segunda-feira, 18 de maio de 2009

Perspectivismo: para além do pós-modernismo


(Nota do Blog Epifenomenologia: O texto abaixo é uma tradução livre do artigo "Perspectivism: ‘Type’ or ‘bomb’?" de Bruno Latour, publicado na revista "At Anthropology Today" - vol. 25 nº2, abril 2009, disponível no site do autor. Trata-se de um comentário realizado a propósito do debate entre Eduardo Viveiros de Castro e Philippe Descola ocorrido na Maison Suger, em Paris, no dia 30 de Janeiro de 2009.)


PERSPECTIVISMO: MODELO OU BOMBA? (*)


Bruno Latour


Paris, 30 de Janeiro


Quem disse que a vida intelectual de Paris estava morta? Quem disse que a antropologia não mais era vívida e atraente? Aqui estamos, numa fria manhã de Janeiro, em uma sala cheia de gente de diversas disciplinas e vários países, ávidos por ouvir um debate entre dois dos maiores e mais brilhantes antropólogos. O rumor circulou por salas de bate-papo e cafés: depois de anos aludindo aos seus desacordos, em particular ou por publicações, eles concordaram enfim em trazê-los a público. “Vai ser áspero”, me disseram; “vai ter sangue”. Na verdade, em vez da rinha esperada por alguns, a pequena sala na Rue Suger testemunhou uma disputatio(1), muito parecida com aquelas que devem ter tido lugar entre estudiosos fervorosos aqui, no coração do Quartier Latin, por mais de oito séculos.

Apesar de se conhecerem há 25 anos, os dois decidiram começar a sua disputatio lembrando à platéia do importante impacto do trabalho um do outro em suas próprias descobertas.

Philippe Descola primeiramente reconheceu o quanto ele aprendeu com Eduardo Viveiros de Castro quando estava tentando se extirpar do binarismo “natureza versus cultura” ao reinventar a então obsoleta noção de “animismo” para entender modos diferentes de relação entre humanos e não-humanos. Viveiros havia proposto o termo “perspectivismo” para um modo que não poderia ser mantido dentro das limitadas estrituras [narrow strictures] de natureza versus cultura, já que para os índios que ele estudava, a cultura humana é aquilo que vincula todos os seres - incluindo animais e plantas - ao passo que eles estão divididos por suas naturezas diferentes, ou seja, seus corpos (Viveiros 1992).

É por este motivo que, enquanto os teólogos em Valladolid debatiam acerca dos índios terem ou não uma alma, esses mesmos índios, do outro lado do Atlântico, testavam os conquistadores ao afogá-los para ver se apodreciam - uma bela maneira de ver se eles realmente tinham corpo; o fato de terem uma alma não estava em questão. Este famoso exemplo de antropologia simétrica levou Lévi-Strauss a notar, com uma certa ironia, que os espanhóis podiam ser bons em ciências sociais mas que os índios estavam conduzindo suas pesquisas de acordo com o protocolo das ciências naturais.


Descola

Os quatro modos de relação de Descola

Descola, então, explicou como a sua nova definição de animismo poderia ser utilizada para distinguir “naturalismo” - a visão geralmente tida como posição padrão adotada pelo pensamento Ocidental - de “animismo”. Enquanto os “naturalistas” traçam semelhanças entre entidades com base em aspectos físicos e os distinguem com base em características mentais ou espirituais, o “animismo” toma a posição oposta, sustentando que todas as entidades são semelhantes em termos de seus aspectos espirituais, mas se diferem radicalmente em virtude do tipo de corpo do qual são dotadas.

Este foi um avanço notável para Descola, já que significou que a divisão “natureza versus cultura” não mais constituía o background inevitável adotado pela profissão como um todo, mas apenas uma das maneiras que os “naturalistas” tinham de estabelecer as suas relações com outras entidades. A Natureza deixara de ser um meio [resource] para se tornar um problema [topic]. É desnecessário dizer que esta descoberta não estava perdida entre as nossas, no campo vizinho dos science studies, que estudávamos, histórica ou sociologicamente, como os “naturalistas” tratavam as suas relações com não-humanos.

Foi então possível para Descola, como ele explicou, adicionar a este par de conexões um outro par no qual as relações entre humanos e não-humanos eram ou semelhantes em ambos os lados (o que ele chamou “totemismo”) ou diferentes nos dois lados (um sistema por ele denominado "analogismo") . Ao invés de cobrir todo o globo com um único modo de relações entre humanos e não-humanos que então serviria como um background para detectar as variações “culturais” entre muitos povos, este próprio background virara objeto de investigação cuidadosa. Os povos não se diferem apenas em suas culturas mas também em suas naturezas, ou antes, na maneira pela qual elas constroem relações entre humanos e não-humanos. Descola foi capaz de alcançar o que nem os modernistas nem os pós-modernos conseguiram: um mundo livre da unificação espúria de um modo naturalista de pensar.

Apesar da universalidade imperialista dos “naturalistas” ter sido ultrapassada, uma nova universalidade ainda era possível, uma que permitisse que cuidadosas relações estruturais fossem estabelecidas entre as quatro maneiras de construir coletivos [building collectives]. O grande projeto de Descola era então reinventar uma nova forma de universalidade para a antropologia, mas desta vez uma “relativa”, ou melhor, uma universalidade “relativista”, que ele desenvolveu em seu livro Par delà nature et culture (2005). A seu ver, por mais profunda que fosse a investigação de Viveiros, ele focava apenas um dos contrastes locais que ele, Descola, tentara contrastar com numerosos outros procurando obter uma variedade maior.

Eduardo Viveiros de Castro


Dois perspectivismos no perspectivismo

Apesar de se serem amigos por um quarto de século, duas personalidade não poderiam ser mais distintas. Depois do tom aveludado da apresentação de Descola, Viveiros falou por incursões breves e aforísticas, lançando uma espécie de Blitzkrieg em todas as frentes a fim de demonstrar que também ele pretendia atingir uma nova forma de universalidade, só que uma muito mais radical. Perspectivismo, sob seu ponto de vista, não deveria ser considerado como uma simples categoria dentro da tipologia de Descola, mas antes como uma bomba com o potencial de explodir toda a filosofia implícita tão dominante na maior parte das interpretações dos etnógrafos sobre seus materiais. Se há uma abordagem que é totalmente anti-perspectivista, é a noção mesma de um termo [type] dentro de uma categoria, uma idéia que só pode ocorrer àqueles a quem Viveiros chamou “antropólogos republicanos”.

Como Viveiros explicou, o perspectivismo virou algo como uma moda nos círculos amazônicos, mas esta moda oculta um conceito muito mais incômodo, que é o de “multinaturalismo”. Enquanto os pesquisadores, tanto das ciências duras quanto das ciências humanas, concordam igualmente com a noção de que há apenas uma natureza e muitas culturas, Viveiros quer levar o pensamento amazônico (que não é, ele sustenta, a “pensée sauvage” que Lévi-Strauss sugeriu, mas uma filosofia totalmente civilizada e altamente elaborada) a tentar ver como o mundo inteiro seria se todos os seus habitantes tivessem a mesma cultura e muitas naturezas diferentes. A última coisa que Viveiros pretende é que a luta ameríndia contra a filosofia ocidental se torne apenas mais uma bizarrice no vasto gabinete de curiosidades que ele acusa Descola de estar tentando construir. Descola, ele argumenta, é um “analogista” - isto é, alguém que é possuído pela cuidadosa e quase obsessiva acumulação e classificação de pequenas diferenças a fim de preservar um senso de ordem cósmica face à constante invasão de diferenças ameaçadoras.

Notem a ironia aqui - e a tensão e atenção na sala aumentaram neste momento: Viveiros não estava acusando Descola de estruturalista (uma crítica que foi frequentemente dirigida a seu maravilhoso livro), já que o estruturalismo, como Lévi-Strauss o concebe, é, ao contrário, “um existencialismo ameríndio”, ou antes “a transformação estrutural do pensamento ameríndio” - como se Lévi-Strauss fosse o guia, ou melhor, o xamã que permitiu ao perspectivismo indígena ser conduzido para dentro do pensamento Ocidental a fim de destruí-lo a partir de seu interior, numa espécie de canibalismo invertido. Lévi-Strauss, longe de ser o catalogador frio e racionalista de mitos distintos contrastados, aprendera a sonhar e divagar como os índios, exceto que ele sonhava e divagava por meio de fichamentos e parágrafos refinados. Mas o que Viveiros criticou foi que Descola arrisca tornar a transformação de um tipo de pensamento para outro “demasiadamente leve”, como se a bomba que ele, Viveiros, queria colocar na filosofia ocidental tivesse sido desarmada. Se nós permitíssemos ao nosso pensamento se conectar à alternativa lógica ameríndia, toda a noção dos ideais kantianos, tão difusa nas ciências sociais, teria que ser descartada.

A essa crítica Descola respondeu que ele não estava interessado no pensamento Ocidental, mas no pensamento de outros; Viveiros replicou que o problema era a sua maneira de estar “interessado”.

Bruno Latour


Pensamento descolonizador

O que está claro é que este debate destrói a noção de natureza como um conceito universal que cobre todo o globo, por conta do qual os antropólogos têm o dever triste e limitado de adicionar o que quer que tenha restado de diversidade sob a noção velha e desgastada de “cultura”. Imaginem como os debates entre antropólogos “físicos” e “culturais” podem ficar quando a noção de multi-naturalismo for levada em consideração. Descola, não obstante, ocupa a primeira cadeira de “antropologia da natureza” no prestigioso Collège de France, e eu sempre me perguntei como os seus colegas das ciências naturais conseguem ensinar os seus próprios cursos ao lado daquilo que para eles deveria ser uma fonte de material radioativo. A preocupação de Viveiros de sua bomba ter sido desativada talvez esteja equivocada: um novo período de florescimento é aberto para a antropologia (ex-física e ex-cultural) agora que a natureza deixou de ser um meio para se tornar um problema muito contestado, no momento mesmo, por acaso, em que a crise ecológica - um assunto de grande preocupação política para Viveiros no Brasil - reabriu o debate que o “naturalismo” tentara prematuramente fechar.

Mas o que é ainda mais recompensador de ver numa disputatio como esta é o quanto nós progredimos com relação à categoria modernista e, depois, pós-moderna. Certamente, a busca por um mundo familiar é infinitamente mais complexa agora que tantos modos diferentes de habitar a terra ficaram livres para se implantar. Mas, por outro lado, a tarefa de compor um mundo que ainda não é familiar está claramente colocada para os antropólogos, uma tarefa que é tão grande, tão séria e tão recompensadora quanto qualquer outra coisa com a qual eles tiveram que lidar no passado. Viveiros apontou para isto em sua resposta para uma questão vinda da platéia, usando uma espécie de aforismo trotskista: “Antropologia é a teoria e prática de permanente descolonização.” Quando ele acrescentou que “a antropologia hoje está largamente descolonizada, mas a sua teoria ainda não é descolonizadora o suficiente”, alguns de nós na sala tiveram o sentimento de que, se este debate for indicativo de algo, nós podemos finalmente estar chegando lá.



* Traduzido por Larissa Barcellos


Notas:

1- Disputatio: tipo de disputa de idéias e argumentos ocorrida no período medieval entre dois professores com posições contrárias, que apresentavam suas idéias em pequenas proposições para serem publicadas e, depois, debatidas entre o público acadêmico. Em debates deste tipo, os alunos tinham como tarefa acompanhar e recolher todas as idéias em uma síntese. Para saber mais: http://isaiaslobao.blogspot.com/2008/11/disputatio-theologica.html (N.T.)


(Extraído do Blog Epifenomenologia)