sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Capitalismo oligárquico & crise ecológica



"Pela primeira vez, a humanidade se encontra com o limite dos recursos naturais''


Hervé Kempf, jornalista do Le Monde, acaba de publicar seu segundo livro – Para salvar o planeta é preciso sair do liberalismo – sobre a devastação dos recursos naturais. Expõe que, para desenhar políticas ecológicas, é preciso priorizar valores opostos aos que regem o ordenamento econômico e social do mundo.

A entrevista é de Eduardo Febbro e publicada pelo jornal Página/12, 11-01-2010. A tradução é de Vanessa Alves.

Com uma grande capacidade pedagógica e sem jamais cair na histeria anticapitalista ou na denúncia incendiária embebida em outras ideologias, Kempf apresenta uma evidência perante a qual o ser humano fecha os olhos: a humanidade se dirige para sua perda levada por um modelo político e econômico que terminou por contaminar e esgotar a essência mesma da vida. Como sobreviver a semelhante cataclismo? De uma só maneira, diz Kempf: rompendo as amarras que nos ligam ao capitalismo. Kempf demonstra que o capitalismo atual, enredado pela corrupção, a gula, a cegueira e o apetite especulativo de seus operadores é o responsável pela crise ecológica que ameaça a existência de nossa aventura humana. O único remédio é, diz Kempf, romper sua lógica, restaurar e inventar outros valores antes que um cataclismo nos engula. Hoje, o sistema capitalista nem sequer é capaz de garantir a sobrevivência das ge rações futuras. Para salvar o planeta é preciso sair do liberalismo sairá na Argentina no primeiro semestre deste ano sempre nas impecáveis e indispensáveis edições de Livros do Zorzal.

Eis a entrevista.

No seu livro anterior, Como os ricos destroem o planeta, o senhor expôs um aspecto do saque de nosso planeta. Nesta segunda obra, o senhor formula, ao mesmo tempo, uma denúncia implacável sobre os estragos causados pelo sistema ao planeta e propõe uma metodologia para atenuar a crise do meio ambiente.

Estamos ao mesmo tempo em uma situação de crise ecológica extremamente importante, com uma dimensão histórica nunca vista antes, e em um sistema econômico que não muda apesar de todos os indicadores ecológicos estarem no vermelho. A classe dirigente, que eu chamo oligarquia, escolheu não tomar as medidas necessárias para atenuar a crise ecológica porque quer manter seus privilégios, seu poder e suas riquezas exorbitantes. A oligarquia sabe perfeitamente que, para ir para uma política ecológica, seria preciso colocar em dúvida suas vantagens. Para a filosofia capitalista, todas as relações sociais estão garantidas unicamente pelo intercâmbio de mercadorias. Para sair dessa situação e voltar a uma política ecológica e de justiça social, é preciso trabalhar os valores de cooperação, de solidariedade, de bem comum, de interesse geral.

Há assim dois cataclismos simultâneos: o esgotamento do sistema econômico e o esgotamento dos recursos naturais e as mudanças do clima. Ambos poderiam acabar num enfrentamento.

Já estamos constatando esse enfrentamento. A oligarquia mantém um modelo cultural de hiperconsumo que divulga para o conjunto da sociedade através da televisão, a propaganda, os filmes. Esse modelo tem que mudar, mas está tão arraigado na maneira de viver da oligarquia com sua enorme acumulação de riquezas que esta se opõe a essas mudanças. Um milionário nunca aceitará andar de bicicleta porque seu modelo, seu poder, seu prestígio, é o carro caro. Se queremos atenuar a crise ecológica, este é o modelo que devemos romper. É necessário reduzir o consumo material e o consumo de energia. Estamos então em pleno confronto entre a ecologia e a justiça, por um lado, e, pelo outro, uma representação do mundo totalmente inadaptada aos desafios de nossa época.

Por acaso a defesa do meio ambiente, tudo o que está ligado ao clima, não pode chegar a se converter em uma nova forma de plataforma política mas já não marcada pela ideologia?

Sem dúvida que sim, ainda mais que estamos em uma situação histórica que nos impõe essa plataforma. A crise ecológica que estamos vivendo é um momento histórico. É a primeira vez que a humanidade se depara com os limites dos recursos naturais. Até agora, a natureza nos parecia inesgotável, e isso permitiu a aventura humana. Mas há uma geração compreendemos que chegamos num limite, entendemos que a natureza pode se esgotar e que a humanidade, a civilização, deve estabelecer um novo laço com seu meio ambiente, com a natureza, a biosfera. O momento é a tal ponto histórico que em um curto prazo, 20 ou 30 anos, este é o tema que dominará todas as questões políticas. Esse é o elemento-chave de toda política que, sem ideologias, busca definir um pós-capitalismo ecológico e social. Em menos de duas décadas, devemos mudar nossa sociedade para enfrentar o desafio do muro ecológico ao que a cultura humana está confrontada. Somos obrigados a realizar uma mutação cultural, não só na forma de conceber a sociedade, isto é, o desprendimento dessa cultura capitalista que se voltou mortífera, mas também na maneira em que interrogamos a cultura ocidental e essa dicotomia existente entre natureza e cultura. Passamos para outro momento histórico.

Mas hoje temos uma condição de paradoxo geral: estamos num sistema capitalista ultra-individualista e competitivo ao mesmo tempo em que vivemos numa sociedade de coletivização da informação e de contato através da Internet.

A Internet e a comunicação direta entre indivíduos não têm ainda o suficiente contrapeso. O poder capitalista não só controla os fluxos financeiros ou o poder econômico, também controla os meios de comunicação, e isso impede que exista uma verdadeira expressão da crítica social ou a difusão de visões alternativas. A Internet é, por enquanto, um canal de segurança através da qual a crítica social e a crítica ecológica, que agora começam a andar juntas, começam a ter canais de informação independentes. No entanto, por enquanto, essa utilidade é muito menos potente. As capacidades de informação alternativas da Internet ou dos livros e revistas são ainda frágeis frente aos meios dominantes, especialmente a televisão, que está nas mãos da oligarquia e que imprime na sociedade uma visão controlada, dirigida e convencional das coisas.

O senhor assinala também os limites da ilusão tecnológica. O senhor demonstra como a oligarquia nos faz acreditar que a tecnologia vai resolver todos os nossos problemas e como e por que se trata de uma mera ilusão destinada a perpetrar o sistema.

O sistema capitalista quer crer que vamos resolver os problemas, em particular o do aquecimento global, recorrendo aos agrocombustíveis, à energia nuclear, à energia eólica e a outras diversas tecnologias. É certo que essas tecnologias podem ter um papel, mas de nenhuma maneira estão à altura do desafio que nos coloca o aquecimento do planeta. E não é possível que seja assim porque, por um lado, o prazo e a dificuldade para levá-las à prática requerem muito tempo para assumir as transformações necessárias. As mudanças climáticas se produzem agora a uma velocidade muito alta e, daqui a uns dez anos, já temos que haver mudado de rumo. Por outra parte, todas essas técnicas, se bem que algumas têm efeitos favoráveis, também têm efeitos secundários muito prejudiciais que não podemos ignorar. É óbvio que é necessário seguir investigando novas tecnologias, mas não podemos colocar a tecnologia no centro das ações que devem empreender nossas socieda des. Essencialmente, para prevenir o agravamento da crise ecológica é preciso reduzir o consumo material e o consumo de energia. Essa é a solução mais direta. Mas essa mudança profunda de orientação de nossas sociedades só se fará se o esforço for compartilhado de maneira equitativa, e isso passa pela redução das desigualdades. Ninguém aceitará mudar seu modo de vida se ao mesmo tempo seguimos vendo milionários com Mercedes enormes, navios gigantescos e aviões privados. Esclareço que reduzir o consumo material e de energia quer dizer que vamos substituir, reorientar nossa riqueza coletiva.

O senhor diz a respeito que o futuro não está na tecnologia, mas no formato de uma nova relação social.

A questão que está no centro de nossas sociedades consiste em saber como os indivíduos pensam de si mesmos e como pensam dos demais. Por isso, devemos sair desta visão individualista e competitiva, dessa visão do crescimento indefinido. A briga se joga na cultura: trata-se de saber o que é que define uma consciência comum.

O senhor se burla com muita pertinência desse discurso de proteção do meio ambiente que tende a fazer de cada indivíduo um militante ecologista sempre e quando este fizer certos gestos – dividir o lixo, por exemplo– individuais. O senhor define esse método também como um engano da oligarquia.

Sim, há um discurso que diz “se cada um de nós fizer um esforço” isso resolverá as coisas. Não. Sem dúvida que consumir menos água e andar menos de carro ajuda, mas esse enfoque individualista não resolve nada. Por quê? Porque, no fundo, há uma questão política: se eu decido circular de bicicleta, mas o governo e as grandes empresas decidem construir novas estradas, de nada adiantará que eu circule de bicicleta. Além disso, dizer às pessoas que são elas que farão avançar as coisas com pequenas ações individuais equivale a permanecer no esquema individualista, que é o do capitalismo. Não resolveremos nada com soluções individualistas, mas mediante uma combinação coletiva e com atos coletivos.

Para o senhor existe um laço primordial entre a crise ecológica e a liberdade, por isso ressalta que é importante salvar a liberdade contra a tentação autoritária do capitalismo.

No curso de sua história, o capitalismo esteve associado à liberdade, à democracia. Inclusive, no período da Guerra Fria, o capitalismo estava associado ao mundo livre e à democracia na sua luta contra a União Soviética. Mas depois do desaparecimento da URSS, o capitalismo perdeu seu inimigo. Agora começamos a notar, no pensamento da oligarquia, uma negação da democracia e um abandono da ideia segundo a qual a democracia é algo positivo. Estamos em um período onde os capitalistas não estão de acordo com a democracia. Ao contrário, consideram que a democracia é, para eles, algo perigoso porque, evidentemente, uma sociedade democrática põe em dúvida o poder e, consequentemente, colocará em perigo a oligarquia. Tivemos um exemplo disso com a administração de George Bush. As democracias dos países do Norte, os Estados Unidos e a Europa, estão cada vez mais doentes, mais debilitadas.

Em que plano se inscreve a ecologia nesta crise da democracia?

As tensões ecológicas estão se agravando cada vez mais e, ao mesmo tempo, a oligarquia persiste em querer manter uma ordem social baseado na desigualdade. A tentação de recorrer a meios cada vez mais policiais é cada vez maior: vigiar a população, os opositores, ter arquivos imensos, mandar muita gente à prisão, para mudar, restringindo-os, os textos de lei relativos às liberdades individuais e de expressão. Se a sociedade não se acorda e não conseguimos que antecipem nossas ideias sobre a justiça social para fazer frente à crise ecológica, a oligarquia, enfrentada ao perigo ecológico, cairá na tentação de utilizar meios mais e mais autoritários.

Isso foi o que vimos ao vivo na conferência sobre o clima que aconteceu em Copenhague. A polícia reprimiu a tempo os representantes das ONG convidadas pela mesma ONU. Talvez Copenhague não tenha sido uma visão de nosso futuro?

Absolutamente, é assim. Em Copenhague, promoveu-se, além disso, uma convergência entre o movimento ecologista e os militantes antiglobalização, movimento baseado nos valores de justiça social. Isso quer dizer que agora a questão da mudança climática se coloca em termos políticos. O segundo, houve muitas manifestações, frequentemente muito alegres, imaginativas e não violentas, que foram reprimidas de maneira tão sutil quanto perigosa. Em Copenhague, vimos a experimentação de uma condição de ditadura suave que a oligarquia está aplicando. Copenhague foi uma entrevista importante porque ali se afirmou algo essencial: a contra-sociedade se manifestou ali de maneira mundial.