quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Entrevista com Régis Debray




“A escala dos valores é hoje a escala da renda”.


O jornal francês La Croix, publicou uma série de reportagens e entrevistas sobre os Dez Mandamentos das Escrituras Judaicas. Para comentar o décimo mandamento, “não desejar a mulher do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu asno: nem alguma coisa que pertença ao teu próximo” (Êxodo, 20,17), o jornal entrevistou Régis Debray, intelectual francês, ex-guerrilheiro, com Che Guevara, na Bolivia, e ex-ministro do governo Mitterand, socialista.

A entrevista com Régis Debray, escritor, aos cuidados de Bernard Gorce foi publicada pelo jornal La Croix, 08-08-2008.

Eis a entrevista.

A revista que você dirige, Medium, é dedicada neste mês ao “dinheiro patrão” (1). Nossa sociedade mudou a tal ponto que o dinheiro reina aí sobre tudo?

O dinheiro, até um período recente, era um meio. Agora é um fim em si. O servo tornou-se patrão. O número especial de Medium não dá um juízo moral sobre esta inversão, mas apresenta os vários aspectos do dossiê, para que cada um tire suas conclusões. O desenvolvimento e a riqueza eram outrora fundados sobre a produção de bens materiais. Por causa da ‘financeirização’ da economia, a produção é atualmente subordinada ao rendimento e à circulação monetária.

O dinheiro patrão não tem falta de servos...

Pela primeira vez na história de nossa civilização, o homem exemplar, o modelo a seguir, não é mais um homem desinteressado. O cavaleiro da Idade Média, o cavalheiro do século dezenove, o pároco a la Bernanos ou o militante político... Todos estes modelos de identificação haviam se mantido à distância do dinheiro. Desde quando estas figuras exemplares desapareceram, o índice de notoriedade se mensura unicamente ao nível de riqueza. O homem exemplar por excelência é agora o homem de negócios. Não o industrial, mas o comunicador que faz dinheiro na internet. A escala da renda é a escala dos valores de hoje.

Não deveríamos alegrar-nos com o fim de certa hipocrisia?

Nosso velho país católico era protegido por sua “verecúndia” neste campo. Que tinha pelo menos um mérito: o dinheiro não era um valor e o financeiro estava presente somente para gerenciar a administração. Mas, o dinheiro perdeu o seu pudor e se tornou o árbitro das elegâncias, das liberdades e das utilidades sociais. Vejo nisto o sinal de uma sociedade que caminha de pernas para o ar.

O reino do dinheiro patrão significa um declínio do cristianismo?

Não é preciso universalizar. Nos Estados Unidos existe um evangelismo da riqueza. Os protestantes são mais abertos do que os católicos sobre este argumento, mas também mais agnósticos, portanto na espera de sinais de eleição. Para os americanos, o dinheiro ganho é dinheiro doado por Deus. Junto a nós, ao invés, é considerado mais ou menos dinheiro roubado. É verdade que na França o refluxo do cristianismo, o seu destaque da sociedade, abre a porta a uma corrida desenfreada das mais absurdas.

Não será que a França esteja simplesmente se americanizando?

Pode-se fundar uma sociedade unicamente sobre o dinheiro. Os Estados Unidos construíram a identidade americana tanto sobre o lucro como sobre uma teologia do povo eleito. O moto sobre o dólar “In God we trust” [Em Deus nós confiamos] exprime uma dimensão escatológica que serve de substrato ao “enriquecei-vos”. O que há de terrível na americanização da Europa em geral e da França em particular é que nós importamos o bilhete verde, o culto do fiduciário, sem a fé em Deus, o materialismo sem o espiritual. Por isso se assiste à deslocalização do corpo social, à ampliação da disparidade entre ricos e pobres, à luta de cada categoria social pela manutenção dos próprios privilégios. Nós nos encontramos naquilo que o sociólogo Émile Durkheim chamava o estado de anomia, a ausência de regras coletivamente aceitas, a recusa de uma subordinação dos interesses particulares a um bem comum.

Uma sociedade pode liberar-se da lei e da autoridade moral?

A civilização implica uma repressão organizada da instintividade. A civilização é a felicidade domada, padronizada, sublimada. A recusa da liberação sem inibições das pulsões sádicas, egoístas, agressivas. Quando se estabelece como ideal a felicidade como satisfação maciça do ego, chega-se à ferocidade. Estaríamos errados se esquecêssemos que a civilização exige sempre um compromisso ou uma transação entre uma força vital, nossas pulsões, e a força inibidora de uma moral.

A moral é a arte de transformar um sofrimento em satisfação, uma punição em recompensa. A civilização republicana laica havia sublimado as pulsões com o amor pela pátria, o culto do interesse geral, a instrução na escola. Tudo isso desmorona. Entramos num processo de “contra-civilização”.

O senhor diz que o maio de 1968 tem sua parte de responsabilidade nesta evolução.

Os participantes de 68 quiseram fazer comunidades, mas sem regras. É impossível. O primeiro dos manuscritos de Qumran é a regra da comunidade. Maio de 68 significou, de positivo, a emancipação feminina e a da sociedade civil. Mas, de negativo, introduziu a lei do mais forte, a guerra de todos contra todos. Não se constrói a “civilização” sobre o “tudo do ego”, sobre a idéia de uma felicidade sinônimo de apagamento infinito das próprias vontades.

O que pode fundar uma moral comum?

É a grande pergunta do século vinte e um, à qual não se pode responder às pressas. O século que começa será aquele da tribalização, das minorias, dos separatismos. A questão será, portanto, de saber o que pode unir todas estas tribos, confederá-las. A tribalização é o preço político-cultural da globalização econômica. E no momento assistimos a um extraordinário movimento centrífugo. Todos os etnocentrismos, todos os comunitarismos ganham terreno. Vai-se em direção a uma nova Idade Média? Podemos perguntar-nos isso. Hoje, alguns se asseguram voltando-se à “religião civil” dos direitos do homem, mas eu não creio nisso. Mais ainda do que as outras religiões, ela conta com mais comunicadores do que praticantes, mais oradores do que pessoas agentes. Na falta de algo melhor ela se tornou, em todo o caso, hoje, o dogma comum das civilizações ocidentais.

O que lhe inspira o decálogo? Pode-se voltar à lei de Moisés como a uma espécie de matriz para uma moral comum?

Sim, na condição de não fazer disso um código tribal. “Não matar”, por certo, mas isto significava originariamente: “Não matar o teu coirmão na fé, o teu irmão de sangue”. A interpretação edulcorada, ecumênica do Decálogo, que foi no início uma espécie de deontologia interna, continua sendo um belo ideal, mas não esqueçais que após o “Não matar” de Êxodo 20, vem imediatamente a pena de morte para os sacrílegos e os sodomitas. A única máxima universal, de Confúcio à tradição judaico-cristã, é a lei da reciprocidade: não fazer aos outros aquilo que não quererias que fosse feito a ti.

O último mandamento diz respeito precisamente à proibição do desejo, da cobiça. Isso não está em contradição com a mensagem publicitária que exacerba o desejo de posse?

O dinheiro patrão só tem uma lei: o lucro máximo. Não lhe importa nada referente à moral. Cabe a nós guiar este cavalo selvagem que galopa sobre todos os cartazes publicitários. Opondo-lhe ao máximo o melhor.

Fonte: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=16154

A religião, uma revolução silenciosa na China

Chineses participam de missa de Natal na catedral de Nantang, Pequim

Por: Frédéric Bobin

(Fonte: Le Monde - http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2008/08/20/ult580u3266.jhtm)



O crucifixo preto destaca-se sobre o branco da parede. Predomina na sala uma claridade intensa, como que irradiada pela luz que penetra através dos vidros deste apartamento empoleirado no topo de uma torre situada num conjunto habitacional de Pequim, não longe da vila olímpica. Atrás do seu púlpito improvisado, o pastor Li, segurando um livro de salmos, canta às bandeiras despregadas. Ao lado dele, uma adepta o acompanha no piano. Na sua frente, cerca de vinte crentes entoam, por sua vez, as louvações evangélicas. Eles estão sentados em cadeiras metálicas de encosto acolchoado. Em sua maioria, são trintões e quadragenários. Eles correspondem a perfis variados, entre os quais se misturam donas de casa, intelectuais de óculos, jovens mulheres antenadas trajando blusas regatas ou rapazes com cabelos cortados no estilo "ouriço".

Yu Jie está em pé, ligeiramente afastado da platéia. Ele está mergulhado no recolhimento. Este rapaz de tez pálida e rosto arredondado segura uma Bíblia entreaberta nas palmas das suas mãos. Ele a folheia quando o pastor prega "o amor de Deus". A sua discrição é enganadora: de fato, Yu Jie é uma personalidade de peso nesta igreja não-oficial que celebra o culto nesta tarde de domingo de julho. A igreja da Arca, que nasceu por obra de um grupo de orações organizado pela sua mulher, deve muito à sua abnegação, e também ao seu prestígio pessoal.

Yu Jie é o que costumam chamar de "dissidente". Um ensaísta liberal, admirador da democracia americana - e, a esse título, um inimigo declarado dos nacionalistas chineses mais extremistas -, ele é vigiado de muito perto pela Segurança de Estado, que, contudo, o deixa livre de restrições, controles ou limitações. Em decorrência de uma extensa reflexão política e espiritual, ele abraçou a fé cristã em 2003. Um expoente da vertente pequinesa das "igrejas em domicílio" - as quais são estruturas não-oficiais toleradas, mas que evoluem em meio a um contexto precário -, ele é atualmente um dos intelectuais protestantes mais destacados da capital. Junto com dois dos seus correligionários, ele foi até mesmo recebido em 2006 em Washington por George W. Bush, o que provocou o furor do regime chinês.




Fé e política intimamente ligadas
Yu Jie é apenas um exemplo entre tantos outros. Ele encarna uma pequena revolução silenciosa: no decorrer dos últimos anos, um número crescente de intelectuais liberais na China urbana vem aderindo ao protestantismo. Além de Yu Jie, os mais conhecidos são Wang Yi, Li Baiguang, Gao Zhisheng, Jiao Guobiao, Li Heping, Li Jinsong, Ai Xiaoming. Quase todos eles são professores e juristas envolvidos na defesa dos direitos cívicos. Eles representam a parte visível de um fenômeno mais amplo.

Após ter tomado conta das regiões rurais durante os anos 1980, o fervor religioso - entre outros, o da confissão cristã - vem conquistando espaços nas grandes cidades, em particular no âmbito de uma classe média à procura de valores espirituais como forma de reação ao materialismo dominante. As estatísticas oficiais menosprezam a real importância deste ressurgimento da fé. Segundo as estimativas mais confiáveis de alguns especialistas, a China contaria atualmente entre 40 e 50 milhões de protestantes, além de 10 a 12 milhões de católicos, ou seja, comunidades cristãs que representam cerca de 5% da população. Trata-se de uma parcela ainda muito minoritária, mas que está em processo de expansão.

No caso de Yu Jie, a fé e a política estão intimamente ligadas. Com 35 anos, ele é jovem demais para ter participado da primavera estudantil de 1989 na Praça Tiananmen. Mas o esmagamento, sob as lagartas dos tanques, do sonho democrático nunca parou de assombrá-lo. No decorrer da sua reflexão, a religião foi se impondo como um substituto para um ideal político inacessível. E no contexto desta busca, o cristianismo despontou com a mais sedutora das tentações. "Os valores liberais encontram a sua fonte no cristianismo", analisa. "A tradição chinesa não me satisfaz deste ponto de vista: não é possível encontrar referências à liberdade e aos direitos humanos no confucionismo"*.

Yu Jie leu muito, mergulhou na história da evangelização em terra chinesa, refletiu a respeito dos vínculos entre o cristianismo e a modernidade. Ele conseguiu dimensionar o papel do protestantismo na formação das elites reformistas na China, no início do século 20, a partir dos conhecimentos que ele encontrou, em particular, na obra de Sun Yat-sen (1866-1925), o fundador da República. "Quanto mais eu fui lendo, quanto mais fui descobrindo que a religião cristã havia contribuído para a modernização da sociedade chinesa antes da revolução de 1949", prossegue. "Ora, esta contribuição é totalmente ocultada pelos nossos manuais de história oficiais, que apresentam o cristianismo como o instrumento do imperialismo ocidental".

"Eu acabei alimentando um ódio pela sociedade"
Wang Guangze é um outro representante desses intelectuais neoprotestantes. Um jornalista dissidente, antigo funcionário do "Diário da Lei" e de "Reportagem Econômica do Século 21" - publicações das quais ele foi excluído por conta das suas opiniões democratas -, ele tem a mesma idade que Yu Jie. Da mesma forma que para este último, o trauma de Tiananmen exerceu um papel considerável em sua evolução espiritual. Em maio de 1989, ou seja, antes da repressão do movimento, ele era apenas um colegial na província do Henan, mas havia participado das manifestações de apoio que então haviam tomado conta como uma febre da juventude pelo país afora. A intervenção sangrenta dos tanques na Praça Tiananmen o deixou totalmente "desesperado".

"Eu estava tão desiludido", recorda-se, "que acabei alimentando um ódio pela sociedade, esta sociedade que se tornara a escrava do poder". Após ter concluído seus estudos de direito, ele procura curar-se dessa raiva. As tradições chinesas, como para Yu Jie, não lhe proporcionam o auxílio de que precisa. "O confucionismo se caracteriza por ser um pensamento da elite", critica Wang Guangze, "enquanto o budismo não aponta outra meta senão a de tornar-se um santo". Mas ele segue procurando, lendo, discutindo a respeito dos caminhos da salvação com os seus amigos. O que transforma o cristianismo numa revelação repentina para ele, explica, é a "noção de pecado". Nisso ele descobre - finalmente! - a chave que lhe permite livrar-se da sua execração para com o mundo. "Nós todos somos pecadores", diz. "Não existem pessoas mais nobres do que outras". "Foi assim que apazigüei a minha cólera contra o Partido Comunista", prossegue. "Os comunistas são pecadores assim como eu, mesmo se eles estão a serviço de um sistema que oprime".

Com isso, Wang Guangze torna-se então "tolerante", "moderado", e ele avalia ainda que "é preciso ajudar uns aos outros entre pecadores". Ele fundou uma associação que preconiza a "reconciliação" na China, inspirada no modelo sul-africano.

Fan Yafeng é outro que reencontrou a paz da alma graças a Deus. Um jurista na Academia das Ciências Sociais, ele tinha 20 anos em 1989. Ele havia viajado da sua província do Anhui para Pequim com o objetivo de acompanhar de muito perto a rebelião estudantil. "Depois da repressão, eu acabei ficando totalmente deprimido", recorda-se. "Ao longo de muitos anos, senti-me fraco, frágil, vazio". Ele tenta então aproximar-se do budismo, mas este não oferece respostas para as suas "interrogações a respeito do sentido da vida". No inverno de 1996, surge finalmente a revelação. Um amigo pastor que, por sua vez, havia passado do hinduismo para o protestantismo o convida para assistir ao culto de uma "igreja em domicílio". "Na ocasião, vi pessoas irradiando felicidade, pessoas muito simples, uma cabeleireira, uma empregada de uma companhia de seguros", recorda-se. "O rosto de todas elas estava iluminado". Alguns meses mais tarde, Fan Yafeng é batizado. Enquanto os eventos de 1989 haviam precipitado seus tormentos passados, hoje ele se nega, contudo, a politizar excessivamente sua descoberta da fé: "As nossas igrejas permitem salvar as almas, não a sociedade".

Nem todos os neoprotestantes de Pequim estão imbuídos de uma tão grande beatitude. Um homem de cabelos compridos com madeixas ruivas, Wang Wangwang, é um artista pintor e um célebre criador de cartazes muito requisitado pela vanguarda da capital. Ele converteu-se em 2004 porque, apesar dos seus sucessos e da sua boa situação financeira, ele sentia "um vazio espiritual". Quatro anos mais tarde, ele optou por tomar certa distância em relação ao culto. "Eu senti em mim", diz, "uma contradição, um conflito entre certos valores ocidentais vinculados ao cristianismo e os valores chineses dos quais sou portador". Desde então, ele vem se esforçando para "harmonizá-los" entre si. Wang Wangwang sublinha que ele acabou conseguindo alcançar uma "síntese satisfatória". Mas, o preço que ele teve de pagar para tanto foi um processo de desengajamento em relação à "igreja em domicílio" à qual ele havia aderido. Ele prefere "praticar" sozinho, em sua casa, no meio da mais completa bagunça dos seus quadros, nos quais o Cristo é visto disputando espaços com Mao Tse-Tung.

*Nota do tradutor - Confúcio (551 a.C. - 479 a.C.) é considerado como o primeiro "educador" da China; os seus ensinamentos deram origem a uma doutrina política e social.

Tradução: Jean-Yves de Neufville