Parte IV: Misticismo ou Marxismo ? - O pensamento de Ernst Bloch
Outro notável representante da "esquerda de Heidelberg" é Ernst Bloch, cuja obra - intimamente ligada, por seu estilo e tema, à corrente expressionista - é o mais coerente exemplo de romantismo revolucionário e a mais irrefutável demonstração da possibilidade de um desenvolvimento para o comunismo marxista a partir da Weltanschauung anticapitalista romântica. Neste sentido, ele é a negação viva da tese unilateral e esquemática do "velho Lukacs" sobre os frutos inevitavelmente envenenados, i.e., reacionários, se não fascistas, desta árvore ideológica.
Este pensamento profundamente original encontra suas raízes na sociologia alemã da passagem do século.
Bloch ensaiou seus primeiros passos no seminário berlinense de Georg Simmel, de quem foi um dos alunos preferidos.
Mais tarde, vai desenvolver em suas obras a problemática simmeliana da tragedia da cultura, i.e., da oposição entre a alma e suas objetivações, notadamente em Geist der Utopie, onde, por exemplo, formulará esta sugestiva metáfora:
"Todas as alienações humanas (alles Menschlinch Entfremdete), em última análise, não têm valor, já que Deus...no julgamento final, apenas reconhece a ética como valor em ouro, enquanto o conjunto das exteriorizações formais...aparentemente objetivas em si mesmas...para ele não passam de Assignats."
Bloch deixará Berlim por volta de 1912 para ir a Heidelberg, onde será introduzido no "Círculo de Max Weber" por Lukacs.
Segundo Paul Honigsheim, a Weltanschauung de Bloch, neste momento, era "uma combinação de elementos católicos, gnósticos, apocalípticos e econômico-coletivistas." A mulher de Max Weber (que não gostava de Bloch) descreve-o como "um novo filósofo judeu, um jovem...que acreditava ser, com toda certeza, o precursor de um novo Messias" e cujo pensamento se caracterizava por "altas especulações apocalípticas". Com a Guerra Mundial, o pensamento de Bloch "politiza-se" e aproxima-se do marxismo, sem abandonar, no entanto, seu ar messiânico, o que resultará no célebre último capítulo de Geist de Utopie:"Karl Marx, der Tod und die Apokalypse", onde denuncia a guerra como um produto do capitalismo - "uma guerra de empresários em toda sua nudez" - e vê na revolução anticapitalista a única forma de "arrancar da boca do Golem do militarismo europeu seu papel da vida". Bloch vai saudar, portanto, com esperança e com um fervor quase religioso o início da Revolução russa (o livro foi terminado em maio de 1917, antes, portanto, da Revolução de Outubro), e particularmente "o Conselho dos Operários e dos Soldados" que quer destruir "a economia monetária e a moral de comerciantes, o ápice de tudo o que há de celerado no homem". Entretanto, sua visão dos acontecimentos na Rússia ainda está profundamente impregnada pelo universo espiritual religioso de Tolstoi e de Dostoievsky, que constitui para os intelectuais alemães anticapitalistas românticos da época, um dos principais pontos de referência ideológicos. É no quadro desta "russofilia" mística que se situa a estranha e espantosa passagem de Geist der Utopie, onde Bloch explica que as obras de Marx atravessam a fronteira alemã e se encontram na Rússia em mãos de "pretorianos que, agora, na Revolução russa, pela primeira vez, instauram o Cristo como Imperador".
Apesar do misticismo, a posição de Bloch quanto ao "Conselho dos Operários e dos Soldados" russo, situa-o decididamente no campo revolucionário proletário, e separa-o, portanto, de todas as correntes e pensadores reacionários e conservadores, saídos do neo-romantismo literário ou sociológico. Iring Fetscher ressalta, de maneira penetrante, a propósito de Gaist der Utopie: "Para Bloch, o artista não podia cegar perante a desnaturalização da arte e o declínio da força criadora, pela generalização do mercado, pela transformação de cada objeto em mercadoria. Reconhecendo, entretanto, que o lamento pela perda de qualidade e de pureza é impotente e reacionário se não se liga à vontade de transformação futura, Bloch une-se - em seu pensamento - ao movimento operário revolucionário, depositando nele sua esperança."
Isso não impede que se encontre ainda em Bloch, em 1918, uma nostalgia do passado pré-capitalista, de certos valores sociais e religiosos da Idade Média que Bloch vai projetar no próprio centro de sua visão utópico-messiânica do futuro. Assim, por exemplo, nesta passagem de Geist der Utopie, onde escreve:
"Toda Utopia pode apresentar o quadro de uma hierarquia que já não é economicamente rentável, que em sua base reconhece apemas camponeses e artesãos, e que se distingue em direção ao alto, talvez pela honra e pela glória, por uma nobreza (Adel) sem servos e sem guerra, por homens novos, diferentemente cavaleirescos (ritterliche) e pios, pela autoridade de uma aristocracia espiritual".
Na entrevista que nos deu (*), Bloch explica o sentido desta postura (ao que parece, partilhada por Lukacs): trata-se de uma hierarquia invertida, inspirada pela doutrina católica, ou seja, uma hierarquia onde o ascetismo e as dificuldades (e não os privilégios) e as provas, aumentam em direção ao alto da escala. De qualquer forma, na segunda edição de Geist der Utopie (1923) esta problemática "medieval" desaparece e a passagem supracitada é substituída pelo seguinte texto:
"Toda longínqua Utopia apresenta o quadro de uma estrutura (Bau) que já não é mais economicamente rentável: cada um produz segundo sua capacidades e concome segundo suas necessidades".
Inútil ressaltar que a diferença entre estas duas formulações é aquela entre o neo-romantismo e o marxismo: a reformulação da obra atesta a evolução ideológica de Bloch de 1918 a 1923.
No entanto, embora se aproprie cada vez mais do pensamento de Marx, a filosofia de Bloch guardará sempre uma dimensão romântica (revolucionária). É esta a razão de sua profunda identidade com Lukacs até 1918 e de sua progressiva separação depois desta data. Da entrevista que nos deu (*), depreende-se claramente que Bloch considerava as novas posições de Lukacs, depois da guerra, como uma espécie de traição das suas idéias comuns, na juventude. A célebre polêmica entre os dois amigos-rivais, sobre o experessionismo nos anos 30, não é mais que o resultado desta divergência fundamental entre um marxismo de cores neo-românticas e um marxismo rigorosamente "neoclássico". Ainda mais significativa é a diferença de suas análises e atitudes políticas em face do fascismo na Alemanha: Lukacs denuncia com veemência o pensamento romântico da passagem do século como raiz ideológica do fascismo e procura a salvação numa aliança político-cultural com a burguesia esclarecida e democrática (encarnada, a seus olhos, por Thomas Mann).
Thomas Mann, em 1937
Bloch, ao contrário, vai analisar em Erbschaft dieser Zeit (A Herança de Nossa Época, 1933) o mundo cultural contraditório e despedaçado da pequena burguesia alemã, tentando separar a esperança e a revolta autênticas de seu contexto reacionário. O irracionalismo e o antimecanicismo desta classe, não são julgados por ele como simples "destruição da razão", mas como uma reação irrefletida contra os sofrimentos inflingidos à pequena burguesia pelo desenvolvimento industrial e a racionalidade capitalista. Para Bloch, a conclusão é que a conquista política das camadas médias pauperizadas e a ativação de suas contradições com o capitalismo são tarefas tão importantes para a Alemanha quanto a conquista do campesinato o foi para a Revolução russa.
Um aspecto particular do neo-romantismo que permanecerá como um dos traços mais característicos da postura de Bloch, é a dimensão religioso-atéia, "eclesiástica", messiânico-revolucionária.
Em Thomas Münzer, Theologien de la Revolution (1921) - obra que o próprio Bloch classifica de "romântico-revolucionária" - ele se refere a uma imemorial tradição subterrânea de misticismo e de heresia:
"Eis que os Imãos do vale, os Cátaros, os Valdenses, os Albigenses, o abade Joaquin de Calabre, os Irmãos da Boa Vontade, do Livre Espírito, Eckhart, os Hussitas, Münzer e os Batistas, Sebastian Franck, os Iluministas, Rousseau e a mística racionalista de Kant, Weitling, Baader, Tolstoi, eis que todos unem suas forças, e a consciência moral desta imensa tradição bate novamente à porta para acabar...com o Estado, com todo o poder desumano."
Mas além das heresias, Bloch também se interessa pelo catolicismo e pela Igreja. Em Geist der Utopie (edição de 1918), desenvolve uma visão do futuro espantosa:
"o socialismo, liberando o homem dos problemas materiais, apenas consegue tornar mais intensa a problemática socialmente insolúvel (Sozial Unaufhebbare) da Alma, que deve estar relacionada com 'os grandes meios de graça sobre-humanos e supraterrestres da Igreja, da Igreja necessariamente e a priori instituída depois do socialismo'".
Este tema reaparece na edição de 1923, que proclama:
"Uma Igraja transformada é o suporte de fins a longo prazo...é o espaço imaginável de uma tradição e de uma ligação com o Fim, sompre renovados; e nenhuma ordem, seja qual for sua finalização, pode prescindir desta última articulação na série de relações entre o Nós e o problema final do Por Quê (Wozu-problem)."
Até a obra sobre Münzer, que critica severamente os compromissos da Igreja com o mundo, contém essa nostalgia de uma Igreja "autêntica":
"Assim, para além da Igreja efetiva, como se impedir de evocar em espírito uma outra Igreja, muito mais profunda, aquela que sonharam, em seu próprio seio, tantos hereges - uma Igreja que conserve alguma coisa de sua primeira exigência, e que conheça uma verdadeira tensão com a própria existência ?"
Portanto, Bloch chega a conciliar, ou melhor, a fundir, numa combinação alquimística misteriosa e sibilina, Karl Marx e o Apocalipse, Mestre Eckhart e a Revolução de Outubro, o socialismo científico e a Igreja Cristã.
A ousada associação entre estes elementos aparentemente contraditórios, faz pensar irresestivelmente em certo jesuíta comunista, fervoroso partidário da revolução proletária e a Igreja católica, e em quem se vê, por vezes, uma alegoria de Lukács, por outras, uma imagem de Bloch, ou ainda uma síntese sui generis dos dois: "Leon Naphta", a singular criação literária de Thomas Mann em A Montanha Mágica.
(Fonte: Michael Löwy - "Para Uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários" - pags. 46 e segs.)
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(*) Nota do Blog: Trata-se de uma entrevista concedida por Ernst Bloch a Michael Löwy em 24/03/74, que, segundo Löwy, teve por objetivo esclarecer alguns aspectos das relações entre Bloch e Lukacs, sobretudo no período de 1910 a 1918, no quadro da problemática geral de formação da corrente anticapitalista entre os intelectuais alemães na passagem do século. É minha intenção postar futuramente essa entrevista - ou parte dela - no Blog.