terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A massa



Por: Luiz Felipe Pondé

"Imaginem celulares e internet nas mãos nazistas! Seria esta uma contradição insuperável da modernidade? Sua eficácia técnica e burocrática repetiria a maldição atávica de Prometeu?", escreve Luiz Felipe Pondé, professor da PUC-SP, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 15-12-2008. E continua perguntando: "Uma vez que fetos não são mais humanos, por que não usá-los em pesquisas de cosméticos ou remédios? Quem teria um argumento contra isso que não fosse miseravelmente metafísico, uma vez que a decisão legal tiver definido o que é humano e o que não é "na matéria da lei"? A tentativa de definir questões desse tipo como "problemas de saúde pública" é mera retórica que visa transparecer um halo de objetividade pré-moral. No fundo, é simples questão de dinheiro associada ao desejo de aniquilar o senso moral pra "baratear" o aborto".

Eis o artigo.

Leitores apressados identificam em mim um culto da escuridão. Pensam que me faltaria luz. Daí meu "pessimismo". Não, isso é um engano. Suspeito, sim, que levar as "luzes" a sério demais é sinal de pouca luz.

Confesso, não sou muito moderno. "Seria este colunista um retrógrado?", indaga-se o leitor apressado. Respondo: não se deve ter medo de ser anacrônico. Muitas vezes ser extemporâneo pode ser uma forma de consciência. Hoje, em meio à pressa do cotidiano, gostaria de partilhar com o leitor um desconforto. Há uma relação perigosa entre políticas de saúde e a estupidez das massas: chantagem emocional, humilhação moral, procedimento estatístico, opressão burocrática, constrangimento legal. O leitor apressado, movido por seus vícios, pensará que sou "contra" a saúde, mas não se pode fazer muito contra os vícios. Sei disso porque os tenho aos montes.

Enfrentaremos nos próximos anos novas formas de eugenia que a saúde de massa assumirá ao atingir o formato legal. A violência é invisível quando é legal. Recentemente li nesta Folha uma pequena nota que falava de um projeto da Organização Mundial da Saúde propondo políticas mais agressivas contra a Aids. Ironicamente diria que aí está um alerta para jantares inteligentes: jamais questione políticas como essa; melhor contar, entre dois goles de vinho, sua vida sexual com um pastor alemão.

Cientistas cogitam uma lei que obrigaria toda pessoa acima de 15 anos a fazer todo ano exame de HIV. Já vejo o documento do "HIV zero" com validade de um ano sem o qual você não tira passaporte, não saca dinheiro, não faz seguro de saúde, não casa, não herda. Por que não fazer o mesmo com doenças genéticas e diabetes? As empresas adorariam "administrar" a qualidade da saúde de seus funcionários.

Como nos diz Zygmunt Bauman em seu livro "Modernidade e Holocausto", o mal-estar é um traço da consciência moral moderna. Diante do constrangimento causado pela burocracia da saúde de massa, seriam os incompetentes uma esperança? Sabemos que, num campo de concentração, um soldado bêbado ou corrupto salvaria vidas. Imaginem celulares e internet nas mãos nazistas! Seria esta uma contradição insuperável da modernidade? Sua eficácia técnica e burocrática repetiria a maldição atávica de Prometeu?

Nunca foi possível abortar e depois ir ao cinema. O avanço da ciência nos impõe impasses éticos antes impensáveis. Avanços dramáticos são aqueles que demandam definições do tipo "o que é o humano?". Novas formas de barbárie invisível podem surgir da relação entre avanços científicos e definições jurídicas. Chama-me a atenção a fúria como as campanhas pró-aborto repetem o movimento de desumanização, agora, do feto: "Feto não é gente, pode jogá-lo fora". Campanhas assim (de definição do "humano") já foram realizadas em outros momentos da história e aplicadas com sucesso a outras vítimas.

Só tolos crêem que juízes possam evitar essa forma de violência invisível. Ao contrário, eles podem ser os agentes dela porque são submetidos ao próprio processo de acomodação que o imaginário cultural produz ao longo do tempo. Um juiz não tem autonomia em relação ao seu momento histórico.

Uma vez que fetos não são mais humanos, por que não usá-los em pesquisas de cosméticos ou remédios? Quem teria um argumento contra isso que não fosse miseravelmente metafísico, uma vez que a decisão legal tiver definido o que é humano e o que não é "na matéria da lei"? A tentativa de definir questões desse tipo como "problemas de saúde pública" é mera retórica que visa transparecer um halo de objetividade pré-moral. No fundo, é simples questão de dinheiro associada ao desejo de aniquilar o senso moral pra "baratear" o aborto.

Antes de tudo, é necessário desumanizar o feto para atingir o afeto vazio que caracteriza o aborto sem culpa. Sem a agonia moral não existe moral. O leitor apressado, agora também irritado, suporá que nego a possibilidade de uma pessoa ter vida moral sem sofrimento. Confesso, nisso ele está certíssimo. O coração da vida moral é o sentimento de culpa.

Temo que dentro de cem anos essa discussão se acabe. A própria identificação entre sexualidade e reprodução estará extinta. A reprodução será, como tudo mais, mediada pelo mercado, aquele das tecnologias da reprodução. A sexualidade será, por sua vez, algo assim como ir ao cinema.




Tompkins, o ambientalista latifundiário e antiliberal

Por:Humberto Saccomandi, de Rincón del Socorro, Argentina

24/11/2008

Em Rincón del Socorro, uma estância na Província argentina de Corrientes, a paisagem é absolutamente plana e o horizonte parece não ter fim. A longa e poeirenta estrada de terra converge para o infinito. Apesar dessa amplitude, até onde a vista alcança a terra pertence a uma pessoa, o americano Douglas Tompkins. Mas lá não há plantações e quase não há gado, como nas estâncias vizinhas. Sobram pássaros, capivaras e jacarés, comuns nessa região, os Esteros del Iberá, uma versão argentina do pantanal brasileiro.

Tompkins, de 65 anos, é um dos maiores proprietários de terras do mundo. Empresas e fundações dele e de sua mulher, Kristine, possuem cerca de 830 mil hectares na Argentina e no Chile (o número é uma estimativa). Mas seu objetivo é diametralmente oposto ao de grandes latifundiários, como os reis da soja brasileiros. Ex-empresário do setor de moda, Tompkins vendeu sua empresa nos EUA para se tornar um ícone do ambientalismo, comprando terras para promover a conservação da paisagem e da biodiversidade.

Para isso, ele disse já ter gasto US$ 370 milhões de sua fortuna. E espera gastar outro tanto até o fim da vida. "Mas isso vai depender de quanto eu vou viver", brincou Tompkins em entrevista ao Valor em sua casa, em Rincón del Socorro, parte dos 135 mil hectares que possui nos Esteros del Iberá.

A maior parte de suas terras é área de conservação natural, onde não há nenhum tipo de atividade econômica, a não ser visitação turística. É o caso do imenso Parque Pumalín, com seus quase 300 mil hectares no sul do Chile. Ele divide o país ao meio, pois ocupa uma área que vai da costa do Pacífico até a fronteira com a Argentina (veja mapa). Mas Tompkins tem também fazendas com criação de gado e plantações, cujos objetivos são, segundo ele, dar dinheiro e fornecer um modelo de produção ambientalmente sustentável. "Somos bons fazendeiros."

Olhando pelo seu ponto de vista atual, o da conservação quase sem concessões, Tompkins passou por uma espécie de conversão, já que hoje renega a atividade com a qual fez fortuna. Ele fundou nos anos 60 duas grifes de muito sucesso nos EUA: a The North Face, que logo vendeu para criar a Esprit.

"Comecei a me dar conta do negócio em que atuava, que era produzir coisas de que ninguém necessitava. Na verdade, o que fazíamos era produzir o desejo nas pessoas de comprá-las, por meio de propaganda, construção de imagem e marketing. E constantemente fornecer algo novo", disse.

Essa crise existencial coincidiu com um interesse maior pelo ambiente. "Eu retornava a lugares e via vários tipos de desenvolvimento, como projetos florestais, estradas, prédios, represas. Projetos humanos tinham avançado sobre a paisagem, deformando-a. Tentei entender, de modo sistemático, quais eram as forças que estavam por trás dessa marcha implacável do progresso e do desenvolvimento, como chegamos ao ponto de achar que é bom derrubar florestas e eliminar biomas, alterando seriamente paisagens e ecossistemas." Sua conclusão foi que "isso era uma crise de civilização".

Essa conversão foi um processo longo, explica. O ativismo ambiental conviveu anos com a atividade empresarial, até 1990. "Então simplesmente me livrei dos meus negócios. E usei a receita aferida para criar fundações sem fins lucrativos, cujo objetivo é parar a demolição da paisagem por essa civilização perturbada. Coloquei-me do lado de Davi contra Golias."

Sua primeira fundação foi a Deep Ecology Foundation, inspirada no conceito de ecologia profunda, do filósofo norueguês Arne Naess, que coloca o ser humano em pé de igualdade com outras espécies como parte integrante (e não acima) do ambiente e que se opõe a um uso utilitarista da natureza pelo homem. Essa fundação financia estudos e publica livros. Em seguida, Tompkins criou a The Conservation Land Trust, por meio da qual passou a comprar terras para conservação, inicialmente no Chile e depois na Argentina. A Conservacion Patagonica foi criada em 2000, por Kristine, para projetos específicos de conservação na Patagônia argentina.

Hoje, o casal mora parte do ano na Argentina e parte no Chile. Nos dois lugares, Tompkins comprou brigas pelo ativismo conservacionista. No Chile, ele se opõe à construção de hidrelétricas, que ajudariam a minimizar o problema da escassez de energia no país, e de estradas na região de seu parque. Na Argentina, denunciou à Justiça fazendas vizinhas que retiravam, sem autorização, água do pantanal para irrigar plantações. Isso levantou suspeitas e críticas. Ele foi acusado, entre outras coisas, de ser agente da CIA e de querer se apoderar do aqüífero Guarani. Na estrada que leva à sua estância, há pichações "Tompkins pirata".

"Há oposição em todo lugar, não há dúvida. O mundo da produção e o da conservação são antagonistas, por natureza. É assim no mundo inteiro, pois o uso da terra é uma questão política."

A estância Rincón del Socorro, onde ele mora, foi quase totalmente convertida de rancho de gado para a conservação (há também uma pequena pousada). Parte das terras fica dentro da reserva natural do Iberá. O vilarejo mais próximo, que antes dependia da produção, agora vive de turismo e das atividades de conservação, como o monitoramento ambiental da área, em boa parte financiadas por Tompkins. "A conservação da biodiversidade sempre foi uma questão central na minha visão de mundo. Ao final, é a saúde do ecossistema que sustenta tudo", disse.

Para ele, a visão utilitarista segundo a qual o homem pode fazer o que bem entender com a natureza, é uma característica do que ele chama de sociedade tecnológico-industrial, que se desenvolveu no Ocidente rico e se alastrou. "Essa obsessão pela produção e pelo consumo é, na realidade, uma conversão da natureza em produtos humanos. Isso é claramente uma coisa errada, é a grande ilusão da modernidade", diz. "Essa sociedade acha que pode ignorar a natureza, que seria apenas um vasto armazém de recursos à nossa disposição, e que podemos mudar a paisagem do modo que quisermos e não haverá conseqüências."

Nessa hora lhe vem em mente o Brasil. "Você vê aquelas imensas plantações de soja no Brasil e se pergunta: que tipo de vida selvagem vai sobreviver lá? Nenhuma. Mas isso nem é percebido como um problema." Mas os produtores brasileiros podem respirar aliviados. Tompkins diz que nunca cogitou comprar terras no Brasil e que não tem planos para isso. "Vocês no Brasil têm um imenso reservatório de espécies, e provavelmente estamos extinguindo espécies que ainda não foram descobertas. Deveríamos nos envergonhar."


O Chile o atraiu por conta da paisagem, com montanhas, neve, vales e o mar, tudo muito perto, além da segurança jurídica oferecida pelo país no início dos anos 90. Já a maior parte das terras na Argentina foi comprada durante a crise econômica no país, no início desta década. Nesse caso, Tompkins se disse atraído por um ecossistema muito particular, os Esteros del Iberá, que estavam em situação ruim de degradação. "Gosto de comprar as coisas em mal estado e recuperá-las."

Tompkins esclarece alguns princípios de sua atuação. Ele não compra pequenas propriedades para juntá-las, pois nesse caso teria de remover muita gente, em geral gente pobre. Ele mantém seu dinheiro em fundos em euro, mas não permite investimentos numa série de empresas, como de armas, biotecnologia e combustíveis (inclusive etanol). Ele e suas fundações não financiam partidos nem políticos. "Queremos estar bem com todos, o que não é fácil." Ele cita a boa colaboração com o governo do ex-presidente socialista Ricardo Lagos, no Chile, e com o ex-presidente argentino Néstor Kirchner, nesse caso para a criação de um parque nacional na Província natal de Kirchner.

Milionário, ele diz que não tem ambições patrimonialistas e que seu modelo preferido é, sempre que possível, recuperar o ecossistema e devolver a terra ao país, por meio da criação de parques nacionais. Nesse caso, ele faz uma doação ao governo, condicionada à manutenção do parque. "Se tentarem dar um outro uso, retomamos a terra." Essas doações já foram feitas na Argentina e no Chile.


O ponto central da atuação de Tompkins é que a paisagem deve ser o principal "marcador", sinalizador, da economia, e não a produção. Assim, um modelo que estimula, por exemplo, uma agricultura intensiva baseada na monocultura, que resulta em profundas modificações na paisagem e no seu ecossistema, não é um modelo saudável, ainda que em termos de produção seja mais eficiente. "Isso significa passar de um mundo antropocêntrico para um mundo ecocêntrico. Essas duas visões de mundo estão em disputa, e uma delas é muito perigosa."

"Obviamente isso é muito diferente do que dizem os economistas e políticos 'integrados', cuja visão e gestão nos levaram à crise das extinção [de espécies], da redução da biodiversidade e, é claro, da mudança climática, que é a expressão pura do modelo econômico neoliberal." Modelo, ele alfineta, que é promovido pelos jornais econômicos. "Todas as pessoas que têm poder, prestígio e privilégio são ligadas a esse modelo, se beneficiam dele, e não querem ver nada diferente." E, no que ele qualifica de realidade única, "o desenvolvimento, o progresso e o crescimento econômico são dogmas".

Tompkins é cético quanto à maioria dos programas de sustentabilidade promovido por empresas. "Isso em geral é bobagem, é só marketing. O máximo que podemos falar é de menos insustentabilidade." Também é crítico de boa parte do movimento ambientalista pelas excessivas concessões.

Para ele, não é possível conciliar sustentabilidade com transformações profundas na natureza, inerentes ao padrão de produção e consumo atual, e que geram efeitos imprevisíveis. "Temos de pensar no sistema como um todo. É um sistema muito complexo e não deveríamos ter a arrogância da ciência ocidental que crê que tudo é compreensível. Em última análise, não é. E não é bom pensar que vamos entender, pois isso é um modo de nos isolarmos da enorme complexidade do mundo. Há esferas que não conhecemos. Toda vez que se lança no ambiente uma nova tecnologia, como os telefones celulares, abre-se um vasto buraco negro de ignorância. Não sabemos quais os efeitos de todas essas microondas. Suspeita-se agora que elas estão confundindo os sinais de reprodução dos sapos. E se os sapos não se reproduzem, estamos perdendo sapos por toda a parte. Bem, um financista em Nova York ou Paris pode dizer: ´Para que precisamos de sapos?´. Isso só demonstra o quão estúpido ele é. Os sapos são peças-chave para ciclos que são importantes para outras coisas, pois tudo está interconectado. As variáveis são tantas que nenhum modelo de computador pode predizer quais são as implicações. Só podemos saber que haverá problemas não previstos em cascata nos ecossistemas."

Pergunto a Tompkins: como fazer para vencer o incentivo econômico que é o fato de que as pessoas, a sociedade, o país ficam mais ricos no curto prazo derrubando florestas para plantar soja? "Sua questão é típica, pois vai direto para a estratégia. Sabemos que as pessoas ficam mais ricas no curto prazo, que essa é a força motora. Como se muda isso? Não sei, prefiro deixar para o futuro. Mas sei que, se mais pessoas pensarem como eu penso, políticas diferentes começarão a ser elaboradas. Haverá uma preocupação com o futuro. Não pensamos no curto, mas no longo prazo, bem além das nossas vidas. É uma posição religiosa, moral, se você quiser. Vai além do você ganha ou perde hoje. Você precisa acordar pela manhã preocupado com o futuro do mundo. Se você assume essa posição, então pode liberar a sua mente para poder ver o que estamos de fato fazendo."

Tompkins admite que as desigualdades no mundo constituem um obstáculo, mas não justificam continuar a marcha de destruição da natureza. "Vamos olhar pelo outro lado: se não for possível [reduzir a degradação ambiental], podemos dar adeus ao mundo." Observo que quem não tem o que comer dará adeus ao mundo antes. "Se partirmos da idéia de que não há futuro, então tanto faz dar adeus mais cedo ou mais tarde." E argumenta que o modelo de produção intensiva, além de degradar o ambiente, não favorece a distribuição de renda, pelo contrário.

Tompkins não fornece uma estratégia clara de saída, mas a sua atuação indica para onde ele gostaria de ir. A sua produção agrícola sustentável implica pequena escala, com variedade de culturas e pouco ou nenhum uso de fertilizantes químicos e agrotóxicos. Isso reduziria a produção e elevaria o preço dos alimentos. Haveria assim menos excedente para gastar com consumo de outros bens e serviços, o que, por sua vez, diminuiria a pressão sobre outros recursos e sobre o ambiente. O mundo seria materialmente mais pobre.

Ele diz que que as pessoas nos países ricos gastam de 5% a 10% de sua renda, em média, com alimentação. "Deveria ser muito mais, algo como 25% a 30%." Essa redução, para que as pessoas tivessem um excedente para gastar com carros, viagens e universidades caras, só foi conseguida por meio da produção agrícola intensiva, com forte dano ambiental. Ele vê nisso um antagonismo entre o campo e a cidade. "A população urbana vive de sugar os recursos do campo, mas não tem a menor idéia do que se passa lá, do tsunami ambiental que está chegando."

A entrevista está acabando e pergunto a Tompkins se ele não se sente às vezes vivendo numa ilha da fantasia, tanto pela paisagem que se vê de sua janela como pelas suas idéias. "Toda revolução começa com um primeiro passo. Não sabemos onde estamos na história. Vamos descobrir isso depois. Ao final, todos buscam fazer o melhor que podem, sob as condições e as perspectivas que têm. O que mais você pode fazer? Sabemos que estamos lutando contra as tremendas forças motoras da economia e seus fatores políticos. Mas qual é a alternativa? Aderir a isso? Isso está arruinando o futuro. Você tem de trabalhar no que acredita, e acredito que o que fazemos é melhor para o presente e para o futuro. É por isso que acordamos todas as manhãs, mesmo sem ilusões e sem grandes esperanças diante das tremendas forças da sociedade tecnológico-industrial. Sem encontrar um sentido no trabalho diário, a vida não vale a pena."


Fonte: VALOR ONLINE

O mundo não agüenta essa pantomima

"Encarregados de produzir um plano para cortar emissões de carbono, os governos produziram muito pouco além de bravatas", escreve Kevin Watkins, pesquisador sênior do Programa de Governança Econômica Global da Universidade de Oxford (Inglaterra), comentando a reunião de Poznan, em artigo publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, 16-12-2008. Segundo ele, "nos últimos meses, os governos dos países ricos moveram montanhas financeiras para proteger a integridade de seus sistemas bancários. Qual é o preço da integridade ecológica do planeta, do bem-estar das gerações futuras e do compromisso com os pobres do mundo?"

Eis o artigo.

As negociações cruciais sobre mudança climática em Poznan, Polônia, caminharam para lugar nenhum. Encarregados de produzir um plano para cortar emissões de carbono, os governos produziram muito pouco além de bravatas, com ministros reciclando promessas vagas de ação futura. Sem dúvida, eles se deitam à noite recitando uma variação da oração de Santo Agostinho: "Ó Senhor, torna-me casto - mas não ainda, e certamente não em Poznan".

Infelizmente, este é um momento do tipo "agora ou nunca". A Conferência de Poznan marcou a metade da trajetória de negociação de uma nova convenção climática das Nações Unidas. Esperava-se que prepararia o terreno para um grande pacto global para enfrentar o maior desafio que a humanidade já viu.

Falando claramente, o desafio em Poznan era estabelecer as coordenadas para evitar uma colisão entre os sistemas de energia que alimentam nossas economias e a biosfera da Terra. Metas ambiciosas devem estar no cerne de qualquer acordo para enfrentar o desafio. Mas também necessitamos de uma nova arquitetura institucional de cooperação entre países ricos e pobres.

Se a tendência no aumento da temperatura continuar, conduzirá a reversões no desenvolvimento humano sem precedentes ainda em nosso tempo de vida, seguidas rapidamente de uma catástrofe ecológica para as gerações futuras. As economias podem se recuperar de uma crise financeira. Mas não há antídoto ou tecla de replay para o aquecimento global.

Em Poznan, os países ricos deveriam ter estabelecido uma intenção séria. Era preciso sinalizar um compromisso obrigatório de reduzir sua pegada de carbono pelo menos em 80% (relativo aos níveis de 1990). Acima de tudo, era e é preciso aproximar as metas de mudança climática e as políticas energéticas.
Os países ricos têm os recursos financeiros e a capacidade tecnológica para fazer uma transição rápida para baixo carbono. Com um aumento do preço da emissão de carbono, por meio de impostos, cotas e normas regulatórias mais duras, podem transmitir um sinal claro para os investidores e estimular a inovação.

As parcerias público-privadas em pesquisa têm um papel-chave no desenvolvimento e na comercialização de novas tecnologias. A captura e o armazenamento de carbono são uma prioridade porque têm o potencial de reduzir as emissões das usinas de energia movidas a carvão, a forma predominante de geração elétrica, a zero. Contudo, nem os EUA nem a UE foram além de investimentos de pequena escala em projetos piloto.

Os países ricos também precisam construir as bases para um novo pacto global com os países em desenvolvimento. Não se trata apenas do fato de esses países abrigarem as populações mais vulneráveis à mudança climática, incluindo 1,6 bilhão de pessoas vivendo com menos de US$ 1 por dia. Eles também respondem por grande parte do aumento projetado de emissões de CO2 até 2030: o crescimento econômico movido a carvão na China e na Índia será responsável por bem mais que a metade do aumento. E o desmatamento em países em desenvolvimento é responsável por cerca de um quinto das emissões.

Em Poznan, os governos tinham a oportunidade de estabelecer três dos pilares para um acordo global. Primeiro, precisamos de um plano de ação para adaptação. Como indicado por Oxfam, para milhões das pessoas mais pobres do mundo, a mudança climática perigosa não é uma ameaça futura: está acontecendo agora.

O Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas estima o custo de combater essa ameaça em US$ 86 bilhões de ajuda adicional, quase um nono do que foi oferecido pelo governo nos EUA para o resgate dos bancos americanos.

Em segundo lugar, os países ricos têm que parar de falar e começar a agir com relação ao desmatamento, um dos caminhos mais custo-efetivos para cortar emissões de gás de efeito estufa.

Em terceiro lugar, o mundo precisa de um Plano Marshall para financiamento de baixo carbono e transferência de tecnologia. Um elemento desse plano deverá ser a expansão de oportunidades de comercialização de emissões para países em desenvolvimento. Mas os países ricos também têm que implementar mecanismos multilaterais mais amplos para sistemas de descarbonização da energia.

O mundo não agüenta o tipo de exibição desorganizada que foi encenada em Poznan. Nos últimos meses, os governos dos países ricos moveram montanhas financeiras para proteger a integridade de seus sistemas bancários. Qual é o preço da integridade ecológica do planeta, do bem-estar das gerações futuras e do compromisso com os pobres do mundo?