the nation’s most powerful factions, but punishes with incomparable mercilessness and harshness those who lack power and, most of all, those who challenge power“



De:
barcellos.2@uol.com.br
Para:
zeluiz
Assunto:
Artigo p/ Blog
Data:
01/02/2013 13:37




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Qual o legado de Aaron Swartz?

Na tarde de 30 de janeiro de 2013, a Campus Party de São Paulo serviu de espaço para importantes debates sobre o futuro da Internet e as novas leis que podem garantir ou limitar a liberdade dos usuários na rede. Um deles foi a discussão, ocorrida às 14h30 no palco principal do evento, sobre o Marco Civil da Internet, o mais importante e audacioso projeto de lei de garantias básicas dos usuários da rede com especialistas na área e pessoas envolvidas com a elaboração e aprovação do projeto de lei, como Carlos Affonso Souza (FGV-Rio), Guilherme Almeida (Ministério da Justiça), Demi Getschko (NIC.br) e Manuela D'Ávvila (PCdoB-RS).

Além do debate sobre o Marco Civil, uma segunda conversa foi promo vida pelo Partido Pirata do Brasil via videoconferência (Google Hangout) para analisar qual é o legado de Aaron Swartz, ativista que se suicidou no dia 11 de Janeiro e incinerou as discussões sobre a legislação penal cibernética e o embate entre proteção de direitos autorais e ampliação do acesso ao conhecimento na Internet. Neste debate, mediado por Leandro Chemalle (coordenador Sudeste do Partido Pirata), participaram eu e Tatiana Dias, jornalista da coluna Link do Estadão.

Em razão da baixa qualidade do áudio, fiz a transcrição do debate (reprodução mais próxima do possível das falas) no intuito de fomentar mais discussões deste tipo, tão necessárias neste turbulento século XXI. O elemento norteador da discussão foi: qual o legado de Aaron Swartz para nós, brasileiros?

O relato é de Rafael Zanatta no blog e-mancipação, 30-01-2013.

Leandro: Bom, boa tarde a todos.

A gente está aqui na Campus Party, na mesa do Partido Pirata, e agora a gente vai ter aqui uma conversa com a Tatiana Dias, do Estadão, e o Rafael Zanatta sobre o legado e a morte do Aaron Swartz - o hacker e pirata Aaron Swartz. Aqui no evento acabou de acontecer uma mesa sobre o Marco Civil da Internet, onde foi feita a proposta de modificar o nome da lei para Lei Aaron Swartz.

Eu vou passar a palavra para a Tatiana para ela explicar quem é o Aaron e o que ele fez. Ela acompanhou vários fatos, os processos judiciais enfrentados e vai falar sobre a vida dele e como ela o acompanhou no jornalismo.

Tatiana: Oi. Bom, todo mundo já deve ter ouvido falar do Aaron. Ele era um menino de 26 anos que começou a programar muito cedo, ele começou a andar com programadores e aprendeu a fazer isso sozinho. Aos 13 anos ele trabalhou em equipe e ajudou a desenvolver o RSS 1.0. Como ele tinha 13 anos, e le tinha muito tempo livre pra desenvolver o RSS, a primeira versão. Como os outros tinham atribuições com outros empregos, ele acabou fazendo muito do RSS e foi chamado pra fazer parte do grupo efetivamente - não como menino, mas como participante igual a todos.

Depois, mais pra frente, pelo fato desse trabalho... na verdade ele conheceu o Lawrence Lessig, porque ele leu um artigo no jornal - ele tinha 14 anos -, ele leu um artigo sobre Creative Commons ainda quando era uma ideia. Ele escreveu para o Lessig sugerindo a adoção de um padrão técnico para o sistema. O Lessig curtiu, eles foram apresentados e acabaram virando amigos.

Isso tudo aconteceu com pouca idade. Depois ele foi para Stanford, eu acho, e começou a estudar lá. Largou, pois achou que o ensino formal não era legal. Aí ele largou e fundou uma empresa na incubadora. Ele fundou uma empresa que depois deu origem ao Reddit. Depois ele se desentendeu com o pessoal. Eu li um monte de coisas, que ele era um cara solitário, um cara recluso - mas eu não quero entrar nesse tipo de detalhe. Enfim, ele acabou saindo, e depois essa última década de vida dele foi dedicada ao ativismo político. Ah, ele criou o web.py, que é um programador muito usado... ele é um cara muito respeitado, quando ele criou o web.py, ele documentou tudo e deixou disponibilizado livre, tanto as coisas técnicas quando os pensamentos e ideias, que aos p oucos a gente vai conhecendo - eu tinha falado sobre isso como o Rafael.

Eu não conhecia ele. Só conheci depois do processo. Em 2011, ele foi pego na rede do MIT baixando milhões de documentos acadêmicos, usando a rede do MIT. Ele foi, o MIT encerrou uma investigação contra ele. Aí o governo de Massachusetts resolveu continuar a investigação e no final, a história que muitos devem conhecer, foi processado e, inicialmente, poderia pegar 35 anos de prisão e pagar uma multa milionária. Ele pagou uma fiança e foi liberado depois. Eu conheci ele no meio do processo. Ele ficava em silêncio, ele não falava sobre o assunto. Enfim, ele era um cara que era uma ameaça potencial a algumas coisas que o governo americano queria esconder e, de certa maneira, ele foi utilizado como bode expiatório. Eu não conhecia esse caso. Eu mandei um e-mail e depois de muito tempo ele respondeu, mas ele respondeu muito rápido o e-mail. Ele respondeu sobre a carreira, coisas técnicas e coisas "ah, quando você vem para o Brasil?", só que ele ignorou as perguntas que eu fiz sobre o processo. Não sei se por indicação de advogado ou, não sei. A gente publicou uma reportagem com ele em Abril do ano passado. Eu contei a história, enfim, sobre como que um hacker respeitadíssimo tanto tecnicamente quanto politicamente acabou em uma briga de Davi e Golias, contra o Estado.

E aí foi isso. Eu fiquei sabendo do suicídio sábado de manhã. Ele se matou na sexta-feira, 11 de janeiro. Uma amiga minha que estava de plantão me avisou e eu fiquei chocada. Foi uma das mortes de quem eu não conhecia que mais me chocou. Porque é impressionante ver uma pessoa, para mim, promissora acabar com a própria vida tendo um monte de coisas ainda para realizar. O Rafael, que esc reveu várias coisas incríveis sobre isso, acho que ele tem mais um monte de coisas para falar, eu vou passar a palavra para ele, pois eu já falei muito.

Rafael: Boa tarde. Como a Tatiana estava explicando, o Aaron Swartz não era somente um gênio da informática - ele tinha uma capacidade técnica impressionante, solução de problemas que ele tinha, domínio da linguagem -, mas ele se destacou nos últimos anos por uma capacidade incrível de experimentalismo institucional político. Ele ficou muito próximo do Lawrence Lessig, que talvez tenha sido uma influência intelectual do Aaron. O Lessig abandonou um pouco o debate sobre propriedade intelectual, copyright - que está sintetizado no livro Free Culture -, e o Lawrence Lessig tem focado a produção acadêmica dele na ques tão política, de como funciona o Congresso, e de como é possível fazer um ativismo cívico de base.

O Aaron levou muito a sério esse projeto e ele foi capaz de desenvolver veículos e ferramentas on-line, como o Demand Progress, que é um site que permite que as pessoas criem e façam petições públicas. Mas não é só isso, o Demand Progress tem um grupo de ativistas, advogados e pessoas de diversas áreas atuando em Washington. Eles fazem um lobby profissional em defesa do interesse público. Esse é um tipo de estratégia política que não tem sido experimentado no Brasil, talvez com exceção da Avaaz, que é uma rede internacional, mas nós precisamos levar a sério esse experimento do Aaron e ver de que modo ele pode ser replicado aqui de acordo com as nossas características.

Outro ponto, outro experimentalismo do Aa ron também foi o Watchdog, que é um sistema em que as pessoas identificam políticas públicas mal coordenadas ou projetos de lei que podem ser potencialmente lesivos para liberdades básicas. Esse é um tipo de vigilância que deveria ser aprimorado no Brasil e também levado para outras esferas, como, por exemplo, a vigilância do orçamento público. Se pudéssemos, de fato, escancarar como que o Estado utiliza os recursos - e nós tivemos já um importante avanço no ano passado, com a Lei de Acesso à Informação, que permite o acesso à informação pública por qualquer pessoa independentemente do motivo - nós poderíamos levar isso para um outro nível, inspirado pela atitude do Aaron de desenvolver ferramentas participativas. Antes da transmissão, eu conversava com a Tatiana justamente sobre isso: o legado do Aaron tem que ser o de nos revoltar para ações concretas e não colocar um poster do Aaron n o quarto e ficar conversando na Internet, não é isso.

Sobre o processo, o Aaron Swartz chamava o processo de "the bad thing". Ele não conversava a respeito do processo, talvez por sugestão dos advogados, mas ele não conversava nem mesmo com os pais ou com a namorada. A namorada dele deu uma palestra no memorial do dia 24 e ela disse que o nível de insegurança, de medo, de pavor na cabeça do Aaron era muito grande. Na última audiência, quando o advogado do Aaron conseguiu mais tempo para produzir provas na audiência de Abril - que iria acontecer, pois ele se suicidou em Janeiro -, a namorada foi dar um abraço nele na frente do promotor e o Aaron empurrou a namorada e disse: "não, na frente do promotor não". Ele não queria demonstrar com o abraço a insegurança e a fragilidade diante do processo. O Ronaldo Lemos tem o mesmo ponto de vista, o Lawrence Lessig tam bém, todo mundo que conviveu com o Aaron diz a mesma coisa: um dos fatores que levou o Aaron ao suicídio foi o fato dele ter enfrentado isso sozinho.
Por alguma opção individual, uma escolha deliberada, ele não quis escancarar o processo e promover um grande debate público sobre o processo. Por exemplo, o Julian Assange fez isso, e fez isso muito bem. Ele não foi extraditado do Equador porque ele conseguiu promover um debate internacional sobre o caráter técnico e jurídico para extradição. O Aaron não promoveu esse debate jurídico. Ele não amplificou, ele interiorizou. Eu acho que ele tinha essa estratégia de suicídio, de apertar o gatilho para uma discussão global. Hoje nós estamos...o ponto central do livro do Lawrence Lessig é como o sistema jurídico está sendo moldado para limitar a criatividade humana e proteger o interesse de grupos econômicos organizados com relação a propriedade i ntelectual. Isso está acontecendo hoje. Esse é um debate global.

Eu fiz algumas reflexões desde a morte do Aaron, sobre o que fica de legado, o que a gente pode aproveitar para o debate brasileiro. Eu consegui pensar basicamente em duas coisas.

Primeiro, é o projeto de emancipação pelo conhecimento. O Aaron tinha essa ideia muito clara na cabeça - ele era um leitor e um pesquisador extraordinário, ele lia em média 100 livros por ano e centenas de artigos científicos de diversas áreas -, ele compreendia muito bem aquela tese do Michel Foucault e do Noam Chomsky de que informação é poder. Conhecimento é poder. O grande problema hoje é que o acesso à informação é limitado para um grupo muito privilegiado, tipo nós, que temos formação universitária e acesso a banco de dados. Você tem um potencial muito grande com a Internet hoje de emancipar as pessoas pelo conhecimento, garantindo o acesso a esse conhecimento. No Brasil, nós poderíamos promover um debate... A motivação do Aaron de copiar os arquivos acadêmicos existia porque havia muito investimento público nas universidades nos Estados Unidos para produção daquele conhecimento. Portanto seria injusto que empresas como Elsevier, ou portais como JSTOR, mantivessem o controle sobre esse conhecimento. Agora no Brasil esse debate é muito mais profundo, porque as universidades são públicas. Nós não temos as "fees" e as taxas, como nos Estados Unidos, para manter as universidades. O debate é muito mais sério com relação a isso e ele fica complicado, quando a CAPES exige a publicação em revistas Qualis que são controladas por companhias privadas - e o professor, para subir de carreira, para ser um professor A djunto ou Titular, ele tem que cumprir uma série de publicações acadêmicas que são restritas. Justamente essa é a complicação: nós não temos acesso. Nós temos que pagar para acessar uma publicação, ou estar em uma universidade logada - como na USP, por exemplo, que tem acesso a JSTOR, assim como na MIT, onde o Aaron ficava lendo artigos e copiando artigos. Esse é um debate atual, que é a questão da produção do conhecimento e as próprias regras do jogo que o Brasil tem utilizado nas universidades para promoção de carreira, como que nós estamos em uma armadilha institucional. Isso precisa ser superado.

O segundo ponto, que eu acho o mais brilhante do Aaron, é a apropriação das ferramentas disponíveis para garantir as liberdades nesse projeto político. Ele foi muito inteligente quando ele foi visitar o Congresso, pois ele percebeu como funcionava a dinâmica do Congresso - tal como a Manuela D'Ávila explicava no debate sobre o Marco Civil da Internet. Existe uma lógica de funcionamento, existem normas procedimentais. Nós precisamos entender essa lógica, precisamos entender como que os grupos se organizam para fazer pressão na criação de leis.

Tatiana: É, é a mesma lógica de hackear um sistema. Você aprende como o sistema funciona, você domina a linguagem e os códigos para superá-los. O Aaron levava essa lógica do hackeamento para esferas diversas.

Rafael: Exatamente. É essa lógica do hacker, de entender e superar. Se você olhar o modelo de atuação do Aaron, eu classificaria como um tipo de apropriação estadunidense, ou seja, ele compreendeu como funcionava o lobby de base, ele crio u o Demand Progress para ser uma plataforma de identificação de demandas e pressão nos legisladores e parlamentares para fazer isso funcionar. Nos Estados Unidos isso deu certo e tem dado certo porque eles têm uma cultura de participação enraizada. Historicamente, eles têm uma cultura de corporações, em que você participa tanto no local quanto no federal. Depois nós poderíamos discutir se esse modelo daria certo no Brasil diante do nosso distanciamento com a política, que é histórico, e com as nossas características próprias, como o patrimonialismo, que são muito peculiares. Esse é um projeto.

Há um outro modelo de apropriação das ferramentas do sistema que eu classificaria como modelo europeu, que é o modelo sueco e o modelo espanhol. É aquilo que o Manuel Castells tem falado, que é o "Partido do Futuro", que eu enxergo um pouco no Partido Pirata. O Partido Pirata se encaixa no modelo europeu, que é o seguinte: utilizar as ferramentas institucionais de criação de partidos para justamente mudar o modelo de democracia representativa para um modelo de democracia direta. Você utiliza um partido acentralizado e heterárquico, com mecanismos de deliberação internos on-line, para justamente levar esse partido para as esferas institucionais existentes para daí modificar justamente o sistema - algo que a Islândia conseguiu fazer de forma surpreendente, reescrevendo a Constituição com mecanismos de democracia direta, mas um país com muita homogeneidade cultural e uma população de 300.000 h abitantes.

Então, os debates que podem ser feitos a partir do Aaron, de emancipação pelo conhecimento e apropriação das ferramentas do sistema para modificar e aprofundar a experiência democrática, são debates fantásticos que a gente não pode perder de vista. E se o debate tiver que ser feito aqui, ele tem que ser um debate brasileiro, entendendo como é o nosso povo, como que as coisas funcionam e quais são os próximos passos. Não é simplesmente olhar o "blueprint", olhar o modelo de fora, mas, na verdade, ter o nosso próprio experimentalismo.

Tatiana: Eu acho que é muito fácil criar um mártir, uma figura a ser cultuada, mas a gente tem que ir um pouco além disso. Justamente pelo que o Rafael falou. O Aaron entendeu como o sistema funcionava e adaptou a lógica do jeito dele para desenvol ver instrumentos para mudar as coisas na prática. No Brasil, o que eu vejo é um ativismo que grita muito, mas que faz pouco pelas bases. Eu acho que mais do que renomear a lei do Marco Civil, pois foi feita a sugestão de chamar de Lei Aaron Swartz - e nem sei se faz sentido isso, pois são lógicas muito diferentes -, eu acho que o que a gente tem que aprender com isso é que o Aaron sabia fazer lobby. Eu lembro que eu perguntei para ele por e-mail: "Você acha que o lobby dos usuários da Internet é muito fraco?" e ele respondeu "Com certeza, o lobby da indústria é muito mais forte". Aqui no Brasil também. Lobby é uma coisa que ninguém mostra muito interesse em falar sobre isso, ninguém gosta de ouvir. Todo mundo gosta de esconder, embora a gente saiba que exista. O Marco Civil está sendo uma lição de lobby no Brasil, tem muitos interesses por todos os lados - aqui no debate a Manuela falou um pouco sobre isso, mas não deu nome aos bois como deveria ter sido dado.

Eu acho que é isso. Eu acho que a gente tem que levar isso para uma melhora muito prática e, quem sabe, entender melhor como as coisas funcionam e mudar alguma coisa na prática, construindo e fazendo. Talvez o Aaron tivesse pensando nisso. O Rafael escreveu sobre isso, o suicídio como uma forma de gatilho - eu não sei se isso foi algo planejado ou não -, mas é claro que essa história vai se desenrolar muito. Nos Estados Unidos eles estão discutindo a Lei Aaron mesmo para mudar a lei de crimes eletrônicos lá e no Brasil a gente tem uma legislação de crimes eletrônicos. Eu fiquei pensando depois: a gente está em um momento muito chave de leis que estão sendo discutidas e não tem ninguém para hackear esse processo - quer dizer, existem sim alguns grupos no Brasil que sabem hackear processo políticos. Eu acho que esse é o legado que a gente tem que levar para frente.

Leandro: Obrigado, Tatiana. Eu acho que a mensagem que a gente está passando é que o Aaron é um autêntico pirata. Sem dúvidas, ele é que defendeu na sua vida tudo aquilo que hoje a gente está lutando, por acreditar que aquilo era verdade e que nós precisamos de uma Internet livre. (...) Nós também estamos aqui na batalha. Eu acho que no Brasil a maior arma que a gente tem hoje é a aprovação do Marco Civil, e nós precisamos levar sua mensagem adiante colocando o nome de Aaron nesta lei, assim como fizeram com a Lei Carolina Dieckmann com a lei dos crimes da Internet, nós precisamos também colocar o nome do Aaron lá. Ele tem uma obra importantíssima. A gente tem que colocar o Aaron como uma pessoa tão importante quanto os grandes líderes que a História hoje relaciona. Daqui 100 anos eles vão perceber que el e estava com a verdade. Nós já estamos em uma outra idade, muito diferente do que era o contemporâneo. E quando ficar claro essa nova idade, o nome dessa nova idade, com certeza, será o Aaron, que morreu por causas sérias. Realmente, ele simboliza o que é nossa realidade hoje. Essa é a mensagem que a gente queria passar. Rafael, gostaria de falar algo para finalizar?

Rafael: Só dizer que a gente tem que aprender a trabalhar em rede. O Aaron Swartz sabia muito bem como trabalhar em rede. Ele tinha um círculo em Boston, um círculo em Harvard na Faculdade de Direito, ele tinha um grupo de ativistas em Washington, um grupo espalhado de Leste a Oeste dos Estados Unidos. A gente precisa superar o desafio das limitações geográficas e criar uma rede entre os grupos de Brasília, da FGV-Rio, de São Paulo, Recife, Porto Alegre, para, de fato, pensar nessas estratégias de se apropriar de ssas ferramentas em defesa de direitos. A mensagem do Aaron é um idealismo, mas um "idealismo factível", pois ele construiu muita coisa em pouco de vida e deixou a peteca para gente bater agora com força.

Leandro: Obrigado, Rafael. Continuem acompanhando as notícias do Partido Pirata, através do @PartidoPirataBR, e as nossas atividades na Campus Party.

Até onde vai um texto?

O último texto deste blog teve uma repercussão inédita, fortemente relacionada com o impacto global do politizado suicídio de Aaron Swartz (1986-2013), ocorrido nos Estados Unidos na sexta-feira, 11/01. Logo após a publicação da reflexão sobre sua morte - resultado de intensas horas de pesquisa na tarde de domingo e profundas reflexões sobre a singular visão de Swartz sobre as transformações contemporâneas e as tentativas de grupos organizados de limitação institucional da liberdade e criatividade humana -, o efeito em rede se materializou. Na segunda-feira, intensificaram-se os compartilhamentos via Facebook. O recado final (fique livre para copiar este texto), alinhado com as ideias do copyleft, produziu então efeitos não esperados.

Na quarta-feira, o editor do Outras Palavras - portal de comunicação compartilhada criado pelos antigos coordenadores da Le Monde Diplomatique Brasil e direcionado a debates político-sociais críticos -, corrigiu pequenos erros no texto e o publicou como matéria de capa do website (cf 'Aaron Swartz, guerrilheiro da Internet livre' ). Após a circulação em mailings do Outras Palavras, o texto rapidamente foi lido por mais de mil pessoas de todo o Brasil. Na quinta-feira, o texto apareceu na edição on-line da Revista Forum. No dia seguinte, o texto foi adaptado para o português lusitano e publicado em Portugal no sítio eletrônico Esquerda.net. A partir de então, replicou-se em diversos outras veículos, ora reproduzido integralmente (como no Observatório da Imprensa), ora citado em reflexões de outros autores que se dedicaram à compreensão da morte de Aaron (como no texto da escritora Eliane Brum, da Época, ou do Caio Moretto, do Mistura Indigesta). As republicações seguiram fielmente os termos da licença do Creative Commons, arquitetada por Swartz em sua adolescência: é livre a cópia do conteúdo, desde que para fins não-comerciais, realizada a menção ao autor.

O que isso revela? Analisando a repercussão do texto nos espaços independentes e o debate promovido pela mídia brasileira, chega-se a uma conclusão: a ampla circulação do texto ocorreu não pelo brilhantismo de sua redação, mas sim pelo (i) trágico ato de protesto contra o truculento sistema criminal estadunidense e, principalmente, pela (ii) importância da vida, obra e morte de Aaron Swartz - importância esta ainda desconhecida por quase todos. Este, aliás, foi o erro dos grandes veículos de comunicação: noticiaram a morte de um "programador genial", sendo que este era o aspecto menor da vida de Aaron.

Se os fatos não forem ocultados, a história provará que Swartz não era somente um gênio da informática, mas sim um sociólogo aplicado, um inovador ativista político e um pen sador original, livre de amarras acadêmicas disciplinares. Acima de tudo, como afirmou o amigo e professor Lawrence Lessig em um debate sobre o legado de Swartz, ele será visto como um verdadeiro idealista, no sentido nobre do termo.

Uma proposta para um debate indispensável: qual o legado de Swartz?

Dentre os efeitos positivos gerados pela publicação do texto, o mais interessante - sem dúvidas - foi o convite feito pelo Partido Pirata do Brasil para participar de uma mesa-redonda na Campus Party para discutir a vida e obra de Aaron Swartz. Apesar da magnitude da CP (considerada um dos maiores encontros de tecnologia do mundo), a proposta do debate é modesta. Ele não será realizado em nenhum p alco principal, mas sim no Barcamp, que é um espaço aberto para que os participantes possam expor suas ideias. Eis a programação do Partido Pirata: "Quarta 30/01 – 14h00 – Palco Barcamp – Painel em homenagem ao hacker e pirata Aaron Swartz com Tatiana Dias, jornalista do Link Estadão, Rafael Zanatta, mestrando em Direito pela USP e João Caribé, ciberativista Movimento Mega Não".

A ideia dos membros do Partido Pirata, no entanto, é excelente. Afinal, que discussões são possíveis a partir da morte de Aaron Swartz? Esse é um debate tem sido promovido com mais intensidade nos Estados Unidos, onde aqueles que conviveram com Aaron se comprometeram em manter viva sua obra. Note-se, por exemplo, a profundidade dos depoimentos dados no memorial realizado no Internet Archive, em 24 de janeiro. Em quase todas as falas, ecoa a mensage m: é preciso lutar contra as injustiças da estrutura do sistema criminal (incluindo a tipificação de condutas cyberativistas) e garantir o acesso à informação.

o Brasil, umas das poucas discussões disponíveis on-line sobre Swartz foi feita no programa Metrópolis, com o excelente professor Ronaldo Lemos, mestre em Harvard (onde estudou com Lawrence Lessig), doutor em sociologia jurídica pela USP e criador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, onde leciona atualmente.

Tanto no memorial promovido nos Estados Unidos quanto na fala de Ronaldo Lemos, há uma questão em comum: o que a o pção do suicídio de Swartz revela sobre o mundo hoje? É justo que cidadãos sejam processados por longos anos e acusados criminalmente por "violar direitos autorais" ou "invadir sistemas privados"? Qual a finalidade do sistema de proteção dos intellectual property rights? Por que o interesse tão grande de corporações econômicas em limitar o poder de acesso na rede? Qual o futuro da Internet e da sociedade diante das mudanças institucionais que objetivam impedir o compartilhamento de dados e informações na rede?

É certo que essas questões já foram discutidas em excelentes livros da última década, como Free Culture (2003), de Lawrence Lessig (publicado no Brasil como Cultura Livre: como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e controlar a criatividade), e Direito, Tecnologia e Cultura (2005), de Ronaldo Lemos. Mas a questão é: em que ponto chegamos em 2013? Como re verter o cenário que levou à morte de Aaron Swartz?

O revoltante suicídio de Swartz serve como um grande sinal de fumaça de um cenário potencialmente perigoso neste turbulento século XXI. Como bem sintetizou o sociólogo Sérgio Amadeu, "com a morte do Aaron fica nítido o exagero e a absurda perseguição contra aqueles que compartilham e criam tecnologias de conhecimento. Ele é um exemplo claro de um desenvolvedor brilhante que tinha uma prática social intensa. O aparato repressivo, dominado pela indústria do copyright, queria fazer o que se fez com o The Pirate Bay. Ele foi acusado de uma coisa que não tinha feito. Ele é uma expressão desse enfrentamento entre as possibilidades que a tecnologia dá e o enrijecimento das práticas". Trata-se da tese apresentada no texto sobre a morte de Swartz: o sistema jurídico está sendo moldado p or grupos de interesse para limitação da liberdade de cidadãos engajados com a luta de uma Internet livre.

Essa é uma questão política que precisa ser enfrentada por todos. O debate swartziano é urgente e indispensável. Seu suicídio não ocorreu por acaso. Swartz queria nos radicalizar. É preciso agora transformar a revolta em ação coletiva, libertária, democrática e transformadora.

Se já começa a ficar claro qual o poder da mensagem de Swartz - e não é exagero afirmar que se trata de uma mensagem para toda a humanidade -, a questão então é: como agir?