terça-feira, 22 de dezembro de 2009

A identidade em tempos de Google



"Como a nossa existência está se tornando um fluxo contínuo de informações, uma infinidade de cursos que vão nas mais diversas direções, não só a identidade se confirma ser sempre mutável, mas corre o risco de se tornar completamente instável."

Essa é a opinião de Stefano Rodotà, jurista e político italiano, professor de direito na Universidade de Roma "La Sapienza", em artigo para o jornal La Repubblica, 14-12-2009. Rodotà é um dos autores da Carta Europeia de Direitos Fundamentais, além de ser ex-presidente da Comissão Ital iana de Proteção de Dados e do Grupo Europeu de Proteção de Dados. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Como se pode hoje responder à antiga pergunta: "Quem sou?". Até ontem, mesmo que entre muitas cautelas, podia-se dizer "eu sou aquele que digo ser". Mas já entramos em um tempo em que sempre mais se deverá admitir: "eu sou aquilo que o Google diz que eu sou". E aí, naquele interminável catálogo do mundo e nos infinitos outros bancos de dados que implacavelmente conservam informações pessoais, é construída a nossa identidade, em formas que sempre mais fogem do controle do próprio interessado.

Sabíamos desde sempre, talvez, que o olhar do outro contribui para definir a nossa identidade. Escrevia Sartre que "o judeu depende da opinião sobre a sua profissão, sobre os seus direitos, sobre a sua vida". Essa dependência cresceu de modo determinante nos últimos 30 anos, desde quando a eletrônica não só tornou possível reunir e conservar uma quantidade tendencialmente infinita de dados, mas principalmente permitir encontrá-los rapidamente, colocá-los em relação entre si e, assim, traçar perfis que se tornam os instrumentos por meio dos quais qualquer um de nós é conhecido, avaliado, continuamente reconstruído. A identidade "digital" triunfa, corre o risco de ser a única mediação com o mundo, colocando problemas antes impensáveis. Como a nossa existência está se tornando um fluxo contínuo de informações, uma infinidade de cursos que vão nas mais diversas direções, não só a identidade se confirma ser sempre mutável, mas corre o risco de se tornar completamente instável, confiada como é a uma multiplicidade de sujeitos, qualquer um dos quais constrói, modifica, faz circular imagens da identidade de outros.

Qualquer um que tenha uma bio grafia na Wikipedia, a grande enciclopédia na rede construída por meio da contribuição de todos os que querem intervir, sabe que é bom mantê-la sob controle, para corrigir erros, eliminar invenções, integrá-la com elementos que os autores consideraram irrelevantes, justamente para evitar que uma falsa identidade seja projetada no mundo.

Um assunto de poucos? Consideremos, então, a comunicação eletrônica no seu conjunto, aquela que envolve todos, incluindo crianças, e que se realiza por meio do telefone fixo e móvel, os SMS, o correio eletrônico, os acessos e a presença na Internet. De tudo isso, permanecem rastros, conservados por lei até durante longos períodos. O resultado? A possibilidade de reconstruir toda a rede de relações de uma pessoa (a quem telefonou ou mandou SMS ou mensagens de correio eletrônico e com qual frequência), sobre os seus deslocamentos (de onde telefonou), dos seus gostos (quais sites acessou), das s uas opiniões ou crenças (com qual partido ou Igreja esteve em contato).

Diz-se porém que nesses casos a garantia é oferecida pelo fato de que não são conservados os conteúdos das conversas ou das mensagens (mesmo que nem sempre isso é assim). Mas essa aparente garantia esconde um risco muito grande. Comparemos com a questão controversa das interceptações. Nesses casos, se falei com uma pessoa envolvida em fatos pouco claros ou ilegais, ainda posso demonstrar que a conversa era totalmente estranha à matéria da investigação. Se, ao invés, da lista de chamadas telefônicas resulta apenas o fato da ligação, permanece a suspeita de um contato equívoco. Não por acaso grandes associações europeias pela defesa dos direitos civis estão pedindo à União Europeia justamente a modificação das normas sobre a conservação desses dados.

Está mudando a natureza mesma da sociedade, que se transforma em "sociedade do registro" , na qual, por razões de segurança ou interesses de mercado, determina-se um ininterrupto fichamento de tudo e de todos. Assim, todos vivem em um universo onde retalhos da identidade de cada um estão espalhados em bancos de dados diversos. Assim, a identidade se torna múltipla; articula-se por meio da apresentação na cena do mundo com uma multiplicidade não apenas de pseudônimos, mas também de representações de si; conhece diversos graus de persistência pública, que variam segundo a intensidade com a qual é reconhecido um "direito ao esquecimento", ligado principalmente à possibilidade de fazer desaparecer da rede informações que se referem a nós.

E a livre construção da personalidade se relaciona sempre mais amplamente ao "direito de não saber", de bloquear a chegada de informações indesejadas. Uma liberdade que poderá ser melhor garantida pelo novo "direito a tornar os chips silenciosos", isto é, do poder da pessoa de dispor de instrumen tos tecnológicos que possam, em qualquer momento, interromper as diversas formas de coleta das suas informações pessoais por meio de aparatos eletrônicos, livrando-se assim de controles externos. Parece evidente que a identidade se define sempre mais claramente com base na relação entre pessoa e tecnologia, na progressiva imersão em um ambiente povoado por "objetos inteligentes", que fornecem infinitas informações sobre os nossos comportamentos.

Mas muda também o significado "relacional" da identidade. As redes sociais, emblema da Internet 2.0, encarnam essa mudança. Recorre-se ao Facebook para ser visto, para conquistar uma identidade pública permanente que supera os 15 minutos de fama que Andy Wahrol considerava que deveriam se tornar um direito de cada pessoa. Alimenta-se o "público" para dar sentido ao "privado". Exibe-se um conjunto de informações pessoais, o "corpo eletrônico", assim como se exibe o corpo fí sico por meio de tatuagens, piercings e outros sinais de identidade. A identidade se faz comunicação.

Mas o que ocorre a essa identidade totalmente virada para o exterior? Ela se torna mais disponível para qualquer um que queira se apossar de um número sempre crescente de informações que se referem a nós, recolhidas em lugares às vezes inalcançáveis e utilizadas por sujeitos às vezes desconhecidos. A identidade corre o risco de se tornar "inconhecível", a sua construção obriga a uma ininterrupta peregrinação em rede, para descobrir quem fala de nós, para impedir abusos. Mas ao longo desse caminho descobrimos como pode se tornar vã a pretensão do "conhece a ti mesmo".

A construção da identidade, portanto, se efetua em condições de dependência crescente do exterior, do modo em que é estruturado o ambiente no qual vivemos, do "digital tsunami" que está se abatendo sobre nós, que alimenta a bulimia informativa de órgãos de segurança e de atores do mercado, todos desejosos de se adonar da crescente quantidade de informações que pode ser produzida por cada contato que estabelecemos, por cada objeto que operamos. Aqui nasce uma ininterrupta produção de "perfis" pessoais, que estabelecem confrontos com modelos de normalidade e levam a assumir uma identidade "obrigada", necessária para a aceitação social, para fugir de estigmatizações ou de custos na atividade cotidiana.

Justamente para evitar esses condicionamentos, projetam-se formas de identidades funcionais, que comunicam ao exterior só aquela porção de identidade estritamente necessária para a realização de um determinado resultado. Partindo da premissa que já estamos no mundo das identidades múltiplas, a pessoa deveria poder autonomamente gerir um perfil que se refere à saúde, um outro para a aquisição de bens e serviços e assim por diante, portanto, uma "rede de identidades" que evite os riscos relaciona dos ao fato de ter que se revelar integralmente ao exterior.

Mas justamente o requisito da autonomia corre o risco de ser cancelado pelas experimentações sobre o "autonomic computing". Pode-se, de fato, criar um esquema que "captura" a identidade em um determinado momento e depois a desenvolve com base em uma série de informações fornecidas por um multiplicidade de fontes, sem participação e conhecimento por parte do interessado. A separação entre identidade e autonomia pode, assim, tornar-se total. Parte-se de uma identidade "congelada", que é depois confiada a algoritmos que irão construir o futuro. Podemos fechar os olhos diante dessa perspectiva, esquecendo que a lógica do algoritmo onisciente está entre as causas da devastadora crise financeira?