quinta-feira, 3 de julho de 2008

Baixar arquivo na internet pode virar crime


Mais um capítulo da série: "Criminalizando o cotidiano"

Projeto de lei sobre crimes eletrônicos, ou cibercrimes, em tramitação adiantada no Senado, pode levar à criminalização em massa de usuários de internet que baixam e trocam arquivos (músicas, textos e vídeos) sem autorização do titular. A reportagem é de Elvira Lobato e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 03-07-2008.

Esse é o entendimento de seis professores da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, em parecer conjunto divulgado no Rio. Segundo eles, as conseqüências iriam além do âmbito da internet. Pela amplitude da redação, poderia haver conseqüências até para donos de celulares que desbloqueiam seus aparelhos. O Brasil tem 130 milhões de celulares.

Assinam o parecer os advogados Ronaldo Lemos, Carlos Affonso Pereira de Souza, Pedro Nicoletti Miozukami, Sérgio Branco, Pedro Paranaguá e Bruno Magrani, fundadores do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV.

O projeto de lei foi aprovado pelas comissões de Assuntos Econômicos e de Constituição e Justiça do Senado, no mês passado, e está em fase de recebimento de proposta para votação em plenário.

O mesmo projeto já causara polêmica em 2006, quando especialistas e provedores de acesso à web reagiram contra a obrigatoriedade de identificação prévia dos internautas nas operações com interatividade, como envio de e-mails, que burocratizaria a rede.

O texto foi modificado, mas novos questionamentos estão sendo feitos. O parecer dos professores da FGV sustenta que os artigos 285-A e 285-B do projeto, que tratam dos crimes contra a segurança de sistemas informatizados, atingem ações triviais, praticadas por milhares de pessoas, na internet, e criam um instrumento de ""criminalização de massas".

O artigo 285 - A qualifica como crime - com pena de reclusão de 1 a 3 meses e multa- ""acessar rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado sem autorização do legítimo titular, quando exigida".

Segundo o professor Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV, as pessoas poderiam ser condenadas por desobedecer a termos de uso criados por particulares.

"Cada "legítimo titular" decide quais são os termos de autorização e passa a ser dele o papel de preencher o conteúdo da lei penal. A violação passa a ocorrer de acordo com condições subjetivas e com interesses específicos, dando margem para abusos de direito", afirma o parecer dos professores.

MP3

Segundo Ronaldo Lemos, ao se referir a "rede de computadores", "dispositivos de comunicação " e ""sistema informatizado", o projeto engloba não só computadores mas reprodutores de MP3, aparelhos celulares, tocadores de DVD, sistemas de software e até conversores de TV digital, além de websites. Nessa linha, segundo ele, o projeto alcançaria até o desbloqueio de celular.

Os professores alegam que nenhum país criminaliza o acesso a informações na internet de forma tão ampla. "A legislação mais próxima ao que se propõe foi adotada nos EUA, que criminalizaram o ato de quebrar ou contornar medidas de proteção tecnológica. Mas nenhuma criminalizou o próprio acesso", diz o parecer.

O artigo 285-B qualifica como crime, também sujeito a reclusão de um a três anos, e multa "obter ou transferir dado ou informação" sem autorização do legítimo titular.

Os professores da FGV propõem a exclusão ou a mudança do texto dos dois artigos. Querem que só sejam considerados crime o acesso e a transferência de informações na internet se feito por meio fraudulento e com a finalidade de obter vantagem para si ou para outrem.

Vigilância

Um terceiro artigo do projeto de lei - o artigo 22 - também está sendo questionado tanto pelos provedores de acesso à internet quanto pelos professores da Escola de Direito da FGV do Rio de Janeiro. Ele cria a obrigação para os provedores de informar, sigilosamente, às autoridades indícios de prática de crime de que tenham tomado conhecimento.

Para os professores da FGV, o artigo cria um sistema de delação e de vigilância privada sobre os internautas, na medida em que os provedores estariam obrigados a informar os casos em que -de acordo com suas próprias convicções- haveria indício de crimes.


Extraído de: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=15059

Ser homem ou mulher


Por: CONTARDO CALLIGARIS


A anatomia é o destino? Talvez, mas há lugares em que a mulher pode escolher ser homem

NOS ANOS 1960, "descobrimos" que a identidade de cada gênero, masculino, feminino ou outro (há outros, sim), era construída e imposta pela cultura em que vivíamos. Ou seja, nosso sentimento íntimo de ser homem ou mulher dependia dos valores que nos eram transmitidos: "alguém" nos oferecera bonecas ou soldados e nos propusera futebol ou costura.
A descoberta encorajou a militância igualitária, os papéis sociais de homens e mulheres se aproximaram e, enfim, tornou-se possível sentir-se homem e cuidar das crianças ou fazer bordado, e sentir-se mulher e pensar na vida profissional ou entrar no exército. Isso, sem que ninguém se atormentasse com dúvidas excessivas sobre sua identidade viril ou feminina.
Nas últimas décadas, houve um refluxo: hoje, sentir-se homem ou mulher nos parece ser, antes de mais nada, um efeito da diferença biológica entre os sexos.
Talvez seja por causa das próprias mudanças que mencionei acima: as diferenças culturais entre gêneros se tornaram menos relevantes e procuramos outras, mais "sólidas".
Mas muitos dirão que aconteceu o seguinte: os avanços da ciência mostraram que, na constituição das identidades de gênero, hormônios, genes etc. contam mais do que as palavras e os comportamentos. Ou seja, pouco importa que eu vista você de renda ou de farda, você será ou se sentirá homem ou mulher como mandam a química e a física de seu corpo.
Paradoxalmente, essa posição, que pretende ser materialista, parece apostar na separação de corpo e mente, como se um mundo "real" de genes e hormônios existisse separado do da fala e dos atos da gente (que, cá entre nós, não é menos real). Acho mais provável que haja um mundo só, em que interagem fenômenos descritos de jeitos diversos, mas que pertencem a uma única realidade, a nossa, feita de descargas hormonais, obrigações indumentárias e comportamentais, genes, xingões, chapoletadas, neurotransmissores, conselhos, amores e carícias.
Além disso, é bom não esquecer que a primazia atual das explicações "anatômicas" é, por sua vez, um fato cultural. Ela é a evolução esperada da cultura ocidental moderna, que promove, dessa forma, sua melhor idéia: a de uma humanidade comum a todos, além das diferenças culturais. Por exemplo, para justificar a existência de direitos humanos universais, nada melhor do que uma definição da espécie a partir da biologia comum e não das culturas, que divergem.
Seja como for, o clima de hoje sugere que a anatomia seja o destino. Nesse quadro, é bom meditar sobre um extraordinário artigo de Dan Bilefsky, no "New York Times" de 25 de junho (em www.nytimes.com, procurar "Woman as Family Man"). Bilefsky viajou pelas montanhas do norte da Albânia, onde sobrevivem os restos de uma cultura tradicional, regida por um cânon rigoroso que, entre outras coisas, prescreve a vendeta entre famílias, de geração em geração: vocês matam um dos nossos, nós mataremos um dos seus -sendo que só podem matar e ser mortos os homens das respectivas famílias. "Abril Despedaçado", de Ismail Kadaré (Companhia das Letras), dá uma boa idéia do clima local. Quem não leu pode assistir ao filme homônimo, de Walter Salles, que transpôs o romance de Kadaré para o norte do Brasil no começo do século 20.
Pergunta: o que acontecia, numa cultura como essa, quando só sobravam as mulheres de uma família? Pois é, no caso, encorajada pelo fato de que, nessa cultura, ser mulher era especialmente chato, uma virgem, livremente, podia decidir ser homem. Ela cortava o cabelo, vestia-se de homem, carregava faca e arma, sentava-se com os homens e com eles rezava na mesquita, matava e era morta nas vendetas e tornava-se patriarca da família.
Belefsky encontrou e fotografou várias mulheres-homens, na faixa dos 80 anos, mulheres que, 60 anos atrás, virgens, renunciaram à vida sexual e decidiram ser homens. E, de fato, sentiram-se e foram homens. Na verdade, ainda são: no pleno exercício de seu patriarcado.
O que assombra nessa história, aliás, não é só a construção cultural do gênero, mas a incrível liberdade que se revelava possível numa sociedade estritamente tradicional (a gente pensa, em geral, que a liberdade de escolha seja coisa exclusivamente nossa).
Queria prestar homenagem a Ruth Cardoso. O jeito foi escrever sobre algo que, onde quer que ela esteja hoje, talvez a interesse.